Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
469/10.5TBCVL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: BASE INSTRUTÓRIA
CONCLUSÕES
FALTA DE RESPOSTA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE
DIREITO DE RETENÇÃO
Data do Acordão: 11/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 646.º N.º 4, 653.º N.º 2, 668.º N.º 1 B) E 712.º N.º 4 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1- Se, não havendo lugar à elaboração de base instrutória, um artigo dos articulados é constituído por expressões conclusivas, o tribunal não lhe deve responder, à semelhança do que faz nos casos em que está perante questões de direito, aplicando-se por analogia o regime do artigo 646.º n.º 4 do Código de Processo Civil, visto que o juízo de provado ou não provado só pode recair sobre factos.

2- Há uma nulidade processual se o tribunal a quo não se pronunciar relativamente a certo facto, quando tinha que o fazer por força do disposto no artigo 653.º n.º 2 do Código de Processo Civil. Mas, quer se aplique o regime geral das nulidades, quer o que resulta do artigo 712.º n.º 4 do Código de Processo Civil, só se determinará que ela seja sanada pelo tribunal recorrido quando a resposta em falta, de provado ou não provado, se revelar essencial para se decidir alguma das questões em causa no processo.

3- Só a total falta de fundamentação de direito é que se traduz na nulidade prevista no artigo 668.º n.º 1 b) do Código de Processo Civil, pelo que esta não se verifica quando essa fundamentação é escassa ou mesmo muito escassa.

4- Ao empreiteiro assiste o direito de retenção da coisa objecto da sua obra relativamente ao crédito do respectivo preço.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... L.da instaurou, na comarca da Covilhã, a presente providência cautelar de restituição provisória da posse, contra B... L.da, pedindo que se condene esta:

a) a restituir, imediatamente, à requerente a posse do prédio identificado nos artigos 7.º e 9.º deste articulado;

b) a repor os canhões de todas as fechaduras que removeu do prédio atrás aludido, nomeadamente os da porta da entrada principal, das portas das lojas e de quaisquer outras dependências a cuja substituição haja procedido; a restituir à requerente, ou a quem esta confira poderes para o efeito, todos os exemplares das chaves das fracções do edifício de que se apropriou; a reprogramar os automatismos dos portões das garagens nos termos em que os mesmos se encontravam em 29/3/2010, quando procedeu à desactivação da programação que então apresentava – tudo no prazo máximo de 24 horas a contra da data em que for notificada da decisão que vier a decretar a presente providência;

c) a abster-se de, por qualquer forma, ocupar o prédio atrás aludido, a nele permanecer, directa ou indirectamente, através de representantes ou colaboradores seus ou de terceiros a seu mando;

d) a abster-se de, por qualquer forma, impedir ou perturbar, total ou parcialmente, a posse da requerente sobre o prédio aludido nas alíneas precedentes;

e) a abster-se de aceder ao dito prédio, incluindo às zonas de estacionamento exterior, sem prévio consentimento da Requerente, prestado por escrito;

f) a respeitar integralmente as condutas aludidas nas alíneas precedentes, sob pena de, não o fazendo, incorrer, bem como os seus administradores, na prática do crime de desobediência qualificada.

Alegou, em síntese, que adquiriu o lote de terreno, sito na ..., Lote ..., na freguesia de ..., concelho da ..., então inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...e descrito na competente Conservatória do registo Predial sob o nº ..., com o objectivo de nele construir um edifício destinado a comércio, serviços e habitação e de o constituir em propriedade horizontal e proceder à revenda das respectivas fracções autónomas.

Para o efeito, celebrou com a requerida um contrato, que denominaram de Contrato de Empreitada – ... – ..., datado de 2 de Julho de 2007, nos termos do qual esta obrigou-se a construir naquele lote de terreno um edifício, destinado a habitação e comércio, incluindo um piso destinado a parqueamento de viaturas, zonas de estacionamento exterior, acessos pedonais e de viaturas, zonas verdes e demais arranjos exteriores das áreas envolventes, em conformidade com os respectivos projectos aprovados, com o caderno de encargos e memória descrita de acabamentos acordados, com as alterações que a dona da obra, porventura, viesse a introduzir-lhe, com todas as fracções e partes comuns devidamente preparadas e concluídas para os fins a que se destinam e com todas as vistorias, licenciamentos, certificações e demais documentação necessários à obtenção da licença de utilização e celebração das escrituras de transmissão das respectivas fracções autónomas obtidas em resultado do seu fraccionamento através da sua constituição em propriedade horizontal.

Foi estabelecido o preço de 3.736.750 € e a requerida obrigou-se a concluir a obra no prazo máximo de 18 meses. Posteriormente, o contrato foi modificado por acordo das partes, no que concerne às obras a executar, a algumas soluções construtivas, a materiais e acabamentos e ao preço inicialmente convencionado.

A requerida construiu o edifício, dando a obra por concluída a 3 de Abril de 2009, e a requerente procedeu à participação fiscal das diversas fracções do mesmo, apresentando para o efeito em 24 de Novembro de 2009 a respectiva declaração modelo 1 de IMI, que foi recepcionada no competente Serviço de Finanças em 25 de Novembro de 2009. Por escritura pública celebrada em 26 de Novembro de 2009, a requerente constituiu em propriedade horizontal o edifício, fraccionando tal prédio em 83 fracções e promoveu subsequentemente o registo destas.

No dia 29 de Março de 2010 deslocaram-se ao prédio o encarregado da requerida e uma viatura da "C...", com dois homens, que, por indicações daquele, procederam à mudança do canhão da fechadura da porta de entrada, forçando e removendo o que até então aí se encontrava colocado. E, quando a vendedora da requerente, que se encontrava no stand de vendas que esta tinha instalado no edifício, pretendeu aceder às fracções habitacionais do edifício, foi impedida de o fazer por aquele encarregado, que lhe disse que estava proibida de entrar no prédio. Nesse dia, a requerida comunicou à requerente, via fax que na sequência do incumprimento de todas as datas previstas para a realização das escrituras referentes aos contratos promessa de compra e venda (…) os quais constavam do acordo de regularização da dívida, por nós celebrado em 17 de Agosto de 2009 (…) vimos pelo presente considerar sem qualquer efeito o referido acordo. (…) Mais informamos que tendo em consideração o valor em dívida para com esta empresa, procedemos ao exercício do direito de retenção sobre a obra por nós executada, sem prejuízo, obviamente da cobrança coerciva do valor em divida nesta data.

A requerida disse então ter "confiscado" todas as chaves das fracções habitacionais do prédio, desprogramou os mecanismos de abertura do portão de acesso à cave, mudou os canhões das portas das diversas fracções comerciais, colocou no edifício um segurança, que mantém a porta de entrada fechada e impede, desde então, o acesso ao edifício à requerente, aos seus colaboradores, aos promitentes compradores das fracções e ao adquirente da fracção "K", que nesse mesmo dia 29 de Março a tinha comprado.

Produzida a prova oferecida pela requerente, foi proferida decisão com o seguinte teor:

Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, ao abrigo das disposições legais citadas e ainda do disposto no art.º 394º do Código de Processo Civil, ordena-se que a Requerida, no prazo de 24 horas a contar da notificação:

a. Restitua à Requerente a posse do prédio identificado na alínea H) dos factos indiciariamente dados como provados.

b. Reponha os canhões de todas as fechaduras removidas do referido prédio, nomeadamente os da porta da entrada principal, das portas das lojas e de quaisquer outras dependências a cuja substituição haja procedido.

c. Restitua à Requerente todos os exemplares das chaves das fracções do edifício de que se apropriou.

d. Reprograme os automatismos dos portões das garagens nos termos em que os mesmos se encontravam em 29/03/2010, quando procedeu à desactivação que então apresentava.

e. Se abstenha de, por qualquer forma, ocupar o prédio referido, a nele permanecer, directa ou indirectamente, através de representantes ou colaboradores seus ou de terceiros a seu mando.

f. Se abstenha de, por qualquer forma, impedir ou perturbar, total ou parcialmente, a posse da Requerente sobre o referido prédio.

g. Se abstenha de aceder ao dito prédio, incluindo às zonas de estacionamento exterior, sem prévio consentimento da Requerente, prestado por escrito.

h. Respeite integralmente as condutas supra aludidas, sob pena de, não o fazendo, incorrer, bem como os seus administradores, na prática do crime de desobediência qualificada.

Após ser citada, a requerida deduziu oposição, onde, em síntese, afirma que, a 29 de Março de 2010, a obra que lhe tinha sido confiada e de que tinha a posse, não estava concluída, nem tinha havido a sua entrega e aceitação. Mais alegou que a requerente não tinha a posse do imóvel, nem dele foi esbulhada. Afirma ainda ter exercido o direito de retenção e termina pedindo que se determine a revogação e o levantamento do procedimento cautelar de restituição provisória da posse.

Procedeu-se então à produção da prova oferecida pela requerida e terminada esta decidiu-se:

Assim sendo, invocando-se tais fundamentos, julgo totalmente improcedente a presente oposição e mantenho a providência decretada.

Inconformada com tal decisão, a requerida interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

a) O que está em causa pode resumir-se em meia dúzia de palavras: a Recorrente exerceu no dia 29 de Março de 2010, o seu direito de retenção sobre a obra que estava a construir para a Recorrida, por existência de dívidas por parte desta;

b) Em 5 de Maio de 2010, e por força de providência cautelar de restituição provisória da posse proposta pela Recorrida contra a Recorrente, é decretada a providência em causa, sem audição da Recorrente, sendo que, após a Oposição da Recorrente, e mais de 38 dias depois da sua decretação pelo Tribunal a quo, a providência é mantida; é dessa Sentença que agora se recorre;

c) A decretação da providência cautelar e a sua manutenção pela Sentença recorrida não tem qualquer sustentabilidade quer na prova documental e testemunhal que foi feita, nem no Direito adjectivo e substantivo em vigor;

d) Alcançando o “ambiente” que precedeu a decretação da providência cautelar, e o que precedeu a audiência final, após a Oposição da Recorrente, entende-se a razão pela qual não pode a Sentença Recorrida manter-se nos termos em que foi decretada;

e) Na produção da prova testemunhal, que ocorreu antes da decretação da providência, violaram-se todas as regras processuais em vigor, designadamente aquelas que obrigam o Tribunal a quo a questionar a razão de ciência e as circunstâncias em que as testemunhas conhecem os factos, nos termos do art. 638.º, do CPC;

f) Não é possível aceitar o testemunho de alguém que, não estando presente no dia 29 de Março de 2010, em determinado local, depõe como tendo tido conhecimento directo dos factos, sem que nunca se pergunte a razão de ciência acerca dos mesmos;

g) A Sentença em que se decreta a providência chega a dar como provada a existência de contratos-promessa de compra e venda que só posteriormente na Oposição são juntos aos autos;

h) No presente recurso impugna-se, também, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 685.º-B e 712.º, CPC, a matéria de facto provada e não provada pelo Tribunal a quo;

i) A Sentença recorrida dá como não provados factos que os documentos juntos com a Oposição, os quais não foram impugnados, e a prova testemunhal produzida na audiência de julgamento, obrigariam a que fossem dados como provados;

j) Existiam pelo menos três documentos nos autos que comprovavam que a obra não estava concluída no dia 3 de Abril de 2009, nem no dia de 17 de Agosto de 2009, nem no dia 23 de Novembro de 2009, nem no 29 de Março de 2010, dia em que a Recorrente procedeu ao exercício do direito de retenção sobre a obra que estava a construir para a Recorrida;

k) Num dos documentos juntos aos autos, e que é da autoria da própria Recorrida, datado de 24 de Março de 2010, é a própria que afirma não estar a obra concluída;

l) Todas as testemunhas foram peremptórias em afirmar que nunca a Recorrente tinha deixado de estar a executar trabalhos na obra, e que estava lá no dia 29 de Março de 2010, como lá tinha estado nos meses e dias anteriores, já que a obra ainda não estava concluída, mantendo-se em obra até ao dia 10 de Maio de 2010;

m) Devia, pois, ter sido dado como provado o facto constante dos artigos 62.º, 64.º, 65.º, 66.º, e 78.º, da Oposição, dando-se como provado que a obra se não encontrava concluída no dia 29 de Março de 2010;

n) Devia ter sido dado como provado o facto constante do art. 76.º, da Oposição, dando-se como provado que a Recorrente se encontrava executar trabalhos em obra quer no dia em que exerceu o direito retenção, 29 de Março de 2010, quer nos dias que decorreram até à decretação da providência;

o) A Sentença chega a dar como não provado o artigo 67.º, da Oposição no qual se afirmava que a obra tinha estado suspensa entre o dia 21 de Abril de 2009 até ao dia 17 de Agosto de 2009, conforme documento que se juntava e que nunca foi impugnado;

p) Apesar da Recorrida confessar que nunca tinha sido realizado qualquer auto de entrega da obra, apesar de nos termos do contrato de empreitada se exigir um documento formal para a aceitação/entrega da obra, a Sentença recorrida consegue dar como não provado que a obra nunca tinha sido entregue;

q) Na verdade, nos termos da Cláusula 18.ª, alínea c), do contrato de empreitada, que foi transcrita para a Oposição, era necessário a elaboração de um acto que formalmente procedesse à entrega/recepção da obra;

r) Não obstante, a Sentença recorrida dá como não provado que a obra não tinha sido entregue ao dono de obra;

s) Devia ter sido dado como provado que a obra nunca tinha sido aceite/entregue ao dono de obra, e ora Recorrida, conforme alegado no art. 96.º, da Oposição;

t) A Sentença recorrida, quanto aos demais factos alegados na Oposição, limita-se a dizer que todos eles são “matéria controvertida, conclusiva, de direito ou pura negação”, sendo que, pelo menos relativamente à matéria dita controvertida – que de facto existia – devia a Sentença recorrida ter-se pronunciado, descortinado então a verdade material sobre os factos invocados;

u) Como exemplo de matéria controvertida está a que tinha sido alegada, respectivamente pela Recorrida e pela Recorrente, nos arts. 36.º, do Requerimento e 35.º, da Oposição;

v) Em face dos documentos apresentados e da prova testemunhal produzida, que foi uma prova isenta, feita por quem tinha conhecimento directo e pessoal dos factos, deviam ter sido dado como provados os factos constantes dos arts. 62.º, 64.º, 66.º, 67.º, 76.º, 96.º e 103.º, da Oposição;

w) A Sentença recorrida não contém qualquer fundamentação de Direito, presumindo-se assim que mantém a (parca) fundamentação de Direito existente ao nível da Sentença em que se decreta a providência de restituição provisória da posse;

x) A Sentença através da qual se decreta a providência cautelar contém desde logo uma insanável contradição que depois se transmite à Sentença recorrida;

y) Por um lado afirma que são requisitos da decretação da providência: a posse, o esbulho e a violência; por outro afirma que do “Do acervo factual indiciariamente assente, dúvidas não há de que a requerente é proprietária do prédio identificado na alínea H) (sublinhado nosso);

z) Ou seja, o que se diz, é que se decreta a providência, porque a Recorrida provou a propriedade sobre o objecto da obra, ou seja, sobre o edifício;

aa) Ora, como é meridiano, o que cabia à Recorrida era provar um conjunto de factos dos quais decorressem de forma inequívoca que exercia poderes de facto sobre a obra, e que os exercia antes de a Recorrente ter feito a retenção da mesma, e não que era sua proprietária, pois isso não só é evidente como nunca por nunca esteve ou podia estar em causa, por força do art. 1212.º, n.º 2, do Código Civil;

bb) O que estava em causa, e podia legitimar a decretação da providência, era a prova de que o dono de obra já estava em poder efectivo da obra quando se fez a retenção, ou, dito de outra forma, que estando o dono de obra já na posse da obra, porque lhe tinha sido entregue a mesma, o empreiteiro lhe havia esbulhado, com violência, tal posse;

cc) Simplesmente da leitura da Sentença recorrida em que se decreta a providência nunca se retira que haja sido feita a prova de que o dono de obra estivesse na posse da obra no dia em que se exerceu o direito de retenção, nem nos meses que antecederam o exercício de tal direito;

dd) Por banda da Sentença recorrida, a dar-se como provada, como se deve dar, a matéria referente a não conclusão da obra, a sua não entrega/aceitação e a permanente presença do empreiteiro na referida obra, chegamos à conclusão que a mesma obra sempre esteve na esfera jurídica do empreiteiro, ora Recorrente, e não do dono de obra, o qual só apenas teve a posse, e provisoriamente, a partir do momento em que a providência foi decretada;

ee) Se assim é, então só tinha de se aferir se estavam reunidos os demais pressupostos que permitiam à Recorrente invocar o direito de retenção contra o dono de obra e ora Recorrida;

ff) Ora, tendo sido dado como provado, como o foi a existência de um crédito por parte da Recorrente, crédito que tem relação directa com a obra, conforme decorre da alínea c) da matéria provada da Sentença Recorrida, na decisão recorrida – podia, pois, a Recorrente exercer o direito de retenção sobre a obra, nos termos do art. 754.º do Código Civil, por estarem reunidos todos os pressupostos para o seu exercício;

gg) Direito de retenção este que, sendo um direito real de garantia, obstaria, por si só, ao deferimento e respectiva manutenção da providência cautelar;

hh) E mesmo que não fosse possível dizer que a Recorrente tinha a posse da obra, tendo apenas a sua detenção, ainda assim se mantinha a mesma conclusão;

ii) Pois a Jurisprudência e a doutrina são unânimes em afirmar que mesmo o detentor pode exercer o direito de retenção ali, onde, se verifiquem os demais requisitos para o exercício desse direito;

jj) Havendo mesmo quem defenda que no momento em que o detentor exerce o direito de retenção passe imediatamente a possuidor;

kk) O art. 754.º, do Código Civil, consagra o direito de retenção ao devedor que disponha de um crédito contra o seu credor se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela;

ll) Ora, nos termos de tal disposição, e de toda a matéria que devia ter sido dada como provada, a restituição provisória da posse concedida à Recorrida devia ter sido revogada;

mm) Ao decidir diferentemente, a Sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação do disposto no art. 393.º, do CPC e art. 754.º, do Código Civil, violando, ainda, o disposto no n.º 2, do art. 659.º, do CPC;

nn) A Sentença recorrida é, pois, uma má Sentença que deve ser objecto de rigoroso escrutínio por parte deste Douto Tribunal, que a revogará, tais são os clamorosos erros de julgamento que dela decorrem, devendo ser substituída por outra que revogue a providência cautelar de restituição provisória da posse, com as legais consequências.

Termina dizendo que a este recurso deve ser dado provimento e, em consequência:

a) Devem os factos constantes dos arts. 62.º, 64.º, 65.º, 66.º, 67.º, 76.º, 96.º, 103.º, e 106.º, da Oposição serem dados como provados;

b) Deve o facto constante do art. 78.º, da Oposição, ser dado como provado e não elencado como matéria controvertida, conclusiva, de direito ou pura negação;

c) Deve ser revogada a Sentença recorrida, substituindo-a por outra que declare que não estão verificados os pressupostos legais do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, por força do exercício do direito de retenção, e determine a restituição da obra à Recorrente, com as legais consequências.

Contra-alegou a requerente pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção da providência cautelar decretada.

Face às conclusões com que findam as alegação de recurso, as questões a decidir são as seguintes:

a) se na produção da prova testemunhal oferecida pela requerente, houve violação de regras processuais, por não se ter questionado a razão de ciência e as circunstâncias em que as testemunhas conhecem os factos;

b) se se devia ter julgado provados os factos alegados nos artigos 62.º, 64.º, 65.º, 66.º, 67.º, 76.º, 78.º 96.º, 103.º, e 106.º da oposição;

c) se o tribunal a quo se devia ter pronunciado quanto ao alegado nos artigos 36.º da petição inicial e 35.º da oposição[1] e, em caso afirmativo, quais as consequências de o não ter feito;

d) se a sentença recorrida não tem qualquer fundamentação de direito;

e) se a requerente tinha a posse do imóvel;

f) se à requerida assiste o direito de retenção e, em caso afirmativo, se o exerceu validamente;


II

1.º


Antes de mais, importa ter presente que, sem prejuízo da impugnação do julgamento da matéria de facto alegada nos artigos 62.º, 64.º, 65.º, 66.º, 67.º, 76.º, 78.º 96.º, 103.º, e 106.º da oposição, a requerida impugna também, na conclusão h),  a matéria de facto provada e não provada pelo tribunal a quo. Trata-se, sem dúvida, de uma impugnação genérica que, por assim ser, não respeita o exigido na alínea a) do n.º1 do artigo 685.º-B do Código de Processo Civil[2]. Na verdade, o ónus imposto ao recorrente que impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto traduz-se, deste modo, na necessidade de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente qual a parcela ou segmento -o ponto ou pontos da matéria de facto- da decisão  proferida que considera viciada por erro de julgamento[3]. Estas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, próprio de um instrumento processual que visa pôr em causa o julgamento da matéria de facto efectuado por outro tribunal em circunstâncias que não podem ser inteiramente reproduzidas na 2.ª instância[4]. É, pois, certo que se impõe ao recorrente um ónus rigoroso[5]

Por outro lado, a fim de desincentivar claramente possíveis manobras dilatórias, este preceito não previu o convite ao aperfeiçoamento da alegação que versa sobre a matéria de facto que se pretende impugnar e que, desde logo, não satisfaça minimamente, o estipulado nos n.ºs 1 e 2[6].

Assim, uma vez que nesta parte a requerida não identifica (nas conclusões), minimamente, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, por força da parte final do n.º 1 do artigo 685.º-B, rejeita-se, nesse segmento, o recurso[7].


2.º

A requerida sustenta[8] que na produção da prova testemunhal oferecida pela requerente, houve violação de regras processuais, por não se ter questionado a razão de ciência e as circunstâncias em que as testemunhas conhecem os factos. Ter-se-ia, por isso, desrespeitado o disposto no artigo 638.º.

Na inquirição das testemunhas arroladas pela requerente, que decorreu no dia 5 de Maio de 2010, depuseram D..., E... , F... e G... .

Ouvidos os depoimentos destas 4 testemunhas, regista-se que D... declarou prestar serviços, como independente, para a requerente, sendo a responsável pelas vendas das fracções da ..., que é o edifício objecto do contrato de empreitada celebrado entre as partes. Do seu depoimento resulta que, em virtude daquelas funções, acompanhou directamente, alguns dos factos em causa. E... afirmou que no dia em que a requerida mudou as chaves do prédio (29-3-2010) tinha celebrado a escritura de compra de uma das fracções, revelando conhecer alguns dos factos em questão, pois, já antes dessa data, como promitente-comprador, deslocava-se ao imóvel. Também deu conta de que a requerida o impediu de, a partir de 29-3-2010, ter acesso àquela que, então, já era a sua fracção. F... disse trabalhar na agência da ... do Banco..., instituição que tinha financiado a requerente no projecto de construção da ... e que por isso acompanhou alguns dos factos ocorridos, esclarecendo, nomeadamente, que o Banco... foi interveniente no acordo tripartido que se encontra nas folhas 237 a 244 deste apenso de recurso, relativo à reestruturação do pagamento da dívida da requerente à requerida. Finalmente G... declarou ser sócio de uma sociedade que é sócia da requerente, mostrando do relato que fez dos factos que teve contacto directo com muito do que aconteceu.

Nestes termos, não há dúvidas de que do depoimento de qualquer uma destas testemunhas resulta a respectiva razão de ciência, não havendo a esse nível, a apontada omissão, o mesmo é dizer que neste capítulo não ocorre qualquer vício processual.

Se o relatado pelas testemunhas é, ou não, credível é questão diversa, que nada tem a ver com a alegada ausência da menção da razão de ciência.


3.º

Considera a requerida que se devia ter julgado provados os factos alegados nos artigos 62.º, 64.º, 65.º, 66.º, 67.º, 76.º, 78.º 96.º, 103.º, e 106.º da sua oposição[9].

Nestes artigos a requerida alegou:

62.º- Com efeito, e não obstante ter sido declarado no livro de obra a conclusão das mesma - o que só foi feito a pedido da Requerente e para efeitos meramente administrativos - a verdade é que, como bem sabe a Requerente, e não pode ignorar, a obra não se encontrava concluída nessa data,

64.º- Aliás, se a Requerente se tivesse dado ao trabalho de transcrever na íntegra o referido acordo, rapidamente o douto Tribunal verificava que há outras menções à necessidade conclusão da obra no decorrer do dito (v.g. Cláusulas 4.a e 15.ª[10]).

65.º- Demonstrando-se assim que, ao contrário do que diz a Requerente, e dá como provado o douto Tribunal, a obra não estava concluída no dia 3 de Abril de 2009.

66.º- A Requerente também se "esqueceu" de dizer ao douto Tribunal que, em Agosto de 2009, a obra não estava concluída, pois tinha ficado suspensa a sua execução por falta de pagamento da mesma, o que aliás levou à assinatura do dito Acordo.

67.º- Na verdade, o que a Requerente nunca revela ao Tribunal, mas devia, é que a obra nunca podia ter estado concluída na data em que o Requerente pretende, e o Tribunal dá como provado, uma vez que a mesma esteve suspensa por falta de pagamento desde o dia 21 de Abril de 2009, até ao dia 17 de Agosto de 2009, ou seja, praticamente 4 meses (Doc. n.º 10, adiante junto e que aqui se dá por integralmente reproduzido).

76.º- O problema é que a Requerente sabe bem que a obra também não estava efectivamente concluída no dia 29 de Março de 2010, estando ainda a Requerida em obra a executar alguns trabalhos, encontrando-se na obra donde, aliás, nunca tinha saído desde o dia em que nela entrou.

78.º- Sendo que aí, de forma clara e inequívoca, a Requerente diz "como vos temos informado, por escrito e telefonicamente, o edifício não se mostra concluído, nem sequer na parte respeitante às fracções habitacionais prometidas vender... "

96.º- E nunca foi feito, porque a obra nunca lhe foi entregue,

103.º- Note-se que, nunca por nunca, foi solicitada a entrega da obra por parte da Requerente, nem solicitada a elaboração da Acta de Recepção provisória por parte da Requerida.

106.º- Na verdade, a Requerida manteve-se em obra, a trabalhar nela, até ao dia em 10 de Maio de 2010.

Destes artigos pode-se extrair os seguintes factos.

- As menções feitas, nas cláusulas 4.a e 15.ª do acordo de 17 de Agosto de 2009, à necessidade de conclusão da obra;

- A obra esteve suspensa por falta de pagamento desde o dia 21 de Abril de 2009 até ao dia 17 de Agosto de 2009;

- A 29 de Março de 2010 a requerida ainda se encontrava na obra a executar alguns trabalhos, donde nunca tinha saído desde o dia em que nela entrou;

- Na carta de 24 de Março de 2010, da requerente para a requerida, aquela diz "como vos temos informado, por escrito e telefonicamente, o edifício não se mostra concluído, nem sequer na parte respeitante às fracções habitacionais prometidas vender...";  

- A obra nunca foi entregue à requerente;

- A requerente não solicitou a entrega da obra, nem a elaboração da acta de recepção provisória;

- A requerida manteve-se em obra, a trabalhar nela, até ao dia em 10 de Maio de 2010.

Em cinco destes dez artigos a requerida diz que a obra não estava concluída.

Ora, salvo melhor juízo, esta alegação não comporta um facto[11]; contém sim um juízo conclusivo. A conclusão de que a obra não estava terminada só se pode extrair da alegação dos factos em que ela consistia e que ainda não tinham ocorrido; ou seja, dos trabalhos que havia que fazer, mas que ainda não estavam realizados.

O artigo 646.º n.º 4 dispõe que têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes. Pese embora aqui não se faça alusão às expressões conclusivas, não pode, por analogia, deixar de se aplicar a estas aquele regime. O tribunal só deve pronunciar-se sobre matéria de facto[12]. Na verdade, o juízo de provado ou não provado só pode recair sobre factos.

Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, isto é, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo, com as regras da experiência[13]

Portanto, quando um quesito, ou não havendo lugar à elaboração da base instrutória, como é o caso dos autos, um artigo dos articulados é constituído por expressões conclusivas, o tribunal não lhe deve responder, à semelhança do que faz nos casos em que está perante questões de direito.

Assim, nos termos do artigo 646.º n.º 4, não há que responder provado ou não provado à alegação de que a obra não estava concluída, pelo que, quanto a esta matéria, é irrelevante o que resulta da prova produzida nos autos, nomeadamente da testemunhal.

Reapreciando então os factos agora colocados em causa, uma vez ouvidos os depoimentos prestados pelas testemunhas e examinados os documentos juntos ao processo, temos que o acordo de 17 de Agosto de 2009, em que intervêm as partes e o Banco..., foi alegado pela requerente[14], que juntou o respectivo documento[15], e reconhecido como verdadeiro pela requerida[16]. Nesse acordo figuram as cláusulas 4.ª e 15.ª a que agora se reporta a requerida, sendo certo que partes do mesmo já se encontram sob z) a ac) dos factos provados da decisão de 5 de Maio de 2010 e sob c) dos factos provados da decisão de 8 de Julho de 2010.

Face a este circunstancialismo deve ser dado como provado todo o teor do acordo, e não somente aquelas duas cláusulas, indo-se oficiosamente, ao abrigo do disposto nos artigos 713.º n.º 2 e 659.º n.º 3, para além da pretensão da requerida, visto estarmos perante um facto admitido por acordo[17].

No que se refere à alegada suspensão da obra, por falta de pagamento, desde o dia 21 de Abril de 2009 até ao dia 17 de Agosto de 2009, considera a requerida que se deve ter tal facto como provado em virtude da carta que se juntou com a Oposição, como Doc. n.º 10, que a Recorrida nunca impugnou, nem sequer para dizer que não tinha recebido a mesma, e Doc. n.º 12, junto com o Requerimento, e que era o Acordo de Agosto em que se retomavam os trabalhos na sequência do mesmo acordo, assinado por ambas as partes[18].

O documento n.º 10 junto com a oposição[19] é uma carta da requerida, dirigida à requerente, datada de 21 de Abril de 2009, em que aquela, depois de referir que esta não está a cumprir os prazos de pagamento, termina dizendo que procede à suspensão da execução dos trabalhos até à regularização destes créditos.

A carta apenas permite concluir que, na perspectiva da requerida, a requerente não estava a realizar os pagamentos devidos e que aquela exterioriza o propósito de proceder à suspensão da execução dos trabalhos até à regularização destes créditos. A carta, per se, não é suficiente para se poder ter por certo que a requerida concretizou a manifestada intenção de suspender os trabalhos e que o fez até Agosto de 2009.

Por sua vez, no já citado acordo de 17 de Agosto de 2009 as partes não fazem alusão a qualquer suspensão da obra que, porventura, se viesse verificando, nomeadamente, desde 21 de Abril desse ano.

Assim, da conjugação dos dois documentos não é possível alcançar um patamar de certeza quanto à alegada suspensão da obra, por falta de pagamento, desde o dia 21 de Abril de 2009 até ao dia 17 de Agosto de 2009, sendo certo que as testemunhas inquiridas não fazem alusão a tal facto.

Portanto, não se pode ter esse facto como provado.

Segundo a requerida, devia igualmente ter-se dado como provado que ela, a 29 de Março de 2010, ainda se encontrava na obra a executar alguns trabalhos, donde nunca tinha saído desde o dia em que nela entrou.

Do depoimento das testemunhas D..., H... , I..., J...e L..., resulta que a 29 de Março de 2010 a requerida ainda levava a cabo, por si ou através de subempreiteiros seus, trabalhos no edifício. Os depoimentos não são coincidentes quanto a quais eram em concreto os trabalhos, mas as cinco testemunhas dão conta de que a requerida ainda executava trabalhos no imóvel. Na verdade, D... refere que naquela data a requerida efectuava algumas reparações de trabalhos mal feitos e de infiltrações, mas que se tratava apenas de detalhes. H...[20] faz alusão a trabalhos de carpintaria, pintura e acabamentos, nomeadamente em casas de banho e cozinhas. I...[21] mencionou que decorriam trabalhos de carpintaria e de pintura, dizendo inicialmente é o que me recordo. Acrescentou depois que também estavam em curso reparações. Mais adiante diz que as pinturas estavam concluídas, mas que pode sempre haver alguns retoques, pois isso depende sempre um bocado dos clientes. J...[22] afirmou que naquela ocasião realizavam-se trabalhos de carpintaria e que estava lá uma equipa de pintura e outra de electricidade. Por último, L...[23] referiu-se a trabalhos de pintura que ainda decorriam.

Deverá, assim, dar-se como provado que a 29 de Março de 2010 a requerida ainda realizava alguns trabalhos no edifício.

Já quanto à requerida nunca ter saído da obra, desde o dia em que nela entrou, verifica-se que nenhuma testemunha se referiu a tal facto. Não há prova que permita considerar provado esse facto.

Outro facto que a requerida defende que deve ser dado como provado é a menção feita pela requerente, na sua carta de 24 de Março de 2010, de que como vos temos informado, por escrito e telefonicamente, o edifício não se mostra concluído, nem sequer na parte respeitante às fracções habitacionais prometidas vender … .

A carta em questão é a que se encontra nas folhas 472 a 474 deste apenso de recurso, a qual não foi impugnada.

Porém, na citação que a requerida faz do respectivo texto, tanto no artigo 78.º da oposição, como nas alegações de recurso[24],  falta a palavra devidamente, que confere à frase um sentido um diferente.

Na verdade, o que lá está escrito é como vos temos informado, por escrito e telefonicamente, o edifício não se mostra devidamente concluído, nem sequer na parte respeitante às fracções habitacionais prometidas vender … (sublinhado nosso).

Deve, então, dar-se como provado que numa carta, datada de 24 de Março de 2010, que a requerente dirige à requerida, aquela afirma que como vos temos informado, por escrito e telefonicamente, o edifício não se mostra devidamente concluído, nem sequer na parte respeitante às fracções habitacionais prometidas vender … .

Segundo a requerida também se deve dar como provado que obra nunca foi entregue à requerente e que esta não solicitou a entrega da mesma, nem a elaboração da acta de recepção provisória.

A requerente, no artigo 35.º da petição inicial afirma embora não tenha sido celebrado qualquer auto de entrega da obra … . Não há assim dúvidas de que, face à posição depois assumida pela requerida na oposição[25], está admitido por acordo a inexistência de uma acta de entrega da obra.

Já quanto à requerente não ter solicitado a entrega da obra ou a elaboração da acta de recepção provisória, salvo melhor juízo, não há prova. A circunstância de não se ter elaborado uma acta de entrega da obra não significa, necessariamente, que essa entrega não aconteceu, mesmo estabelecendo, como estabelece[26], o contrato a elaboração de uma acta de recepção. E da ausência dessa acta também não se pode extrair, sem mais, que isso se deve ao facto da requerente não ter solicitado a sua elaboração ou entrega da obra.

A requerida defende ainda que se deve considerar provado que ela se manteve em obra, a trabalhar nela, até ao dia em 10 de Maio de 2010.

Dos depoimentos das testemunhas H..., I..., J...e L... resulta que entre 29 de Março e 10 de Maio de 2010, a requerida, por si ou por subempreiteiros seus, realizou alguns trabalhos no edifício. Mas, esses depoimentos não são suficientemente esclarecedores quanto ao período em que, de facto, decorreram os trabalhos.

Por outro lado, conforme resulta do que acima se deixou dito, já se vai considerar provado que a 29 de Março de 2010 a requerida ainda realizava alguns trabalhos no edifício.

Assim, deverá ter-se como provado apenas que no período compreendido entre 29 de Março e 10 de Maio de 2010, a requerida realizou alguns trabalhos no edifício.


4.º

A requerida censura o tribunal a quo por este não se ter pronunciado, como devia, quanto aos factos constantes nos artigos 36.º da petição inicial e 35.º da oposição.

No artigo 36.º da petição inicial figura:

Há largos meses e, de todo o modo, desde, pelo menos, o mês de Dezembro de 2009, que a Requerente tinha na sua posse as chaves da porta da entrada do edifício, das diversas fracções, habitacionais e comerciais, bem como os comandos do portão de acesso à cave e às diversas garagens aí existentes. Nota-se que

E no artigo 35.º da oposição alega-se que:

É verdade que a Requerente tinha chaves da porta de entrada e de algumas – não todas – fracções autónomas, contudo a Requerente bem sabe que as tinha unicamente para efeitos de promoção de venda das fracções, e não porque lhe tenha sido dada a posse da obra por efeito da sua entrega e aceitação.

É certo que nestes dois artigos estão alegados factos. E eles são:

- desde, pelo menos, Dezembro de 2009, a requerente tinha na sua posse as chaves da porta da entrada do edifício, das diversas fracções, habitacionais e comerciais, e os comandos do portão de acesso à cave e às diversas garagens aí existentes;

- a requerente tinha chaves da porta de entrada e de algumas fracções autónomas, unicamente para efeitos de promoção de venda das fracções, sem que tenha sido entregue e aceite a obra.

É igualmente certo que, por força do disposto nos artigos 384.º n.º 3, 304.º n.º 5 e 653.º n.º 2, o tribunal a quo tinha que se ter pronunciado quanto a tais factos, considerando-os provados ou não provados.

Porém, contrariamente ao que afirma a requerida, não há uma total omissão de pronúncia quanto à matéria de facto contida naqueles dois artigos dos articulados, uma vez que consta sob x) e y) dos factos provados da decisão de 5 de Maio que a requerente tinha na sua posse, a 29 de Março de 2010, as chaves e os comandos da garagem das fracções B, C, D e K.

De qualquer forma, há uma parte do que ali é alegado que não foi objecto de decisão.

Esta omissão reconduz-se a uma nulidade processual. A este respeito, divide-se a jurisprudência quanto ao enquadramento normativo dessa nulidade. Defende-se, por um lado, a submissão ao regime geral, fazendo depender o seu conhecimento de oportuna arguição e considerando que é susceptível de sanação, designadamente através da inserção dos mesmos factos na decisão final. Outros defendem a integração na norma especial do artigo 712.º n.º 4, de onde emerge um regime mais gravoso[27].

Sustente-se uma ou outra destas posições, a verdade é que em ambos os cenários só há que, em termos processuais, voltar atrás, devolvendo-se a palavra à 1.ª instância, se a resposta em falta, de provado ou não provado, na linguagem do n.º 1 do artigo 201.º, possa influir na decisão da causa ou, na terminologia do n.º 4 do artigo 712.º, for indispensável.

Assim, difere-se a decisão desta questão para quando adiante se aplicar o direito aos factos provados, altura em que se apurará da influência ou indispensabilidade desta matéria de facto, nomeadamente no que toca a saber se a requerente tinha a posse do prédio.

De referir ainda que, tendo presente o estabelecido no artigo 360.º do Código Civil, exclui-se a possibilidade de considerar que se encontra admitido por acordo que a requerente tinha chaves da porta de entrada e de algumas – não todas – fracções autónomas, pois, a requerida ao admitir tal facto acrescenta que aquela bem sabe que as tinha unicamente para efeitos de promoção de venda das fracções, e não porque lhe tenha sido dada a posse da obra por efeito da sua entrega e aceitação.


5.º

Estão provados os seguintes factos:

a) Por escritura pública de compra e venda celebrada em 9 de Março de 2007 no Cartório Notarial do Notário M ... , em ..., a sociedade comercial por quotas denominada N... N..., LDA vendeu à aqui Requerente um prédio urbano, constituído por lote de terreno para construção, sito na ..., Lote ..., na freguesia de ..., concelho da ..., então inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...e descrito na competente Conservatória do registo Predial sob o n.º ....

b) A Requerente adquiriu o lote de terreno atrás identificado com o objectivo de nele construir um edifício destinado a comércio, serviços e habitação - edificação aprovada no âmbito do processo de obras n.º 272/06 do Município da ... -, de o constituir em propriedade horizontal e proceder à revenda das respectivas fracções autónomas.

c) Ulteriormente, por documento escrito intitulado "Contrato de Empreitada - ... - ...", datado de 2 de Julho de 2007, no qual foram intervenientes e outorgantes as aqui requerente e Requerida, esta obrigou-se a construir, no lote de terreno que corresponde ao prédio identificado em a), um edifício, destinado a habitação e comércio, incluindo um piso destinado a parqueamento de viaturas, zonas de estacionamento exterior, acessos pedonais e de viaturas, zonas verdes e demais arranjos exteriores das áreas envolventes, em conformidade com os respectivos projectos aprovados, com o caderno de encargos e memória descrita de acabamentos acordados, com as alterações que a dona da obra, aqui Requerente, porventura, viesse a introduzir-lhe, com todas as fracções e partes comuns devidamente preparadas e concluídas para os fins a que se destinam e com todas as vistorias, licenciamentos, certificações e demais documentação necessários à obtenção da licença de utilização e celebração das escrituras de transmissão das respectivas fracções autónomas obtidas em resultado do seu fraccionamento através da sua constituição em propriedade horizontal.

d) A Requerida obrigou-se a concluir a obra no prazo máximo de 18 meses, a contar da data da assinatura do contrato anteriormente aludido.

e) O preço estabelecido para a execução das obras previstas no contrato foi de € 3.736.750,00 (três milhões setecentos e trinta e seis mil setecentos e cinquenta euros).

f) A Requerida deu a obra por concluída, em conformidade com o respectivo projecto, em 3 de Abril de 2009.

g) Na sequência da conclusão das obras de construção do edifício implantado no lote identificado no artigo 1.º, a Requerente procedeu à participação fiscal das diversas fracções do mesmo, apresentando para o efeito em 24 de Novembro de 2009 a respectiva declaração modelo 1 de IMI, que foi recepcionada no competente Serviço de Finanças em 25 de Novembro de 2009.

h) Por escritura pública celebrada em 26 de Novembro de 2009, no Cartório Notarial do ...da Notária Privada O..., a Requerente constituiu em propriedade horizontal o edifício implantando no lote de terreno identificado na alínea a), fraccionando tal prédio em 83 fracções, 36 destinadas a habitação, 5 destinadas a comércio e 42 destinadas a estacionamento, com a composição, localização e designação da mesma constantes.

i) A titularidade do direito de propriedade do prédio descrito no artigo 1.º do presente articulado foi inscrita a favor da Requerente em 13/2/2007, através da Ap. N.º ..., e o seu fraccionamento através da constituição em propriedade horizontal em 27/11/2009.

j) Através do alvará de licença de utilização n.º .../09, emitido em 3/12/2009, pela Câmara Municipal da ..., foi licenciada a utilização das lojas números dois, três e quatro do edifício aludido nos artigos 7.º e 9.º do presente articulado, que correspondem às fracções autónomas de tal prédio designadas pelas letras "B", "C" e "D".

k) Através do alvará de licença de utilização n.º .../10, emitido em 19/2/2010, pela Câmara Municipal da ..., foi licenciada a utilização das seguintes fracções do prédio atrás aludido:

- Segundo andar esquerdo – habitação de tipologia T2, composta por uma garagem na cave designada por G14, sala, dois quartos, cozinha e três instalações sanitárias;

- Segundo andar esquerdo frente – habitação de tipologia T3, composta por um lugar de estacionamento na cave designado por estacionamento B, sala, três quartos, cozinha e três instalações sanitárias;

- Segundo andar direito – habitação de tipologia T3, composta por uma garagem na cave designada por G15, sala, três quartos, cozinha e três instalações sanitárias;

- Terceiro andar esquerdo – habitação de tipologia T2, composta por um lugar de estacionamento na cave designado por estacionamento C, sala, dois quartos, cozinha e três instalações sanitárias;

- Quarto andar esquerdo frente – habitação de tipologia T3, composta por uma garagem na cave designada por G28, sala, três quartos, cozinha e três instalações sanitárias;

- Quinto andar esquerdo frente – habitação de tipologia T3, composta por uma garagem na cave designada por G25, sala, três quartos, cozinha e três instalações sanitárias;

- Quinto andar frente – habitação de tipologia T3, composta por uma garagem na cave designada por G7, sala, três quartos, cozinha e três instalações sanitárias;

- Sétimo andar frente – habitação de tipologia T4, composta por uma garagem na cave designada por G31, sala, quatro quartos, cozinha e quatro instalações sanitárias.

l) Por titulo de compra e venda celebrado em 29/3/2010 na Conservatória de Registo Predial do Fundão, a Requerente vendeu a E... a fracção autónoma, destinada a habitação, designada pela letra "K", correspondente ao Segundo andar Esquerdo – T2 -, com uma garagem na cave designada por G14, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal identificada na referida escritura.

m) A formalização da transmissão aludida no artigo anterior foi outorgada durante a manhã do dia 29/3/2010, tendo ficado concluída por volta das 12 horas.

n) Nesse mesmo dia, pelas 12:11 horas, foi recepcionado no fax que tem atribuída a linha telefónica com o n.º ..., pertencente à sociedade de advogados "P... & Associados, RL", uma comunicação emitida em papel com o timbre e demais elementos identificativos da Requerida, dirigido à aqui Requerente, com o seguinte teor:

"Exmos. Senhores,

Na sequência do incumprimento de todas as datas previstas para a realização das escrituras referentes aos contratos promessa de compra e venda, que aliás só agora tivemos conhecimento, os quais constavam do acordo de regularização da dívida, por nós celebrado em 17 de Agosto de 2009 e, existindo dados objectivos que nos permitem concluir que pelo menos três deles não se irão de todo concretizar, por factos imputáveis a V. Exªs., vimos pelo presente considerar sem qualquer efeito o referido acordo.

Aliás não podemos deixar de referir que, após análise dos referidos contratos, se constatou que pelo menos dois deles já estavam em mora aquando da assinatura do respectivo acordo, o que não abona muito em termos de boa fé negocial por parte de V. Exªs.

Mais informamos que tendo em consideração o valor em dívida para com esta empresa, procedemos ao exercício do direito de retenção sobre a obra por nós executada, sem prejuízo, obviamente da cobrança coerciva do valor em divida nesta data.".

o) Nesse mesmo dia, cerca das 14:15 horas, deslocaram-se ao prédio supra identificado, o Encarregado da Requerida, Sr. H... e uma viatura da " C...", com dois homens, que, por indicações daquele, procederam à mudança do canhão da fechadura da porta de entrada, forçando e removendo o que até então aí se encontrava colocado.

p) Na ocasião, quando a vendedora da Requerente, que se encontrava no stand de vendas que esta tinha instalado no edifício, pretendeu aceder às fracções habitacionais do edifício, foi impedida de o fazer pelo Encarregado da Requerida, o dito Sr. H..., que lhe disse que estava proibida de entrar no prédio.

q) A vendedora da Requerente perguntou aos dois homens da " C..." o que estavam a fazer, tendo sido informada que estavam a trocar o canhão da fechadura da porta de entrada.

r) O aludido Encarregado da Requerida comunicou ainda à vendedora da Requerente que já tinha "confiscado" todas as chaves das fracções habitacionais do prédio, que já havia desprogramado os mecanismos de abertura do portão de acesso à cave e que também iria trocar os canhões das portas das diversas fracções comerciais – o que acabou por suceder na Quinta-feira seguinte, dia 1 de Abril.

s) A vendedora da Requerente contactou de imediato o gerente desta, que lhe deu instruções para solicitar a comparência das autoridades policiais, para obstarem a tal actuação.

t) Por solicitação da vendedora da Requerente deslocou-se ao local uma patrulha do Posto da ... da Polícia de Segurança Pública, que nada fez, alegando que naquela situação não tinha competência para actuar.

u) Por volta das 16:00 horas chegou ao local o adquirente da fracção "K" do edifício, Sr. E..., munido das respectivas chaves, que lhe haviam sido entregues nessa manhã por um representante da Requerente, no acto da celebração da escritura, o qual foi impedido de aceder ao edifício.

v) Por volta das 18 horas do referido dia 29/3/2010 a Requerida colocou no edifício um segurança da empresa 2045, que mantém a porta de entrada fechada, que se movimenta livremente no seu interior e impede o acesso ao mesmo à Requerente, aos seus colaboradores, aos promitentes-compradores das fracções e, inclusivamente, ao adquirente da fracção "K".

w) A Requerida actuou nos termos descritos sem o conhecimento da Requerente e contra a vontade desta.

x) Estiveram designadas escrituras de compra e venda das fracções "B, C e D" do edifício para os dias 4/12/2009 e 29/1/2010, tendo a Requerente na sua posse nessas datas as chaves e comandos respeitantes a tais fracções, para entregar aos compradores das mesmas.

y) No dia 29/3/2010 realizou-se a escritura de compra e venda relativa à fracção habitacional designada pela letra "K", tendo na ocasião o representante da Requerente entregue ao comprador, Sr. E..., todas as chaves para aceder à fracção que adquiriu, à garagem, às zonas de utilização comuns e à caixa de correio.

z) Por documento escrito datado de 17/8/2009, denominado "acordo de reestruturação de pagamento de dívidas", no qual foram outorgantes a Requerente, a Requerida e o "Banco Q..., S.A.", foi estabelecido, designadamente, que a Requerida reduz o crédito que tem sobre a Requerente de € 1.150.000,00 (um milhão cento e cinquenta mil euros) para € 900.000,00 (novecentos mil euros) (IVA incluído).

aa) Foi ainda consignado nesse documento que, a Requerente aceita pagar à Requerida a quantia de € 800.000,00 (oitocentos mil euros) do seguinte modo:

a) Com a assinatura do mesmo e resultante dos valores a libertar pelo Banco Q..., S.A., a quantia de € 257.000,00 (duzentos e cinquenta e sete mil euros);

b) A quantia de € 200.000,00 (duzentos mil euros) na data da celebração das escrituras das fracções L-03, L-04, referidas no acordo;

c) A quantia de € 343.000,00 (trezentos e quarenta e três mil euros), após a realização das escrituras referentes às fracções a seguir indicadas:

Fracção Valor a liquidar à B...

T3-2B € 17.000,00

T3-2D € 40.000,00

T2-3A € 11.000,00

T3-4B € 11.000,00

T3-5C € 20.000,00

T4-7B € 12.000,00

L-01 € 100.000,00

L-02 € 105.000,00

L-03 € 22.000,00

L-04 € 5.000,00

ab) Foi também expressamente estabelecido em tal documento que, no caso de não se concretizar a venda das fracções aludidas no artigo precedente e, entretanto, ocorrerem vendas de quaisquer outras fracções do edifício, identificadas no Anexo II, o valor mínimo a liquidar à Requerida pela venda de qualquer apartamento será de € 10.000,00 (dez mil euros) e de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) pela loja, até à extinção da dívida de € 800.000,00 (oitocentos mil euros).

ac) Mais ficou acordado em tal documento que a Requerida terá direito a receber da Requerente, para além da quantia de € 800.000,00 (oitocentos mil euros), a importância de € 100.000,00 (cem mil euros), de forma a perfazer o valor global de € 900.000,00 (novecentos mil euros), decorridos 24 meses após a assinatura daquele documento, desde que o valor que resulte do somatório da diferença entre o valor de venda e o valor dos distrates de todas as fracções do edifício se mostre suficiente para:

a) liquidar integralmente o financiamento concedido à Requerente pelo Banco Q..., S.A. (capital, juros e demais encargos);

b) liquidar os encargos necessários para manter a Requerente em funcionamento durante os 24 meses subsequentes à data do acordo, constantes do Anexo III do mesmo.

ad) Em 29/3/2010, em cumprimento do acordo de reestruturação de pagamento de dívidas celebrado em 17/8/2009, a Requerida já havia recebido, há vários meses, a quantia de € 257.000,00 (duzentos e cinquenta e sete mil euros).

ae) Na sequência da escritura celebrada no dia 29/3/2010, respeitante à fracção autónoma designada pela letra "K", a Requerida teria recebido a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), nos termos do acordo atrás aludido, caso não tivesse adoptado a conduta supra descrita.

af) Face à descrita actuação da Requerida, e ao facto de referir no fax remetido à Requerente em 29/3/2010, supra aludido, que considerava o acordo aludido nos artigos precedentes sem efeito, esta não procedeu à transferência para aquela dos € 10.000,00 (dez mil euros) que, na sequência da escritura da referida fracção "K" estava previsto efectuar.

ag) Tal importância encontra-se depositada no "Banco Q..., S.A.", cativa, por estar destinada ao cumprimento do estabelecido no acordo a que se vem aludindo.

ah) A Requerente tem contratos-promessa de compra e venda celebrados cujas escrituras se teriam, em parte, realizado no decurso da semana de 5 a 9 de Abril, estando outras programadas para as semanas subsequentes.

ai) A Requerente celebrou com os senhores R... , S...e Esposa T...; U... e V..., contratos-promessa de compra e venda que têm por objecto, respectivamente, as fracções “AA”, “AH”, “P” e “Z” do prédio supra identificado.

aj) A celebração das respectivas escrituras de compra e venda estava programada para o corrente mês de Abril.

ak) Devido à descrita actuação da Requerida, a Requerente decidiu a adiar a celebração de tais escrituras, sendo que os promitentes-compradores também não pretendem formalizá-las enquanto não tiveram livre acesso ao edifício.

al) Alguns dos referidos promitentes compradores residem em habitações arrendadas, cujos contratos já rescindiram, na expectativa de passarem a habitar a partir do corrente mês de Abril as fracções que prometeram comprar à Requerente – nota-se, parenteticamente, que o adquirente da fracção "K" rescindiu o contrato de arrendamento da casa que habitava com efeitos a contar do final do passado mês de Março, na expectativa de se mudar para tal fracção na sequência da escritura que celebrou em 29/3/2010 (o que a Requerida impediu).

am) Parte dos promitentes-compradores já haviam colocado, com autorização da requerente, mobiliário e outros bens pessoais nas fracções e garagens que prometeram comprar.

an) O que tudo é do conhecimento da requerida.

ao) Em resultado da descrita actuação da Requerida, não só estão privados de aceder a tais fracções, como também aos bens que aí colocaram.

ap) Os promitentes-compradores das fracções habitacionais negociadas pela Requerente no edifício em apreço ameaçam desistir dos negócios com esta celebrados se a situação não for rapidamente resolvida, em termos de poderem aceder e utilizar, livremente, para os fins a que se destinam, as fracções que prometeram comprar-lhe.

aq) O que, a suceder, causaria elevadíssimos prejuízos à Requerente, quer porque teria de lhes restituir os sinais recebidos em dobro, quer ainda devido às conhecidas dificuldades que actualmente existem na venda de imóveis.

ar) Se não celebrar as escrituras das fracções que prometeu vender a Requerente não poderá amortizar uma valor significativo, superior a € 500.000,00 (quinhentos mil euros) do financiamento que o “B.P.N., S.A.” lhe concedeu para a construção do edifício, nem parte da dívida que tem para com a Requerida, nos termos estabelecidos no acordo de reestruturação do pagamento de dívidas junto aos presentes autos.

as) Além de tal situação, a manter-se, a impedir de amortizar parte do aludido financiamento, aumentará de forma significativa os seus encargos financeiros, uma vez que os juros respeitantes á dívida continuarão a vencer-se.

at) Corre termos junto deste Tribunal, no 3.º Juízo, o Processo n.º 449/10.0TBCVL.

au) A escritura foi celebrada pelo menos às 9:41:57 UTC.-

av) Nos termos do acordo assinado pela Requerente com a Requerida no dia 17 de Agosto, ficou estabelecido que "A primeira outorgante aceita pagar à terceira outorgante a quantia de € 800.000,00 (oitocentos mil euros), da seguinte forma:

a) Com a assinatura do presente contrato, e resultante dos valores a libertar pelo 2º outorgante (referidos no número 5.º), a quantia de 257.000,00 € (duzentos e cinquenta e sete mil euros), valor indispensável à terceira outorgante para satisfazer compromissos assumidos, de forma a concluir o edifício e a certificação de todas as suas infra-estruturas ..."

ax) A requerente declarou que "a obra havia sido concluída em 24 de Novembro de 2009".

az) Em carta datada de 24 de Março de 2010, enviada pela Requerente à Requerida em que, a propósito de uma visita que havia sido marcada pelos serviços da Câmara Municipal da ..., para o dia 10 de Março de 2010, a Requerente vem dar a conhecer, entre outros elementos, o que faltava para que pudesse ser dada a dita licença a determinada fracção.

ba) A 17 de Agosto de 2009 foi celebrado entre a requerente e a requerida o acordo já mencionado em z) a ac) e av), que se encontra nas folhas (deste apenso de recurso) 237 a 244, em que também intervêm o Banco..., cujo conteúdo se dá aqui por inteiramente reproduzido.

bb) A 29 de Março de 2010 a requerida ainda realizava alguns trabalhos no edifício.

bc) Numa carta, datada de 24 de Março de 2010, que a requerente dirige à requerida, aquela afirma que como vos temos informado, por escrito e telefonicamente, o edifício não se mostra devidamente concluído, nem sequer na parte respeitante às fracções habitacionais prometidas vender … .

bd) Não foi elaborada qualquer acta de entrega da obra.

be) No período compreendido entre 29 de Março e 10 de Maio de 2010, a requerida realizou alguns trabalhos no edifício.


6.º

A requerida sustenta que a sentença recorrida não tem qualquer fundamentação de direito[28].

O artigo 205.º n.º 1 da Constituição da República impõe que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. Obedecendo a esse comando constitucional, o n.º 1 do artigo 158.º estabelece que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas, acrescentando o artigo 668.º n.º 1 b) que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

A fundamentação consiste no conjunto nas razões de facto e/ou de direito em que assenta a decisão; os motivos pelos quais se decidiu de determinada forma. Se a decisão é a conclusão de um raciocínio a fundamentação são as premissas de que ela emerge[29]. E, no que toca à fundamentação de direito, esta contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada pelo julgador. (…) Não é indispensável, conquanto seja de toda a conveniência, que na sentença se especifiquem as disposições legais que fundamentam a decisão[30].

Por outro lado, vem sendo unanimemente entendido que apenas a falta absoluta de fundamentação de facto ou de direito constitui a nulidade prevista na al. b) do nº.1 do dito art. 668º - cfr. A. dos Reis in CPC Anot. vol. V. pág. 140, Prof. Castro Mendes in Direito Processual Civil, vol. II, pág. 806 e, para além dos já referidos, os Acs. do STJ de 15.3.74, in BMJ 235-152, de 8.4.75, in BMJ 246-131, de 24.5.83, in BMJ 327-663 e de 4.11.93, in CJ - Acs, do STJ, ano I, 3, 101[31].

No caso dos autos, na sua decisão de 8 de Julho de 2010, a Meritíssima Juíza, no que há fundamentação de direito diz respeito, afirmou:

Atenta a matéria de facto indiciariamente dada como provada e o disposto no art.º 388.º, nº 1 al. b) do C. P. Civil, é indubitável que aqueles factos são manifestamente insuficientes para afastar os fundamentos em que assentou o decretamento da providência.

Assim, parece que duas conclusões se podem tirar. A primeira é que não estamos perante uma falta absoluta de fundamentação, pois diz-se que, à luz da norma que se cita, a matéria de facto que se provou é manifestamente insuficiente para afastar os fundamentos em que tinha assente a anterior decisão (de 5-5-2010) que decretou a providência de restituição provisória da posse. A segunda conclusão é no sentido de que é manifesto que a fundamentação de direito é escassa, muito escassa. A Meritíssima Juíza, face à complexidade do objecto dos autos, quer ao nível da matéria de facto, quer das questões de direito, devia ter dito bastante mais, de forma a alicerçar conveniente e convincentemente a sua decisão.

No entanto, se, como se disse, não há uma absoluta falta de fundamentação, não se verifica a nulidade processual a que se refere o artigo 668.º n.º 1 b).


7.º

A circunstância de, na perspectiva da requerida, a requerente não ter a posse do imóvel é uma das razões por que não se podia ter ordenada a restituição provisória da posse. Diz aquela que da leitura da sentença recorrida em que se decreta a providência nunca se retira que haja sido feita a prova de que o dono de obra estivesse na posse da obra[32]. E na oposição tinha ido mais longe, ao defender que esteve em posse da obra desde o dia da consignação da mesma até ao dia 11 de Maio de 2010[33].

Se bem se interpreta o pensamento da requerida, esta considera que a requerente não tinha a posse do prédio, por a mesma lhe (à requerida) pertencer desde o dia da consignação da obra e, pertencendo-lhe, ela não foi transferida para aquela, pois para essa transferência teria sido necessário que se tivesse procedido à entrega da obra[34], o que pressupunha a sua conclusão. Como a obra não foi entregue, por não estar acabada, a requerente não podia ter a posse do bem, sendo certo que a mera alegação de que é titular do respectivo direito de propriedade é insuficiente para a procedência da presente providência.

Nos termos do artigo 1251.º do Código Civil, a posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real. Mas, para que haja posse não basta a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar, a que se refere o n.º 1 do artigo 1257.º do Código Civil; não é suficiente o domínio de facto sobre a coisa, com o exercício de poderes materiais sobre ela ou a possibilidade física desse exercício, ou a subordinação da coisa à vontade da pessoa[35]. É, tendo presente o disposto no artigo 1253.º do Código Civil, ainda necessário que se verifique a intenção de agir como titular do direito a que o exercício do poder de facto se refere[36].

Tem assim a posse um elemento material, o corpus, e um subjectivo, o animus, pelo que quando alguém exerce sobre uma coisa poderes que correspondem à tipificação legal do exercício de determinado direito, dizemos que essa pessoa está de posse da coisa[37].

À luz do que se deixa dito, conclui-se que, salvo melhor juízo, a tese da requerida assenta em alguns equívocos, nomeadamente que teve a posse do prédio e que a requerente não tinha essa posse.

Conforme resulta dos factos provados, requerente e requerida celebraram entre si um contrato pelo qual esta obrigou-se a construir, num lote de terreno daquela, um edifício destinado a habitação e comércio, com um piso de parqueamento de viaturas, zonas de estacionamento exterior, acessos pedonais e de viaturas, zonas verdes e arranjos exteriores das áreas envolventes, pelo preço de 3.736.750 €.

Este contrato, como pacificamente as partes aceitam, é, considerando o que dispõe o artigo 1207.º do Código Civil, um contrato de empreitada.

Assim, a requerida teve acesso, numa fase inicial, ao lote de terreno, e depois, ao edifício que nele foi crescendo, na sua qualidade de empreiteira da obra que se obrigou a construir. Não se encontra aqui, decorrente daquela relação jurídica, uma intenção da requerida de agir como titular de um qualquer direito real. Não há, pois, nem na oposição, nem nos factos provados, qualquer facto, anterior a 29 de Março de 2010, que se traduza numa qualquer actuação, por parte da requerida, com a intenção que o elemento subjectivo da posse exige. Acresce que, segundo o regime definido pelo n.º 2 do artigo 1212.º do Código Civil, no caso de empreitada de construção de imóveis, sendo o solo ou a superfície pertença do dono da obra, a coisa é propriedade deste, ainda que seja o empreiteiro quem fornece os materiais; estes consideram-se adquiridos pelo dono da obra à medida que vão sendo incorporados no solo[38].

Por outro lado, a requerente, contrariamente ao sustentado pela requerida[39], não se limitou a alegar que é proprietária do prédio; alegou também vários factos, que se provaram, dos quais decorre que agiu em relação a esse bem tanto com o corpus, como com o animus.

Na verdade, está provado que a requerente:

- por escritura pública de compra e venda, celebrada a 9 de Março de 2007, adquiriu o lote de terreno onde se realizou a construção do edifício;

- a 2 de Julho de 2007 celebrou com a requerida o já mencionado contrato de empreitada;

- procedeu à participação fiscal das diversas fracções do edifício, apresentando para o efeito, a 24 de Novembro de 2009, a respectiva declaração modelo 1 de IMI, que foi recepcionada no competente Serviço de Finanças a 25 de Novembro de 2009;

- por escritura pública, celebrada a 26 de Novembro de 2009, constituiu em propriedade horizontal o edifício, fraccionando-o em 83 fracções;

- inscreveu, a 13 de Fevereiro de 2007, a seu favor, a titularidade do direito de propriedade do prédio e, a 27 de Novembro de 2009, o fraccionamento resultante da constituição da propriedade horizontal;

- obteve, a 3 de Dezembro de 2009, da Câmara Municipal da ..., licença de utilização de três lojas, que correspondem três fracções autónomas;

- obteve, a 19 de Fevereiro de 2010, da Câmara Municipal da ..., licença de utilização de outras oito fracções autónomas;

- celebrou, a 29 de Março de 2010, a venda a E... da fracção autónoma K, tendo na ocasião requerente entregue ao comprador de todas as chaves para aceder à fracção que adquiriu, à garagem, às zonas de utilização comuns e à caixa de correio;

- tinha, a 29 de Março de 2010, um stand de vendas instalado no edifício;

- tinha, a 29 de Março de 2010, as chaves e os comandos da garagem das fracções autónomas B, C e D;

- encontravam-se, a 29 de Março de 2010, marcadas as escrituras de compra e venda de três fracções autónomas;

- encontravam-se, a 29 de Março de 2010, celebrados contratos-promessa de compra e venda relativos a quatro fracções;

- a 29 de Março de 2010 parte dos promitentes-compradores já tinham colocado, com autorização da requerente, mobiliário e outros bens pessoais nas fracções e garagens que prometeram comprar.

Este conjunto de factos revela, de forma inequívoca, que a requerente praticou actos sobre o prédio e que o fez agindo como proprietária do mesmo. O mais evidente de todos eles é a venda de uma das fracções autónomas que se realizou no dia 29 de Março de 2010, com a entrega, da requerente ao comprador, de todas as chaves para aceder à fracção que adquiriu, à garagem, às zonas de utilização comuns e à caixa de correio.

Por outro lado, para se saber se a requerente tinha, ou não, a posse do prédio, é irrelevante que ainda não se tivesse elaborado a acta de entrega da obra, nos termos convencionado pelas partes na cláusula 18.ª do contrato, visto que há um conjunto de factos que mostram que a requerente tinha a posse do bem. Aliás, nada há nos autos de onde resulte que, desde que celebrou o contrato de empreitada com a requerida até ao dia 29 de Março de 2009, em algum momento deixou de ter tal posse.

Regista-se ainda que aquele conjunto de factos, e o que acerca deles se acabou de afirmar, conduz-nos à conclusão de que a omissão de pronúncia quanto a parte dos factos contidos nos artigos 36.º da petição inicial e 35.º da oposição não influi na decisão de qualquer questão em causa neste processo, sendo certo que tais factos só têm relevância jurídica para se determinar se a requerente tinha, ou não, a posse do imóvel. Quer isso dizer, que aquela omissão, pelo que acima se deixou dito, não terá consequências processuais, nomeadamente não implica que o tribunal a quo tenha que quanto a ela tomar posição.


8.º

Finalmente, resta apurar se à requerida assiste o direito de retenção[40] e, em caso afirmativo, se a 29 de Março de 2010, ao proceder à mudança do canhão da fechadura da porta de entrada, confiscar todas as chaves das fracções habitacionais do prédio, desprogramar os mecanismos de abertura do portão de acesso à cave, colocar no edifício um segurança, que mantém a porta da entrada fechada e impede o acesso à requerente, exerceu validamente esse seu direito.

Dispõe o artigo 754.º do Código Civil que o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.

Segundo Pedro Romano Martinez, para garantia do pagamento do preço e de certas indemnizações derivadas do incumprimento de deveres contratuais, o empreiteiro gora do direito de retenção sobre as coisas criadas ou modificadas[41]. Já Cláudia Madaleno reconhece ao empreiteiro o direito de retenção para garantia do preço da obra, mas não para garantia de outras indemnizações derivadas do incumprimento contratual, na medida em que não correspondem nem a despesas com a coisa, nem a danos por esta causados[42]. Também Calvão da Silva defende que ao empreiteiro deve ser reconhecido o direito de reter a obra (mobiliária ou imobiliária), enquanto não lhe for apago o preço[43].

Em sentido contrário pronunciam-se Antunes Varela e Pires de Lima, que sustentam que o crédito do empreiteiro não figura em nenhuma das situações especialmente contempladas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 755.º. Por outro lado, pode também dar-se como certo que o crédito do empreiteiro não cabe no perímetro da disposição (art. 754.º) que, em termos genéricos, define o campo de aplicação do direito de retenção[44]. Pois, as despesas efectuadas pelo empreiteiro na execução da obra não são despesas feitas por causa da coisa, visto que a coisa (obra realizada) ainda não existe, quando elas são construídas[45].

Com o devido respeito por Antunes Varela e Pires de Lima, distintos Mestres, afigura-se que o crédito do empreiteiro, relativo ao preço da obra, está abrangido pelo citado artigo 754.º, na medida em que ele resulta de uma despesa feita com o bem, não obstante este, com a realização da obra, poder ter sofrido modificações significativas, como sucede com a construção de um edifício num lote de terreno. Neste caso, na coisa pré-existente são introduzidas modificações e incorporados materiais que a podem transformar em algo bastante diferente do que ela era inicialmente, emergindo o crédito do preço desse processo de transformação, o qual tem como resultado final a obra objecto do contrato de empreitada.

São 3 os requisitos do direito de detenção: a) detenção ou posse material da coisa e a legitimidade de detenção; b) ser o detentor da coisa credor da pessoa a quem a coisa deve ser restituída; c) existência de uma relação de conexão entre o crédito do detentor e a coisa[46].

No caso dos autos, para além da celebração do contrato de empreitada, onde se convencionou o preço de 3.736.750 €, provou-se que no dia 29 de Março de 2010, pelas 12h 11m a requerente recebeu um fax da requerida com o seguinte teor:

Exmos. Senhores,

Na sequência do incumprimento de todas as datas previstas para a realização das escrituras referentes aos contratos promessa de compra e venda, que aliás só agora tivemos conhecimento, os quais constavam do acordo de regularização da dívida, por nós celebrado em 17 de Agosto de 2009 e, existindo dados objectivos que nos permitem concluir que pelo menos três deles não se irão de todo concretizar, por factos imputáveis a V. Exªs., vimos pelo presente considerar sem qualquer efeito o referido acordo.

Aliás não podemos deixar de referir que, após análise dos referidos contratos, se constatou que pelo menos dois deles já estavam em mora aquando da assinatura do respectivo acordo, o que não abona muito em termos de boa fé negocial por parte de V. Exªs.

Mais informamos que tendo em consideração o valor em dívida para com esta empresa, procedemos ao exercício do direito de retenção sobre a obra por nós executada, sem prejuízo, obviamente da cobrança coerciva do valor em divida nesta data.

Tinha a requerida, nessa data, a detenção ou posse material do prédio?

Examinados os factos provados regista-se que, quanto a esta questão, somente se provou que nesse dia a requerida ainda realizava alguns trabalhos no edifício. Se lá levava a cabo alguns trabalhos tinha, certamente, acesso ao prédio, o que não significa que tivesse, necessariamente, poderes de facto de disponibilidade sobre (todo) o edifício. Paralelamente, nessa altura, como já se deixou dito, a requerente, que já tinha constituído a propriedade horizontal do imóvel e obtido a licença de utilização de onze fracções, dispunha de um stand de vendas instalado no edifício, tinha as chaves e os comandos da garagem de quatro autónomas e havia autorizado parte dos promitentes-compradores a colocar mobiliário e outros bens pessoais nas fracções e garagens que prometeram comprar. Quer isto dizer, que enquanto que a requerida ainda realizava trabalhos no edifício a requerente não estava ausente, antes pelo contrário.

Perante este quadro, não parece liquido que se possa afirmar que, a 29 de Março de 2010, a requerida detinha o prédio que pretendeu reter.

Para a existência do direito de retenção é também necessário que aquele que o exerce seja credor da pessoa a quem o bem deve ser entregue. E, em princípio[47], o retentor deverá ser titular de um crédito exigível, i.e., já vencido - o que afasta, desde logo, a possibilidade de afirmar o direito de retenção face a um crédito emergente de obrigação natural, ou relativamente a crédito sujeito a termo ou condição suspensivas ainda não verificados[48]. Com efeito, a regra é a de que enquanto o crédito do detentor não estiver vencido, este não pode invocar o direito de retenção[49].

Neste aspecto, é manifesto que a requerida, por força do contrato de empreitada que celebrou com a requerente, é credora desta no que se refere ao preço convencionado. Mas, há que ter presente que a 17 de Agosto de 2009 foi celebrado entre as parte, e também com a intervenção do Banco..., um acordo pelo qual foi redesenhado os termos do pagamento da dívida da requerente, estabelecendo-se, entre outras coisas, que esta se fixava em 900.000 € e o momento em que se venceriam as diversas parcelas aí definidas.

Ora, nos factos provados não se encontra qualquer crédito da requerida que se mostre vencido e incumprido pela requerente. Aliás, a requerida, no fax que remeteu à requerente no dia 29 de Março de 2010, em que invoca o exercício do direito de retenção, também não identifica um crédito concreto, que se encontre vencido e que, naquela data, não se mostre satisfeito pela requerente. Faz aí alusão ao incumprimento de todas as datas previstas para a realização das escrituras referentes aos contratos-promessa de compra e venda (…) e, existindo dados objectivos que nos permitem concluir que pelo menos três deles não se irão de todo concretizar, por factos imputáveis a V. Exªs. (…) .

No acordo de 17 de Agosto, nomeadamente na cláusula 11.º b) e c) e nos seus Anexos I e II, não se estabeleceu qualquer data para a celebração das escrituras de compra e venda das fracções, o que significa que a não realização das mesmas não gera o vencimento de qualquer crédito daquela. Mas, mesmo que assim se não entenda, o certo é que não se provaram quaisquer factos que permitam concluir que houve o incumprimento de todas as datas previstas para a realização das escrituras referentes aos contratos-promessa de compra e venda a que a requerida faz alusão no seu fax de 29 de Março de 2010. E isso não se provou, desde logo, por que não foram alegadas, por qualquer das partes, as datas convencionadas nos contratos-promessa para a celebração das aí prometidas compras e vendas.

À luz do que se deixa dito, conclui-se que não se provaram quaisquer factos de onde resulte que, a 29 de Março de 2010, estava vencido e não pago, um crédito da requerida contra a requerente, relativo ao preço da empreitada, o mesmo é dizer que não se verifica um dos pressupostos para aquela ter o direito de retenção sobre o prédio.

Portanto, mesmo que se entendesse que naquela data a requerida detinha o imóvel, e não é esse o entendimento que se subscreve, como acima se afirmou, pese embora se reconheça que esta questão é susceptível de algumas dúvidas, sempre é certo que falta um dos pressupostos do direito de retenção.

Assim, a 29 de Março de 2010, a requerida ao agir como resulta dos autos, não tinha o direito de retenção que invocou, pelo que não se pode ter como legal a sua conduta.

Improcede assim a presente apelação, devendo manter-se a restituição provisória da posse decretada pelo tribunal a quo.


III

Com fundamento no atrás exposto, julga-se:

a) parcialmente procedente a apelação, considerando-se provado que:

1- A 17 de Agosto de 2009 foi celebrado entre a requerente e a requerida o acordo já mencionado em z) a ac) e av), que se encontra nas folhas (deste apenso de recurso) 237 a 244, em que também intervêm o Banco..., cujo conteúdo se dá aqui por inteiramente reproduzido.

2- A 29 de Março de 2010 a requerida ainda realizava alguns trabalhos no edifício.

3- Numa carta, datada de 24 de Março de 2010, que a requerente dirige à requerida, aquela afirma que como vos temos informado, por escrito e telefonicamente, o edifício não se mostra devidamente concluído, nem sequer na parte respeitante às fracções habitacionais prometidas vender … .

4- Não foi elaborada qualquer acta de entrega da obra.

5- No período compreendido entre 29 de Março e 10 de Maio de 2010, a requerida realizou alguns trabalhos no edifício.

b) improcedente, na restante parte, a apelação, confirmando-se, no mais, a decisão recorrida.

Custas do recurso pela requerida.


António Beça Pereira (Relator)
Manuela Fialho
Távora Vítor


[1] Regista-se que, pese embora a requerida, nas conclusões t) e u) e nas suas alegações (cfr. folhas 25 e 26 deste apenso de recurso), comece por fazer uma referência genérica a demais factos que não terão sido objecto de pronúncia por parte do tribunal a quo, acaba por concretizar tal omissão referindo-se unicamente à matéria dos artigos 36.º da petição inicial e 35.º da oposição. Sendo a referida referência genérica insuficiente, a questão a apreciar limita-se, então, aos dois artigos dos articulados que são identificados.
[2] São do Código de Processo Civil, na sua versão posterior ao Decreto-Lei 303/2007, de 24 de Agosto, todos os artigos adiante mencionados sem qualquer outra referência.
[3] Lopes do Rego, Código de Processo Civil Anotado, 2.ª Edição, Vol. I, pág. 584, referindo-se à redacção que tinha a alínea a) do n.º 1 do artigo 690.º-A CPC antes do Decreto-Lei 303/2007 de 24-8, que é igual à da alínea a) do n.º 1 do actual artigo 685.º-B.
[4] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, pág. 142.
[5] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 2.ª Edição, Vol. III, pág.61. Neste sentido pode ainda ver-se Ac. STJ de 8-3-06, processo 05S3823, Ac. Rel. Coimbra de 12-5-09, Proc. 2546/06.8TBAVR.C1 e de 3-6-08, Proc. 245-B/2002.C1 e da Rel. Lisboa de 26-3-09, Proc. 301-1997.L1.2, todos em www.gde.mj.pt.
[6] Lopes do Rego, obra citada, pág. 585, referindo-se à redacção que tinha o n.º 4 do artigo 690.º CPC antes do Decreto-Lei 303/2007 de 24-8, que, para o que agora importa, é idêntica à do n.º 3 do actual artigo 685.º-A Neste sentido pode ver-se também Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 141, Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 3.ª edição, pág. 150, nota 301 o acórdão do STJ de 8-3-06 acima citado.
[7] Neste sentido Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 143.
[8] Conclusões e) e f).
[9] Cfr. conclusões m) a s), v).
[10] A requerida refere-se ao acordo celebrado com a requerente a 17 de Agosto de 2009, a que se faz referência sob Z a AC nos factos provados da decisão de 5 de Maio de 2010.
[11] São factos as ocorrências concretas da vida real, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 406. Defendendo esse entendimento, veja-se Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2.ª Edição, pág. 525 e 526.
[12] Pais de Amaral, Direito Processual civil, 8.ª Edição, pág. 376.
[13] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 2.ª Edição, Vol. II, pág. 637.
[14] Cfr. artigos 41.º a 45.º da petição inicial.
[15] Cfr. folhas 237 a 244 deste apenso de recurso.
[16] Cfr. artigos 8.º e 39.º da oposição.
[17] Neste sentido Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 263.
[18] Cfr. folha 23 deste apenso de recurso e conclusão o).
[19] Cfr. folha 471 deste apenso de recurso.
[20] Trabalhador da requerida. Exerceu funções de encarregado da obra, onde esteve a partir de Janeiro/Fevereiro de 2010.
[21] Trabalhador da requerida. É engenheiro civil e foi um dos directores da obra.
[22] Prestou para a requerida, em regime de subempreitada, serviços de carpintaria na obra.
[23] Prestou para a requerida, em regime de subempreitada, serviços de pintura na obra.
[24] Cfr. folha 17 deste apenso de recurso.
[25] Cfr. artigos 33.º e 103.º da oposição.
[26] Cfr. cláusula 18.ª a) [trata-se da segunda alínea a), pois nesta cláusula há duas alíneas a)].
[27] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Vol., 4.ª Edição, pág. 237.
[28] Cfr. conclusão w).
[29] Alberto dos Reis, Comentário, Vol. II, pág. 172 e 173.
[30] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, obra citada, pág. 688.
[31] Ac. Rel. Coimbra de 3-11-94, Processo 9311, Ref. 9657/1994, www.colectaneade jurisprudencia.com. Neste sentido pode também ver-se Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora na obra citada, pág. 687 e Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, pág. 703.
[32] Cfr. conclusão cc).
[33] Cfr. artigo 29.º da oposição.
[34] Cfr. nomeadamente os artigos 85.º, 102.º e 105.º da oposição.
[35] Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 1978, pág. 245.
[36] Oliveira Ascensão, obra citada, pág. 246.
[37] Oliveira Ascensão, obra citada, pág. 235.
[38] Esta solução está, aliás, conforme com o que já resulta do n.º 3 do artigo 204.º do Código Civil.
[39] Cfr. nomeadamente a conclusão z).
[40] Cfr. conclusões a) e ff) a kk).
[41] Direito das Obrigações, 2.ª Edição, pág. 376.
[42] A Vulnerabilidade das Garantias Reais, 2008, pág. 244.
[43] Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4.ª Edição, pág. 492.
[44] Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª Edição, pág. 799.
[45] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 4.ª Edição, pág. 563.
[46] Ac. STJ de 27-11-2008, Proc. 2608, Ref. 6224/2008, www.colectaneade jurisprudencia.com.
[47] Importa não esquecer o que a título de excepção se prevê no n.º 1 do artigo 757.º do Código Civil.
[48] Ac. STJ de 27-11-2008 atrás citado.
[49] Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, pág. 780.