Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4070/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. SERRA BAPTISTA
Descritores: CAUSA DE PEDIR
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 03/09/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FUNDÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ART. 242.º, 243.º E 286.º DO C.C.
Sumário:

1. Sem prejuízo de às partes caber a formação da matéria de facto, mediante a alegação, nos articulados, dos factos principais que integram a causa de pedir, a reforma do processo civil atribuiu ao Tribunal a assunção de uma posição muito mais activa, por forma a aproximar-se da verdade material e alcançar uma posição mais justa do processo.
2. Reconhecendo-se agora ao Juiz, para além da atendibilidade dos factos que não carecem de alegação e de prova a possibilidade de considerar, mesmo oficiosamente, os factos instrumentais, bem como os essenciais à procedência da pretensão formulada, que sejam complemento ou concretização de outros que a parte haja oportunamente alegado e de os utilizar quando resultem da instrução e da discussão da causa e desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.
3. Permitindo-se, assim, ainda na fase de instrução ou de discussão da causa, que a parte a quem o facto aproveite, alegue, a convite do Juiz ou por sua iniciativa, os factos complementares que a prova produzida tenha patenteado, com o consequente aditamento da base probatória e da possibilidade de contraprova por banda da parte contrária.
Decisão Texto Integral:
Apelação nº 4070/03

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


O MINISTÉRIO PÚBLICO, em representação do ESTADO - FAZENDA NACIONAL, veio intentar acção de impugnação pauliana, sob a forma de processo ordinário, contra BB, CC, menor, DD e EE, pedindo a condenação dos RR a:
a) verem declaradas, reconhecidas e habilitadas as Rés BB, DD E CC como únicas e universais herdeiras, interessadas e representantes da herança indivisa aberta por óbito de FF;
b) verem declarada e reconhecida a ineficácia da transmissão do prédio constituído pela fracção D do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Calçada do Convento, Fundão, inscrito na matriz sob o art. 2185, descrito na CRP do Fundão sob o nº 362, formalizada pela escritura pública outorgada em 4/9/1998 no Cartório Notarial do Fundão, em relação ao Estado - Fazenda Nacional, declarando-se o direito deste em obter a satisfação do seu crédito à custa do património dos RR.
Alega, para tanto, e em suma:
As Rés pessoas singulares são as únicas e universais herdeiras de FF, falecido no dia 18/10/2000, o qual havia sido, desde 1/1/1993, titular de uma empresa em nome individual, com sede na comarca do Fundão;
O falecido tinha em dívida à Fazenda Nacional a quantia de 10.626.847$00, tendo sido instaurados diversos processos de execução fiscal para cobrança coerciva da mesma, obtendo-se, do produto da venda do direito ao trespasse do seu estabelecimento comercial a quantia de 1.430.000$00, tendo ainda sido penhorado um veículo automóvel com o valor atribuído de 300.000$00;
Sendo todo este valor manifestamente insuficiente para o pagamento da dívida fiscal, o que era do conhecimento do FF, o qual possuía como único bem livre a sua casa de habitação constituída por uma fracção autónoma, que melhor identificada está no art. 12º da p. i.;
Para evitar que tal bem fosse penhorado e vendido em execução fiscal, o FF e a ora Ré BB venderam-no à Ré sociedade, por escritura pública de 4/9/98, o que colocou o Estado na impossibilidade de se cobrar do seu crédito;
Os sócios gerentes da Ré sociedade eram amigos íntimos dos vendedores, tendo perfeito conhecimento da situação económica e fiscal do falecido FF. Sabendo que, com tal alienação - não tendo os vendedores qualquer outro bem penhorável de valor suficiente para tal - impediam o Estado de obter o pagamento que lhe era devido.
Contestaram os RR - arguindo a DD a sua ilegitimidade por ter repudiado a herança de seu pai - impugnando os factos pelo A. alegados, pugnando pela improcedência da acção.
Foi proferido o despacho saneador, sem recurso. Tendo sido fixados os factos tidos por assentes e organizada a base instrutória. Sem reclamação.
Realizado o julgamento, decidiu o senhor Juiz a matéria de facto da base instrutória pela forma que do seu despacho junto aos autos consta. Também sem reclamação das partes.
Foi proferida a sentença, que julgou a acção improcedente.
Inconformado, veio o A. interpor o presente recurso de apelação, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:
1ª - A lei dá ao credor a escolha de dois meios: a acção de nulidade e a acção de impugnação pauliana, cada qual com os seus requisitos e efeitos próprios;
2ª - Na presente acção o A., na causa de pedir, integrou factos instrumentais da impugnação pauliana e da simulação, mas pediu apenas a declaração de ineficácia da compra e venda;
3ª - O Tribunal entendeu não se terem provado os factos da base instrutória que levariam à procedência da impugnação pauliana, mas sim os factos da simulação que levariam à declaração da nulidade da compra e venda;
4ª - Todavia, não conheceu da nulidade, alegando estar limitado, na sua cognição, aos factos alegados pelas partes, apesar de ter resultado do depoimento de parte do sócio-gerente da compradora, manifesta, ostensiva e aparentemente eficaz e com êxito divergência entre a vontade e a declaração, por acordo entre os contraentes, tudo elementos constitutivos do instituto da simulação;
5ª - A nulidade de um negócio jurídico por simulação é passível de conhecimento oficioso, tendo-se verificado o condicionalismo dos arts 242º, 243º e 286º do CC;
6ª - O Tribunal não estava impedido de conhecer da nulidade, pois estava a julgar conforme valores tutelados, pois improcedendo a impugnação pauliana, podia declarar a nulidade simulatória, apesar dos efeitos desta serem menos severos para o adquirente que os efeitos da impugnação pauliana;
7ª - Na audiência de julgamento o Juiz pode servir-se de factos instrumentais, mesmo não alegados, desde que resultem da instrução e da discussão da causa, nos termos do art. 264º, nº 2 do CPC, do mesmo modo que poderão ser considerados na decisão os factos essenciais omitidos em momento anterior se resultarem da instrução e discussão da causa e o interessado mostrar a vontade de deles se aproveitar, de acordo com o disposto no art. 264º, nº 3 do CPC;
8ª - O Juiz não está limitado nos seus poderes de cognição aos factos alegados pelas partes, como dispõe o art. 664º articulado com o art. 264º do CPC;
9ª - Se, como diz a sentença, existem desde sempre indícios de que nem o devedor quis vender a fracção, nem o comprador a quis comprar, deveria ter acrescentado aos quesitos da base instrutória o quesito 4º-A nestes termos: "Apesar desta escritura de compra e venda, nem os vendedores FF e BB Pereira quiseram vender nem a compradora "EE" quis comprar esta fracção";
10ª- Não o tendo feito, houve omissão de decisão, pelo que deve ser anulada a decisão recorrida para ser corrigido este vício, nos termos do art. 712º, nº 4 do CPC, ordenando-se a inclusão deste quesito à base instrutória, dando-se como provado, com base no depoimento de parte do sócio gerente da compradora, e declarando-se a nulidade, por simulação, do contrato de compra e venda celebrado por escritura pública de 4/9/98, lavrada no Cartório Notarial do Fundão, mandando-se cancelar na CRP o registo desta compra e todos e quaisquer registos que, posteriormente, hajam sido feitos;
11ª- Violou a sentença recorrida o disposto nos arts 664º e 264º, nºs 2 e 3 do CPC e 268º do CC.
Contra-alegaram as Rés BB e EE, pugnando pela manutenção do decidido.
Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

Vem dado como PROVADO da 1ª instância:

FF faleceu no dia 18 de Outubro de 2000, no estado de casado com a Ré BB, sendo pai das Rés DD e CC - als A) e B) dos factos assentes;
O falecido não deixou testamento nem outra disposição de vontade e não tinha outros herdeiros - al. C);
Por escritura pública de 5 de Fevereiro de 2001 a Ré DD repudiou a herança aberta por óbito de seu pai - al. D);
O falecido FF era, desde 1 de Janeiro de 1993, titular de uma empresa em nome individual, com o seu nome pessoal, com sede na cidade do Fundão, exercendo a actividade de pastelaria, com estabelecimento de café e pastelaria, cuja produção era vendida directamente ao público - als E) e F);
Em 27 de Agosto de 1998 foi a empresa sujeita a uma fiscalização pelos serviços da Repartição de Finanças do Fundão, respeitante aos anos de 1993 a 1997, resultando da mesma presunções de valores tributáveis, faltas de liquidação e entrega de IVA e de IRS desses anos - al. G);
Após reclamação do FF a comissão fiscal de revisão veio a fixar o valor do imposto de IVA nos valores definitivos de 323.279$00 (1993), 731.157$00 (1994), 723.500$00 (1995), 659.966$00 (1996) e 579.667$00 (1997), no total de 3.017.569$00 - al. H);
O FF tinha ainda em dívida, quer por contribuições e impostos, quer por dívidas à Segurança Social, o total de 10.626.847$00, tendo-lhe sido instaurados vários processos de execução fiscal pela Repartição de Finanças do Fundão - al. I);
Para cobrança coerciva de algumas dessas dívidas foi feita a penhora do direito ao trespasse e arrendamento do seu estabelecimento comercial, obtendo-se o produto da venda de 1.430.000$00, tendo ainda sido penhorado um velho veículo automóvel a que foi atribuído o valor de 300.000$00 - al. J);
Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial do Fundão em 4/9/98, o FF e mulher BB declararam vender a EE, representada por Horácio Santos Figueira Lobato, que declarou comprar, por 7.000.000$00, que os primeiros declararam ter recebido, a fracção autónoma designada pela letra D, correspondente ao rés-do-chão esquerdo do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Calçada do Convento, Fundão, inscrito na matriz sob o art. 2185 e descrito na CRP do mesmo concelho sob o nº 362, aí inscrito a favor dos vendedores pela inscrição G-1 - al. K);
O Horácio Lobato e mulher eram e são os únicos sócios e gerentes da Ré EE e eram íntimos amigos do falecido FF e mulher - al. L);
Por escritura pública de compra e venda lavrada a 20/2/89, no 1º Cartório Notarial de Castelo Branco, a Ré EE vendeu a FF e mulher a dita fracção, pelo preço de 4.500.000$00 - al M);
Dá-se por reproduzido o teor do contrato-promessa de compra e venda junto de fls 135 e ss - al. N);
Bem como o teor da garantia junta a fls 138 dos autos - al. O);
Na ocasião mencionada em M) pela Caixa Económica - Montepio Geral foi mutuada aos então compradores a quantia de 3.000.000$00 - al. P);
Não obstante a escritura de compra e venda o falecido FF e mulher continuaram a morar, sem pagar renda, na fracção que declararam vender e continuaram a efectuar ao Montepio Geral o pagamento das prestações que se foram vencendo do empréstimo bancário que assumiram quando adquiriram a fracção - respostas aos quesitos 3º e 4º;
Em 4/9/98, data da celebração da escritura de compra e venda, o falecido FF era proprietário de um estabelecimento comercial, de um veículo automóvel, que vieram a ser penhorados num processo de execução fiscal, respectivamente a 17/2/99 e 18/6/99, bem como ainda do recheio da casa de habitação - respostas aos quesitos 1º, 21º e 22º;
Os vendedores tinham conhecimento da sua situação económica e o vendedor sabia, no tocante ao fisco, informalmente, que na sequência de uma acção de fiscalização levada a cabo pela Repartição de Finanças do Fundão, que culminou em 27/8/98, iria ser notificado, como veio a ser em 13/10/98, da liquidação dos valores em dívida a título de IVA, na sequência da presunção do volume de negócios, resultante da referida fiscalização - resposta ao quesito 7º.

Não tendo ficado, nomeadamente, provado que:

O único bem que o executado FF possuía era a casa de habitação constituída pela fracção autónoma menciona-
da em K) - resposta ao quesito 1º;

A venda de tal fracção pelo mesmo a EE foi efectuada para evitar que tal bem fosse penhorado e vendido nas execuções fiscais - resposta ao quesito 2º;

O valor venal da fracção era na altura da celebração da escritura de 14.000.000$00 resposta ao quesito 5º;

Atenta tal situação o Estado ficou impossibilitado de obter a satisfação do seu crédito sobre o executado FF - resposta ao quesito 6º;

A venda da fracção à Ré EE foi efectuada em cumprimento do contrato-promessa referido em N) e, porque decorrido o prazo para a revogação do mesmo, a 1ª Ré e marido não haviam restituído àquela a quantia de 7.000.000$00 - resposta ao quesito 20º.

Em explicitação do exarado nas alíneas N) e O), que foram elaborados segundo prática corrente, mas incorrecta, de mera remissão para os documentos juntos, considera-se ainda assente que:

A fls 135 e ss dos autos consta um escrito denominado de "contrato-promessa de compra e venda" outorgado entre FF e mulher, designados como promitentes vendedores e Horácio Santos Figueira Lobato, designado de promitente comprador, no qual por eles é dito:

" 1º
Os primeiros outorgantes prometem vender ao segundo outorgante, e este promete comprar àqueles, a fracção autónoma designada pela letra D e correspondente ao rés-do-chão esquerdo ... (melhor identificado em K).
§único - A venda será feita ao segundo outorgante ou a quem ele indicar - assim lhe ficando conferido o direito de ceder a sua posição contratual a quem e nos termos que entender, bastando que para tal se faça substituir pelo cessionário no momento da outorga da escritura prometida por este contrato.

O preço da prometida compra e venda é de 7.000.000$00, devendo quanto a ele ter-se em consideração o que abaixo se dispõe.

O preço convencionado é pelo promitente comprador pago por meio de compensação com idêntico valor, que pelos promitentes vendedores lhe era devido e de que estes reconhecem terem sido devedores até á presente data - pelo que com tal compensação se considera neste acto solvida a dívida que os primeiros outorgantes tinham para com o segundo outorgante e correlativa e simultaneamente entregue a totalidade da quantia aludia no numero anterior, a título de sinal e integral pagamento do preço convencionado.

A escritura pública que formalizará a compra e venda ora prometida por este contrato e a entrega da fracção que é seu objecto será realizada no cartório notarial e na data que o promitente comprador designar e comunicar aos promitentes venderes por escrito e com a antecedência de pelo menos 90 dias, mas nunca antes do final do mês de Junho de 1998 - e em qualquer caso sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes.

Todos os custos, despesas e encargos relativos à titularidade do direito de propriedade e á administração e manutenção da fracção autónoma prometida em compra e venda continuarão, até á celebração da escritura ou á revogação a que alude o artigo seguinte a ser inteiramente suportado pelos promitentes vendedores, que ficam assim obrigados a satisfazê-los seja qual for a natureza deles e designadamente se obrigam a manter pagas e em dia as prestações que estão obrigados a pagar ao Montepio Geral por efeito do contrato de mútuo hipotecário que outorgaram a 20 de Fevereiro de 1989, em simultâneo com a compra da fracção autónoma a que alude o art. 1º.

Fica conferida aos promitentes vendedores a faculdade de revogarem unilateralmente o presente contrato desde que o façam até 30 de Junho de 1998 e cumpram os seguintes termos e condições:
a) Restituírem ao promitente comprador, a qualquer momento e em singelo, a quantia global de 7.000.000$00 que dele receberam e foi imputada no pagamento integral do preço, nos termos sobreditos, e
b) demonstrarem estarem em dia, até á data da revogação, as prestações devidas ao Montepio Geral por efeito do contrato de mútuo hipotecário a que alude o artigo anterior e, bem assim, os impostos, contribuições ou taxas devidas ao Estado ou a quaisquer outras entidades públicas em razão da propriedade ou da posse da fracção autónoma identificada em 1.

Em caso de incumprimento de qualquer das partes, poderá a outra requerer a execução específica deste contrato, que, não obstante a existência de sinal, fica expressamente convencionada nos termos do art. 830º do CC e que poderá ser exercida pela parte não faltosa em alternativa com os demais direitos legalmente conferidos pelo art. 442º do mesmo diploma legal.

Este contrato é celebrado por vantagem de ambas as partes, que por isso renunciam expressa e reciprocamente ao direito de arguirem qualquer nulidade decorrente de vício formal, designadamente da omissão dos requisitos prescritos pelo nº 3 do art. 410º do CC.

Celebrado no Fundão a 14 de Junho de 1995, o presente contrato está conforme às vontades de ambas as partes, que por isso a seguir o assinam."

E está assinado e selado com estampilhas fiscais.

A fls 138 encontra-se junta um escrito designado de "Declaração", com o seguinte teor:

"Pela presente declaramos nós, FF e BB, casados no regime da comunhão de adquiridos, ... que tendo hoje vendido á firma "EE" a fracção autónoma designada pela letra D ... (identificada em K) - assim dando cumprimento ao contrato-promessa de compra e venda que em 14 de Junho de 1995 celebramos com o senhor Horácio Santos Figueira Lobato - continuamos a ocupar e habitar a referida fracção autónoma, por mero favor e tolerância da declaratária sociedade proprietária, sem pagamento de renda ou qualquer contrapartida mas por simples comodato, obrigando-nos a desocupá-la e a entregá-la à referida sociedade ou a quem por esta for indicado para a receber, logo que por ela tal nos for exigido e sem direito a retenção ou reclamação de quaisquer indemnizações ou compensações por benfeitorias ou por qualquer outro título.
Mais declaramos que, enquanto mantivermos a ocupação da referida fracção autónoma e por nos termos constituído na correspondente obrigação, nos obrigamos a suportar todos os custos, despesas e encargos relativos á utilização daquela fracção autónoma, bem como a suportar os custos de condomínio e a pagar e manter em dia as prestações mensais da amortização da dívida hipotecária que passivamente assumimos perante o Montepio Geral, por efeito do contrato de mútuo hipotecário celebrado a 20 de Fevereiro de 1989 no Cartório Notarial do Fundão."
Está datado de 4 de Setembro de 1998 e assinado.

*

É sabido que a delimitação objectiva do recurso é feita pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso - arts 664º, 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do CPC , bem como, entre muitos outros, Acs do STJ de 27/9/94, de 13/3/91, de 25/6/80 e da RP de 25/11/93, CJ S Ano II, T. 3, p. 77, Act. Jur. Ano III, nº 17, p. 3, Bol. 359, p. 522 e CJ Ano XVIII, T. 5, p. 232, respectivamente.

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São estas as questões suscitadas pelo apelante:

1ª - Dando a lei ao credor a escolha de dois meios conservatórios da garantia patrimonial - a acção de nulidade e a acção de impugnação pauliana - apesar de o Tribunal ter entendido como não provados os requisitos que levariam à procedência desta última, deveria ter oficiosamente conhecido da nulidade da compra e venda por efeito da procedência da simulação, verificado que está o condicionalismo dos arts 242º, 243º e 286º do CC, sendo certo, ainda, ter o A. alegado também factos instrumentais da simulação apesar de ter limitado o seu pedido à impugnação pauliana;
2ª - O Juiz não está limitado, nos seus poderes de cognição, aos factos alegados pelas partes, podendo servir-se de factos instrumentais mesmo que não alegados desde que resultem da instrução e discussão da causa e dos factos essenciais, antes omitidos, que igualmente resultem da instrução e discussão da causa e o interessado manifeste vontade de deles se aproveitar - art. 264º, nºs 2 e 3 do CPC;
3ª - A omissão de decisão, que levará à anulação da sentença recorrida, a fim de ser aditada à base instrutória o pretendido quesito 4º-A, o qual deverá ficar provado face ao depoimento de parte do sócio gerente da Ré sociedade, com a consequente declaração de nulidade do contrato de compra e venda dos autos e o cancelamento do registo de tal aquisição na CRP e de todos aqueles que posteriormente hajam sido feitos.

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Vejamos:

O A. Estado, representado pelo M.P. na pessoa do senhor Procurador Adjunto no Tribunal Judicial do Fundão - pessoa diferente do senhor Procurador da República junto do Círculo Judicial da Covilhã que elaborou a alegação da apelação interposta - intentou esta acção contra os RR, que apelidou de impugnação pauliana, pedindo, na parte que ora interessa, a declaração de ineficácia da transmissão da questionada fracção urbana, formalizada por escritura pública de 4 de Setembro de 1998.
Elegendo como causa de pedir os pressupostos da impugnação pauliana, cujos requisitos gerais se encontram previstos no art. 610º do CC, com a ressalva da obrigatoriedade da verificação do requisito da má fé, sendo o acto impugnado oneroso, face ao preceituado no art. 612º do mesmo diploma legal.
Alegando, de forma simplista, ter o A. um crédito sobre o falecido FF, proveniente de avultadas dívidas fiscais, tendo este, conjuntamente com sua mulher, ora 1ª Ré, para evitar a sua penhora e consequente venda nas execuções fiscais - sendo a fracção predial em causa o único bem livre propriedade do casal - vendido a mesma à Ré sociedade, assim colocando o Estado na impossibilidade de cobrar o seu crédito.
Tendo os vendedores e a compradora sociedade perfeito conhecimento da situação económica e fiscal do FF e que assim ficava o Estado - como, na realidade, ficou - impedido de obter o pagamento da referida dívida.
Acrescendo que, não obstante tal venda, os vendedores continuaram a habitar a fracção, como antes faziam, sem pagar renda, continuando ainda a pagar as prestações do empréstimo hipotecário que haviam contraído para a compra que da mesma antes haviam feito.

Com o recebimento da petição inicial na secretaria considera-se a acção proposta (art. 267º, nº 1 do CPC, sendo deste diploma legal todas as disposições a seguir citadas sem referência expressa), assim se iniciando a instância.
Formulando o autor na petição inicial o seu pedido (art. 467º, nº 1, al. d)), que se apresenta duplamente determinado: por um lado o autor afirma uma situação jurídica subjectiva ou um facto jurídico de direito material e, por outro, requer ao Tribunal a providência processual adequada à tutela do seu interesse.
Pedido que, conformando o objecto do processo, condiciona o conteúdo da decisão de mérito, devendo o Juiz resolver todas as questões que as partes submetam à sua apreciação, não podendo ocupar-se de outras, salvo se a lei lho permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso, nem podendo condenar em quantidade ou em objecto diverso do que se pedir (arts 660º, nº 2 e 661º, nº 1) - Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol. II, p. 220 e ss.
Tendo, ainda, o autor, na sua petição inicial, que indicar os factos constitutivos da situação jurídica que quer fazer valer, os quais constituem a causa de pedir - citado art. 467º, nº 1, al. c).
Exercendo a causa de pedir função individualizadora do pedido para efeito da conformação do objecto do processo, não podendo o Tribunal, salvo se a lei lhe impuser o seu conheci-
mento oficioso, basear a sentença de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor, sob pena de nulidade da sentença (arts 660º, nº 2 e 668º, nº 1, al. d)).

Ora bem:
O senhor Juiz a quo julgou improcedente a acção, quer pelo facto de não ter considerado provado que do acto impugnado resultou a impossibilidade de o A. cobrar o seu crédito, quer porque não considerou provado que o adquirente da fracção houvesse procedido de má fé. Inexistindo, quanto a ele, fundamento bastante para a procedência da impugnação pauliana.
E, quanto a esta decisão, em si mesma, não aparece o apelante a inconformar-se. Aceitando, ao que tudo parece indicar, não terem ficado preenchidos os invocados pressupostos da impugnação pauliana.
Sendo certo que o Juiz não está sujeito ás alegações das partes no tocante á indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, embora só possa servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no art. 264º.
Preceito este que sob o epíteto de "princípio dispositi-
vo", após a reforma do processo civil e sem prejuízo de às partes caber a formação da matéria de facto, mediante a alegação, nos articulados, dos factos principais que integram a causa de pedir, ou seja, o ónus de alegação, atribui ao Tribunal a assunção de uma posição muito mais activa, por forma a aproximar-se da verdade material, ou seja, alcançar a justa composição do litígio, ultima ratio do processo.
Reconhecendo-se agora ao Juiz, para alem da atendibilidade dos factos que não carecem de alegação e prova (art. 514º) e do dever de obstar ao uso anormal do processo (art. 665º), a possibilidade de considerar, mesmo oficiosamente, os factos meramente instrumentais - aqueles que, sem fazerem directamente a prova dos factos principais, servem indirectamente a prová-los, pela convicção que criam da sua ocorrência, tendo por função possível a de factos-base de presunção - bem como os factos essenciais - os que constituem elementos típicos do direito que se pretende fazer valer em juízo - à procedência da pretensão formulada, que sejam complemento ou concretização de outros que a parte haja oportunamente alegado, e de os utilizar quando resultem da instrução e da discussão da causa e desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e á parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.
Tratando-se neste último caso, previsto no nº 3 do citado art. 264º, sempre de casos em que a causa de pedir está individualizada, mediante alegação fáctica suficiente mas não completa. Permitindo-se então, ainda na fase de instrução ou de discussão da causa, que a parte a quem o facto aproveite alegue, a convite do Juiz ou não, os factos complementares que a prova produzida tenha patenteado, com o consequente aditamento da base probatória e da possibilidade de resposta e de contraprova da parte contrária - Lebre de Freitas, ob. cit. p. 468.

Mas, fácil é constatar que tal não sucedeu no vertente caso.
Pois, mesmo que da instrução e da discussão da causa
tivessem ficado patenteados factos complementares susceptíveis de completarem a causa de pedir no sentido da procedência da pretensão do A. quanto á conservação da garantia patrimonial do seu crédito, a verdade é que o mesmo A., parte nisso interessada, não manifestou vontade de deles se aproveitar, não tendo sido facultado à parte contrária o exercício do contraditório.
Não podendo ser usada tal faculdade meramente em sede de recurso, apresentando-se tal pretensão aqui como questão nova, que no Tribunal de 1ª instância jamais foi colocada.
Sendo esta última faculdade profundamente inovatória.
E, assim, tal pretensão apenas agora formulada, peca por demasiado tardia, não podendo, como é evidente, proceder.
E não resultando a matéria de facto que agora e aqui se quer ver aditada à base instrutória da que se encontra articulada na petição inicial, não pode este Tribunal ordenar a a ampliação da mesma, ao abrigo e por força do estatuído no art. 712º, nº 4.
Sendo certo que o A. não integrou na sua causa de pedir, e no momento próprio, factos essenciais à norma fundamentadora do ora seu arrogado direito, que pudessem preencher os requisitos do alegado negócio simulado das partes, com a sua consequente nulidade - a qual, de facto, a verificar-se o acordo simulatório pode ser oficiosamente declarada (art. 286º do CC) - cfr. ainda, arts 240º, nº 1 do CC e 264º, nº 1, primeira parte.
Jamais tendo dito, na sua p. i. ou em qualquer outro local - a não ser na sua alegação de recurso - que nem os vendedores quiseram vender a fracção nem a compradora a quis comprar.

Sendo verdade, como afirma o recorrente e como também já dissemos, que a nulidade do negócio simulado pode ser declarada ex officio pelo Tribunal - art. 286º do CC ressalvado no art. 242º do mesmo diploma legal e Mota Pinto, Teoria Geral da Relação Jurídica, p. 481.
Desde que, naturalmente, os seus pressupostos tenham sido alegados e se verifiquem in casu.
O que, com toda a evidência, não sucede.
Sendo requisitos da simulação, a divergência entre a vontade e a declaração e o intuito de enganar terceiros - citado art. 240º.
Não se verificando tais pressupostos pelo facto de ter ficado provado que, não obstante a escritura de compra e venda, o falecido FF e mulher continuaram a morar, sem pagar renda, na fracção que declararam vender e continuaram a efectuar no Montepio Geral o pagamento das prestações que se foram vencendo e relativas ao empréstimo bancário que assumiram quando adquiriram a mesma (respostas aos quesitos 3º e 4º).
Podendo tal situação ter-se ficado a dever às mais diversas razões, precisamente até pelo facto de os alegados vendedores terem continuado a habitar a fracção, funcionando, v. g., como contrapartida de tal utilização gratuita.
Bem poderá assim não suceder, é certo, mas daí a concluir o inverso vai um passo de gigante, que não se poderá dar.
Não se podendo afirmar, como faz o apelante, que o Tribunal deu como provado os factos da simulação que levariam á nulidade do negócio realizado e na acção questionado.
Não obstante a "reflexão" publicitada pelo senhor Juiz a quo na sua sentença.
A qual, salvo o devido respeito, não passará disso mesmo, sem relevo decisório.
Sendo até a mesma "reflexão", e salvo o devido respeito, bem temerária, pois que dos autos não resultam, com mediana clareza, indícios bastantes de haver divergência entre a vontade e a declaração.
Não tendo sequer o senhor Juiz a quo fundamentado a decisão da matéria de facto provada com base no depoimento de parte prestado, mas sim nos autos de penhora juntos e no depoimento da testemunha Dias Vaz, inspector tributário, o qual, em 24/3/2000 elaborou a informação de fls 74 e ss depois de ter "falado quer com o falecido quer com o sócio gerente da compradora da fracção, tendo aqui constatado a existência do recheio da mesma e sabido, então, por aquele, que continuava a residir com o seu agregado familiar na dita fracção e que ele próprio, continuava a pagar a amortização do empréstimo que contraíra, anteriormente para a sua aquisição" (deverá querer dizer habitação).
E, não tendo havido reclamação desta fundamentação, não pode este Tribunal usar da faculdade ínsita no art. 712º, nº 5.

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Face a todo o exposto, acorda-se nesta Relação em se julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
Sem custas, por o apelante delas estar isento.
Improcede a apelação