Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
70/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: FUNDO DE GARANTIA DOS ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
Data do Acordão: 05/25/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: LEI Nº 75/98, DE 19/11 E DEC. LEI Nº 164/99, DE 13/05
Sumário:

I – A intervenção do FGADM reveste natureza subsidiária, visto que é seu pressuposto legitimador a não realização coactiva da prestação alimentícia já fixada .
II – Significa isto que o dito Fundo é apenas um substituto do devedor dos alimentos, pelo que a sua prestação não pode exceder a fixada para o dito ( o montante da prestação de alimentos fixado ao devedor dos alimentos funciona como limite máximo para a prestação a cargo do FGADM ) .
Decisão Texto Integral:
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Acordam na 3ª Secção Cível da Relação de Coimbra:

I – Na acção de regulação do exercício do poder paternal intentada pelo Ministério Público contra BB e CC, relativa aos menores DD, EE, FF e GG, foi decidido, em 27/10/99, confiar estes à guarda e cuidados da mãe e condenar o pai a contribuir com a quantia mensal de esc. 10.000$00 relativamente a cada um dos filhos, a entregar à mãe até ao dia 8 do mês respectivo.
Tendo-se constatado, após inúmeras diligências, ser impossível obter do requerido a prestação fixada, foi decidido, em 13/03/2001, que a dita prestação seria suportada pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores (FGADM), enquanto subsistissem a menoridade e aquela impossibilidade.
Entretanto, o DD atingiu a maioridade, tendo cessado, quanto a ele, os pagamentos por parte do FGADM.
Confrontada com a diminuição do contributo do FGADM, a mãe dos menores tentou, em Janeiro de 2003, que o mesmo se mantivesse inalterado, pretensão não acolhida pelo Mm.º Juiz a quo.
Em 08/10/2003, o Ministério Público requereu que as prestações mensais relativas a cada uma das restantes menores fossem elevadas de 50 para 75 euros, dado o aumento do nível do custo de vida e o valor da inflação entretanto verificado.
Por despacho de 13/10/2003 foi tal requerimento indeferido com base no entendimento de que a Lei n° 75/98, de 19/11, e o Dec. Lei n° 164/99, de 13/05, impõem que a prestação a suportar pelo FGADM não ultrapasse o valor da obrigação originariamente imposta ao devedor dos alimentos.
Inconformado, o Ministério Público interpôs agravo, visando a sua revogação e substituição por outro que defira o requerido aumento. Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:
1. O Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores tem por finalidade assegurar o pagamento das prestações de alimentos a menores, em caso de incumprimento da obrigação pelo respectivo devedor;
2. As prestações atribuídas são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC (art. 2.º, n.º 1 da Lei 75/98, de 19/11);
3. Para a determinação do respectivo montante, atender-se-á à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor (art. 2.º, n.º 2, do mesmo diploma);
4. O valor fixado pelo tribunal mantém-se enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação a que o devedor está obrigado (art. 9.º, n.º 1do DL 164/99, de 13/5);
5. Poderá, nomeadamente, ser alterado, na hipótese de ocorrerem circunstâncias supervenientes que o justifiquem;
6. O montante da pensão fixada ao devedor originário não constitui limite para além do qual não é possível fixar pensão a cargo do Fundo (Cfr. nesse sentido o ac. do Trib. da ReI. de Coimbra de 5/3/02, in Col. Jur., Ano XXVII, T. 2, Pg. 5);
7. O único limite que consta da lei é o consignado no mencionado art. 2.º, n.º 1 da Lei 75/98, ou seja, as prestações não poderem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC;
8. O despacho recorrido violou, deste modo, por incorrecta interpretação, entre outras, as normas dos arts. 2.º da Lei 75/98 e 9.º, n.º 1 do Dec. Lei 164/99;
9. Deverá, assim, ser revogado tal despacho, determinado-se a sua substituição por outro, que defira o pedido do MP para ser aumentada a prestação, a cargo do Fundo, para 75 euros mensais, relativamente a cada uma das três menores, importância essa mais consentânea com as suas necessidades presentes e o actual nível de vida e que, na sua globalidade fica aquém das 4 UC.
Não foi apresentada contra-alegação.
Obtidos os vistos legais, há, agora, que apreciar e decidir.
II – Fundamentação de facto
Além do que consta do antecedente relatório, são relevantes para a apreciação e decisão do recurso os seguintes elementos:
1. O pai das menores não foi notificado da pretensão de aumento da prestação alimentar deduzida pelo Ministério Público;
2. É desconhecida a actual situação económica do pai das menores.
III – Fundamentação de Direito
A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação do agravante (art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil), passa pela análise e resolução da única questão jurídica por ele colocada a este tribunal, que consiste em determinar se o montante da prestação de alimentos a cargo do FGADM está limitada pela fixada ao devedor originário, ou se, pelo contrário, aquela pode ser superior a esta.
Na sequência do estabelecido na Convenção Sobre os Direitos da Criança, adoptada pela ONU, em 1989, e nas Recomendações do Conselho da Europa atribuindo especial relevância à consecução da prestação de alimentos a crianças e jovens até aos 18 anos de idade, o Estado Português sentiu necessidade de intervir nessa área, tendo instituído, através da Lei 75/98, de 19 de Novembro, um mecanismo de garantia de alimentos a suportar pelo Estado, via Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores. Como o referido Fundo de Garantia não visa substituir definitivamente uma obrigação legal de alimentos devida a menor, os art.ºs 2º, n.º 2 da Lei 75/98, de 19 de Novembro, e 3º, n.º 3 do DL 164/99, de 13 de Maio, que regulamentou aquela, fazem depender esse dever de prestar do Estado da verificação cumulativa dos requisitos seguintes:
a) existência de sentença que fixe os alimentos devidos a menores;
b) residência do devedor em território nacional;
c) inexistência de rendimentos líquidos do alimentando superiores ao salário mínimo nacional;
d) não beneficiar o alimentando, na mesma quantidade, de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre;
e) não pagamento, total ou parcial, por parte do devedor, das quantias em dívida através de uma das formas previstas no art.º 189º da OTM Cfr., neste sentido, J.P. Remédio Marques, Algumas Notas Sobre Alimentos (Devidos a Menores), Centro de Direito de Família da FDUC, 2, Coimbra Editora, págs. 221 e 222. .
Prima facie, a intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores reveste natureza subsidiária, visto que é seu pressuposto legitimador a não realização coactiva da prestação alimentícia já fixada. Além disso, depois de pagar, o Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores fica sub-rogado em todos os direitos do menor credor dos alimentos (art.ºs 6º, n.º 3 da Lei 75/98 e 5º, n.º 1 do DL 164/99), sendo-lhe, pois, lícito exigir do devedor de alimentos uma prestação igual ou equivalente àquela com que tiver sido satisfeito o interesse do menor (credor) Sobre o fenómeno da sub-rogação legal, vide Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7ª edição, 1997, II Volume, págs. 343 e segs.. Significa isto que o Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores é apenas um substituto do devedor dos alimentos, pelo que a sua prestação não pode exceder a fixada para o mesmo.
Não se ignora que este tribunal já seguiu orientação contrária Cfr. ac. de 5/3/02, CJ, ano XXVII, 2002, Tomo II, pág. 5, ac. de 2/10/01 (relator: Des. Távora Vítor) e ac. de 9/10/01 (relator: Des. Hélder Roque), in http://www.dgsi.pt/jtrc. , com o argumento de que o montante da prestação devida pelo obrigado a alimentos é apenas um dos vários critérios a ponderar na fixação do montante a prestar pelo Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, que apenas não poderá exceder as 4 UC.
Cremos, no entanto, que a interpretação aí feita dos referidos diplomas legais não corresponde, salvo o devido respeito, às suas letra e teleologia. De outro modo, aquele Fundo não seria de garantia, mas sim um mero pagador de prestação social não reembolsável. E isso não corresponde minimamente à sua concepção de garante e substituto do devedor de alimentos, na medida em que a final pode ter que pagar mais que aquele. Aliás, JP Remédio Marques Cfr., obra citada, pág. 221 e 223. esclarece que "precisamente porque o referido Fundo de Garantia não visa substituir definitivamente uma obrigação legal de alimentos devida a menor, antes propiciar uma prestação a forfait de um montante equivalente ao judicialmente fixado, mas que pode ser menor (sublinhado nosso)". E, noutro passo, adianta ainda que "no que toca ao quantum da prestação substitutiva do Estado, ainda que os alimentos judicialmente fixados ao menor sejam, por cada mês, de montante inferior a quatro unidades de conta de custas, nem por isso o juiz deve condenar o Estado a pagar esse montante...".
Ressalta de tudo isto que a prestação substitutiva a cargo do Fundo pode ser inferior a 4 UC e deve ser fixada tendo em conta a capacidade económica do agregado familiar da pessoa a cuja guarda o menor se encontre, as necessidades específicas do menor e o montante da prestação de alimentos fixada antes ao devedor de alimentos, que funciona como limite máximo.
Deste modo, não é admissível, como bem se ajuizou e decidiu no despacho recorrido, o atalhar de caminho preconizado pelo agravante, logo fazendo impender directamente sobre o Fundo o aumento da prestação alimentar, sem que previamente ao pai das 3 menores já haja sido imposto esse aumento. Primeiro, há que demandar este e obter a alteração da prestação alimentícia. Uma vez estabelecida esta, e mantendo-se a situação de incumprimento, então sim poderá o Fundo ser accionado. Por ora, é prematuro o seu directo accionamento.
Improcedem, assim, todas as conclusões do agravante, a quem não assiste razão em se insurgir contra a douta decisão da 1ª instância, que, a nosso ver, não violou os art.ºs 2º, n.º 2 da Lei 75/98, de 19 de Novembro, e 9º, n.º 1 do DL 164/99, de 13 de Maio, o que implica o total naufrágio do recurso e a manutenção do decidido nessa instância.
IV - Decisão
Nos termos expostos, decide-se não conceder provimento ao agravo e consequentemente manter o despacho recorrido.
Sem custas, por delas se encontrar isento o agravante.
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Coimbra, 25 de Maio de 2004