Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5924/06.9TVLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: DÍVIDA DE CÔNJUGES
PROVEITO COMUM
DOCUMENTO AUTÊNTICO
Data do Acordão: 01/20/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 264.º, N.º 2; 354.º, B); 1691.º, 1-C) DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGO 484.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. A responsabilização do cônjuge que não interveio na contracção da dívida, ao abrigo do disposto no art. 1691.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil, depende da verificação cumulativa de três requisitos: ter sido a dívida contraída pelo cônjuge administrador na constância do matrimónio, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração.

2. O conceito de proveito comum é misto ou complexo, envolvendo uma questão de facto e outra de direito.

3. Não alega o proveito comum do casal o autor que, em acção referente ao contrato de mútuo celebrado, apenas, por um dos réus, se limita a afirmar que o empréstimo reverteu em proveito comum do casal e que o bem adquirido com o seu produto se destinou ao património conjugal.

4. Desde que não seja esse o “thema decidendum”, a prova do casamento não necessita de ser feita por documento autêntico, bastando, para tanto, a ausência de impugnação do estado civil.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:




I. A...., S.A., com sede na Avenida ….., instaurou, nas Varas Cíveis de Lisboa, acção com forma de processo ordinário contra B....e mulher C.... residentes na Rua ….., pedindo a condenação solidária dos réus no pagamento da quantia de € 15.902,27, acrescida de juros vencidos até 20 de Novembro de 2006, no montante de € 1.334,38, imposto de selo sobre os juros vencidos, no valor de € 53,38, de juros vincendos, à taxa anual de 18,79%, desde 21 de Novembro de 2006 até integral pagamento, e de imposto de selo sobre os juros vincendos, à taxa de 4%.
Alegou, para tanto, o seguinte:
No exercício da sua actividade comercial, concedeu ao réu um empréstimo remunerado, na importância de € 19.237,00, com vista à aquisição, por este, de um veículo automóvel, que ele se obrigou a restituir em 72 prestações mensais sucessivas, a entregar, a primeira, em 10 de Maio de 2004 e as seguintes no dia 10 dos 71 meses subsequentes.
Em caso de incumprimento, teria o réu de suportar, a título de cláusula penal, uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada – 14,79% –, acrescida de 4 pontos percentuais.
O réu deixou de pagar as prestações estabelecidas e entregou o veículo adquirido com o empréstimo ao autor, para que este diligenciasse vendê-lo e, conseguindo-o, creditasse o valor na sua conta.
Alcançada a venda e creditado o seu produto ao réu, foi acordado que este pagasse o montante em débito – € 19.406,16 – em 72 prestações mensais e sucessivas, no valor de € 269,53 cada, mas ele só satisfez as 13 primeiras, pelo que ficou por pagar o valor total de € 15.902,27.
O montante mutuado reverteu em proveito comum do casal dos réus, até porque o veículo com ele adquirido passou a integrar o património comum de ambos, razão por que a ré Sandra é, também, solidariamente responsável pelo pagamento das aludidas importâncias.
Regularmente citados, os réus não deduziram oposição.
Declarada a incompetência, em razão do território, do foro de Lisboa, com atribuição da jurisdição ao Tribunal Judicial da Sertã (decisão confirmada em via de recurso, pelo Tribunal da Relação de Lisboa), foram os autos remetidos a esta comarca, onde, depois da declaração de confissão dos factos articulados pelo autor, nos termos do disposto no artigo 484.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e do cumprimento do n.º 2 do mesmo preceito legal, foi proferida sentença, que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou o réu nos montantes peticionados e absolveu a ré do pedido contra ela formulado, com o argumento de não estar documentado o casamento entre os réus, o qual era condição de procedência da acção relativamente à ré.
Da sentença interpôs recurso o autor (apelação, com efeito devolutivo), que apresentou extensas alegações, abundantemente recheadas de doutrina e de jurisprudência, concluídas do modo seguinte:
1.º - Alegou expressamente no art. 20.º da petição inicial que o empréstimo concedido ao réu se destinou à aquisição de um veículo automóvel, que reverteu em proveito comum do casal formado pelos réus.
2.º - Não obstante regularmente citados, os réus não contestaram, pelo que têm de ser dados por assentes, tanto o casamento, como o proveito comum do casal.
3.º - Desta forma, foram violadas as disposições dos artigos 484.º do CPC e 1691.º, n.º 1, alínea c), do CC, o que deverá conduzir à revogação da sentença, com a consequente condenação da ré no pedido.

Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.

A questão base a requerer solução é, de acordo com o teor das conclusões do recurso, a de saber se a ré mulher deve ser responsabilizada, solidariamente com o réu, pelo pagamento do empréstimo contraído por este junto do autor.


II. Na decisão apelada foram considerados assentes os seguintes factos:

1. O autor é uma instituição de crédito que, no exercício da sua actividade comercial, e com destino, segundo informação prestada, então, pelo Réu B...., à aquisição de um veículo de automóvel, da marca Mercedes, modelo “Vito Combi”, com a matrícula …., por acordo escrito constante de título particular datado de 21 de Abril de 2004, junto em fotocópia a fls. 11-12, concedeu ao dito Réu crédito directo, sob a forma de um acordo de mútuo, no montante de € 19.237,00.
2. Nos termos do acordo assim celebrado, o autor emprestou ao réu a dita importância, com juros à taxa nominal de 14,79% ao ano, obrigando-se este a pagar o capital, os juros e um prémio do seguro de vida na sede do autor, em 72 prestações mensais e sucessivas, a primeira, em 10 de Maio de 2004 e as seguintes nos dias 10 dos 71 meses subsequentes.
3. De harmonia com o acordado entre as partes, a importância de cada uma das referidas prestações seria paga – conforme ordem logo dada pelo réu ao seu Banco – via transferência bancária, a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das prestações, para conta bancária sedeada em Lisboa, logo indicada pelo autor.
4. A falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as restantes.
5. Em caso de mora, acrescia ao montante em débito, a título de cláusula penal, uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada – 14,79% – acrescida de 4 pontos percentuais.
6. O réu deixou de pagar as prestações referidas, mas entregou ao autor o falado veículo automóvel, para que este diligenciasse proceder à respectiva venda – o que veio a conseguir – e creditasse o respectivo valor por conta do que o réu lhe devesse.
7. Uma vez feita a venda do veículo automóvel e creditado o produto líquido obtido a favor do réu, acordaram as partes em que o saldo então em débito – € 19.406,16 – fosse pago pelo réu ao autor em 72 prestações mensais e sucessivas, no montante de € 269,53 cada, com vencimento, a primeira, em 10 de Maio de 2005 e as restantes nos dias 10 dos 71 meses subsequentes, em tudo o mais se mantendo em vigor o referido acordo de mútuo.
8. A importância de cada uma de tais prestações teria de ser paga – conforme ordem logo dada pelo réu ao seu Banco – mediante transferência bancária, a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das prestações, para conta bancária sedeada em Lisboa, logo indicada pelo autor.
9. As prestações 14.ª e subsequentes não foram pagas, seja pelo réu, seja por outrem a seu mando.

O tribunal de 1.ª instância considerou provado, ainda, que “o total das prestações em débito pelo réu ao autor ascende a € 15.902,27 (59x269,53)”, “os juros vencidos até 20.11.06 ascendem a € 1.334,38” e “o imposto de selo sobre os juros referidos em 12 ascende a € 53,38” (pontos 11, 12 e 13 da matéria de facto assente).
Tal matéria mais não é do que a conclusão, extraída por simples operação aritmética, da factualidade inserta nos números 7, 8 e 9 dos factos supra discriminados. É evidente que, se o réu se obrigou a pagar ao autor 72 prestações mensais no montante individual de € 269,53 e só liquidou 13 delas, o montante em débito é de € 15.902,27, correspondente à multiplicação do número das prestações em falta pelo valor de cada qual, como evidente é que o valor dos juros vencidos corresponde à multiplicação da taxa contratada pelo capital em dívida e pelo tempo em que subsistiu a ausência de pagamento e que o valor do imposto de selo corresponde à multiplicação da taxa fixada na Tabela Geral do Imposto de Selo pelo montante dos juros vencidos.
Tratando-se de matéria conclusiva e inteiramente inútil para a decisão do pleito, não faz sentido a sua inclusão no elenco dos factos provados, de onde, portanto, se decidiu retirá-la.


III. O autor peticionou a condenação solidária dos réus no pagamento das importâncias mencionadas, tendo invocado, relativamente ao réu, o incumprimento de um contrato de mútuo que com ele celebrou, e, quanto à ré, a circunstância de o empréstimo ter revertido em benefício do património comum do casal formado por ela e pelo réu.
O réu foi condenado no pedido, mas a ré absolvida, com base na seguinte lógica argumentativa:
A responsabilização do cônjuge que não interveio no negócio gerador da dívida, ao abrigo do preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 1691.º do CC, depende da verificação cumulativa de três requisitos: a) ter sido a dívida contraída na constância do matrimónio; b) em proveito comum do casal; c) nos limites dos poderes de administração do cônjuge administrador.
O proveito comum não se presume, excepto nos casos em que a lei o declarar (n.º 3 daquele artigo).
A confissão ficta do art. 490.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPC não actua quando se trate de factos que só possam ser provados por documento escrito.
O casamento só pode ser provado por documento, nos precisos termos dos artigos 1.º, n.º 1, alínea d), 4.º e 211.º do C. R. Civil.
No âmbito dos negócios jurídicos importa saber quem é que é casado com quem em determinado ciclo temporal, porque quem o é ao tempo do evento pode não o ser ao tempo da acção; de resto, o próprio regime de bens do casamento pode ser relevante para responsabilizar, ou não, o cônjuge.
Se o casamento for uma condição de procedência da acção contra o cônjuge do demandado, a prova terá de ser feita por certidão do registo civil, não bastando, para tal, a confissão; de contrário, poderia dar-se o caso de se admitir dentro do processo a prova do facto do casamento em inteira desconformidade com a realidade do registo.
Não foi feita a prova do casamento por essa via, pelo que a ré não há como responsabilizar a ré pela dívida contraída pelo réu.
Que dizer desta fundamentação?
Que tem mais de rigor formal do que de substância.
O autor alegou que os réus eram casados entre si e que o réu contraiu o empréstimo com o fito de adquirir um veículo automóvel (que, efectivamente, adquiriu) destinado ao património comum do casal.
Os réus, apesar de pessoalmente citados, não contestaram.
Qual o alcance da falta de contestação (art. 484.º, n.º 1, do CPC), sabido que a confissão ficta não opera em relação aos factos para cuja prova seja exigível documento escrito (artigos 485.º, alínea d), e 490.º, n.º 2, ambos do CPC)?
A questão não é nova, tendo sido objecto, já, de inúmeras decisões dos nossos Tribunais Superiores, de onde ressaltam duas posições fundamentais: uma, minoritária, no sentido de que a prova do casamento só pode ser feita por documento autêntico, seja qual for o tipo de acção onde a discussão se suscite e outra, maioritária, prosseguindo o entendimento de que a falta de contestação implica a prova do casamento, desde que não se trate de acção de estado, nem o estado civil integre o “thema decidendum” (cfr., a este propósito, o acórdão do STJ de 15.03.05, publicado na CJ de Acórdãos do Supremo, Ano XIII, tomo I, página 132, onde se faz uma resenha minuciosa das duas teses e se toma partido pela segunda das indicadas posições).
E esta (a da não exigência de documento) nos parece ser, de facto, a melhor das interpretações (seguida, aliás, mais recentemente, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão de 24.04.07, publicado na CJ, Ano XXXII, tomo II, página 101), na consideração, nomeadamente, de que, como se escreveu no acórdão do Tribunal desta Relação, de 25.06.85 (CJ, Ano X, tomo III, página 99), o disposto na alínea d) do art. 485.º do CPC nunca obstaculizou, em acções de direitos disponíveis, à especificação do estado civil de autores e réus, através do uso de fórmula igual ou muito semelhante a esta: “A e mulher B deram de arrendamento a C e mulher D …”.
É que, não havendo discussão sobre o facto em si, nem sendo ele o cerne do problema, não se vê por que razão haveria de ser chamado à colação um regime que tem o seu campo de aplicação privilegiado no domínio dos direitos subtraídos à disponibilidade das partes.
Repare-se, acima de tudo, que o artigo 485.º do CPC não pode ser encarado isoladamente da matéria substantiva, mormente da alínea b) do artigo 354.º do CC, que limita a validade da prova por confissão aos factos relativos a direitos indisponíveis. Sendo esta a matriz racional e legal da exigência de uma prova mais solene que a da confissão, parece óbvio, atendendo à unidade do pensamento jurídico e à presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (artigo 9.º do CC), que, fora do segmento dos direitos indisponíveis, a confissão dos factos articulados opera em plenitude, mesmo em relação àqueles que demandariam prova por documento se constituíssem o objecto da acção em si.
Nesta perspectiva, e ao contrário do que se decidiu em 1.ª instância, haverá de ter-se por assente, por ausência de impugnação, que os réus são casados entre si.
Mas não mais do que isso; ou seja, a confissão ficta opera quanto à relação matrimonial dos réus, porque alegado pelo autor, mas deixa de fora a data do casamento e o regime de bens, assim como a finalidade e as circunstâncias em que o réu adquiriu o veículo automóvel com a quantia que lhe foi emprestada para o efeito, porque a petição inicial é completamente omissa a tal respeito.

Provado, então, que os réus são casados entre si, falta saber se a ré mulher pode ser condenada, solidariamente com seu marido, no pagamento da dívida contraída por este.
Nos termos do n.º 1 do art. 1691.º do CC, são da responsabilidade de ambos os cônjuges: a) as dívidas contraídas, antes ou depois da celebração do casamento, pelos dois cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro; b) as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges, antes ou depois da celebração do casamento, para ocorrer aos encargos normais da vida familiar; c) as dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração; d) as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime de separação de bens; e) as dívidas consideradas comunicáveis nos termos do n.º 2 do artigo 1693.º.
Na tentativa de afirmar a comunicabilidade da dívida, alegou o autor, tão-somente, o seguinte: “o empréstimo referido reverteu em proveito comum do casal dos réus – atento até o veículo referido se destinar ao património comum do casal dos réus – pelo que a ré Sandra é solidariamente responsável com o réu Fernando, seu marido, pelo pagamento das importâncias referidas” (artigo 20.º da petição inicial).
Evidentemente que o alegado tem em mira a responsabilização derivada da alínea c) do mencionado normativo, excluindo, portanto, todas as demais hipóteses.
Para que a dívida contraída por um dos cônjuges se possa considerar comunicável nos termos daquela alínea, é necessário, como, aliás, se disse, e bem, na sentença recorrida, que a mesma tenha sido contraída na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração.
Comentando o preceito, ensinou o Sr. Prof. Pereira Coelho que “… para se saber se certa dívida contraída por um dos cônjuges pode considerar-se de responsabilidade comum à luz desta alínea c), há que averiguar se essa dívida está conexionada com os bens de que esse cônjuge tem a administração e ainda se ela é contraída em proveito comum do casal”. Quanto à noção de proveito comum, avançou três ideias, sendo a primeira a de que “o proveito comum se afere, não pelo resultado, mas pela aplicação da dívida, ou seja, pelo fim visado pelo devedor que a contraiu”, a segunda, a de que “o interesse comum do casal…pode ser não só um interesse material ou económico, senão também um interesse moral ou intelectual” e a terceira, a de que “não basta, para que uma dívida se considere aplicada em proveito comum dos cônjuges, a intenção subjectiva do agente: exige-se uma intenção objectiva de proveito comum, ou seja, é necessário que a dívida se possa considerar aplicada em proveito comum do casal aos olhos de uma pessoa média e, portanto, à luz das regras da experiência e das probabilidades normais” (Curso de Direito de Família, 1986, páginas 426/428).
Nas palavras, ainda, do mesmo mestre, “determinar se uma dívida foi aplicada em proveito comum implica, ao mesmo tempo, uma questão de facto (averiguar o destino dado ao dinheiro) e uma questão de direito (decidir sobre se, em face desse destino, a dívida foi ou não contraída em proveito comum do casal). Por isso, em vez de se quesitar se a dívida foi ou não contraída em proveito comum do casal, deve antes perguntar-se a aplicação que teve a quantia proveniente da dívida” (obra citada, página 427, nota 1).
Na lógica do recorrente, a dívida seria comunicável, porque contraída em proveito comum do casal, que estaria suficientemente caracterizado no artigo 20.º da petição inicial, acima transcrito, cujo conteúdo constituiria matéria de facto, plenamente provada por confissão dos réus, nos termos do art. 484.º, n.º 1, do CPC.
Mas não é assim. A complexidade em que se resolve o conceito de proveito comum (questão de facto, por um lado, e questão de direito, por outro) só é susceptível de configuração através da alegação de suporte factual que explicite os fins ou motivos da contracção da dívida, forma única de se poder concluir se a mesma teve, ou não, em vista a satisfação dos interesses do casal.
Como se escreveu no acórdão do STJ de 07.06.05 (publicado na Colectânea de Acórdãos do Supremo, Ano XIII, tomo II, página 118) que incide sobre uma situação idêntica à presente, protagonizada, aliás, pelo mesmo autor, e onde a questão é tratada de forma que se pode considerar exaustiva, Indicando-se doutrina e jurisprudência esmagadoramente maioritárias no sentido da tese ora defendida. a “expressão legal proveito comum traduz-se, então, num conceito de natureza jurídica, a preencher através dos factos materiais indicadores daquele destino, a alegar na petição inicial”, não se tratando, portanto, de “matéria de facto passível de ser adquirida pela confissão ficta prevista no invocado artigo 484.º, n.º 1, do CPC”.
Ora, a verdade é que o recorrente não alegou um facto que seja, de onde se possa extrair o fim ou o objectivo da aquisição da viatura em que foi empregue o dinheiro emprestado ao réu. E, sem isso, não há a menor hipótese de saber se o casal saiu beneficiado com a contracção da dívida.
Dizer que o empréstimo reverteu em proveito comum do casal dos réus é afirmar o direito sem apoio de factos. Quem invoca um direito tem de fazer a prova dos factos que o integram (art. 342.º, n.º 1, do CC). Mas antes da prova vem, como é óbvio, a alegação, sendo que o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes (art. 264.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
O proveito comum não se presume, como dimana do preceituado no art. 1691.º, n.º 3, do CC; tendo o autor omitido os seus factos constitutivos, mormente o fim visado pelo réu ao proceder à aquisição do veículo automóvel, cerceado ficou o poder de apreciação do tribunal relativamente à componente jurídica da questão complexa que lhe era colocada. Sem factos, não pode o julgador dizer o direito.
É certo que o autor informou, assertivamente, que o veículo se destinava ao património comum do casal. Ainda, assim, nada de novo, na medida em que não passa do repisar da mesma ideia por outras palavras. Voltando ao referido acórdão do STJ de 07.06.05, “o conceito de património comum é jurídico, desde logo porque anda associado ao conhecimento da data do casamento e respectivo regime de bens, sabido que é que só se pode falar em bens comuns se o casamento for no regime da comunhão geral ou, sendo-o na comunhão de adquiridos, após a celebração do contrato, não dispensando o silogismo judiciário e o recurso a actividade interpretativa (cfr. artigos 1722.º a 1732.º do CC”.
O problema, muito simplesmente, é que se desconhece (porque nem sequer foi alegado, recorde-se) sob que regime de bens foi celebrado o casamento dos réus, como se desconhece, até, se já eram casados aquando da contracção do empréstimo destinado à aquisição do automóvel em causa.
Neste contexto, a alegação é gratuita, porque destituída de fundamentação de facto.
E isto reconduz-nos, de novo, aos requisitos de responsabilização de ambos os cônjuges exigidos pela alínea c) do n.º 1 do falado art. 1691.º: contracção da dívida na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração.
Como dizer que a obrigação assumida pelo réu é extensível à ré mulher, se se ignora o regime de bens do casamento e o momento da sua contracção?
Se foi contraída antes do casamento, não lhe é, seguramente, imputável à luz de tal preceito; mas, ainda que o tenha sido depois, seria preciso que vigorasse o regime da comunhão (geral ou de adquiridos), para a responsabilizar; e esse é um dado que está muito longe de ser adquirido.
A mera circunstância de o património conjugal vir a ser enriquecido com bens adquiridos com o produto de uma dívida contraída por um só dos cônjuges não equivale, sem mais, à verificação do proveito comum e, muito menos, à responsabilização do outro cônjuge. A previsão da alínea c) do n.º 1 do art. 1691.º do CC vai muito para além disso, como claramente deflui do tríplice pressuposto que consagra.
Temos, assim, que o autor não alegou – ónus que lhe cabia – e, consequentemente, não podia provar, os factos constitutivos da responsabilização do cônjuge que não interveio na assunção da dívida, pelo que não há como condenar a ré no pagamento da quantia peticionada.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões do recurso, embora não pelas exactas razões invocadas na primeira instância.


IV. Em síntese:

1) Desde que não seja esse o “thema decidendum”, a prova do casamento dos réus não necessita de ser feita por documento autêntico, bastando, para tanto, a ausência de impugnação do estado civil.
2) A responsabilização do cônjuge que não interveio na contracção da dívida, ao abrigo do disposto no art. 1691.º, n.º 1, alínea c), do CC, depende da verificação cumulativa de três requisitos: ter sido a dívida contraída pelo cônjuge administrador na constância do matrimónio, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração.
3) A questão do proveito comum é uma questão mista ou complexa, envolvendo uma questão de facto e outra de direito.
4) Não alega o proveito comum do casal o autor que, em acção referente ao contrato de mútuo celebrado, apenas, por um dos réus, se limita a afirmar que o empréstimo reverteu em proveito comum do casal e que o bem adquirido com o seu produto se destinou ao património conjugal.


V. Decisão:

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação do autor, em razão do se confirma a sentença apelada.
Custas pelo autor.