Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
453/05.0TBANS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: USUCAPIÃO
AQUISIÇÃO POR USUCAPIÃO
USO ANORMAL DO PROCESSO
CONLUIO DAS PARTES
Data do Acordão: 09/26/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 665º DO CPC
Sumário: 1 – É posição dominante na jurisprudência que não existem obstáculos a que a usucapião sirva para legitimar uma operação de divisão material de um prédio, ainda que, na sua origem, tenham sido desrespeitados certos condicionalismos impostos por lei, designadamente acerca das áreas de cultura adequadas para a zona.

2 – A usucapião, como forma originária de aquisição de direitos reais, rompe com todas as limitações legais que tenham a coisa possuída por objecto, como seja a proibição de divisão de um prédio.

3 – À proibição decorrente do artº 665º do CPC – uso anormal do processo para conseguir um fim proibido por lei – está imanente um conluio entre as partes para obterem determinado efeito jurídico, o que pressupõe a existência de uma intriga ou trama, ou combinação entre elas para prejudicarem terceiros.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- A... e mulher B..., residentes no Moinho das Moitas, Ansião, vieram propor a presente acção sob a forma ordinária, contra C...e mulher D..., residentes no Moinho das Moitas, Ansião, pedindo que se ordene o cancelamento da cota G-um a favor dos RR sobre o imóvel descrito sob o número 2364/freguesia de Ansião na Conservatória de Registo Predial de Ansião tendo como causa a nulidade da mesma visto que é insuficiente o título que lhe serve de base, se declare judicialmente a autonomização e existência física delimitada e autónoma, com as respectivas composições, localizações, áreas e confrontações dos dois prédios/imóveis e descritos, por usucapião, relativamente ao imóvel prédio-mãe, que identificam, sendo declarados proprietários da parcela A, os demandados e proprietários da parcela B, os demandantes.
Fundamentam estes pedidos, em síntese, dizendo que existiu um imóvel de natureza rústica, sendo que desse prédio se autonomizaram duas parcelas, a parcela A e a parcela B, que eles, AA. e os RR. adquiriram por usucapião.
1-2- Citados os RR. para contestar, não o fizeram.
1-3- Por despacho de 28-10-2005, o Mº Juiz ordenou o registo da acção, a que os AA. procederam.
1-4- No despacho saneador a Mª Juíza entendeu ocorrer o uso anormal do processo, o que configura uma excepção dilatória, razão por que anulou todo o processado, declarando o mesmo de nenhum efeito e, em consequência, decidiu não se conhecer do mérito do pedido, absolvendo da instância os RR. ( arts. 665º e 288º, nº 1, al. b), 494º, al. b), ambos do Código de Processo Civil ).
1-5- Não se conformando com esta decisão, dela vieram recorrer os AA., recurso que foi admitido como agravo, com subida imediata nos próprios autos e com efeito suspensivo.
1-6- Os AA., recorrentes, alegaram, tendo retirado as seguintes conclusões, que se resumem:
1ª- Os AA. e RR. têm um conflito provado por documentos autênticos juntos aos autos e que não solucionaram extrajudicialmente, carecendo da intervenção do tribunal, porque os RR., apesar de terem adquirido a verba que indicam na proporção de 1/3, incorrectamente lograram a sua inscrição pela totalidade, bem sabendo que o imóvel mão não lhes pertencia por inteiro.
2ª- Permitiram depois os RR. a adjudicação por inteiro desse mesmo imóvel ( em escritura de partilhas ), bem sabendo que já sobre o mesmo haviam levado a cabo a inscrição predial pela totalidade dois anos antes.
3ª- Foi com o objectivo de anular o conflito registral e com a finalidade de obter a declaração judicial de autonomização das duas parcelas que os AA. interpuseram a acção, pese embora só uma delas interesse aos AA..
4ª- Os actos possessórios invocados, os caracteres da posse e o lapso temporal invocados pelos AA. tem como escopo demonstrar ao tribunal e aos RR. que é inquestionável a autonomização e não paira a dúvida quanto à hipotética compropriedade.
4ª- A usucapião serve e vincula os AA. e RR., mas só aproveita a quem a invoca em nome próprio.
5ª- Se a Mª Juíza tivesse, em relação à questão entendimento diverso, impunha-se-lhe providenciar pelo suprimento da excepção ( arts. 508º nº 1 al. a) e 265º nº 2 do C.P.Civil ).
6ª- A sentença recorrida violou os arts. 665º, 288º nº 1 al. b), 494º al.b), 508º nº 1 als. a) e b), 265º, 265º A nºs 1 e 2, 266º nºs 1 e 2 e 484º do C.P.Civil e 1292º, 300º, 302º, 303º e 305º do C.Civil, razão por que deve ser revogada. 1-7- A parte contrária não respondeu às alegações de recurso.
1-8- A Mª Juíza sustentou a sua decisão ( fls.128 ).
Corridos os vistos legais, há que apreciar e decidir.
II- Fundamentação:
2-1- Na douta decisão recorrida, para o aqui interessa, considerou-se que art. 1376º, nº 1 do Código Civil não permite que os terrenos aptos para cultura possam fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada pelo Governo para cada zona do País, sendo que o art. 1379º declara anuláveis os actos de fraccionamento contrários ao disposto no art. 1376º. Por sua vez, a Portaria nº 202/70 de 21/04 (a qual ainda se encontra em vigor, face ao estabelecido no art. 21º do DL. nº 384/88 de 25/10 e 53º do DL: nº 103/90 de 22/03) fixou a unidade de cultura para o distrito de Leiria, ao qual pertence a comarca de Ansião para os terrenos arvenses e de sequeiro, em 2 hectares e para os terrenos hortícolas em 0,50 hectares. O prédio que está em causa nos autos tem a natureza rústica, tratando-se de terreno arvense, tendo uma área inferior à unidade de cultura. Por isso, não será divisível.
Considerou, por outro lado, que a usucapião constitui uma forma de aquisição originária, pelo que o direito correspondente à posse exercida é adquirido ex novo, sendo que como se refere no Ac. da RC de 2/5/89, sumariado no BMJ nº 387, pág. 671, “a usucapião, como forma originária de aquisição de direitos reais, rompe com todas as limitações legais que tenham a coisa possuída por objecto (por exemplo, a exigência de forma para a partilha de uma herança e a proibição de divisão de um prédio)”. Os AA. pedem o reconhecimento do seu direito de propriedade, e até o dos RR., com fundamento na usucapião, sendo embora certo que a posse lhes adveio em consequência de um fraccionamento ilegal. Ora, incidindo a posse sobre bens corpóreos, a invocação da usucapião apenas é vedada perante obstáculos legais expressos, como sucede nos casos assinalados no art. 1293º (direito de uso e habitação e servidões prediais não aparentes), naqueles que resultem de normas jurídicas que impedem a apropriação individual de determinados bens do domínio público ou de baldios (Ac. STJ de 20/1/99, CJSTJ, Tomo I, pág. 53) ou das que obstam à colocação de certos bens no comércio jurídico. Conclui, assim que não existe obstáculo a que a usucapião sirva para legitimar uma operação de divisão material de um prédio, ainda que, na sua origem, tenham sido desrespeitados certos condicionalismos impostos.
Acrescentou depois que prevê o art. 655º do Código de Processo Civil que quando a conduta das partes ou quaisquer circunstâncias da causa produzam a convicção segura de que o autor e o réu se serviram do processo para praticar acto simulado ou para conseguir um fim proibido por lei, a decisão deve obstar ao objectivo anormal prosseguido pelas partes. Neste caso, deve o juiz declarar o processo sem efeito e abster-se de conhecer do fundo da causa. A simulação processual dá-se quando as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio inexistente para obter uma sentença cujo efeito apenas querem relativamente a terceiros, mas não entre si. Como esta cisão não é lícita, simulam o litígio para o engano de terceiros. A fraude processual dá-se quando as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio para obter uma sentença cujo efeito pretendem, mas que lesa um direito de terceiro ou viola uma lei imperativa predisposta no interesse geral. A simulação de litígio, comum a ambas as figuras referidas, passa quase sempre, mediante prévio acordo entre as partes, entre si conluiadas, pela alegação, não contraditada (não impugnando o réu factos alegados pelo autor por forma a ficarem os mesmos assentes) ou contraditada ficticiamente, de forma não correspondente à realidade. Em todos os casos, o desvio consistente na pretensão de realização, por acordo entre ambas as partes, duma finalidade divergente da função do processo civil é essencial ao conceito de simulação ou fraude processual. Quando o juiz se aperceba de tal simulação ou fraude processual, deve obstar ao objectivo anormal prosseguido pelas partes, anulando oficiosamente o processo.
Concluem que, no caso, os AA. poderiam, ver a sua pretensão deferida, como vem sendo entendimento na nossa jurisprudência, caso provassem a matéria alegada. Existe simulação processual no sentido já explicado, pois que AA. e RR. demonstram, com a sua conduta processual, estarem conluiados para obter determinado efeito jurídico, no caso, a autonomização de parcelas inferiores à unidade de cultura permitida por lei, efectuando os AA. pedidos para si próprios e para os RR. ( não tendo estes contestado por manifesta falta de interesse), o que não é compatível com as regras processuais mais elementares. Assim, no seu entender, existe um uso anormal do processo, tratando-se de excepção dilatória, razão por que anulou todo o processado, absolvendo da instância os RR..
Isto é e em síntese, a Mª Juíza reconheceu, por um lado que as parcelas de terreno em causa, por inferiores às unidades de culturas, não eram autonomizáveis. Porém, invocando-se a usucapião em relação a elas, tal impeditivo legal não era procedente. Considerou, porém, que existia simulação processual das partes e, como tal, um uso anormal do processo, razão por que considerou verificar-se a excepção dilatória correspondente e, por isso, absolveu os RR. da instância.
Não acompanhamos a Mº Juíza em todo o seu raciocínio.
Com a presente acção pretendem os demandantes, de essencial, se declare judicialmente a autonomização e existência física delimitada e autónoma, com as respectivas composições, localizações, áreas e confrontações, dos dois prédios/imóveis descritos, por usucapião, relativamente ao imóvel prédio-mãe. Pedem também se ordene o cancelamento do registo da cota que indicam.
Evidentemente que deste pedido se infere que existe um antagonismo entre o direito ( de propriedade ) que invocam em relação à parcela que dizem ter adquirido por usucapião e o direito que se encontra registado.
Pelas razões indicadas na douta decisão recorrida, o prédio-mãe não é fraccionável, por essa divisão implicar ficarem as parcelas com áreas inferiores à unidade de cultura própria.
Sucede que, pelas razões invocadas na decisão recorrida e como é posição dominante na jurisprudência[11 Vide entre outros, o Acórdão da Relação de Coimbra de 28-3-2000 ( Col. Jur. 2000, Tomo II, pág. 31) que trata proficientemente do assunto ], não existem obstáculos a que a usucapião sirva para legitimar uma operação de divisão material de um prédio, ainda que, na sua origem, tenham sido desrespeitados certos condicionalismos impostos, concretamente as áreas de cultura adequadas para a zona. Por outras palavras, a usucapião, como forma originária de aquisição de direitos reais, rompe com todas as limitações legais que tenham a coisa possuída por objecto, como com a proibição de divisão de um prédio. Nesta conformidade, nada impedirá a que o pedido formulado pelos AA. possa proceder.
Até aqui esta posição é idêntica à assumida na douta decisão recorrida.
Considerou depois esta decisão que, no caso, existe um uso anormal do processo por banda dos demandantes, por simulação processual das partes.
Aqui já não acompanhamos o aresto recorrido.
Estabelece o art. 665º do C.P.Civil que “quando a conduta das partes ou quaisquer outras circunstâncias da causa produzam a convicção segura de que o autor e o réu se serviram do processo para praticar um acto simulado ou para conseguir um fim proibido por lei, a decisão deve obstar ao objectivo anormal prosseguido pelas partes”.
Segundo a decisão recorrida, as partes demonstram, com a sua conduta processual, estarem conluiados para obter determinado efeito jurídico, no caso, a autonomização de parcelas inferiores à unidade de cultura permitida por lei, efectuando os AA. pedidos para si próprios e para os RR. ( não tendo estes contestado por manifesta falta de interesse ), o que não é compatível com as regras processuais mais elementares.
Salvo o devido respeito pela opinião contrária, na decisão não se evidencia por que razão se afirma que as partes estão conluiadas. Conluio significa, num primeiro sentido, intriga ou trama, ou como se diz no Dicionário de Língua Portuguesa “combinação entre duas pessoas para prejudicar outras” ( in Dicionário de Alfredo Camacho ). Em nenhuma parte da decisão se diz em que consiste materialmente essa maquinação, nem se invoca qualquer prejuízo concreto para outros.
É certo que os RR. não contestaram. Mas esta ausência de oposição pode entender-se de muitas formas, designadamente por estarem de acordo com o afirmado pelos AA.. Se estão conforme com os factos alegados pelos AA., a contestação é inútil. Como é bom de ver, uma ausência de contestação não pode significar, por si só, um qualquer conluio processual entre as partes.
Genericamente, na decisão recorrida, também se refere que “a fraude processual dá-se quando as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio para obter uma sentença cujo efeito pretendem, mas que lesa um direito de terceiro ou viola uma lei imperativa predisposta no interesse geral”. Não aplica, todavia, essa referência geral ao caso dos autos, acrescentando nós, em relação a esse entendimento, que não só não se vê que exista a criação de um litígio fictício, mas também que um qualquer direito de terceiro possa ser violado com o presente pleito.
Aliás o que a norma em evidência sanciona é a utilização do processo para a prática de um acto simulado, sendo que na decisão recorrida esse acto, igualmente, se não esclarece.
Também sanciona a norma o uso do processo para se conseguir um fim proibido por lei, mas não foi neste fundamento que a decisão recorrida se estribou para chegar à conclusão do uso anormal do processo. Aliás, a este propósito, a decisão recorrida até concluiu, como se viu, que não existem obstáculos a que a usucapião, invocado pelos AA., sirva para legitimar uma operação de divisão material (ilegal) de um prédio.
Por outro lado, a lide é útil para os AA., já que poderá servir para definir o seu direito de propriedade sobre a parcela que indicam. É pois evidente o seu interesse processual na presente acção. Claro que, reflexamente, os RR. também podem ter interesse na procedência do pleito, na medida em que a sua situação de propriedade sobre a parcela de terreno que deterão, poderá, igualmente ficar clarificada. Porém, a usucapião invocada pelos AA., não lhes aproveitará visto que, como se sabe e resulta do disposto dos arts. 1292º e 303º do C.Civil, essa forma de aquisição originária para produzir efeitos, necessita de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele que dela queira beneficiar.
Acresce que e como acima já referenciámos, do pedido formulado pelos AA., infere-se que existe um incompatibilidade entre o direito ( de propriedade ) que invocam em relação à parcela que dizem ter adquirido por usucapião e o direito que se encontra registado, o que também pode justificar a acção. Ainda a este propósito, ao contrário da existência de qualquer conluio, refere-se mesmo na p.i. um certo antagonismo entre AA. e RR., pois o prédio ( mãe ) terá sido registado na totalidade a favor destes, pelo R. marido, apesar de saber que isso era incorrecto (vide arts. 8º a 10º desse articulado ).
Por fim, de sublinhar ainda que, o dispositivo de que a Mª Juíza lançou mão ( uso anormal do processo ), envolve um juízo de convicção segura, ou seja um convencimento fora de qualquer dúvida, sobre a utilização, pelas partes, do processo para a prática de um acto simulado, o que também, no caso vertente, não foi feito, nem sequer chegou a ser assim equacionado.
A decisão recorrida merece, pois, revogação.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, revoga-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos.
Custas pela parte vencida a final.