Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1706/04.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
INCUMPRIMENTO
RESOLUÇÃO
CESSÃO DE QUOTA
Data do Acordão: 09/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 217.º; 410.º; 411.º; 436.º; 437.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Constitui declaração tácita de resolução do contrato promessa de cessão de quotas a entrega das chaves de um estabelecimento pelo promitente-comprador – que dele tinha a posse – ao promitente vendedor.
2. Tendo o réu aceite as chaves para que o estabelecimento não perdesse a clientela, tal não significa que tenha aceite a resolução do contrato.
3. Para que se possa falar de alteração anormal das circunstâncias fundantes da decisão de contratar necessário se torna que o real circunstancialismo da celebração do contrato, conhecido dos contraentes, sofra um tal desvio que o equilíbrio das prestações respectivas se apresente fortemente distorcido, em termos de a exigência de uma delas ser desproporcionadamente violenta ou até totalmente injustificada. A modificação das circunstâncias deve ser anormal, o que, na prática, equivale à respectiva imprevisibilidade.
4. Para além disso, tem de afectar gravemente a boa-fé e não estar coberta pelo risco contratual. É praticamente improvável ou muito difícil que a manutenção das prestações no contexto de uma alteração imprevisível da base contratual não afecte gravemente o princípio da boa-fé; e, sendo imprevisível, também não se poderá ter como abrangida pelo risco contratual.
5. Se há um equívoco de uma das partes sobre a realidade de alguma circunstância o problema pode ser de erro sobre os motivos da vontade (artigo 252, nºs 1 e 2 do Código Civil) e não de alteração objectiva, só esta cabendo verdadeiramente na previsão da norma do artigo 437.º
6. Não tendo os promitentes-compradores evidenciado ter "posto fim" ao contrato com fundamento relevante no plano legal, a simples circunstância de terem rompido com a relação contratual com a entrega das chaves do estabelecimento coloca-os na veste do incumprimento definitivo, nos termos do artigo 798 do Código Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... e B... intentaram nas Varas Mistas de Coimbra acção declarativa com processo ordinário contra C... e D... pedindo a condenação solidária dos RR. no pagamento da quantia de € 28.740,34 acrescida de juros à taxa legal de 4% desde a citação até efectivo pagamento.
Alegam para tanto, e em resumo, que tendo celebrado com os RR. em Setembro de 2003 um contrato pelo qual estes lhes prometiam ceder as quotas que detinham na sociedade Bandeira e Nascimento, Ldª, cujo objecto se relacionava com a exploração do Café Restaurante "O Largo", sito em Brasfemes, concelho de Coimbra, constataram, já na posse autorizada do dito estabelecimento, que as dívidas, nomeadamente fiscais, anteriormente criadas pelos RR. atingiam valores elevadíssimos sem que estes, como lhes competia, as liquidassem. Razão por que em 31 de Outubro de 2003, os A.A., puseram fim ao contrato promessa destes autos, resolvendo-o, resolução que se traduziu na entrega aos RR. das chaves e gerência do Café Restaurante, o que estes aceitaram, assumindo a respectiva exploração desde então e prometendo fazer contas com eles AA..
Contestaram os RR., dizendo que as dívidas pagas pelos AA. foram assumidas pelos RR. na medida em que seriam deduzidas no preço da cessão, como já o fora uma dívida à Centralcer; que os AA., por desentendimento entre eles, disseram ao R. que já não queriam o negócio e entregaram as chaves, mas os RR. não aceitaram a resolução e foram assim forçados a manterem o restaurante aberto para não perderem a clientela; porque houve incumprimento dos AA. formulam pedido reconvencional de condenação dos mesmos a ver perdido o sinal entregue - € 12.000,00 – e a indemnizá-los do valor dos danos, ascendendo estes a € 75.000,00.
Os AA. replicaram, impugnando a matéria da reconvenção e mantendo o pedido inicial.

O processo seguiu a tramitação respectiva e a final foi a acção julgada procedente e - em consequência - declarada válida a resolução do contrato promessa de cessão de quotas celebrado entre AA. e RR. em 4 de Setembro de 2003, condenando-se estes a restituir àqueles a quantia de € 16.358,90, acrescida de juros à taxa de legal desde a data da citação e até efectivo pagamento; e a reconvenção parcialmente procedente condenando-se os AA. a pagarem ao R. a quantia de € 312,50, com absolvição do restante.

Inconformados, recorreram os RR., recurso admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo.

Nas respectivas alegações vêm formuladas as inerentes conclusões – que circunscrevem e delimitam o objecto recursivo, nos termos dos art.ºs 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC – em que aparecem suscitadas as seguintes questões:

1º - Se os AA. tinham fundamento para a resolução do contrato-promessa, nomeadamente por virtude da invocada (na decisão) alteração anormal de circunstâncias (art.º 437 do CC).
2º - Se houve incumprimento dos AA. conducente à procedência do pedido reconvencional, podendo os RR. fazer seu o sinal entregue, depois de descontadas as dívidas da sociedade que entretanto satisfizeram.


Os AA. contra-alegaram, trazendo ao recurso a questão subsidiária de a resolução só haver sido acolhida pela sentença recorrida em resultado da respectiva aceitação pelos RR. Também impetram a condenação dos apelantes como litigantes de má-fé por terem aduzido matéria como provada que não foi considerada como tal na decisão.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

*

Na 1ª instância foram dados como demonstrados – sem impugnação dos recorrentes – os seguintes factos:

1
Os Réus são, e eram ao mesmo tempo do contrato destes autos, os únicos sócios da sociedade comercial por quotas "BANDEIRA E NASCIMENTO, Lda.,", com sede no lugar e freguesia de Eiras, em Coimbra, à Rua Santa Isabel, com o n.º de pessoa colectiva 502 704 586, e matrícula n.º 4797 da Conservatória do Registo Comercial de Coimbra, a qual tem o capital social de 5.000 Euros, correspondente à soma de duas quotas iguais de 2,500 Euros cada, da titularidade de cada um dos Réus, marido e mulher.
2
No dia 4 de Setembro de 2003 AA. e RR. celebraram o contrato, que se acha junto de fl.s 10 a 12, aqui dado por reproduzido, denominado contrato promessa de cessão das quotas daquela sociedade.
3
Por via do qual os R.R. prometeram ceder aos A.A. aquelas suas quotas, naquela sua sociedade, pelo preço de 82.551,05 Euros (16.550.000$00) que os A.A. deveriam pagar aos R.R. da seguinte forma:
- 3.500 Euros (750.000$00), quantia esta que os A.A., em 4 de Setembro de 2003, pagaram aos R.R, e da qual, com a assinatura do contrato promessa, estes, àqueles, deram quitação, cf, cláusula 2.ª a do doc., acima referido;
- 11.500 Euros (2.300.000$00) até ao dia 30 do mês de Setembro em curso (ou seja,
30 de Setembro de 2003), cf. cláusula 2.ª b, do mesmo;
- 10.000 Euros (2.000.000$00) até ao dia 31 de Dezembro de 2003, "devendo porém a quantia de 5.000 ser paga logo que a sociedade Bandeira e Nascimento, Lda receba esta quantia, a título de contrapartida pela publicidade e promoção da marca de café Chave D'Ouro", cf. sua cláusula 2.ª c e;
- 50.000 Euros (10.000.000$00) "em 4 prestações semestrais de 12.500 Euros (2.500.000$00) cada, vencendo-se a primeira no dia 30/06/04 e as seguintes nos dias 31 de Dezembro de 2004, 30 de Junho e 31 de Dezembro de 2005, quantia que vencerá juros à taxa legal de 4% até integral pagamento", cf. sua cláusula 2.ª d.
4
Mais se obrigaram os A.A. perante os R.R. pelas dívidas da sociedade "Bandeira e Nascimento, L.da." para com a "Centralcer - Central de Cervejas, S.A." por eventuais indemnizações por quebra do contrato de fornecimento nos termos da Cláusula Quarta do doc., mencionado em 2).
5
A respectiva escritura pública que titularia a cessão de quotas prometida por via do contrato promessa supra referido seria outorgada, nos termos da cláusula 3.ª do supra referido contrato promessa, "previsivelmente na primeira semana do mês de Janeiro de 2004, mas nunca depois do dia 15 do referido mês... ", competindo aos primeiros outorgantes no contrato promessa, os ora Réus, a sua marcação, cf. sua cláusula 3.ª.
6
Os R.R. autorizaram os A.A. a assumir a gerência de facto da sociedade desde a assinatura do contrato promessa destes autos - cláusula Sexta do supra referido doc. - ou seja, desde 4 de Setembro de 2003.
7
A referida sociedade "Bandeira e Nascimento, L.da" é titular do estabelecimento comercial designado por Café Restaurante "O Largo", à Rua de Santa Isabel, Brasfemes, Coimbra, sendo a este que se referem as cláusulas 5.ª, 6.ª e 7.ª do contrato promessa em apreço, ou seja, desde o mês de Setembro de 2004 que os A.A, ficaram responsáveis pela renda mensal do Café "O Largo" perante o senhorio, Carlos Alberto Ventura Bernardes Bandeira, cf. sua cláusula 5.ª e desde então os A.A. assumiram a gerência do aludido Café Restaurante "O Largo", cf. sua cláusula 6.ª.
8
E desde 1 de Setembro de 2003 que os A.A., autorizados pelos Réus, diariamente, e em horário de expediente, permaneceram naquele Café Restaurante "O Largo" por forma a contactarem com o seu funcionamento e clientela, ficando a cargo dos A.A. todas as despesas com fornecedores e pessoal após a referida data de 1 de Setembro de 2003, cf. sua cláusula 7.ª.
9
Os A.A. pagaram aos Réus com a assinatura do contrato promessa a quantia de 3.500 Euros, referida na cláusula 2.ª, al. a) do mesmo, e mais os A.A. pagaram aos Réus 6.500,00 Euros em 1 de Outubro de 2003 através do cheque n.º 7722608397 sacado sobre o BES e ainda lhe pagaram, 2.000,00 Euros em 9 de Outubro de 2003, através do cheque n.º 5222608846 sacado sobre o BES.
10
E mais ainda, com o consentimento e acordo expresso dos R.R., os A.A. pagaram a terceiros, as seguintes contas devidas pelos RR (pela sociedade "Bandeira e Nascimento, Lda.") a terceiros, cujo valor seria deduzido no preço da cessão, repete-se, por acordo expresso entre A.A. e R.R.:
a) em 12/09/03 à Mondefrio (reparação frigorifico) - 83,30 Euros
b) em 22/09/03 à Portugal Telecom – 247,42 Euros
c) em 22/09/03 à A.C. Águas de Coimbra - 810,85 Euros
d) em 06/1 0/03 à EDP – 585,32 Euros
e) em 13/10/03 à Armafrio (reparação frigorifico) - 355,15 Euros
f) em 22/1 0/03 à TV Cabo - 42,24 Euros
g) em Outubro/03 Electricista - 108,89 Euros,
num total de 2.233,17 Euros.
11
Em 31 de Outubro de 2003, os A.A., puseram fim ao contrato promessa destes autos, resolvendo-o, resolução que se traduziu na entrega das chaves e gerência do Café Restaurante "O Largo" por parte dos A.A. aos Réus, ficando estes, depois dessa data a assumir a respectiva exploração.
12
Constataram os A.A., e em apenas 2 meses, que as dívidas da sociedade acima referida para com terceiros não paravam de aparecer e crescer, sem que os Réus as liquidassem, nomeadamente as dívidas fiscais (em IVA e IRC).
13
Razão por que em 31 de Outubro de 2003, os AA procederam como referido em 11, o que os RR aceitaram.
14
Os A.A. deixaram também aos R.R., em stock, os bens constantes da relação que se acha junta de fl.s 29 a 35, no total de 2.125,90 Euros.
15
O R. marido acedeu a permanecer no estabelecimento o Largo durante a primeira semana de Setembro de 2003, para integrar os AA no negócio.
16
Face ao descrito em 11 os RR. mantiveram o restaurante aberto para não perderem a clientela e evitarem a consequente diminuição do valor das quotas.


*

1ª Questão.

O tema desta questão é o da existência de fundamento para a declaração de validade da resolução do contrato-promessa de 4 de Setembro de 2003, resolução que se teria operado por iniciativa dos AA.
Para uma tal estatuição a sentença recorrida deu por verificados três itens:
Que houve um contrato entre AA. e RR.;
Que esse contrato foi objecto de resolução;
Que a resolução respeitou o condicionalismo legal, isto é, foi válida sob o ponto de vista da forma e da substância.

No que concerne à presença do contrato entre as partes é insofismável que, diante do documento de fls. 10-12, AA. e RR. convencionaram recíprocas promessas de cedência e aquisição das quotas da sociedade em causa, pelo preço de € 82.551,05, mediante a outorga do respectivo contrato translativo. Trata-se, pois, de um contrato promessa bilateral e sinalagmático – art.ºs 410 e 411 do C. Civil – formal e substancialmente válido, sem que nada obstasse à produção dos efeitos almejados pelos intervenientes, como, de resto, correctamente se discorre na sentença.

Passemos agora ao segundo item: a resolução.

Tendo atenção o nº 11 dos factos provados, entendeu a sentença que estava confrontada com uma resolução (extrajudicial) do contrato levada a cabo pelos AA.-apelados, enquanto promitentes-cessionários ou adquirentes das quotas da Bandeira e Nascimento, Lda.
Convém reproduzir aqui o teor desse facto:
"Em 31 de Outubro de 2003, os A.A. puseram fim ao contrato promessa destes autos, resolvendo-o, resolução que se traduziu na entrega das chaves e gerência do Café Restaurante "O Largo" por parte dos A.A. aos Réus, ficando estes, depois dessa data a assumir a respectiva exploração".
Logo salta à vista que, assim redigido, o facto em apreço – decalcado do alegado nos artigos 31 e 32 de petição inicial – integra também claramente um conceito de direito, produto de um juízo qualificador: o de que a dita resolução se consubstanciou (traduziu) em exclusivo na entrega das chaves e gerência do Café Restaurante por parte dos AA. aos RR.. Ou seja, expurgado o referido juízo qualificador, a realidade valorável do "facto" é apenas a que dá a conhecer que houve uma conduta material dos AA. de entregarem aos RR.- ora apelantes as chaves e a exploração do estabelecimento.
A resolução opera-se por declaração à parte contrária, sendo pois receptícia – art.º 436, nº 1 do CC.
Como declaração negocial não sujeita a forma legal ou convencional, pode ser verbal (art.º 219 do CC) e tácita (art.º 217 do CC). Tal como emerge do nº 2 do art.º 217 do CC até mesmo as declarações formais podem ser objecto de manifestação tácita.
Porém, diz-se tácita apenas a declaração negocial que se deduza de factos que com toda a probabilidade a revelem, nos termos do nº 2 daquele art.º 217. Tem de ser factos que, segundo as concepções gerais e particulares do meio em que se produzem, permitam inferir a um declaratário normal, e de modo inequívoco, o significado correspondente à declaração visada.
Compulsada a matéria provada no nº 11, conjugada com a dos nºs 12 e 13 (onde se alude à respectiva motivação) pode inferir-se com meridiana segurança que os AA., ao entregarem as chaves e abandonarem a exploração comercial do café-restaurante, efectivamente quiseram destruir a relação contratual, uma vez confrontados com a inesperada dimensão do passivo anterior à convenção outorgada com os RR., imputando a estes a desproporção constatada. A expressão "puseram fim ao contrato" daquele nº 11 apenas pode ser interpretada como uma mera conclusão extraída do descrito comportamento dos AA. – de entregarem as chaves e a "gerência" do café-restaurante. Pôr fim a um contrato implica com efeito um acto concreto, de um ou ambos os contraentes, representativo dessa intencionalidade, pois que os contratos não terminam a sua vigência sem a expressão dessa vontade ou intencionalidade em factos determinados. Pode admitir-se, por conseguinte, que os AA. quiseram, ainda que tacitamente, resolver o contrato de 4/09/2003.

Sobre a validade da resolução.

Aqui os apelantes procuram afastar a aplicabilidade do disposto no art.º 437 do CC, quando é certo que a sentença recorrida, apesar de ter escalpelizado os requisitos da referida norma, acabou por reconhecer estar dispensada dessa inglória tarefa porquanto se apurou a aceitação da resolução por parte dos RR.

Começar-se-á, portanto, pelo problema da aceitação da resolução.
Do mesmo modo que a resolução, a aceitação ou recepção positiva desta pelo contraente destinatário constitui também uma declaração de vontade relevante. Equivale ao acordo dos contraentes sobre a existência do direito inerente e é incompatível com a possibilidade de o complacente vir a impugnar judicialmente a validade e fundamento da resolução (art.º 334 do CC).
Todavia o substrato fáctico que para a sentença corporizou essa aceitação é o que está ínsito no facto provado em 13: "Razão por que em 31 de Outubro de 2003, os AA. procederam como referido em 11), o que os RR aceitaram".
Ora se é exacto que os RR. aceitaram a entrega das chaves e gerência do Café Restaurante "O Largo" (facto nº 11) não deixa de ser igualmente verdade que, face a essa conduta, "os RR mantiveram o restaurante aberto para não perderem a clientela e evitarem a consequente diminuição do valor das quotas" (facto provado em 16). Resulta daqui que os RR., ora apelantes, não se resignaram com o fundamento da pretensa resolução em virtude de estarem de acordo com a sua razoabilidade; antes se limitaram a providenciar no sentido de acautelarem os danos advenientes da ruptura contratual imposta pelos AA. Aliás, o que se evidencia do facto em análise é tão-só que os RR. aceitaram o procedimento material dos AA.; não já o valor e significado jurídico de uma hipotética declaração resolutiva do contrato, o que á algo radicalmente diverso.

Importa, ainda assim, decidir se, não obstante se ter por inverificada qualquer aceitação dos RR., ora apelantes, os AA. teriam razão para resolverem o contrato com fundamento na alteração anormal das circunstâncias que compuseram a base contratual – art.º 437 do CC.

Neste aspecto, a sentença, após enunciar os requisitos de que depende a resolução ou modificação do contrato ao abrigo do art.º 437, nº 1 do Código Civil, e de referir que os AA. alegaram concretamente que, em apenas dois meses, as dívidas, nomeadamente fiscais (de IVA e IRC), da sociedade para com terceiros, não paravam de aparecer e crescer sem que os RR. as liquidassem, não avançou para o respectivo enquadramento jurídico, embora denunciasse que iria dar por preenchido o condicionalismo legal do instituto.
Mas também aqui não nos parece que a situação fáctica se ajustasse aos requisitos da norma citada.
Com efeito, para que se pudesse falar de alteração anormal das circunstâncias fundantes da decisão de contratar necessário se tornava que o real circunstancialismo da celebração do contrato, conhecido dos contraentes, houvesse sofrido um tal desvio que o equilíbrio das prestações respectivas se apresentasse fortemente distorcido, em termos de a exigência de uma delas ser desproporcionadamente violenta ou até totalmente injustificada. A modificação das circunstâncias deve ser anormal, o que, na prática, equivale à respectiva imprevisibilidade (A. Varela, C.C. Anotado, 1979, I, p. 363). Para além disso, tem de afectar gravemente a boa-fé e não estar coberta pelo risco contratual. É praticamente improvável ou muito difícil que a manutenção das prestações no contexto de uma alteração imprevisível da base contratual não afecte gravemente o princípio da boa-fé; e, sendo imprevisível, também não se poderá ter como abrangida pelo risco contratual.
Só que os AA. não invocam qualquer alteração objectiva da base contratual.
Se há um equívoco de uma das partes sobre a realidade de alguma circunstância o problema pode ser de erro sobre os motivos da vontade (art.º 252, nºs 1 e 2 do CC) e não de alteração objectiva, só esta cabendo verdadeiramente na previsão da norma agora em análise. No primeiro caso importa a base negocial subjectiva, isto é, a convicção ou suposição inexacta das partes sobre certa ou certas circunstâncias determinantes da vontade de emitir a declaração negocial, alheias ao objecto do negócio; no segundo interessa a base negocial objectiva, a mutação da realidade subjacente à celebração do negócio, com a qual as partes efectivamente contaram nesse momento.
Assim, para a anulação por erro sobre a base negocial subjectiva como para a resolução por alteração da base negocial objectiva – art.º 437 do CC – seria mister convencer da grave afectação da boa-fé e da ultrapassagem dos riscos do contrato decorrentes da permanência da vinculação acordada.
Os AA. não só não invocam a anulabilidade do contrato-promessa como não identificam os pressupostos da mesma.
Acontece que, no caso dos autos, as partes, no contrato-promessa (de 4/09/2003), nada estipularam sobre a responsabilidade das dívidas da Bandeira e Nascimento Lda anteriores à outorga do mesmo, com excepção da quebra contratual com a Centralcer (Cl.ª 4ª); nem tão pouco, sobre a existência de tais dívidas.
No entanto, foi dado como provado no facto nº 10 que, com consentimento e acordo expresso dos RR., os AA. pagaram a terceiros um conjunto de dívidas da sociedade, do tempo da exploração dos RR., "cujo valor seria deduzido no preço da cessão".
Não se explicitando o âmbito do mencionado acordo, não se vê o motivo por que o pagamento pelos AA. das outras dívidas, incluindo as fiscais, não poderia também ser abatido às prestações do preço da cessão de quotas. E sobretudo que a demora da sua liquidação pelos RR. comprometesse, inviabilizasse ou desvalorizasse excessivamente as quotas a adquirir pelos AA. mediante o prometido contrato da respectiva transmissão.
De resto, se os AA. se quisessem prevalecer de erro sobre motivos determinantes da vontade sempre teriam de demonstrar todos os elementos que substanciam a relevância do mesmo.
É que sempre competiria aos AA., parte interessada na extinção do contrato por via da anulabildade decorrente da referida espécie de vício da vontade, alegar, nos termos do art.º 342, nº 1 do CC, particularmente, o montante das aludidas dívidas, e mesmo outros contornos factuais que autorizassem a consideração de um eventual erro-vício, visto que não se tratava de alteração objectiva e anormal da base contratual. Mas não o fizeram. Pode afirmar-se que admitindo os próprios (AA.) que o negócio implicava dívidas atinentes à anterior gerência e que a satisfação da respectiva importância poderia ser abatida no preço da cessão (art.º 26º da p.i.), seria a eles que, em qualquer caso, se devolveria o ónus de alegar e provar que o facto aduzido ofendia a base negocial, ónus respeitante a um elemento constitutivo do direito de anulação alicerçável no disposto nos art.º 252, nºs 1 e 2 e 437, nº1 do CC.
Infere-se das precedentes considerações que os AA. apelados não evidenciaram ter "posto fim" ao contrato com fundamento relevante no plano legal. Daí que a simples circunstância de terem rompido com a relação contratual na forma que adoptaram – a entrega das chaves e a propositura da acção são disso sinais inequívocos – os coloque inelutávelmente na veste do incumprimento definitivo, nos termos do art.º 798 do CC.
Pelo que são de acolher, com ressalva da 14ª, as conclusões 1ª a 16ª.


2ª Questão.

Pugnam os RR.-apelantes pela procedência da reconvenção apenas no que tange ao pedido de declaração do direito de fazerem suas as quantias recebidas à conta do preço das quotas, a título de sinal e princípio de pagamento, assim delimitando o objecto recursivo, nos termos dos art.ºs 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC.

Na verdade, conforme foi explanado, o único incumprimento é o dos AA.-apelados.
Quem infundadamente se desinteressa ou desliga dos seus compromissos contratuais, recusando ou tornando inviável com o seu comportamento a prestação devida, incorre em total e definitivo inadimplemento, sujeitando-se ao dever de indemnizar a outra parte. Como se decidiu no Ac. da Rel de Lx.ª de 4/11/93 (CJ 1993, V, p. 115) "O comportamento que exprima em termos categóricos a vontade de não querer cumprir o contrato-promessa reconduz-se ao conceito de recusa de cumprimento e implica, assim, incumprimento definitivo".
Os AA. tinham-se obrigado a celebrar com os RR. o contrato definitivo de cessão das quotas destes na Bandeira e Nascimento, Lda, mediante a satisfação das prestações do preço convencionadas.
Intencional e culposamente (culpa aliás presumida nos termos do art.º 799 do CC) "abandonaram" a exploração do Café Restaurante - que consistia no único estabelecimento comercial explorado pela referida sociedade (facto provado em 7) - e entregaram-no aos RR. - promitentes cedentes. Segue-se daí que, da mencionada conduta, um declaratário normal, situado no lugar destes, só poderia deduzir que aqueles se recusavam a outorgar o contrato definitivamente translativo das posições sociais respectivas.
Em função disso, devem os AA. e promitentes cessionários das quotas, como incumpridores, de harmonia com o disposto no art.º 442, nº 2 do C. Civil, ver declaradas perdidas as quantias entregues aos RR. a título de sinal, ou seja, o total de € 12.000 (cfr. o facto provado em 9 e a presunção decorrente do art.º 441 do CC) – aqui após abatidos os montantes das dívidas por eles pagos e descontáveis no preço ajustado (facto nº 10).
Pelo que são inteiramente profícuas as conclusões 17ª a 20ª inclusive.

Pelo exposto, julgando apelação procedente, revogam a sentença e, em função disso, julgam a acção improcedente, absolvendo os RR. do pedido contra eles formulado; e a reconvenção parcialmente procedente por parcialmente provada, declarando-se o contrato-promessa de cessão de quotas incumprido por culpa exclusiva dos AA. e, consequentemente, o direito dos RR. a fazerem sua a quantia de € 12.000 recebida daqueles, descontados os montantes discriminados em 10 dos factos provados, com a absolvição dos mesmos AA. quanto ao mais.
Custas pelos apelados.