Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
26/01.7TBAGD-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: RECUSA
Data do Acordão: 10/15/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ÁGUEDA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 43º DO CP
Sumário: O despacho no qual se considera que se verifica o elemento constitutivo do crime do tipo legal imputado ao arguido, se declara o processo urgente com sacrifício dos arguidos, obrigando-os a defender-se durante as férias judiciais ou se indefere o requerimento relativo a actos processuais praticados, omitidos, que deveriam ter determinado a não realização da audiência, não constitui acto que possa suscitar dúvidas fundadas sobre imparcialidade do juiz.
Decisão Texto Integral: Por requerimento efectuado na audiência de julgamento de 12 de Setembro de 2008, do processo comum singular n.º 26/01.7TBAGD, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Águeda, veio o arguido AM deduzir perante este Tribunal da Relação o incidente de recusa da Ex.ma Juíza RP por entender haver factos que constituem motivos sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade , no julgamento do processo.
Alega para o efeito os seguintes fundamentos:
« Os seguintes factos constituem motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da MMª Juiza no julgamento deste processo;
Desde logo a considerar ter escrito no primeiro parágrafo do despacho de 10-09-2008 que concorda na íntegra com o teor da promoção que antecede, que pressupõe reproduzida e de para ela remeter para, em fundamento da decisão que tomou sobre a defesa do requerimento de prova do arguido AM, sendo certo que nessa promoção, conforme hoje o arguido, a Ilustre Defensora Oficiosa da arguida e demandante cível ficaram a saber, se escreveu nessa promoção que “existiu omissão de entrega das quantias retidas no prazo legal”.
Trata-se, na verdade, de um dos factos por que os arguidos vêm pronunciados e pelos quais o Magistrado que presidir a este julgamento vai ter que julgar, começando por decidir se tal facto deve ser julgado provado ou não provado.
Ora, no processo penal português continua, para já, a exigir-se que a prova dos factos constantes da acusação ou pronúncia e susceptíveis de integrar qualquer tipo de ilícito penal sejam julgados, continuando para já a exigir-se que o sejam em audiência pública, sujeita ao contraditório subordinada ao principio da acusação e respeitadas que se mostrem todas as demais formalidades essenciais e acessórias que o legislador processual penal e o legislador constituinte entenderem definir para assegurar que o julgamento seja justo, no sentido que de justiça se pode ter num Estado de direito democrático moderno como é aquele que Portugal continua a ser, e que pressupõe que o Juiz não tenha tomado qualquer decisão sobre qualquer dos factos sob julgamento antes do mesmo se concluir.
Dizer, como o Sr. Procurador ou a Sra. Juiza agora disse, que isto é assim porque resulta da pronúncia ou que o Tribunal julga com base em factos, mostra no entender do requerente desta recusa que a MMª Juiza não garante que o julgamento seja imparcial, já que a Mmª Juíza tem o dever relativamente ao que está na pronúncia exactamente contrário de presumir, até final do julgamento, que o que está na pronúncia não é assim. Esse o significado, como é por demais sabido, da inocência dos arguidos em Processo Penal.
Trata-se, claro está, de uma presunção ilídivel, mas até que o seja, é esse o entendimento, a postura e a convicção que o Tribunal tem necessariamente que assumir, só podendo considerar que o que está na pronúncia corresponde à verdade se durante o julgamento for produzida prova inequívoca e para além de qualquer dúvida razoável de que efectivamente assim o é, prova essa que naturalmente e constitucionalmente compete ao Ministério Público ou à acusação fazer, e que só pode ter lugar durante este julgamento.
Por outro fado, não se julga ou não se deve julgar a matéria de facto com base em factos. O que se julga com base em factos é a questão de direito. Mas uma e outra pressupõem que os factos tenham sido julgados previamente provados e essa prova não pode, como é obvio, basear-se em factos, mas em meios de prova produzidos em julgamento com as características antes referidas.
Ora, o que esta Mmª Sra. Juíza fez, foi decidir limitar ou condicionar a produção de meios de prova requeridos pelo arguido, partindo do princípio de que um dos factos constantes da pronúncia, constitutivo do tipo legal do crime imputado aos arguidos, existe, é verdadeiro, está dispensado de prova em julgamento, uma frase que pode ser dada de barato.
Trata-se de um erro grave, e que no entender do requerente por si só, faz com que esta Mma Sra, Juíza, não possa decidir este caso, com a certeza de que, tal como resulta dos esclarecimentos solicitados e doutamente feitos, do primeiro parágrafo do despacho de 10-09-2008 e do terceiro parágrafo da promoção de 0909-2008, efectivamente inequivocamente aconteceu e acontece.
Além disso, entende o requerente ter ficado hoje também evidenciado que a própria atitude da Mmª Juiza de insistir na realização do julgamento na data de hoje e de manter a segunda data designada, mostra também que o dever de imparcialidade está afectado, de forma grave e séria e igualmente justificadora deste requerimento de recusa; atende-se em tudo o que antes se disse sobre a não notificação de uma arguida e das notificações das testemunhas de outro arguido para começar por ilustrar esta preocupação, atende-se mais, no facto da Sra. Juíza não obstante de ter integralmente aderido à promoção de 09-09-2008, entendido não valer a pena mandar notificar o arguido AM nos termos promovidos a propósito da prova documental requerida, sendo difícil extrair disto outra conclusão, que, não obstante ter aderido integralmente à douta promoção, a mesma ter sido apenas aproveitada naquilo que prejudica a defesa, desprezando o que dela se poderia aproveitar em benefício da posição processual do arguido, cujos direitos, importa sublinhar, o Ministério Público ainda assim tentou acautelar.
É claro que isto pode resultar de mero descuido ou desatenção.
Alias, foi nesse sentido que, antes do início desta diligência o arguido e o seu advogado interpretaram o que errado saltava aos olhos de fazer enfermar este processo e a impossibilidade de realização deste julgamento, a falta de notificação às testemunhas, o à-vontade com que a Sra. Funcionária confirmou ao sr. Advogado subscritor, aquando da chamada das testemunhas, que elas não tinham sido notificadas (para prova do que deve ser ouvida a Sra. Funcionária, a Dra. …. e o Dr. ….., que o arguido apresentou em Tribunal, com a curiosidade de a primeira, apesar de indicada na contestação, nem sequer constar do rol das testemunhas da Sra. Funcionária).
A transparência da pressa com que este Tribunal pretendia julgar este processo e estes aspectos já anteriormente devidamente questionados na alegação ora produzida.
Do mesmo modo, foi nesse sentido que, de alguma forma, desculpou o insuportável desrespeito demonstrado por este Tribunal relativamente a todos os intervenientes processuais, quando, tarde e a más horas, mais de três semanas depois de ter sido apresentada a contestação e a dois dias da data designada para julgamento, a Mma Juíza mandou notificar um dos advogados intervenientes, porque aos outros nem isso foi feito, de dois doutos despachos dos quais inequivocamente resultava que a data de julgamento se mantinha, apesar de ser impossível mantê-lo nos termos da lei.
Mesmo como lapso, distracção, desleixo, o que seja, seria de gravidade suficiente para questionar a intervenção da Mmª Juiza neste julgamento; todavia, este tipo de incidentes, entende o advogado subscritor, devem ser limitados aos casos em que para além de qualquer dúvida estava efectivamente em causa a capacidade e o dever de imparcialidade. Por isso se tentou perceber se essa falta de cuidado ou atenção para com o que se passa no processo, seriam reparados perante a chamada de atenção que resultou da arguição de nulídades deduzidas.
Torna-se assim mais difícil de qualificar a situação e as razões dela depois da decisão acabada de proferir e pelos termos em que o foi:
Dirigindo-se a uma questão suscitada por erro do Tribunal, motivado por erro da Mmª Juíza, consistente na não notificação da douta promoção para que o despacho de 10-09-2008 remetia, erros esses que tornavam esse despacho ininteligível nos seus fundamentos (uma vez que por brevidade de exposição a fundamentação daquela douta decisão tinha sido feita integralmente por remissão para aquela douta promoção), a Mmª Juiza passou uma vez mais completamente ao lado dos vários impedimentos a que o julgamento se realize, e decidiu que o mesmo continuaria ou começaria na data marcada sem que nenhum desses impedimentos fosse corrigido ou ultrapassado, já que impossivelmente se poderia proceder à notificação da arguida sociedade com vinte dias para se defender, a notificação às testemunhas que eventualmente viesse a indicar ou promover a produção de meios de prova que viesse a requerer, admitir o rol de testemunhas apresentado pelo arguido e notificá-las, apreciar a indicação que o arguido eventualmente viesse a fazer à insatisfação da promoção do Ministério Público relativamente à prova documental por ele requerida, respectiva decisão e assegurar que a respectiva produção de prova, caso viesse a ser admitida, pudesse ser concretizada.
Seja por erro, lapso, ou seja lá por o que for, a única conclusão que ao requerente parece possível por isso tudo é que está agora absolutamente evidenciado que a Mmª Juiza o que pretende é que este processo seja julgado quanto antes, ainda que com os maiores e mais graves atropelos ao que a lei exige que seja respeitado, Mostra assim também por isso, não oferecer garantias de imparcialidade ao respectivo julgamento, até porque este dever de imparcialidade como dever dos Senhores Juizes pressupõe o mais rigoroso respeito por todas essas exigências essenciais e formais.
A imparcialidade não é algo de subjectivo, nenhuma dúvida tendo o arguido de que a Mma Juiza não lhe quer mal nenhum, não está zangada com ele, não tem qualquer interesse próprio, mas é algo que se exige seja objectivado na forma como se prepara, dirige e se necessário corrige o julgamento e os seus actos probatórios, e a objectivação dessa imparcialidade implica, como se disse, que a única coisa que o Juiz deve evidenciar nos seus despachos, na sua atitude é promover o cumprimento de todas as regras processuais, principalmente das que contendem com todo o direito de defesa dos arguidos.
Finalmente, o que leva ainda a própria decisão de declarar este processo, por assim dizer urgente, de exigir essa urgência apenas em sacrifício dos arguidos, e deixar sem decisão até dois dias do julgamento algumas várias questões complexas e essenciais à defesa levantadas na contestação, como carecendo de decisão prévia ao início do julgamento. A urgência obrigou o arguido a defender-se durante as férias judiciais, mas apesar dela e apesar desse esforço só depois delas estarem terminadas, é que o Tribunal e o Ministério Público se dignaram olhar para elas, aparentemente sem nem sequer terem o cuidado de ler na íntegra o que a seu propósito foi escrito.
Para prova, além do já indicado deve com este requerimento ser enviado ao Tribunal da Relação cópia de todas as folhas destes autos, depois do despacho proferido ao abrigo da alínea b), n.º 2, do art.103.º do CPP.».

A Ex.ma Juíza de Direito pronunciou-se ao abrigo do disposto no art.45.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, limitando a considerar que deve ser indeferido o incidente de recusa.

O Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação teve vista nos autos, pugnando pelo indeferimento do pedido de recusa.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

*

A imparcialidade e isenção do tribunal é uma exigência que resulta da Constituição da República Portuguesa - artigos 203.º e 216.º - , quer como pressuposto subjectivo necessário a uma justa decisão, quer como pressuposto objectivo na sua percepção externa pela comunidade, e compreende os mecanismos dos impedimentos, suspeições, recusas e escusas.
Estes mecanismos contendem com o princípio constitucional do juiz natural ou legal, previsto no art.32.º - que impõe que “ nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior” - pelo que só em situações limite se pode lançar mão deles.

O Código de Processo Penal, contém no Livro I, Titulo I, Capítulo VI, a matéria atinente à capacidade subjectiva do juiz , tendo em vista, por um lado, a obtenção das máximas garantias de objectiva imparcialidade da jurisdição e, por outro lado, assegurar a confiança da comunidade relativa à administração da justiça.

Dentro do dito capitulo VI situa-se o art.43.º, que sob a epigrafe “recusas e escusas” estatui, designadamente, o seguinte:
« 1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita , por existir motivo , sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.».
2. Pode constituir fundamento de recusa , nos termos do n.º1 , a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do art.40.º.
3. A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público , pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.” (…).
Quanto a prazos e processo , importa considerar , respectivamente , o disposto nos art.s 44.º e 45.º do C.P.P..
O art. 44.º do C.P.P. estatui que “ O requerimento de recusa e o pedido de escusa são admissíveis até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos, ou até ao início do debate instrutório. Só o são posteriormente, até à sentença, ou até à decisão instrutória, quando os factos invocados como fundamento tiverem tido tudo lugar, ou tiverem sido conhecidos pelo invocante , após o início da audiência ou do debate.”.
Por fim, o art.45.º do C.P.P. estabelece, designadamente, o seguinte:
“1. A recusa deve ser requerida e a escusa deve ser pedida, a ela se juntando logo os elementos comprovativos, perante:
a) O tribunal imediatamente superior; (…)
2. O juiz visado pronuncia-se sobre o requerimento, por escrito, em cinco dias, juntando logo os elementos comprovativos.
3. O tribunal, se não recusar logo o requerimento ou o pedido por manifestamente infundados, ordena as diligências de prova necessárias à decisão. (…).”
Na articulação entre os princípios do juiz natural e da imparcialidade do juiz ( e do tribunal) , aquele princípio deve ceder quando existam circunstâncias sérias, no sentido de ponderosas, cuja verificação não se coaduna com a leviandade de um juízo, e graves, porque de forte relevo na formulação do juízo de desconfiança.
No dizer do acórdão do STJ de 5 de Abril de 2000 , as circunstâncias muito rígidas e bem definidas , ou seja , sérias e graves , devem ser “…irrefutavelmente denunciadoras de que o juiz natural deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.” – in CJ, ano VIII, 2.º, pág. 243.
A jurisprudência dos nossos tribunais tem sido constante no sentido de se exigir a alegação de factos concretos que constituam motivo de especial gravidade e que possam gerar desconfiança , não se bastando com simples generalidades. – cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 5 de Abril de 2000, já citado, e de 29 de Março de 2006, in C.J.,n.º 189, e o acórdão da Relação de Coimbra , de 2 de Dezembro de 1992, in C.J., ano XVII, 5.º,pág. 92.
O dispositivo do n.º 2 do art.43.º do C.P.P. foi introduzido pela Lei n.º 59/98 , de 25 de Agosto. Os fundamentos de recusa aí enunciados , como resulta do seu contexto, devem ser interpretados nos termos n.º1 do mesmo preceito, isto é, só são caso de recusa se dos mesmos resultar em concreto motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz. – cfr. neste sentido o acórdão do STJ de 27 de Maio de 1995 , in CJ, ASTJ, ano VII, 2.º, pág. 217.
Na interpretação deste art.43.º do C.P.P. importa atender ainda ao art.6.º, § 1.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem , que estatui que o direito a que a causa seja decidida por um tribunal imparcial .
Tem sido uma constante da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem , que a imparcialidade deve apreciar-se segundo critérios subjectivos e objectivos.
No primeiro caso, a questão circunscreve-se a saber se a convicção pessoal do julgador em dada ocasião, oferece garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima ; no segundo se independentemente da atitude pessoal do juiz , certos factos verificáveis autorizam a suspeitar da sua imparcialidade.
E, embora nesta matéria, mesmo as aparências possam revestir-se de alguma importância, entrando em linha de conta a óptica do acusado, sem todavia desempenhar um papel decisivo, o elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem considerar-se objectivamente justificadas.
O que conta é a natureza e extensão das medidas tomadas pelo juiz. É necessário indicar, com a devida precisão, factos verificáveis que autorizem a suspeita. O TEHE tem entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário. – cfr. vária dessa jurisprudência no acórdão do STJ de 9 de Dezembro de 2004 , in CJ, n.º 179, pág. 241.
O conhecimento da questão impõe que se faça aqui um breve apanhado do essencial do processado a que o requerente AM alude nos “fundamentos” do seu requerimento de recusa da Ex.ma Juíza RP.
Por despacho de 16 de Junho de 2008, a Ex.ma Juíza agora em causa, decidiu , designadamente, que atenta a data da prática dos factos e o risco de prescrição do procedimento criminal, os presentes autos revestem carácter prioritário, o que deverá ser tido em consideração pela secção de processos , e designou para audiência de julgamento o dia 12 de Setembro de 2008 e, em caso de adiamento, nos termos do art.312.º, n.º 2, do C.P.P., o dia 26 de Setembro de 2008. Ordenou ainda que se notificassem os ilustres advogados para indicarem em 5 dias datas alternativas em caso de indisponibilidade nas datas indicadas, com a advertência de que não o fazendo se manteriam as datas de 12 e 16 de Setembro de 2008.
Notificado do despacho que designa dia para julgamento, veio o arguido AM apresentar a sua defesa no dia 19 de Agosto de 2008, deduzindo várias questões prévias e , condicionalmente, apresenta a sua contestação.
Alega, em síntese, como questões prévias:
- não tem suporte legal, no art.103.º, n.º 2 do C.P.P., a declaração do processo como prioritário, pelo que o prazo para contestar só termina no dia 18 de Setembro;
- o arguido não foi notificado nos termos e para os efeitos do art.105.º, n.º 4, al. b) do RGIT, pelo que se deve determinar a suspensão das instâncias civil e criminal até lhe ser notificada e ser decidida a verificação da condição objectiva de punibilidade;
- a arguida Sociedade já faliu, pelo que se deve determinar a suspensão das instâncias civil e criminal até ser proferida decisão sobre a graduação de créditos e sobre o encerramento do processo de falência daquela;
- deve dar-se sem efeito as datas designadas para julgamento e fixar-se novo prazo para o arguido apresentar a sua defesa e requerimento de prova.
Com a contestação, apresentada condicionalmente, indica prova documental junta aos autos e requer que o Tribunal notifique a sociedade arguida declarada falida e o Inst. Segurança Social para juntarem aos autos documentos que se referem a contribuições retidas e não entregues por aquela arguida , bem como documentos apreendidos no processo de falência sobre todos os empréstimos de sócios; requer prova pericial à contabilidade do Inst. Segurança Social e da sociedade arguida em liquidação; requer prova por confissão relativa à matéria civil; e apresenta um rol de testemunhas.
Dada vista ao Ministério Público para se pronunciar sobre estas questões, consta da promoção de 9-9-2008, de folhas 1049 e verso do processo, o seguinte:
- Quanto à questão prévia do prazo de contestação porquanto a mesma foi apresentada e admitida, é redundante e inútil em termos de exercício dos direitos de defesa, pelo que nada promove;
- Quanto à questão da notificação nos termos da l. b), do n.º 4 do art.105.º, do RGIT, basta conferir a informação de folhas 1017 e seguintes para perceber que quer o arguido quer a sociedade arguida, foram devidamente notificadas, pelo que igualmente nada se promove;
- Quanto á questão da falência, como bem sabe o arguido, os factos típicos que são imputados são-no na forma consumada, porquanto existiu omissão de entrega das quantias retidas no prazo legal, como se deduz com clareza da pronúncia, não sendo sequer pelo arguido referido que pretende o seu pagamento voluntário, pelo que igualmente nada a promover, senão eventual tributação pelos incidentes.
- No que á prova solicitada diz respeito, promove, quanto aos alegados documentos em poder de terceiros ou ofendidos, que seja o arguido notificado para vir aos autos, em 10 dias, indicar, ainda que por referência, quais os concretos documentos que pretende juntar aos autos , e para prova de que pontos da sua contestação os mesmos se destinam, após o que se promoverá o que houver por conveniente.
- Relativamente à prova perícial requerida a folhas 1042, porquanto a mesma é insusceptível de servir a prova nos presentes autos, porquanto não reportada aos momentos da consumação dos factos típicos ílicitos, é a mesma manifestamente dilatória, pelo que, após tributação, se promove o seu indeferimento.
A Ex.ma Juíza, por despacho de 10 de Setembro de 2008, decidiu o seguinte:
« Concordando na íntegra com o teor da promoção que antecede – para a qual , por brevidade de exposição, nos permitimos remeter – determino:
a) Atenta a proximidade da data designada para a realização da audiência de julgamento, que o arguido, se assim o entender, se faça acompanhar dos documentos pretendidos cuja relevância probatória e admissibilidade serão então avaliados;
b) O indeferimento da pretendida prova pericial, porquanto diligência manifestamente dilatória.
Sem custas.
Notificação, antes do mais, via fax.».
No dia designado para audiência de julgamento, 12-9-2008, foi esta declarada aberta pela Ex.ma Juíza RP, e logo de seguida o Ex.mo Advogado do arguido AM ditou para a acta , no essencial, o seguinte:
- que não lhe foi notificada, nem à co-arguida, a promoção a que se alude no despacho de 10 de Setembro de 2008, pelo que a notificação é nula;
- o despacho a declarar aberta a audiência também é nulo, não só pela razão anteriormente referida, mas também por omissão de notificação da co-arguida e de pronúncia sobre a maior parte das questões levantadas na contestação condicionalmente apresentada ( que indica) e, ainda, por não se mostrar realizada ou sequer tentada a notificação de várias testemunhas indicadas pelo requerente no seu rol e tudo indicar que o essencial da contestação e da requerimento de prova terem sido totalmente desconsiderados pelo Tribunal, sendo que também não foram ainda cumpridos dois doutos despachos notificados ao arguido em 9-9-2008, ou sobre o cumprimento (resposta da Segurança Social e pronúncia do MOPI), nada foi notificado ao arguido/requerente nem à sua co-arguida.
Após a Ex.ma Juíza ter ordenado que fosse dado conhecimento ao arguido/requerente da promoção do Ministério Público, de folhas 1049 e verso do processo, o Ex.mo Advogado do arguido AM ditou para a acta , no essencial, o seguinte:
- que lhe seja esclarecida a dúvida sobre se a promoção que é referida do despacho de 1-10-2008 é a que lhe foi entregue e, em caso afirmativo, se concorda com o que o M.P. ali defende quando diz que existiu omissão da entrega das quantias referidas, no prazo legal, a propósito do preenchimento do tipo de ilícito imputado; em caso afirmativo, ainda, não se percebe quais as provas que a Ex.ma Juíza, antes de julgar, considerou para concordar na íntegra com essa acusação, e quando é que fez esse “julgamento”.
- Sendo a promoção para que o douto despacho citado remete a que lhe foi entregue, que lhe seja concedido então o prazo de 10 dias, sugerido na mesma, já que até à data tal prazo não foi concedido ao arguido atenta a data da promoção; ainda que tivesse sido, tal prazo não se tinha esgotado, pois dizendo-se no douto despacho citado “concordando na íntegra com o teor da promoção que antecede - para a qual, por brevidade de exposição, nos permitimos remeter”, fica-se com a ideia de que toda a promoção, é isso que significa “na integra”, foi acolhida no douto despacho citado.
Seguidamente, pela Mm.ª Juíza proferiu despacho onde diz , no essencial:
- o referido é “ mero entendimento do arguido”;
- quanto à correspondência da cópia ora entregue aos Ilustres Mandatários presentes com a promoção sobre a qual recaiu o despacho de fls. 1050, apenas se lhe oferece dar conta da estranheza quanto ao suscitado;
- “quanto à concordância do Tribunal com a expressão em concreto sublinhada pelo arguido no seu requerimento, com o argumento de, no nosso despacho de fls. 1050, termos feito constar a expressão na “íntegra”, escusado seria notar - temos para nós - que o Tribunal não tece opiniões ou considerações, apenas julga com base em factos; não obstante o esclarecimento do significado daquela mesma expressão, ainda que por nós utilizada, pelo arguido - o que agradecemos -, quisemos dizer que, no tocante às questões prévias levantadas, considerávamos assistir razão ao Digno Magistrado do M.P., na estrita medida em que justificou e promoveu o seu indeferimento. Ademais, consta expressamente da pronúncia que os arguidos AMe António Eduardo não entregaram as contribuições em causa nos 90 (noventa) dias posteriores ao termo do prazo referido nas alíneas supra ( ... )” (cfr. fls. 493 vº, sem prejuízo de quanto ao arguido António Eduardo Xavier Batista Meio Freitas ter sido proferido despacho de não pronúncia), sendo, uma vez mais no nosso entender, quase que caluniosa a aparente sugestão do arguido no que respeita à independência deste Tribunal”;
- conceder o prazo de vista de 10 dias sugerido pelo arguido, para os efeitos melhor descriminados na sua contestação e requerimento, permanecendo agendada a segunda data oportunamente agendada.
O primeiro fundamento alegado pelo requerente da escusa em apreciação é o de que a tendo a Ex.ma Juíza referido que concorda na integra com a promoção do M.P. que antecede, onde se escreveu que “ existiu omissão de entrega das quantias retidas no prazo legal”, partiu a mesma do princípio de que um dos factos constantes da pronúncia, constitutivo do tipo legal do crime imputado aos arguidos, existe, é verdadeiro, está dispensado de prova em julgamento.
Vejamos.
O arguido AM está pronunciado, por despacho de 4-4-2002, da prática, em co-autoria material e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p. pelos art.s 6.º e 27-B, por referência ao art.24.º, n.º 1, do RJIFNA , actualmente punido pelos art.s 6.º e 107.º, n.º 1, por referência ao art.107.º, n.º 1 do RGIT.
Um dos elementos do tipo do crime de abuso de confiança contra a segurança social – em qualquer das versões aludidas no despacho de pronúncia – é a não entrega, total ou parcial, à Segurança Social, do valor das remunerações deduzidas e legalmente devidas pelas entidades empregadoras, áquela instituição.
Sobre a questão da falência da co-arguida Sociedade , suscitada pelo arguido AM - em que este requer a suspensão das instâncias civil e criminal até ser proferida decisão sobre a graduação de créditos e sobre o encerramento do processo de falência daquela -, quando o M.P. menciona na promoção de folhas 1049 do processo, que tal deve ser indeferido por os factos típicos serem na forma consumada, porquanto existiu omissão de entrega das quantias retidas no tipo legal, como se deduz da pronúncia, o que este Magistrado diz é que tem interesse decidir, face ao tipo penal, se o arguido não entregou as quantias em dívida referidas na pronúncia, sendo para esse efeito irrelevante saber como será ordenada a graduação de créditos na falência da co-arguida.
Se o M.P. entendesse que a prova relativa à não entrega das quantias referidas na pronuncia estava feita, seria contraditório que não tivesse promovido o indeferimento da prova documental quando o arguido AM requer a folhas 1029 do processo que sejam notificadas a sociedade falida e o ISS para estas procederem à junção dos “ Documentos que se referem a contribuições retidas e não entregues pela António Pereira Vidal E Filhos Limitada indicadas na acusação.”
Só este sentido pode ser dado também ao despacho de 10-9-2008 quando concorda com a promoção do M.P. a que agora se aludiu e se determina nele que o arguido, “ se assim o entender, se faça acompanhar dos documentos pretendidos, cuja relevância probatória e admissibilidade serão então avaliados.”.
Da acta de audiência de julgamento de 12 de Setembro, não resulta minimamente referido pela Ex.ma Juíza que já tomou qualquer posição sobre a questão da não entrega das quantias a que se faz referência na pronúncia, deixando claro que o Tribunal “ não tece opiniões ou considerações” e que não concorda com o entendimento do arguido sobre a interpretação do despacho, no que respeita à independência do Tribunal.
A Ex.ma Juíza ao pronunciar-se sobre esta problemática , que constitui o primeiro fundamento do pedido de recusa, nem subjectiva, nem objectivamente, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, praticou acto que possa suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade.
Temos mesmo como manifesto que daquela sua posição do processo não resulta existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
A segunda ordem de factores, que fundamentam o pedido de recusa pelo requerente/arguido AM, é relativa a actos processuais praticados, omitidos ou mal decididos pela Ex.ma Juíza, que deveriam ter determinado a não realização da audiência, designadamente , a não notificação da promoção do M.P. para que o despacho de 10-9-2008 remetia ; a não notificação da co-arguida por não estar efectuada em quem devia ser; a não notificação de testemunhas; a omissão de pronuncia sobre a maior parte das questões levantadas na contestação apresentada condicionalmente, como sobre o prazo da contestação, erros e nulidades da notificação feita pela Segurança Social, sobre a falência da co-arguida, sobre o pedido de suspensão da instância, de não dar sem efeito as datas de julgamento; sobre os pedidos de notificação para a co-arguida e a Segurança Social juntarem documentos aos autos e sobre a prova por confissão.
Analisando esta ordem de factores e sem querer ser exaustivo, é evidente que é á Secretaria Judicial que compete cumprir diligentemente os despachos e se, por exemplo, não é notificado ao arguido a promoção do Ministério Público para que o despacho remete, a invalidade da notificação é imputável em primeira linha àquela Secretaria.
O mesmo se passa se for ordenada a notificação de co-arguido ou testemunhas e ela não for realizada ou for realizada deficientemente.
No caso presente está provado, pela acta de audiência de julgamento, que algumas das testemunhas do arguido não se encontravam notificadas, nem presentes – sendo desnecessário este Tribunal da Relação inquirir a a funcionária judicial, a Drª Milena Faria e o Dr. Pedro Sabino, indicadas pelo requerente da recusa porque aquela terá dito ao Ex.mo Advogado do arguido AMque havia testemunhas que não tinham sido notificadas.
Em todos estes casos, o dever de lealdade processual impõe que se alerte o Tribunal para as invalidades processuais cometidas. Mas se o Tribunal entender que a co-arguida está notificada e as testemunhas não notificadas e faltosas não são imprescindíveis para se iniciar a audiência de julgamento, daqui não decorre, salvo o devido respeito, que existe desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz. E no caso, sobre a necessidade ou não da presença das testemunhas o Tribunal nem se chegou a pronunciar , pois aberta audiência logo o arguido suscitou várias nulidades, que culminaram no pedido de recusa da Ex.ma Juíza.
A solução para decisões judicias de que não se concorda, seja de irregularidades ou nulidades, é interpor recurso, como o arguido fez aliás ao interpôr recurso da decisão contida na al. b) do despacho de 10-9-2008.
O mesmo se passa relativamente a alegadas omissões de pronúncia e entendimentos do arguido sobre questões por si suscitadas perante a Ex.ma Juíza, sendo evidente que esta conheceu no despacho de 10-9-2008, até por remição para a promoção do M.P., algumas das questões suscitadas pelo arguido aquando da apresentação do seu requerimento/contestação condicional.
Nenhum concreto acto ou omissão alegado pelo arguido e atribuido à Ex.ma Juíza permite concluir que esta teve um comportamento gerador de motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Por fim, apresenta o arguido como fundamento de recusa da Ex.ma Juíza, a decisão de declarar o processo, “ por assim dizer urgente” em sacrifício dos arguidos, obrigando-os a defender-se durante as férias judiciais.
Vejamos.
O arguido António Manuel, no uso dos seus direitos de defesa legalmente consagrados, já interpôs recurso de diversos despachos ao longo do processo, bem dilatado no tempo, tendo já reclamado quer para o Ex.mo Presidente do Tribunal da Relação , quer para o Tribunal Constitucional, de despachos que não fixaram aos recusos o efeito suspensivo do processo - reclamações que foram indeferidas , como se vê designadamente de folhas 619 a 676. No requerimento apresentado a 19 de Agosto de 2008, volta o arguido a requerer a suspensão da instância criminal e civil.
A posição da Ex.ma Juíza sobre o andamento do processo , como já atrás se mencionou, foi declarar, por despacho de 16 de Junho de 2008, que atenta a data da prática dos factos e o risco de prescrição do procedimento criminal, os presentes autos revestem carácter prioritário.
Trata-se de uma posição processual diferente da que o arguido já tomou por diversas vezes, mas que tem um objectivo claro de levar o arguido a ser confrontado em audiência com a responsabilidade que lhe é imputada na pronúncia, pois tal é o fim normal do processo.
Se o arguido não concordava com a legalidade do despacho que lhe atribuiu esse carácter prioritário, impunha-se que dele recorresse.
Agora dessa decisão não decorre, manifestamente, motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Não se verificando, de modo evidente, os pressupostos de deferimento da recusa a que alude o art.43.º, n.º 1 do Código de Processo Penal impõe-se recusar o requerimento apresentado pelo arguido.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os Juízes do Tribunal da Relação em recusar, por manifestamente infundado nos termos do art.45.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, o requerimento de recusa da Ex.ma Juíza Dr.ª Raquel Pereira formulado pelo arguido AM.
Custas pelo requerente, fixando em 3 UCs a taxa de justiça, a que acresce a soma de 10 UCs nos termos do n.º 7 do art.45.º do C.P.P..

( Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).
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Coimbra, 08-10-15
Orlanado Gonçalves