Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
346/08.0TBLSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: ABUSO DE REPRESENTAÇÃO
Data do Acordão: 12/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 269º C. CIV.
Sumário: I – Há abuso da representação (artº 269º do C. Civ.) se o representante, a quem foram conferidos poderes para vender ou prometer vender determinado prédio urbano, pelo preço, condições e cláusulas que achar convenientes, podendo fazer negócio consigo mesmo, outorga escritura pública de compra e venda do imóvel a seu favor, cerca de 8 dias decorridos, por um valor manifestamente inferior ao valor real do prédio (menos de metade deste valor).

II – Não se encontra fundamento para não aplicar à representação sem poderes e ao abuso da representação a doutrina do Acórdão do STJ de 23/01/2001 (DR, 1ª série, nº 34, de 9/02/2001), que uniformizou jurisprudência no sentido de que “tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (nº 1 do artº 616º CC), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como é permitido pelo artº 664º do CPC”.

Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

A..., residente em Rua ..., intentou acção declarativa de condenação, com processo comum e forma ordinária, contra B... e marido, C..., residentes em Rua ..., pedindo que:

a) Se declare a invalidade da procuração outorgada em 26/01/2006, perante o Notário D..., na ..., pela A. a favor da R. mulher;

b) Se declare a nulidade da escritura pública outorgada a fls. 82 e 83 do livro 62 do Cartório Notarial de Lisboa do Notário E... – escritura pública de compra e venda outorgada, em 02/02/2006, pela R. mulher, pela qual esta, por si e em representação da A., declarou vender a si própria o prédio urbano composto por casa de habitação de cave, r/ch, 1.º andar, logradouro e jardim, sito na Rua ..., inscrito na respectiva matriz predial sob o art.° ....° e descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º ...;

c) Sejam os RR. condenados a reconhecer o direito de propriedade da A. sobre aquele prédio;

d) Se declare o direito de propriedade da A. sobre o referido prédio;

e) Se ordene o cancelamento do registo efectuado pela segunda R., sob a apresentação n.º ... de ..., na descrição predial urbana da Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º .../ ...;

Subsidiariamente, para o caso de improcedência dos pedidos antecedentes, a A. pediu a condenação dos RR. a pagar-lhe o preço real e efectivo daquele prédio, no valor de 250.000,00 euros;

Subsidiariamente ainda, para o caso de improcedência do pedido subsidiário antecedente, a A. pediu a condenação dos RR. a pagar-lhe o preço de 75.000,00 euros, pelo qual declararam adquirir o referido prédio.

Para tanto, a A. alegou, em síntese, que tem 90 anos de idade, não tem ascendentes vivos ou descendentes, e é dona e legítima possuidora do aludido prédio urbano; no inicio de 2006, a A. solicitou à filha de uma sua sobrinha, a aqui R. mulher, que diligenciasse, como sua procuradora, a venda da sua casa de habitação, o prédio supra identificado, para posteriormente a A. dividir o produto dessa venda pela R. e por um outro sobrinho; assim, em 26/01/2006 a A. outorgou a procuração, não tendo, porém, percebido o respectivo conteúdo nem tendi ouvido a expressão “negócio consigo mesmo”; nunca a A. teve intenção de vender a casa à R., nem nunca foi esse o poder que quis facultar-lhe, sendo que a R. nunca disse à A. que lhe iria comprar a casa de habitação; em 02/02/2006, a R. mulher, munida da mencionada procuração, em Lisboa, outorgou a aludida escritura de compra e venda, em que declarou vender a si própria o dito prédio, pelo preço de 75.000,00 euros; a A. nunca entregou o imóvel, nem tal lhe foi referido ou solicitado, nem recebeu qualquer preço, sendo que o valor mínimo de avaliação para venda daquele sempre seria de 250.000,00 euros; a R. exorbitou os poderes que a A. lhe quis conferir, tendo agido contra a intenção e vontade da mandante motivo pelo qual a aludida procuração é inválida; com a consequente invalidade da escritura pública de compra e venda mencionada, por baseada nessa procuração e simulada, nada tendo sido querido vender ou comprar.

Os RR. contestaram impugnando grande parte da factualidade descrita na petição inicial e alegando que a A. queria beneficiar a R. mulher, pretendendo que fosse esta a ficar com a sua casa, ao mesmo tempo que se queixava de falta de dinheiro, pelo que, para fazer face a despesas existentes e futuras, A. e R. mulher acordaram que a casa da A. seria vendida, aos RR., pelo preço de 75.000,00 euros, preço esse que seria pago de forma faseada, através do pagamento de despesas da A.; que a A. disse que gostaria de ir viver junto dos RR. e foi de sua vontade outorgar a procuração em causa nos autos, conhecendo as implicações do acto; que, tal como acordado entre A. e RR., foi outorgada a escritura pública a favor dos RR., do que foi dado conhecimento à A. que ficou satisfeita e agradecida, tendo ficado também acordado que a A. estaria na casa até querer; na sequência do assim acordado os RR. liquidaram despesas da A. no valor de 13.261,73 euros, fazendo-o por conta do preço da venda da casa; caso qualquer dos pedidos da A. proceda, deverá ela reembolsar os RR. naquele montante de 13.261,73 euros, ou ser o mesmo deduzido a qualquer montante que os RR. sejam condenados a pagar.

Concluem pela improcedência da acção, pela condenação da A. como litigante de má fé, em multa e indemnização, bem como, para o caso de assim não se entender, pela procedência da excepção de compensação no montante de 13.261,73 euros.

A A. replicou defendendo a improcedência da matéria de excepção, impugnando muita da factualidade alegada pelos RR. e concluindo como na p. i.

Saneada, condensada e instruída a acção, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito foi proferido o despacho de fls. 232 a 236, decidindo a matéria de facto controvertida.

Foi depois emitida a sentença de fls. 238 a 258 julgando a acção parcialmente procedente e, consequentemente, condenando a R. mulher, B... a pagar à A., A..., a quantia, subsidiariamente peticionada, de € 75.000,00 e, no mais, absolvendo os RR. do pedido.

Inconformada, a A. apelou, encerrando a alegação apresentada com as conclusões seguintes:

[…]


***

Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as questões seguintes:

a) Alteração da decisão sobre a matéria de facto;

b) (In)validade da procuração;

c) (In)validade da compra e venda.


***

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         2.1.1. Factualidade considerada provada pela 1ª instância

I – Dos factos assentes logo após os articulados:

[…]


***

         2.2. De direito

         2.2.1. (In)validade da procuração

         Na petição inicial a A. atacou a validade da procuração que em 26 de Janeiro de 2006 outorgou perante o Notário D ..., alegando que não percebeu o conteúdo da mesma e não ouviu a referência à expressão “negócio consigo mesmo” (artº 7º), que nunca intencionou vender a casa à R. nem nunca foi esse o poder que a esta quis facultar (artº 8º) e que nem a R. alguma vez lhe referiu que iria comprar para si a casa a transaccionar (artº 9º).

         De tal alegação concluiu a A. que a procuração é inválida, porque não conforme à vontade da mandante (artº 31º), conclusão que reflectiu no pedido, já que na alínea a) deste impetrou que se declare “a invalidade da procuração outorgada pela A. a favor da R. mulher”.

         Embora a A.. não tivesse indicado a base legal para a conclusão referida, afigura-se-nos que teria em mente o preceituado no artº 247º do Cód. Civil, segundo o qual “quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”.

         Na alegação de recurso a A. avança um passo e parece colocar também a hipótese de incapacidade acidental (artº 257º do Cód. Civil), ao insistir na avançada idade, no defeito cognitivo em vários domínios detectado na avaliação neuro-psicológica e na alegada surdez.

         Independentemente de poder entender-se que esta última hipótese constitui questão nova, de que este Tribunal estaria impedido de conhecer, o certo é que a factualidade essencial, acima indicada, a subsumir juridicamente nas duas normas legais referidas não resultou provada.

         Era sobre a A., atento o disposto no artº 342º, nº 1 do Cód. Civil, que recaía o ónus de prova daquela factualidade, pelo que o não cumprimento daquela incumbência conduz à improcedência do direito que pretendia fazer valer – a declaração da invalidade da procuração.

         Nega-se, pois, nesta parte, razão à recorrente.


***

         2.2.2. (In)validade da compra e venda

         Servindo-se dos poderes de representação que pela A. lhe foram conferidos através da procuração passada em 26/01/2006 perante o Notário D ..., a R. mulher, em 02/02/2006, no Cartório Notarial de Lisboa do Notário E ..., outorgou a escritura de compra e venda cuja certidão consta de fls. 34 a 37 dos autos, declarando, como representante da A., vender pelo preço de € 75.000,00 e, por si própria, comprar, o prédio urbano descrito na al. A) dos factos provados, isto é, a casa de habitação da A.

         A A. defendeu na petição inicial a invalidade de tal compra e venda – pedindo a declaração de nulidade da escritura que a formalizou [al. b) do pedido] – com três argumentos essenciais: por um lado, porque sendo, na sua perspectiva, inválida a procuração, a R. mulher carecia dos invocados poderes de representação; por outro, porque exorbitou os poderes que a A. lhe quis conferir; e, por outro ainda, porque existiu simulação.

         Na sentença recorrida não lhe foi reconhecida razão relativamente a qualquer dos indicados argumentos, tendo a compra e venda em questão sido considerada válida.

         Na presente apelação a A. deixa cair a simulação como causa da pretendida nulidade – motivo pelo qual este Tribunal sobre ela se não debruçará – mas insiste, agora com indicação das normas legais pertinentes, nas outras duas causas inicialmente brandidas.

Quanto à ausência de poderes de representação por parte da R. mulher, decorrente da invalidade da procuração, pressupunha ela, como é bom de ver, que a procuração fosse efectivamente inválida.

         Tal não sucedendo, como supra se tentou demonstrar, e sendo, pois, a procuração válida, a única hipótese que resta é a de abuso de representação.

        

         Trata-se de figura jurídica delineada no artº 269º do Cód. Civil, disposição segundo a qual “o disposto no artigo anterior é aplicável ao caso de o representante ter abusado dos seus poderes, se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso”.

         Ou seja, como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela[1], “há abuso dos poderes de representação quando o representante, actuando embora dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado”[2].

         Para discernir se o representante utilizou ou não os poderes de representação em sentido contrário ao seu fim os às indicações do representado há que interpretar devidamente a procuração, já que é nela que tais poderes estão enunciados[3].

         Nessa interpretação há que observar as regras estatuídas nos artºs 236º a 239º do Cód. Civil, com vista a apurar a vontade real do representado. Para esse apuramento é essencial o texto da procuração (artº 238º), eventuais instruções ou indicações do representado, bem como a finalidade da representação, a surpreender sobretudo através do teor do negócio que desencadeou a outorga dos poderes representativos[4].

         Como regra geral, o representante não pode, sob pena de anulabilidade, fazer negócio consigo mesmo. Com efeito, de acordo com o nº 1 do artº 261º do Cód. Civil, é anulável o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em representação de terceiro, a não ser que o representado tenha especificadamente consentido na celebração, ou que o negócio exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses.

         “Haverá contrato consigo mesmo quando alguém, com poderes para representar outra pessoa na celebração de um contrato, em vez de o celebrar com terceiro, fá-lo consigo mesmo, ou quando o representante de duas pessoas, nessa dupla qualidade, celebra por si só um contrato com efeitos para ambas as pessoas que representa”[5].

         Os contornos do negócio consigo mesmo foram exemplarmente traçados no Ac. STJ de 17/12/2009[6], cujo sumário não resistimos a transcrever:

“I) Se a outorga de poderes representativos implica uma relação de fidúcia do representado no representante, confiando aquele que os seus interesses são eficazmente defendidos, mais exigente deve ser a actuação do representante a quem, além da representação, são conferidos poderes para negociar consigo mesmo, sendo aqui claro que, a um tempo, representa o emitente da procuração e ele mesmo – clara situação de autocontrato.

II) A lei exige o assentimento para o autocontrato e, como é inerente ao acto jurídico unilateral (procuração), [onde avulta o cariz intuitu personnae e a confiança no representante], o representado confia na sua honesta actuação, já que colocou nas mãos do representante a condução do negócio, em que este está duplamente interessado, pelo que o risco de actuação lesiva (tendência para o auto-favorecimento) não é de somenos, dada a possibilidade de existirem interesses conflituantes.

III) O representante deve agir com imparcialidade, probidade, moralidade e fidúcia, zelando os poderes que lhe foram conferidos pelo representado.

VI) O conflito de interesses pode decorrer de excesso ou abuso de representação, não podendo o representante, mesmo no caso de assentimento do representado, agir de modo egoísta acautelando apenas os seus próprios interesses por lhe competir a defesa dos interesses do outro contraente que representa.

VI) Da conjugação dos arts. 268º e 269º do Código Civil, resulta que o negócio celebrado com abuso de representação é ineficaz em relação ao representado, a menos que este o ratifique.”

Revertendo agora a atenção para o caso concreto dos autos, começaremos por dizer que, tendo a A., como da procuração por ela outorgada inquestionavelmente resulta, consentido expressamente na celebração pela R. mulher de negócio consigo mesma, o eventual vício da compra e venda outorgada em 02/02/2006 não reside na circunstância de a única interveniente na escritura ter, na qualidade de representante da A., vendido e, por si própria, comprado, a casa para cuja compra e venda lhe haviam sido conferidos poderes de representação.

Nem, se bem vemos, a circunstância de entre a outorga da procuração e a celebração da escritura de compra e venda ter decorrido um curtíssimo lapso de tempo, indiciador de que a procuradora não terá previamente diligenciado pela venda a terceiro, acarreta qualquer irregularidade para o negócio.

O eventual vício poderá residir é no preço – € 75.000,00 – estabelecido pela R. mulher.

É certo que da procuração resulta que à R. mulher foram conferidos poderes para vender ou prometer vender, pelo preço, condições e cláusulas que achar convenientes, a quem entender, o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 2.313 da freguesia de Vilarinho, concelho de ..., podendo fazer negócio consigo mesma.

A ausência de fixação do preço mínimo ou de quaisquer cláusulas ou condições, tudo deixando ao critério da representante instituída, bem como o expresso consentimento em que esta celebrasse negócio consigo mesma, não podem, em nosso entender, ser interpretadas como manifestação de qualquer “animus donandi”, antes o devendo ser como demonstração de confiança total, a exigir, naturalmente, lealdade total.

Ou seja, a A., ao conferir à R. mulher os poderes de representação decorrentes da procuração outorgada, confiou que esta, mesmo optando por fazer negócio consigo mesma, não olvidaria os interesses da representada e manteria no negócio que celebrasse o equilíbrio adequado entre o valor real (de mercado) da moradia a transaccionar e o preço a pagar pelo comprador (ainda que fosse ela própria).

Contudo, a R. mulher vendeu o imóvel a si mesma, pelo preço de € 75.000,00, quando o respectivo valor real seria então de € 193.677,50.

Dada a discrepância, a pergunta que legitimamente se coloca é a de saber se, embora agindo dentro dos limites formais dos poderes de representação que lhe haviam sido conferidos, a R. mulher abusou desses poderes.

A pergunta não é de resposta imediata e inequívoca, pois que o valor real de um bem não é um dado objectivo e inalterável, antes sendo susceptível de alguma variação em função da oferta e da procura.

No Acórdão do STJ de 16/11/1988[7], foi considerado índice de abuso de representação a venda de bens por 1.300.000$00, quando o seu valor ascendia a mais de 9.000.000$00, por procurador com “os poderes necessários para vender pelos preços e condições que tiver por convenientes”.

E no Acórdão do mesmo Tribunal de 05/03/1996, já citado, entendeu-se que “o desnível brutal entre o preço da venda – 3.000.000$00 – e o que o mercado daria – pelo menos, 12.800.000$00 – é índice objectivo e seguro do abuso de representação”.

No caso que nos ocupa a desproporção não é, usando o expressivo adjectivo do acórdão acabado de referir, tão brutal. Mas não deixa de ser absolutamente manifesta e notória, já que o preço da venda da moradia da A. não chega sequer a 40% do valor real da mesma.

E a R. mulher não podia deixar de ter perfeita e total consciência da referida desproporção, o que, de resto, é indiciado pelo curtíssimo período de tempo decorrido entre a outorga da procuração e a celebração da escritura – escassos 5 (cinco) dias úteis – revelador da ausência de qualquer tentativa séria de encontrar qualquer outro potencial interessado no negócio.

Estamos, pois, a nosso ver, perante abuso da representação por parte da R. mulher. E, não se pondo a questão do conhecimento ou obrigação de conhecimento da outra parte – porque, no caso, não há propriamente outra parte – é aplicável o disposto no artº 268º do Cód. Civil, ou seja, não tendo o negócio sido ratificado pela A., é o mesmo, relativamente a ela, ineficaz.

Tendo a A. pedido a declaração de nulidade e não a declaração de ineficácia do negócio celebrado pela R. mulher consigo mesma e dispondo o artº 661º, nº 1 do Cód. Proc. Civil que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, levanta-se a questão de saber se o tribunal deverá julgar improcedente o pedido de declaração de nulidade ou considerar que se trata de mera interpretação e aplicação das regras de direito (artº 664º do Cód. Proc. Civil) e declarar a ineficácia.

A questão foi enfrentada, a propósito da acção de impugnação pauliana, no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ de 23/01/2001[8], tendo sido fixada a seguinte jurisprudência:

“Tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (nº 1 do artº 616º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 664º do Código de Processo Civil”.

Não encontramos razões para, relativamente à representação sem poderes e ao abuso da representação (artºs 268º e 269º) do Cód. Civil), não adoptar idêntica solução.

Logram êxito, pois, na medida exposta, as conclusões da alegação da recorrente, o que conduz à procedência da apelação, à revogação da sentença recorrida e à procedência parcial da acção, com as consequentes:

- Declaração de ineficácia, relativamente à A., da compra e venda realizada pela R. mulher através da escritura pública outorgada em 02/02/2006, a fls. 82/83 do Livro 62 do Cartório Notarial de... do Notário E ...;

- Condenação dos RR. a reconhecerem o direito de propriedade da A. sobre o prédio urbano sito na Rua ..., ... ..., ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o nº ...;

- Cancelamento do registo efectuado pela R. mulher sob a presentação nº ..., de ..., na descrição predial urbana da Conservatória do Registo Predial da ... sob o nº ....

         Nos termos do artº 713º, nº 7 do Cód. Proc. Civil, elabora-se o seguinte sumário:

         I – Há abuso da representação (artº 269º do Código Civil) se a representante, a quem, em 26/01/2006, foram conferidos poderes para vender ou prometer vender determinado prédio urbano, pelo preço, condições e cláusulas que achar convenientes, a quem entender, podendo fazer negócio consigo mesmo, outorgou, em 02/02/2006, escritura pública de compra e venda, a seu favor, do imóvel, se este tinha o valor real de € 193.677,50 e o preço da compra e venda foi de € 75.000,00.

         II – Não se encontra fundamento para não aplicar à representação sem poderes e ao abuso da representação a doutrina do Acórdão do STJ de 23/01/2001 (DR, I-A, nº 34, de 09/02/2001) que uniformizou jurisprudência no sentido de que “Tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (nº 1 do artº 616º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 664º do Código de Processo Civil”


***

         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em:

         a) Julgar a apelação procedente;

         b) Revogar a sentença recorrida;

         c) Julgar a acção parcialmente procedente e, consequentemente:

         1 - Declarar a ineficácia, relativamente à A., da compra e venda realizada pela R. mulher através da escritura pública outorgada em 02/02/2006, a fls. 82/83 do Livro 62 do Cartório Notarial de ... do Notário E ...;

2 - Condenar os RR. a reconhecerem o direito de propriedade da A. sobre o prédio urbano sito na Rua ..., ... ..., ..., inscrito na matriz predial sob o artigo .... e descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o nº ...;

3 – Ordenar o cancelamento do registo efectuado pela R. mulher sob a presentação nº ..., de ..., na descrição predial urbana da Conservatória do Registo Predial da ... sob o nº ....

         As custas da acção e da apelação são a cargo dos RR.


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Artur Dias (Relator)
Jaime Ferreira
Jorge Arcanjo


[1] Código Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, pág. 248.
[2] Cfr. também os Acórdãos do STJ de 05/03/1996, in CJ(STJ), IV, I, 111; e de 09/10/2003 (Proc. 03B2201, relatado pelo Cons. Araújo Barros); de 23/09/2004 (Proc. 04B2716, relatado pelo Cons. Salvador da Costa); de 07/02/2006 (Proc. 05A4285, relatado pelo Cons. Fernandes Magalhães), 27/05/2010 (Proc. 251/2002.P1.S1, relatado pelo Cons. João Camilo) e de 09/09/2010 (Proc. 220/2002. C1.S1, relatado pelo Cons. Pereira da Silva), estes em www.dgsi.pt..
[3] A procuração é o acto pelo qual uma pessoa atribui a outra poderes representativos funcionalmente dirigidos à realização de fins e interesses da primeira (Ac. STJ de 23/09/2004, Proc. 04B2716, in www.dgsi.pt.
[4] Ac. STJ de 09/10/2003, já citado.
[5] Prof. Vaz Serra, RLJ, 91-179 e Alexandre Campelo, RCA, Ano VII, 1, 247, citados no Ac. STJ de 05/03/1996, já referido.
[6] Proc. 365/06.0TBALSB.C1.S1, relatado pelo Cons. Fonseca Ramos, in www.dgsi.pt.
[7] BMJ, nº 381, pág. 640.
[8] Proc. 98B994, relatado pelo Cons. Moura Cruz, in www.dgsi.pt, publicado no DR, I-A, nº 34, de 09/02/2001.