Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
760/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. RUI BARREIROS
Descritores: PETIÇÃO INEPTE E PETIÇÃO DEFICIENTE
Data do Acordão: 05/04/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ART. 288.º E 494.º N.º 1 AL. B) DO C.P.C.
Sumário:

I – Não é inepta uma petição inicial em que o autor alega que fez fornecimentos de mercadorias à ré, limitando-se a remeter para uma “conta corrente”.
Decisão Texto Integral:

I – Relatório.
...
Pediu a condenação dos réus a pagarem-lhe «a quantia de € 1.257.078,72, acrescida dos respectivos juros de mora desde a data da citação até efectivo e integral pagamento».
Para o efeito, alegou que se dedica a determinada actividade industrial e comercial e que vendeu e entregou à primeira ré diversa mercadoria referente à sua actividade comercial: «no âmbito e no exercício da sua actividade, a Autora vendeu e entregou à Ré, diversa mercadoria referente à sua actividade comercial». Alegou ainda a existência de letras que não foram liquidadas nas datas do vencimento e que tinha um saldo credor de € 888.061,52, conforme extracto de conta corrente que juntou.
2. Os réus contestaram, alegando que a P.i. não contém os factos necessários para justificar o pedido, por não ser alegado concretamente que mercadoria foi fornecida, quando foi fornecida, que letras foram aceites, quando se venciam, quando não foram liquidadas, que encargos originaram, que despesas de imposto de selo ocorreram, por que razão tais encargos e despesas são a cargo dos réus, limitando-se a autora a alegar factos conclusivos. Em consequência, pedem que a acção seja desde julgada improcedente já no despacho saneador.
3. Depois da Réplica, em que os autores se opuseram a esta pretensão, foi proferido despacho saneador, o qual julgou a petição inepta por ininteligibilidade da causa de pedir, e, consequentemente, absolveu os réus da instância, nos termos dos artigos 288º e 494º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil (CPC).
4. Deste despacho, recorreu a autora, concluindo as suas Alegações pela forma seguinte:
«...
2º Tendo em conta os factos alegados na petição Inicial e na Réplica, o Meretº Juiz deveria concluir que a matéria de facto alegada não contém qualquer imprecisão ou insuficiência;
3º Até porque, basta uma leitura atenta da contestação para concluir que os ora Agravados compreenderam perfeitamente o pedido e a causa de pedir formulados pela Agravante;
4º mesmo que assim não se entenda, deveria a ora Agravante ter sido notificada para corrigir a Petição Inicial, concedendo-se-lhe um prazo para esse efeito.
...
II – Fundamentação.
...
7. O Direito.
O objecto do recurso é o de saber se é inepta, por ininteligibilidade da causa de pedir, uma petição inicial em que o autor alega que fez fornecimentos de mercadorias à primeira Ré, sem especificar que concretos produtos que forneceu, em que datas e por que preço, limitando-se a remeter para uma “conta corrente”.
Não sendo inepta, se a acção deve prosseguir ou se se deve convidar a autora a completar e/ou corrigir a Petição inicial (P.i.).
7.1. Consta do despacho recorrido que a autora, para sustentar o seu pedido alegou «que fez fornecimentos de mercadorias à primeira Ré - sem contudo especificar que concretos produtos forneceu, em que datas e por que preço -, tendo a primeira Ré aceite diversas letras que não foram liquidadas nas datas do seu vencimento; e que, conforme extracto de “conta corrente” junto, o saldo é a favor da Autora no montante de € 888.061,52». Seguidamente, de acordo com o princípio da substanciação, defende-se que é necessário alegar «uma determinada e concreta causa de pedir», o que a autora não terá feito, visto que se limitou a «alegar que vendeu à primeira Ré diversas mercadorias», o que «não preenche o conceito de uma concreta causa de pedir», não sendo suficiente que alegue «genericamente que vendeu mercadorias à primeira Ré, não concretizando que mercadorias foram essas, quando cada um dos fornecimentos teve lugar, qual o preço acordado para cada um deles e qual a data de vencimento da obrigação de pagamento do preço para cada um deles (pois de outra forma não se pode controlar o cálculo de juros vencidos efectuado pela Autora), razão pela qual não se pode considerar preenchida, por esta alegação genérica, a noção de causa de pedir, sendo certo que era à Autora quem cabia o ónus de articular factos que consubstanciassem uma concreta causa de pedir».
E, na perspectiva do mesmo despacho, era necessário fazê-lo, pois:
1º) não foram alegados factos que traduzam a «ocorrência da vida real, concreta e especificada», sendo ao demandante que «compete alegar os factos de cuja prova ...», «expor com clareza dos fundamentos da acção».
2º) «Com tal exigência de concretização dos factos reais que fundamentam o pedido, pretende-se antes de mais assegurar que a decisão de mérito que deles conheça não se venha a repetir ou a ser contrariada numa outra acção - limites objectivos do caso julgado».
3º) e «também assegurar um efectivo e leal contraditório, impondo-se que ao demandado seja dado a conhecer exactamente quais os factos que suportam a pretensão deduzida contra si por modo a que este possa construir a sua defesa».
O referido despacho invocou a seu favor o Acórdão da Relação de Lisboa, de 12 de Abril de 1984, o Desembargador A. Abrantes Geraldes [1] e o Acórdão da Relação de Évora de 5 de Dezembro de 1996 [2].
7.2. O recorrente cita diversos Acórdãos em que se decidiu que não havia ineptidão da petição inicial em situações iguais à deste processo.
No despacho de sustentação nada se referiu quanto ao que foi alegado pelo recorrente.
7.3. Não oferecerá muitas dúvidas de que a petição inicial constante deste processo não respeita, correctamente, todos requisitos fixados na lei.
Mas, desta afirmação à que chega à existência de ineptidão, vai distância que implica diferença do ponto de vista jurídico.
Conforme ensina Anselmo de Castro, com a ineptidão da petição inicial, «visa-se, em primeiro lugar evitar que o juiz seja colocado na impossibilidade de julgar correctamente a causa, decidindo sobre o mérito» [3]. É uma situação que vai para além da que nos ocupa: entende-se o que se pretende, é possível discutir as questões entre as partes, mas faltam elementos para poder chegar ao fim com tudo perfeitamente definido; «mas ... daí para cima», como se exprime Alberto dos Reis, são figuras diferentes a ineptidão e a insuficiência da petição» [4]. Por isso Manuel de Andrade diz que só é ineptidão «a falta absoluta da respectiva indicação» (do pedido e/ou causa de pedir), não o sendo a deficiência ou insuficiência dessa indicação. E Castro Mendes diz que, na alínea a), do nº 1, do artigo 193º, do CPC se prevê «o caso extremo de não ser de todo indicado o pedido e a causa de pedir» [5].
Numa primeira análise, parece que a petição inicial deste processo, deficientemente articulada, não é inepta.
7.4. Mas, é necessário aprofundar melhor as coisas, porque assim tratadas, por enunciados gerais, pode levar-nos a resultados enganosos.
Aliás, a questão não é fácil, basta ver a divergência entre Alberto dos Reis e o Director da Revista dos Tribunais [6], a propósito da decisão do Acórdão da Relação do Porto, de 30 de Novembro de 1927, que julgou inepta a petição «em que se pede determinada importância a título de preço de fazendas vendidas, sem se indicar a qualidade e natureza das fazendas, a data dos fornecimentos e as outras circunstâncias necessárias para se conhecer a operação realizada» [7]. Este criticou a decisão [8], aquele considerou-a acertada: «a causa de pedir não estava definida, desde que o autor se limitara a alegar que a quantia pedida representava o preço de venda das fazendas; ficava-se em face dum contrato abstracto e indefinido de vendas, e o que importava conhecer era o contrato concreto e positivo que realizara» [9]. E, na obra citada, Alberto dos Reis já tinha referido o Acórdão do STJ, de 18 de Agosto de 1905 que considerou inepta a petição em que «o autor se inculca credor do réu por determinada quantia proveniente de transacções, sem se indicar a qualidade, natureza, data e cláusulas das transacções» [10]. Para além da divergência entre os referidos Autores, também Castro Mendes defende que quando o autor «diz que comprou, sem suficientemente concretizar a compra com indicações de tempo e lugar» a petição é deficiente, não inepta [11] [12].
7.5.1. Não vamos analisar os Acórdãos citados pelo recorrente, nem outros que defendem a mesma posição [13], vamos, antes, analisar o Acórdão da Relação de Lisboa, de 12 de Abril de 1984, invocado no despacho recorrido. Isto por duas razões:
a) O Dr. António Abrantes Geraldes, na obra referida, também remete para o referido Acórdão. O da Relação de Évora, também invocado no despacho recorrido, nada nos ajuda porque a sua solução não se ajusta ao caso em análise, na medida em que, tendo a acção prosseguido até julgamento, o aí demandante decaiu na prova do que estava a seu cargo, pelo que os réus foram absolvidos do pedido: «o sucesso da acção passaria pela prova da realização das vendas dos televisores a que aludem as facturas, cujas fotocópias se encontram a fls. 7 e 8, e que para o pagamento do respectivo preço os RR aceitaram letras, que a A. descontou, despendendo as quantias indicadas. Ora, não logrando a A. fazer tal prova - ... - cai por terra a pretensão da Autora, tornando-se irrelevante o facto de se ter dado como provada a existência de um saldo contabilístico na escrita da Autora a seu favor, já que, não resultando provados os contratos e despesas justificativos das verbas que a A. registou, aquele saldo, embora existente na escrita da A, está viciado nos seus fundamentos».
b) Os relatos dos Acórdãos não permitem chegar ao pequeno pormenor, o que seria necessário para distinguir aquilo que for diferente, mesmo que em milésimos. Obviamente que não pomos em causa os relatos que foram feitos, mormente o de Alberto dos Reis; obviamente, mas a questão tem a ver com a natural diferença entre transcrever o que foi escrito numa petição inicial e descrevê-la; porque não se quer que fique a mais pequena dúvida sobre este aspecto, por termos citado consagrado Mestre, acrescentamos que o melhor dos relatos possíveis diz sempre respeito a factos que estão inseridos num contexto, que nem sempre é totalmente referido, até por não ser ou parecer não ser necessário, mas que pode introduzir diferença de vulto; por exemplo, no caso do relato feito do Acórdão do STJ de 18 de Agosto de 1905, referiu-se a falta de indicação das «cláusulas das transacções», aspecto que, porventura, era importante no contexto dessa acção e, noutras, como a nossa, não parece ter importância, pelo menos ao nível do alegado na petição inicial.
7.5.2. O referido Acórdão da Relação de Lisboa julgou a petição inepta. No Relatório do Acórdão diz-se:
a) «alegando que a sua principal actividade é a ...».
Facto semelhante está alegado no artigo 1º da P.i. desta acção;
b) « a ré exerce a actividade de ...».
Facto semelhante está alegado no artigo 2º da mesma P.i.;
c) «no exercício da sua actividade comercial (a autora) vendeu à ré (...) diverso material, tendo todos os bens vendidos sido recebidos pela ré, que aceitou em representação do preço diversas letras de que a autora é portadora, e que totalizam a quantia de ..., que a ré não pagou».
Factos semelhantes estão alegados nos artigos 5º a 10º da P.i. desta acção: «no âmbito e no exercício da sua actividade comercial, a Autora vendeu à Ré, diversa mercadoria referente à sua actividade comercial» (art. 5º); as letras, no artigo 6º; no 7º, o saldo favorável à autora; no 8º, a recepção da mercadoria pela ré; no 9º, o prazo do pagamento; no 10º, o valor dos juros respectivos [14].
7.5.3. As situações serão exactamente as mesmas?
Há elementos que nos levam a crer que não:
1º) a autora, no artigo 7º da P.i., remete para uma “conta corrente”: «das mencionadas transacções comerciais, suporte de encargos bancários e despesas de imposto de selo resultou para a Autora um saldo credor de € 888.061,52 (...) conforme extracto de conta corrente que se junta ...». Este facto não consta daquele Relatório.
Ora, sendo verdade que «não existe “a petição por documentos” ou a “alegação por documentos”», como alegam os réus, no artigo 15º da Contestação, a diferença a que aludimos pode levar-nos da ineptidão para a deficiência, o que tem a ver mais com a afirmação com que começamos - falta de correcção da petição inicial -, do que com ineptidão.
Neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 23 de Fevereiro de 1989, em que se afirmou o seguinte: «ora, através dessa conta corrente que, obviamente, completa a petição, verifica-se que ...», concluindo, logo a seguir, que nenhumas hesitações, ..., se levantam quanto ao facto jurídico concreto invocado para obter o efeito pretendido. E, embora se trate de vários fornecimentos, ..., ligados por uma duradoura relação de quase 3 anos, o certo é que a sua identificação, ainda que globalmente considerada, não suscita quaisquer reticências. Numa palavra: uma forma eficaz de alegar, acaso não louvável, é a remissão nos articulados para o conteúdo dos documentos juntos (cfr. Ac. Rel. de Lisboa, de 5-5-83, ..., e Ac. Rel. do Porto de 6-12-84, ...)» [15]. Não vamos deter-nos na questão dos documentos completarem ou não a petição, mas, a par da respectiva consideração feita a esse propósito pelos recorridos, traremos, também, a afirmação que fizeram de que «os documentos são meios de prova de factos alegados, que supõem necessariamente estes, mas que os não substituem» [16], para chamar a atenção de que além de uma enunciação da causa abstracta, há uma remissão para um documento que contém fornecimentos concretos. A verdade é que os réus não consideram a petição inepta: «ou seja: a petição, embora não seja inepta (dado conter causa de pedir)» [17], embora entendam que, pelo vício existente, o pedido deve ser julgado improcedente [18].
2º) E os factos do referido Acórdão de 12 de Abril de 1984 terão mesmo esta diferença: «a primeira instância sustentou ... o seu despacho, acentuando o carácter genérico da petição, que não concretiza o contrato que fundamenta o pedido (só um ou vários contratos?), pois se limita a dizer que a autora vendeu à ré “diverso material”» [19]. E a seguir: «a petição inicial sugere imediatamente a seguinte pergunta: mas que fornecimento concreto ou que venda específica a autora fez à ré, ...?» [20]; e mais à frente afirma-se que «a referência vaga à venda de diverso material ... não satisfaz a necessidade da indicação concreta da causa de pedir» [21].
Mas mais conclusivo é o que o Acórdão diz mais adiante, a propósito da diferença entre ineptidão e petição simplesmente deficiente: «há petições em que se alega o tipo de actividade exercida pela autora e o fornecimento de determinadas mercadorias ou serviços no exercício dessa actividade, durante certo tempo ..., que se documentam devidamente, com facturas ou guias de remessa, ou uma conta corrente, que assim completam a petição, em consequência das quais se invoca a existência de um crédito de certo montante, correspondente ao preço ou saldo existente, cujo pagamento se pede»; permita-se um breve parêntesis, para chamar a atenção de que estes referidos requisitos constam da nossa p.i., concretamente a “conta corrente”. «Nesses casos não pode haver dúvidas quanto à relação concreta de que se trata, ou seja, quanto ao facto jurídico concreto invocado para obter o efeito pretendido» [22].
Refira-se, ainda, que, no relato dos casos dos Acórdãos referidos por Alberto dos Reis [23], também parece faltarem elementos que constam da nossa P.i..
Ora, chegamos a um ponto em que temos de concluir que o Acórdão invocado pelo despacho recorrido não o ajuda e que, para além das dificuldades próprias de certas questões de direito [24], é sempre necessário dar muita atenção a elementos que, em cada caso concreto, podem distinguir um do outro, como nos parece ser o caso; este último apontamento, leva-nos para questão que temos referido por diversas vezes, que é a do perigo de transportar sumários de Acórdãos para casos concretos que podem diferir dos analisados por eles.
7.6. À inexistência de ineptidão também chegaríamos pelo facto dos réus terem compreendido a causa de pedir alegada pela autora. Na verdade, nos termos do disposto no nº 3, do artigo 193º, do CPC, tal facto é impeditivo do vício, uma vez que a ineptidão, além da referida primeira função - definição dos poderes do juiz quanto à sua actividade decisória -, também visa que o réu seja colocado perante um pedido e uma causa de pedir de tal maneira formulados que lhe permitam defender-se «capazmente» [25]. Juridicamente, esta não é questão que ofereça controvérsia [26], pelo que é suficiente ver se os réus tiveram dificuldade em defender-se “capazmente”, como afirmam nos artigos 3º [27], 9º [28] e 10º [29] da Contestação, e com que o despacho recorrido, bem, se preocupa, com referimos logo no início: e «também assegurar um efectivo e leal contraditório, impondo-se que ao demandado seja dado a conhecer exactamente quais os factos que suportam a pretensão deduzida contra si por modo a que este possa construir a sua defesa».
Não nos parece que os réus não entendam o fundamento do pedido da autora, a ponto de se verem impedidos ou em dificuldades de se defenderem. O que os réus realmente fazem é alegar a inegável deficiência da P.i.. Mas, depois, vão mostrando que sabem do que se trata, inclusivamente, comparando o que se pede aqui com o que se pediu noutras acções entre as mesmas partes, de tal maneira que a autora pôde replicar dizendo que «os réus estão na posse de todas as facturas e notas de débito, relacionadas no extracto de conta» e que «os valores reclamados (na acção executiva) nada têm a ver com o crédito ora reclamado» [30]. Não vamos entrar nesta questão, porque nos é suficiente constatar que os réus não põem em causa os alegados fornecimentos, nem parte deles, nem que tenham recebido uma factura, com a data de 8 de Julho de 1999, com o nº I02153 e a referência F09879, no montante de 1.650.13 [31], nem que tenham recebido uma outra factura, com a data de 28 de Agosto de 2001, com o número e a referência F17798, no montante de 348.03 [32], nem que tenham feito um pagamento no montante de 641.95 [33], nem outra qualquer factura do documento nº 4 junto com a P.i.. Ora, se os réus se guiarem pelas referidas facturas, ficam a saber «que mercadoria foi fornecida, quando foi fornecida, por que preço foi fornecida»; e se não souberem «que letras foram aceites, quando se venciam, quando é que foram “liquidadas”, que encargos originaram, que “despesas de imposto de selo” ocorreram, porque razão esses encargos e despesas de imposto de selo são a cargo de qualquer dos réus», nem é matéria que não possa ainda ser esclarecida e, se o não for, caímos na diferença entre absolvição da instância, por ineptidão, ou absolvição do pedido por improcedência [34].
Quando a lei se preocupa com o facto dos réus serem capazes de se defenderem do alegado pelo demandante, não está a referir-se ao facto de haver ou não «petição por documentos», nem se o «o documento de nº 4 junto à P.I. é da responsabilidade e autoria da própria autora» [35] ou qual o valor probatório desse documento [36]. Interessa, sim, que os réus tenham dito: «tal documento cuja veracidade e exactidão expressamente se impugna, ...» [37], o que obriga a averiguar se os fornecimentos constantes das facturas referidas na “conta corrente” existiram ou não, na qualidade e na quantidade nelas constantes.
Portanto, não nos parece que a dificuldade de defesa seja real.
7.7. Desta última parte, para além de afastarmos o perigo de que os réus não percebam a petição, não se podendo defender, também afastamos as duas preocupações do despacho recorrido - definição dos poderes do juiz e fixação dos limites do caso julgado -, na medida em que, como se viu, com o recurso a elementos referidos na P.i., se pode saber entre quem, o quê, quando e quanto.
7.8. Antes de terminarmos, tirando a conclusão sobre o que vimos dizendo, faremos uma última reflexão sobre o tipo de petições como a deste processo.
7.8.1. Sem esquecer que a forma por que se alegou não é correcta, como já referimos, até com a ajuda de outra jurisprudência, também é justo que se diga que, nestas situações de venda de material, com fornecimentos periódicos, semanais, ou mesmo mensais, durante anos, não é fácil, do ponto de vista material, transcrever para o articulado todos esses fornecimentos, ou seja, pegar na “conta corrente” e objectivar cada um dos seus lançamentos, de forma a que o tribunal acompanhe pormenorizadamente os fornecimentos efectuados que, naquele instrumento contabilístico, estão relativamente codificados e, sobretudo, remetidos, na medida em que cada lançamento corresponde a elementos pormenorizados que constam de outros instrumentos contabilísticos [38]; a conta corrente é um instrumento de registo dos movimentos, a crédito, a débito e respectivo saldo [39].
Ora, esta dificuldade material, não só para quem teria de escrever todos os referidos elementos de cada um das vendas, mas também para quem tivesse de os ler, dada a sua extensão e natureza repetitiva, não é muito fácil de solucionar na medida em que esta depende de cada caso concreto e das respectivas vicissitudes:
a) o comprador demandado aceita os fornecimentos ou impugna-os de uma forma geral - nunca tive negócios com ele, não o conheço, etc. -, de tal maneira que não seja necessário estar a analisar um a um – é trabalho inútil fazer uma exposição analítica, uma vez que a prova não vai chegar a cada um dos fornecimentos; se, porventura chegar aí, o demandante poderá sofrer consequências pela não concretização de cada uma das vendas;
b) o comprador demandado aceita uns fornecimentos e rejeita, total ou parcialmente, outros – necessário se torna discriminar os que estão em discussão, mas continuando a ser inútil ir além disso;
c) o comprador impugna genericamente os fornecimentos, como é o caso dos ora réus – tem mesmo que se discriminar cada fornecimento e, neste caso, explicar cada uma das despesas e respectivos montantes.
Quando se intenta a acção, pode não ser fácil prever o seu desenvolvimento, neste aspecto. E acontece, muitas vezes, que, ao elaborar-se a sentença, faltam elementos que, não sendo em si muito importante no esquema geral do litígio, acabam por ser imprescindíveis para definir o objecto da condenação, quantificando-a, como se referiu no despacho recorrido. Por isso, os Autores, a propósito da ineptidão da petição inicial, fazem sempre a distinção entre essa figura, a da petição deficiente e a improcedência do pedido [40].
Este problema punha-se com mais acuidade na altura em que havia, ou quando houver [41] despacho liminar.
Hoje, fazendo-se uma avaliação do processo no final dos articulados, inclusivamente com a colaboração das próprias partes, o problema terá a solução mais facilitada.
7.8.2. Na verdade, a nova lei adjectiva contém mais e melhores condições para solucionar a questão acabada de referir. São mais as oportunidades para corrigir e/ou completar os articulados, quer em número de vezes - no despacho pré-saneador [42] e na audiência preliminar [43] -, quer na amplitude dos respectivos poderes-deveres [44], quer em fundamentos - porque, fazê-lo, está de acordo com o princípio da cooperação [45], com vista à justa composição do litígio [46], cujo espaço ideal para a sua concretização é a audiência preliminar [47], e de acordo com o princípio da primazia da realização do direito material -.
Abrantes Geraldes insiste na necessidade de uma mudança de cultura jurídica para se poderem concretizar as alterações legislativas. Permitimo-nos transcrever uma passagem que nos parece elucidativa: «o realce dado a este princípio corresponde, nas intenções do legislador, à introdução de uma nova cultura judiciária que potencie o diálogo franco entre todos os sujeitos processuais, ....» [48]. Parece-nos que o nosso caso é bem ilustrativo desta problemática. Considerando que: a) o demandante não sabe qual a posição que o demandado vai tomar; b) tem dificuldades materiais em verter para o articulado todas as transacções, não sabendo da utilidade de o fazer; c) não é sua intenção transferir para o magistrado todo o trabalho material que para si é difícil; d) face ao conta corrente e à posição que o réu sobre cada um dos lançamentos tomar, os momentos previstos na lei para clarificação do objecto da lide e o espírito com que ela os prevê, acabados os articulados, há boas condições para clarificar o que não o está suficientemente. Pode mesmo acontecer que essa clarificação fique completa com o debate sobre a matéria alegada, uma vez que, pela sua natureza, ela depende muito de contas, do confronto com documentação e outros esclarecimentos contabilísticos, podendo acontecer que a posterior prova testemunhal se limite a complementar algo que já ficou bastante definido [49] [50].
Face à natureza da controvérsia que se gera neste tipo de acções, poderia bem acontecer que um observador exterior ao mundo jurídico comentasse que o legislador, ao prever os mecanismos processuais atrás referidos, se tinha inspirado neste tipo de acções.
7.9. Sendo assim, concluímos que a petição não é inepta, na medida em que se percebe com clareza qual o fundamento do pedido, mas, está deficientemente elaborada, na medida em que os elementos respectivos não estão suficientemente discriminados, o que poderá ser feito de diversas maneira:
a) convidando-se a autora a transcrever para nova petição cada um dos fornecimentos que estão referidos no “conta corrente” junto com a P.i., bem como reportar as despesas e indicar o modo como elas se calcularam.
b) promover um debate sobre a matéria de facto com a finalidade de clarificar a matéria sobre a qual irá recair a prova.
III – Decisão.
Nestes termos, concedem provimento ao agravo, pelo que revogam o despacho recorrido e determinam que o Exmo. Juiz a quo prossiga com o processo de forma a suprir a deficiência da petição inicial.
Custas pelo vencido a final.
4 de Maio de 2004.

----------------------------------------------

[1] - “Temas da Reforma do Processo Civil”, I, p. 191, Liv. Almedina, 1997.
[2] - Apelação nº 829/94, em www.tre.pt.
[3] - Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, 1982, vol. II, pág. 219.
[4] - Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 1945, vol. 2º, pág. 372, anotação ao artigo 193º.
[5] - Direito Processual Civil, Apontamentos das Lições, 1978/79, A.A.F.D.U.L., vol. III, pág. 47.
[6] - Dr. José Gualberto Sá Carneiro.
[7] - obra e volume citados, pág. 371 e 372, nota nº 1. O Acórdão está publicado na referida Revista, ano 46º - 1927 a 1928, Nºs. 1081 a 1104, pág. 205; a data do Acórdão é 30 de Novembro, e não a que consta da impressão da obra de A. Reis, 30 de Janeiro.
[8] - «não podemos acatar êste julgado. Embora não conheçamos o processo onde êle foi proferido, o relatório do acórdão é suficiente para se concluir que da petição inicial se depreendia perfeitamente qual o pedido e o fundamento da acção. Não podia, consequëntemente, a petição ser declarada inepta - ... .A ineptidão da petição inicial constitui uma nulidade que só em casos excepcionalíssimos pode julgar-se verificada, como neste jornal já temos dito – vide o ano 43º, pág. 23, e ano 46º, pág. 46. se o autor pedia o preço das fazendas vendidas – sabia-se que o pedido era êsse preço e o fundamento do pedido o contrato de compra e venda a que a acção se referia. O réu podia exigir que o autor apresentasse uma conta detalhada, podia mesmo pedir exame à sua própria escrita ou à do autor. Mais: pelo artigo 28º, nº 2 do decreto nº 12.353, o juiz devia ordenar que o autor completasse e esclarecesse a sua alegação, se entendia que ela era deficiente. É inadmissível que se alimente o ânimo chicaneiro de maus pagadores com anulações de processos que só redundam em benefício de devedores remissos e em desprestígio da justiça» (Revista dos Tribunais, ano 46º, págs. 205, 2ª col. e 206, 1ª col.).
[9] - local citado na nota nº 13. No Relatório do Acórdão, diz-se que « ... lançou o juiz o seu despacho, em que, apreciando a argüida nulidade, ..., e considerando que a conta de fls. 3 nada esclarece quanto a datas, qualidade e natureza e outras circunstâncias, que possam ser apreciadas pelo réu quanto ao débito que a autora dêle reclama, ...» (R.T., ano 46º, pág. 205, 1ª col.); ora, conforme veremos adiante, no nosso caso, a conta corrente, permite identificar alguns destes elementos, directa e indirectamente (cf. nota nº 28).
[10] - Jurisprudência dos Tribunais, 11º, pág. 238.
[11] - obra e volume citados, pág. 69.
[12] - cf. A. Abrantes Geraldes: «não era e continua a não ser fácil demarcar com nitidez as petições que mereciam à partida a rejeição, daquelas que, embora defeituosas ou incorrectamente formuladas, apenas poderiam ser objecto de m despacho de aperfeiçoamento» (Temas, I, 242).
[13] - por exemplo, o Ac. do STJ, de 12 de Março de 1963: «não é inepta, por desconhecimento da causa de pedir, a petição inicial em que se pede o pagamento de determinada quantia proveniente de vendas, contabilizadas em forma de conta corrente, de mercadorias e outros artigos: a causa de pedir é nítida, pois consiste nas referidas vendas. A falta de junção do extracto da conta corrente apenas pode comprometer o êxito do pedido» (sumário, no BMJ 125º, 405). Os Acórdãos da Relação do Porto, citados pela recorrente: de 12/11/96 («não é inepta uma petição inicial em que o Autor pede a condenação do Réu pelo custo de fornecimentos, acordados entre ambos, que lhe fez e bem assim das despesas bancárias e encargos de diferimento originados por pagamentos por letras e cheques, com reformas e devoluções, que o Réu se obrigou a pagar, tudo lançado em conta corrente gráfica que é junta e dada por reproduzida; mesmo que tal petição pecasse por ininteligibilidade ou deficiência da causa de pedir, o seu vício traduzir-se-ia na inconcludência com o efeito da improcedência, sendo que, em qualquer desses casos, mostrando-se pela contestação que o Réu entendeu claramente os factos invocados pelo Autor para fundamentar o pedido, seria irrelevante o vício» - ponto I do respectivo sumário); de 15/04/93 («pelo autor identificada a sua actividade negocial, bem como os negócios que celebrou com o réu, e referida a manutenção de determinadas relações comerciais recíprocas, que descreve, escrituradas em sistema de conta corrente, cujo saldo, devidamente documentado e demonstrado reclama, não ocorre ineptidão da petição inicial por falta de ininteligibilidade da causa de pedir, nem contradição entre esta e o pedido. Entre comerciantes é dispensável a especificação das mercadorias compradas e vendidas, já que o extracto de conta corrente indica, em concreto, ainda que por forma indirecta, as facturas correspondentes, assim tendo as partes a possibilidade de controlar as transacções» - pontos II e III do respectivo sumário -); de 1/02/93: «não é inepta por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir a petição inicial em que se indica o tipo de actividade que o autor exerce, e se alega que, no exercício dessa actividade, prestou vários serviços ao réu e que desses serviços resultou ter este de pagar ao autor várias importâncias em dinheiro, o que só parcialmente fez, ficando a dever-lhe a quantia que constitui o saldo devedor constante da escrita comercial do autor, conforme conta corrente junta àquele articulado e que o completa, discriminando as facturas e as remessas de numerário ou cheques» (ponto I do respectivo sumário). E o Ac. do STJ, de 8 de Novembro de 1966, no BMJ 161º, 346.
[14] - os artigos 11º e 12º têm a ver com alegado reconhecimento da dívida por parte da 1ª ré; os restantes artigos têm a ver com a legitimidade material dos restantes réus.
[15] - CJ XIV, 1, 142, 1ª col., nº 9. O sublinhado é nosso.
[16] - artigo 16º da Contestação.
[17] - artigo 5º da Contestação.
[18] - artigo 8º da Contestação.
[19] - CJ IX, 2, 129, 2º col. 7º §.
[20] - 2ª col. , nº 2.
[21] - 2ª col. 2º §, do nº2.
[22] - pág. 130, 1ª col., 5º §. Os sublinhados são nossos.
[23] - nota 1 de pág. 371, referida já.
[24] - cf. o 2º § do nº 7.4..
[25] - Anselmo de Castro, obra e volume citados, pág. 220.
[26] - por exemplo, entre muitos outros, o Ac. do STJ, de 8 de Fevereiro de 1973, no BMJ 224º, 171; e os Acórdãos do STJ, citados pela recorrente: de 06/07/93 («não existe ineptidão se o réu na contestação interpreta correctamente a petição inicial» - ponto I do respectivo sumário) e de 26/02/91 («se o arguido, arguindo, embora, o vicio de ineptidão de petição inicial, contestar e se verificar, ouvido o autor, o entendimento conveniente da petição, pelas mesmas razões do aproveitamento da lide, fica sanada a nulidade (ponto I do respectivo sumário, ambos em www.dgsi.pt).
[27] - «não se sabe contudo que mercadoria foi fornecida, quando foi fornecida, por que preço foi fornecida, que letras foram aceites, quando se venciam, quando é que foram "liquidadas", que encargos originaram, que “despesas de imposto de selo” ocorreram, porque razão esses encargos e despesas de imposto de selo são a cargo de qualquer dos réus, etc., etc., etc..».
[28] - «é verdade o genericamente alegado no artigo 5º da P.I., sem que contudo qualquer dos réus possa pronunciar-se quanto a factos concretos, a vendas concretas, por não saber a quais a autora se reporta».
[29] - «desconhecem as rés ... a que parte da mercadoria as mesmas (as letras) se referem, qual a data dos respectivos vencimentos e uai e quando é que não foram liquidadas».
[30] - artigo 14º da Réplica.
[31] - 1ª parcela do “conta corrente” a fls. 18, que constitui o documento nº 4 junto com a P.i..
[32] - última factura de fls. 45, do referido documento.
[33] - lançamento seguinte ao anterior.
[34] - a propósito desta questão, no Relatório do já referido Acórdão do STJ, de 12 de Março de 1963, diz-se o seguinte: «todavia, porque estranhou que os réus recorrentes se tivessem abstido de reagir contra a veracidade do duplicado do extracto de conta junto com a réplica, que lhes indicava com toda a clareza a posição da sua conta corrente, ...» (BMJ 125º, 406, último §). Não se diga que os aqui réus impugnam a veracidade e exactidão do documento (art. 19º da Contestação), porque se trata de uma posição formal, no sentido de fazer recair o ónus de prova sobre a autora, porque, para o efeito aqui focado, o que interessa é a afirmação dos réus de que não podem «pronunciar-se quanto a factos concretos, a vendas concretas, por não saber a quais a autora se reporta» (art. 9º da Cont.). Ora, são as vendas constantes do conta corrente, com datas e preços referidos.
[35] - artigo 13º da Contestação.
[36] - artigo 20º da Contestação.
[37] - artigo 19º da Contestação.
[38] - Diz-se no Acórdão da Relação de Évora, citado no despacho recorrido, que «uma das vantagens da conta corrente é justamente simplificar a liquidação dos créditos que irão surgindo no desenvolvimento da actividade comercial».
[39] - Alberto dos Reis, Processos Especiais, Coimbra Editora, 1982, vol. I, pág. 315.
[40] - Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 1945, vol. 2º, pág. 374, anotação ao artigo 193º. Castro Mendes, III, 48.
[41] - artigo 234º, nº 4, do CPC; RLJ 130º, 194.
[42] - artigo 508º, nº 1, al. b), e nº 3, do CPC; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 302.
[43] - artigo 508º-A, nº 1, als. c) - delimitação e suprimento - e e) - selecção da matéria de facto-. Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, pág. 309 e 310.
[44] - Antunes Varela, na RLJ 130º, 198, 1ª col..
[45] - artigo 266º do CPC.
[46] - A. Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 78.
[47] - A. Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 79. No mesmo sentido, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, 1999, pág. 214, anot. ao artigo 266º.
[48] - obra citada, pág. 78.
[49] - embora não se discorde da crítica que Antunes Varela faz à supressão do exame liminar da P.i. - que estava previsto nos artigos474º e 477º do CPC, anteriormente à sua reforma -, parece que, neste caso, não há desvantagens na supressão «da apreciação gradual das irregularidades possíveis da petição» (RLJ 130º, pág. 136, 2ª col., e pág. 197, 2ª col.), porque as questões que se suscitam têm de ser apreciadas em conjunto e unitariamente.
[50] - aqui, bem poderíamos voltar a escrever toda a nota nº 14.