Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
986/08.7TXCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CALVÁRIO ANTUNES
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
PRISÃO POR DIAS LIVRES
Data do Acordão: 11/11/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DE PENAS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 61º CP
Sumário: O disposto no artº 61º do Código Penal e o regime da liberdade condicional não se aplica às penas cumpridas de forma não contínua, mormente à pena de prisão por dias livres.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
1. No processo supra identificado, foi julgado o arguido, A..., solteiro, vendedor, residente em Q… e actualmente detido no Estabelecimento Prisional Regional da Guarda
imputando-lhe a prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário p. e p. no artigo 347° do Código Penal e de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. no artigo 3° nºs 1 e 2 do DL 2/98.
Após a realização do julgamento, o tribunal de primeira instância, decidiu:
- Absolver o arguido A... da prática de dois crimes de resistência e coação sobre funcionário p. e p. no artigo 347º do CP, pelos quais vinha acusado.
- Condenar o arguido A... pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. no artigo 3° nºs 1 e 2 do DL 2/98 na pena de 11 (onze) meses de prisão, que cumpridos em dias livres, correspondem a 66 períodos (fins-de-semana).

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2. Após promoção do M.P. a Juíza do Tribunal de Execução das Penas de Coimbra proferiu o despacho de fls. 42, onde negou a apreciação da liberdade condicional ao arguido.
Inconformado, veio o Ministério Público interpor recurso do despacho que negou a apreciação da liberdade condicional ao arguido, extraindo as seguintes conclusões:
1.Antes da última revisão do CPP apenas a prisão carcerária podia ultrapassar os seis meses
2. O regime de semi-detenção ou prisão por dias livres não podia ter duração superior a seis meses.
3. Não existia a pena de prisão domiciliária, cuja duração máxima pode ser superior a seis meses.
4. A todas as formas de cumprimento de pena de prisão com uma duração superior a seis meses, tem de se aplicar o instituto da liberdade condicional.
5. Não se vê a razão de ser de distinguir as diversas formas de cumprimento da pena de prisão para se concluir que apenas à prisão carcerária se aplica o instituto da liberdade condicional.
6. Aquilo que no espírito da lei releva é a privação drástica do bem jurídico que é a liberdade, não apenas que esta privação resulte da cadeia cumprida de forma contínua.
7. Foram violadas as normas dos artigos 61º e do Código Penal e 484º do Código do Processo Penal.
Termos em que, com os do douto suprimento de V.Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente e o douto despacho recorrido revogado, ordenando-se a apreciação da libertação condicional do recluso, pois assim é de DIREITO e só assim se fará JUSTIÇA!

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3. Notificado da interposição do recurso, o condenado apresentou a resposta de fls. 71/75, apresentando as seguintes conclusões:

“1°- A reforma legislativa de 2007 alterou o regime da prisão por dias livres, sendo, actualmente, aplicável em substituição de penas de prisão até um ano e sempre que ao caso concreto não deva ser aplicada pena de multa por se constatar que não estão devidamente acauteladas razões de prevenção geral.
2°_ Com tal alteração legislativa a prisão por dias livres sempre ultrapassará os limites formais para concessão de Liberdade Condicional.
3°_ A prisão por dias livres, muito embora seja uma pena substitutiva, é ainda, na sua génese, uma pena detentiva, castradora da liberdade, e à qual são associadas as mesmas conotações de severidade que estão associadas à prisão contínua.
4°_ A não apreciação de Liberdade Condicional nas penas de prisão por dias livres constitui uma subversão do sistema penal, pois pela substituição o condenado é prejudicado no cumprimento da mesma, uma vez que a sua execução se prolonga por um maior lapso de tempo do que a prisão contínua.
5°_ Ao negar a apreciação de Liberdade Condicional viola-se o princípio da "reformatio in pejus" pois, o arguido deixa de poder beneficiar de um instituto penal, legalmente consagrado e historicamente enraizado, do qual poderia usufruir caso a sua pena de prisão contínua não tivesse sido substituída.
6°_ Com a alteração legislativa de 2007 a pena de prisão evoluiu "do paradigma clássico do século XIX para novas formas" que podem, agora, ter duração superior a 6 meses, devendo, a todas elas ser aplicado o instituto da Liberdade Condicional, cumpridos que estejam os seus fundamentos e porque este instituto não pode já, nos tempos que correm, funcionar nos exactos termos em que foi historicamente concebido.
7°_ Violadas ficarão pois as normas constantes dos artigos 61° do C.P., 484° do C.P.P. e 27°, nº.5 da C.R.P.

Termos em que, e aderindo às doutas conclusões da Exma. Sra. Procuradora Adjunta do Ministério Público, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ordenar-se a apreciação liberdade condicional do recluso, assim se fazendo, aliás, como sempre,
JUSTIÇA! ”

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4 - A Srª Juiz do T.E.P. admitiu o recurso e manteve a decisão, proferindo o despacho de sustentação que se segue, por transcrição:

DESPACHO NOS TERMOS E PARA OS EFEITOS DO DISPOSTO NO ARTIGO 414º N° 4 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL:
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Recurso de folhas 44 e seguintes:
Antes de sustentar a decisão recorrida, cumpre tecer algumas considerações, para melhor esclarecimento da matéria em causa.
Assim, e dispensando-nos de aqui tecer considerações acerca dos termos e modo com a Ilustre recorrente se vem pronunciando a respeito da minha postura e pratica processual, com afirmações despidas de contexto e citando acórdãos de matéria diversa, imputando-me "incompetências e ignorâncias" que mantém, mesmo após confirmação por essa Veneranda Relação, da quase totalidade das minhas decisões, passo ao que realmente aqui importa:
Nos presentes autos encontra-se o arguido a cumprir pena, em regime de prisão por dias livres.
Assim e entendendo de acordo com as normas vigentes em tal matéria, que tal regime não é susceptível de execução por parte do TEP, (vd. artigos 487º e 488º, ambos do Código Penal) logo, não se lhe aplica o instituto da Liberdade Condicional, determinámos, nos termos do despacho de folhas 42, que se aguardasse a eventual revogação do citado regime, (cuja, implica o cumprimento, do tempo em falta, em prisão contínua, com a competente emissão, pelo Tribunal da condenação dos necessários mandados de captura), e, nada se alterando, desde logo determinámos o oportuno arquivamento dos autos.
Notificada a Ilustre magistrada do Ministério Público, logo interpôs o presente recurso, nos termos melhor constantes de folhas 44 e seguintes.
Entre outras coisas, convoca a máxima latina ubi lex non distinguit, nos distinguire non debemos. Porém, tal brocardo pressupõe, identidade ou paridade das realidades ponderadas, o que, com o devido respeito por opinião contrária, não é o caso em apreço.
Senão vejamos:
Desde logo a sistematização feita no Código Penal e Processual Penal;
Por outro lado e ainda que assim se não entendesse, o facto do arguido só se encontrar no estabelecimento Prisional aos fins de semana, altura em que lá se não encontram Técnicos dos Serviços de Educação e Ensino, nem o Director, para o acompanhamento e elaboração de Plano de integração social, o que impede também que nos seja fornecido o Relatório e Parecer, imprescindíveis à apreciação da liberdade Condicional - vd. artigo 484° do CPP-;
Anote-se ainda, que o arguido não foi conduzido ao Estabelecimento Prisional na situação de detido, mas ali se apresentou e dali se ausenta sempre, pelo seu próprio pé, - "Não são passados mandados de condução, nem de libertação", vd. artigo 488° nº2 do CPP -, não podendo libertar-se quem não está preso, aliás, a liberdade condicional, seria de certa forma, mais gravosa do que a situação em que se encontra, pois, se por um lado não iria para o EP aos fins de semana, já no período em falta para o fim da pena, teria obrigações várias, a condicionar-lhe a liberdade;
Referimos ainda a jurisprudência, constante do acórdão da relação do Porto, proferido no recurso nº. 7119/08, no processo nº. 1852/07.9TXPPRT-A, de14/11/08, onde se pode ler " o facto do legislador, atenta a sistematização feita no CP e no CPP., das penas de prisão e de substituição da pena de prisão e da execução de cada uma delas, respectivamente, ter deixado claro, que o instituto da liberdade condicional, só está previsto para as penas de prisão, que não sejam prisão por dias livres, e em regime de semidetenção ou de permanência na habitação, pois para estas estabeleceu um regime específico de execução, e que as penas aplicadas ao abrigo desses regimes só passam, em termos de execução, para o regime previsto para as penas de prisão, se o tribunal, depois de ouvido o condenado e de proceder às diligências necessárias, não considerar a falta justificada ao cumprimento desses regimes (artigo 488° do CPP), ou considerar que o condenado praticou condutas integradoras das situações referidas nas alíneas a) e b), do nº.3 do artigo 44 do CP, e, por causa disso revogar aqueles regimes e condenar os infractores a cumprira pena em regime contínuo em Estabelecimento Prisional".
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Porém, Vossas Excelências melhor ajuizarão. ”.
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5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, no douto parecer que emitiu, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.
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6. Notificado, nos termos e para os efeitos consignados no artº 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, o arguido não se pronunciou.
Foram colhidos os vistos legais.
Realizou-se a conferência, com observância do formalismo legal, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
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II. Fundamentação.
1. Delimitação dos poderes cognitivos do tribunal ad quem e objecto do recurso:
É hoje entendimento pacífico que as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Por isso, temos, como

Questões a decidir:

A questão colocada no recurso consiste em saber se o disposto no artº 61º do Código Penal e o regime da liberdade condicional se aplica às penas cumpridas de forma não contínua, mormente à pena de prisão por dias livres.

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2. Elementos relevantes para o recurso
Para a apreciar da questão colocada, importa reter os seguintes elementos:
i. Nestes autos, foi decidido condenar o arguido A... pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. no artigo 3° nºs 1 e 2 do DL 2/98 na pena de 11 (onze) meses de prisão, que cumpridos em dias livres, correspondem a 66 períodos (fins-de-semana).
ii. Após vista de 4/8/2008, foi proferido o despacho de 28/06/2009, foi liquidada a pena em 66 (sessenta e seis) períodos correspondentes a um fim-de-semana, com termo em 15/11/2009.
iii. Em 01/10/2008 foi proferido o despacho recorrido, com o seguinte teor:
“Aguarde eventual revogação do regime em que o arguido se encontra e, nada se alterando, oportunamente, arquive. DN.”
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3. APRECIANDO

Cumpre-nos agora, entrar na apreciação dos fundamentos do recurso. Diremos, desde já, que, salvo o devido respeito por opinião diversa, entendemos que estamos perante recurso sem razões para proceder.
Isto porque a argumentação apresentada pela magistrada recorrente reduz-se à consideração de que também a prisão por dias livres pode ter duração superior a seis meses e à identidade da situação dos presentes autos com aquela em que o arguido cumpre a pena em regime de permanência na habitação. Para tanto, aponta a regra de interpretação de que onde a lei não faz distinção, também o intérprete a não deve fazer. Contudo, teremos de concluir que não existe igualdade de situações, vistas à luz da teleologia da liberdade condicional. Na verdade, o instituto da liberdade condicional foi introduzido no nosso ordenamento jurídico por legislação de 1893, então com natureza graciosa, com o sentido de benefício ou prémio aos condenados, a título de estímulo e recompensa pela boa conduta na prisão e assim subsistiu até ao Código Penal de 1982. Passou então a inscrever-se na finalidade de ressocialização da intervenção penal, como emerge do seguinte passo do preâmbulo: “Definitivamente ultrapassada a sua compreensão coma medida de clemência ou de recompensa por boa conduta, a liberdade condicional serve, na política do Código, um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão”.
È certo que se poderá questionar da aplicabilidade ou não do regime da liberdade condicional ao regime de cumprimento de pena em regime de permanência na habitação, uma vez que nessas situações se verifica um afastamento do convívio social regular durante toda a sua duração, podendo então argumentar-se que existe analogia com a prisão efectiva de duração superior a seis meses.
Contudo, entendemos que, na pena de prisão por dias livres o mesmo não acontece. O condenado vê quase normais as condições de interacção social, com destaque para a permanência do contacto familiar e dos vínculos laborais, pois que apenas cumpre a pena com deslocações para a prisão aos fins-de-semana. Assim, numa perspectiva de prevenção especial positiva, finalidade em que assenta o instituto da liberdade condicional, não existem aqui os perigos de diminuição de capacidades na interacção social que justificam estabelecer um período de transição regulada entre a prisão e a liberdade, nem existe propriedade em desenvolver juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do delinquente em liberdade. Afinal, essa liberdade acontece regularmente durante todos os dias de semana que decorrem entre os períodos de reclusão. Não tem consequentemente o arguido necessidade de se adaptar á situação de liberdade, pois que o seu dia a dia é dominantemente de liberdade, a qual só está limitada ao fim de semana.
Até porque, entendemos que, contrariamente ao defendido pela recorrente, a pena de prisão por dias livres constitui verdadeira pena de substituição, e não apenas uma forma de cumprimento de pena de prisão (contínua), orientada exactamente por evitar as consequências criminógenas daquela, incorporando já na apreciação dos seus pressupostos os propósitos político-criminais que regem a liberdade condicional.
Nem se diga que o legislador pode ter ido longe demais quando admite que a pena da prisão por dias livres decorra por mais de um ano, podendo-se questionar se ainda é compatível com os propósitos político-criminais originários e não gera os mesmos efeitos criminógenos da pena curta de prisão. Até porque parece-nos que essa ponderação deve ser feita no momento da escolha por essa pena de substituição detentiva, em que se atende à solidez da inserção socioprofissional a preservar e à capacitação do condenado para suportar aquela pena de substituição sem desestruturar a sua vida.
Acrescentaremos ainda que o legislador faz equivaler o período máximo de quarenta e oito horas a cinco dias de prisão contínua, o que significa que essa maior severidade da prisão por dias livres já encontra tradução na redução da reclusão, ajudando a tornar clara a ausência de identidade normativa entre o cumprimento continuado de seis meses de privação de liberdade e a prisão por dias livres durante igual período.
Como se sabe, o instituto da liberdade condicional destina-se a proporcionar uma cautelosa fase de transição entre uma longa prisão e a plena liberdade, mas sem que o Estado largue inteiramente mão do condenado, o que pode representar para este, em vez de beneficio, um pesado e duradouro encargo e tem de obedecer, além do mais, a um fundado juízo de que o agente no futuro mostra capacidade de se readaptar à vida social e vontade séria de o fazer ou que conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes. Ou seja, a liberdade condicional será uma preparação para a liberdade.
Ora tal situação já se verifica quando o arguido está a cumprir prisão por dias livres, pois o mesmo desloca-se só para e da prisão e faz a sua vida normal durante o maior período da semana.
Por tudo isso, entendemos, que o condenado A..., a quem foi imposta uma pena de prisão por dias livres, não deve/pode beneficiar de liberdade condicional e que o recurso deve ser improcedente (Neste sentido, vidé Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28-01-2009, Processo: 0817119, Relator: PAULO VALÉRIO, in www.dgsi.pt.

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III – Decisão.

Face ao exposto, acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, negar provimento ao recurso interposto pelo arguido Ministério Publico, mantendo, na íntegra, a decisão recorrida.
Sem custas.

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(Processado e revisto, pelo relator, o primeiro signatário)

Coimbra,


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Calvário Antunes


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Mouraz Lopes