Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
614/09.3GAALB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
RECUSA ILEGÍTIMA
Data do Acordão: 11/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - ÁGUEDA - JIC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: RECUSA ILEGÍTIMA
Legislação Nacional: ARTIGOS78, N.º 1 E 79º DO REGIME GERAL DAS INSTITUIÇÕES DE CRÉDITO E SOCIEDADES FINANCEIRAS
Sumário: 1.- Com a nova redacção dada pela Lei nº 36/2010 de 02.09 ao artigo 79.º do D. L. n.º 298/92, de 31 de Dezembro, passou a haver um dever genérico de colaboração das Instituições Bancárias com as autoridades judiciárias, no âmbito de uma investigação em processo penal, deixando por isso de haver necessidade de recorrer previamente ao incidente de quebra de sigilo.
2.- Consagrou-se desse modo por via legislativa aquilo que os tribunais superiores vinham decidindo uniformemente: no conflito entre a privacidade de natureza económica (aquela que o sigilo bancário protege) e as necessidades de realização da justiça, em processo penal, com as garantias inerentes ao Estado de Direito, devem prevalecer estas últimas.
Decisão Texto Integral: Investiga-se nos autos a queixa apresentada por A..., contra desconhecidos, por, na sua ausência e contra a sua vontade, terem quebrado o vidro da porta da frente da sua viatura automóvel de matrícula 27-80-BU, para aceder ao interior, de onde retiraram e levaram diversos objectos, melhor relacionados a fls. 3 e verso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, entre os quais um telemóvel, no valor total não inferior a 490€. A situação descrita é susceptível de integrar a prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 203º nº 1 e 204º nº 1 al. b), ambos do Código Penal, punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
Decorre da informação de fls. 24 dos autos que o telemóvel subtraído, propriedade da queixosa, esteve associado ao cartão nº …, desde o dia da sua subtracção (09-10-2009) até ao dia 12-10-2009 e esteve ainda associado ao cartão nº … no dia 11-10-2009. Decorre ainda da informação de fls. 39 que o telemóvel subtraído esteve ainda associado ao cartão nº …, no dia 04-02-2010.
Por outro lado, apesar das diligências efectuadas, desconhece-se a titularidade dos aludidos números de telemóveis, tal como decorre de fls. 24 e 39.
Decorre igualmente das diligências probatórias realizadas que nos referidos cartões foram efectuados carregamentos, através do Sistema Multibanco, a saber:
- para o nº …, no dia 03-10-2010: - para o nº …, nos dias 03-10-2009 e 07-11-2009; e - para o nº … no dia 24-02-2010 – cfr. fls. 25 e 26 e 41.

Em face dos referidos elementos de prova indiciária recolhidos, foi solicitado à CGD que fornecesse os elementos identificativos das contas bancárias associadas aos carregamentos dos telemóveis mencionados, porquanto, existem fortes suspeitas de que tais carregamentos foram efectuados pelos autores do crime indiciado ou por quem lhes tenha adquirido o telemóvel. O que constitui o ú nico meio possível de chegar á identificação dos autores do crime.
A Caixa Geral de Depósitos recusou prestar tal informação solicitada, escudando-se no dever de sigilo bancário – cfr. fls. 14 dos presentes autos.
Face á aludida recusa foi instada a esclarecer os fundamentos dessa recusa, tendo em vista nomeadamente a redacção dada pela Lei 36/2010 de 02.09 ao art. 78º n.º2 d) do RGICSF. Perante o que a Caixa manteve a recusa, escudada em parecer jurídico (fls. 17 a 24) no qual se sustenta , em suma, que se mantém inalterado o regime processual da quebra do sigilo que vigorava antes da entrada em vigor da Lei 32/2010.
A recusa foi considerada legítima pela Mª J.I.C. que suscitou o incidente de quebra do sigilo perante este Tribunal da Relação.
Cumpre decidir.
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Dispõe o artigo 78º do D. L. n.º 298/92, de 31 de Dezembro, que aprovou o Regime Geral de Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF):
1. Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou à relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
2. Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósitos e seus movimentos e outras operações bancárias. (…)

Por outro lado, prevendo excepções ao aludido regime, postula o mesmo RGIGSF, no seu artigo 79º - na redacção introduzida pela Lei nº 36/2010 de 02.09:
Artigo 79º
Excepções ao dever de segredo
1 - Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição.
2 - Fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados:
a) Ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições;
b) À Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições; (…)
d) Às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal;
e) À administração tributária, no âmbito das suas atribuições;
f) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.
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Na redacção anterior à Lei nº 36/2010 de 02.09, a alínea d), relativa ao dever de colaboração dom os tribunais, postulava:
(…)
“d) Nos termos previstos na lei processual penal”.
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Até à publicação e entrada em vigor da Lei 36/2010 de 02.09 não existia disposição legal que previsse, de forma genérica, o dever de colaboração dos bancos, sobre quem impende o dever de sigilo, para com os tribunais. Existiam apenas casos específicos para os quais era prevista a dispensa, tais como no âmbito do combate à corrupção e criminalidade financeira (art. 9º da Lei 11/2004 de 27.03, art. 1º n.º1 da Lei 5/2002 de 11.01); no âmbito do crime de tráfico de estupefacientes (art.60º do DL 15/93 de 22.01); ou no crime de emissão de cheque sem provisão (art. 13º -A do DL 454/91).
Fora dos casos previstos de forma expressa na lei a quebra do sigilo processava-se “nos termos previstos na lei processual penal”.
O mesmo é dizer, no artigo 135º do Código de Processo Penal, relativo ao “Segredo Profissional”.
Esta perspectiva foi alterada, como já se antecipou, com a publicação da Lei 36/2010 de 02.09. Lei que se enquadra na sequência e no sentido de outras alterações legislativas que apontam no mesmo caminho, da quebra, no Estado de Direito, da blindagem do acesso, por parte de outras Instituições Públicas, a dados relevantes das contas bancárias – cfr. por exemplo a alteração introduzida à alínea e) do RGICSF pela Lei 94/2009, abrindo o sigilo “À administração tributária, no âmbito das suas atribuições” – redacção dada pela referida Lei .
Quer a evolução subjacente à alteração do preceito (a jurisprudência dos tribunais da relação, a quem competia decidir o incidente, era uniforme no sentido de que a realização da justiça prevalece sobre a privacidade de dados de natureza económica subjacente ao sigilo bancário) quer a letra do preceito, quer a ratio legis da alteração operada, apontam no sentido de que, com nova redacção dada pela Lei 36/2010 de 02.09 ao art. 78º n.º2 d) do RGICSF, o incidente do art. 135º do CPP deixou de ter razão de ser, no que diz respeito ao sigilo Bancário. Subordinando as Instituições de Crédito ao regime geral do dever de colaboração das Instituições Bancárias com as instituições judiciárias do Estado de Direito.
Com efeito, não está em causa a obtenção de informação para uma qualquer devassa da vida privada do titular da conta - não está em causa a divulgação de dados relativos à intimidade da vida privada ou familiar dos visados. Mas apenas dados – pressupostos na relação bancária - de natureza financeira/patrimonial.
Não fazendo os dados de natureza financeira/patrimonial, parte do conteúdo essencial do direito á reserva da vida privada os dados relativos à identificação (na qual se incluem contactos telefónicos e morada) e a apreciação a ilicitude de um determinado movimento de uma conta bancária – cfr. Capelo de Sousa, in Estudos em Homenagem ao Prof. Inocêncio Galvão Telas, Vol. II – Direito Bancário – 2002, p. 218
Conclui-se assim que, com a nova redacção dada pela Lei nº 36/2010 de 02.09 ao artigo 79.º do D. L. n.º 298/92, de 31 de Dezembro, supra reproduzida, passou a haver um dever genérico de colaboração das Instituições Bancárias com as autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal. Deixando, pois de, no âmbito do processo penal, haver necessidade de recorrer previamente ao incidente de quebra de sigilo.
No âmbito de um processo de natureza criminal – dirigido e dimensionado para a investigação da prática de actos ilícitos de natureza criminal, que tutela apenas os bens jurídicos mais relevantes e imprescindíveis à vida em sociedade – a lei basta-se agora com as garantias inerentes ao processo penal do Estado de Direito Democrático. Destituindo de vez o sigilo bancário do estádio de extra-territorialidade que lhe foi conferido na vigência do DL 2/78 de 09.01, durante a qual se considerava que o sigilo primeiro prevalecia, inexoravelmente, sobre a realização da justiça.
A alteração legislativa operada teve ainda em vista libertar os tribunais superiores do recurso sistemático a incidentes de quebra de sigilo, cujo desfecho previsível era sistematicamente o mesmo.
Aliás a posição assumida nos autos pela CGD equivale a sustentar que, “apesar da alteração legislativa” operada, tudo permanece na mesma, como se a alteração não tivesse acontecido. O que levaria á incongruência de que estaríamos perante uma alteração legislativa de todo em todo inútil.
Incongruência arredada pelo princípio geral de interpretação das leis ínsito no art. 9º, n.º3 do C. Civil.
Sendo certo que a nova redacção do preceito veio, afinal, consagrar por via legislativa aquilo que os tribunais superiores vinham decidindo uniformemente: no conflito entre a privacidade de natureza económica (aquela que o sigilo bancário protege) e as necessidades de realização da justiça, em processo penal, com as garantias inerentes ao Estado de Direito, devem prevalecer estas últimas.
No pressuposto de que no Estado de Direito, os direitos inerentes à reserva da vida privada de natureza económica são assegurados pelos Tribunais ao mesmo nível que os Bancos - repare-se que entre Bancos não existe sigilo, circulando automaticamente entre todos, via Banco de Portugal, informação privilegiada sobre dados sensíveis para o interesse da banca (crédito mal parado) sobre movimentos efectuados em todo e qualquer balcão de todo e qualquer banco.
Assim, em conclusão, surge como ilegítima a recusa de informação solicitada nos autos à CGD.
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Nestes termos julga-se ilegítima a recusa invocada nos autos pela Caixa Geral de Depósitos, devendo aquela instituição bancária fornecer os elementos solicitados. ---
Sem tributação.

Belmiro Andrade (Relator)
Abílio Ramalho