Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
717/03.8TAFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: PENA DE MULTA
QUANTITATIVO DIÁRIO
Data do Acordão: 03/11/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ.
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 40.º, 47.º, 70.º E 71.º DO C.P..
Sumário: I. - A medida da tutela dos bens jurídicos, como finalidade primacial da aplicação da pena, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime. Entre esses limites devem satisfazer-se, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.
II. - As exigências de prevenção fixam, entre aqueles limites óptimo e mínimo, uma submoldura que se inscreve na moldura abstracta correspondente ao tipo legal de crime e que é definida a partir das circunstâncias relevantes para tal efeito e encontrando na culpa uma função delimitadora do máximo da pena. Entre tais limites actuam, justamente, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, cabendo a esta determinar em último termo a medida da pena, evitando, em toda a extensão possível (...) a quebra da inserção social do agente e dando azo à sua reintegração na sociedade
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, após julgamento em processo comum singular, por sentença de 23 de Abril de 2008, foram as arguidas “…, Lda.” e …, com os sinais dos autos, condenados nos seguintes termos:

- A arguida …, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelos artigos 105.º, n.ºs 1 e 4, e 107.º, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (doravante apenas designado por RGIT), na pena de 290 (duzentos e noventa) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros);

- A sociedade arguida, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelos artigos 105.º, n.ºs 1 e 4, e 107.º, ambos do RGIT, com referência ao artigo 7.º do mesmo diploma legal, na pena de 450 (quatrocentos e cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 7,00 (sete euros).

Relativamente ao pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante civil Centro Distrital de Segurança Social de Coimbra do Instituto de Segurança Social, I.P., foram as arguidas absolvidas da instância.

2. Inconformadas com a condenação, ambas as arguidas interpuseram, conjuntamente, recurso da sentença.

Contudo, por despacho de fls. 475/477, do qual não foi interposta reclamação, o tribunal da 1.ª instância não admitiu o recurso da arguida “…, Lda.”.

A arguida … formulou na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª – A arguida … encontra-se bem inserida social e familiarmente;

2.ª – Confessou integralmente e sem reservas;

3.ª – Não tem antecedentes criminais; é, portanto, primária.

4.ª - Existe diminuto grau de ilicitude do facto, encontrando-se pagas todas as prestações à Segurança Social;

5.ª – A intensidade do dolo é baixa;

6.ª – A culpa da arguida considera-se muito reduzida;

7.ª – A não entrega das cotizações só ocorreu porque a sociedade “C…” e também arguida nos presentes autos estava com dificuldades económico-financeiras;

8.ª – Sendo que, sempre existiu um esforço em cumprir, revelado pela entrega das cotizações em alguns meses em que a crise o permitiu;

9.ª – Trata-se de um crime continuado (art. 30.º/2 CP), ao qual é aplicável o art. 79.º também do CP; todavia, e apesar da douta sentença lhe fazer referência, não o aplica, violando assim aquela disposição legal;

10.ª – Não se verifica qualquer exigência de prevenção especial;

11.ª – A exigência de prevenção geral é diminuta;

12.ª – A sociedade “…”, arguida nos autos, está desactivada desde 2001, nem voltará a laborar, pelo que não se verifica a possibilidade de eventualmente lhe vir a ser imputado qualquer outro ilícito criminal;

13.ª – A pena da arguida excede manifestamente a medida da culpa, violando a sentença recorrida os arts. 40.º e 71.º do Código Penal;

14.ª – Pena de multa menor acautela igualmente a protecção dos bens jurídicos violados e as finalidades das penas;

15.ª – Pelo que deverá a mesma ser reduzida ao mínimo legal, ou caso assim Vs. Exas. não entendam, o que só por mera hipótese de raciocínio se coloca, ser a mesma especialmente atenuada, nos termos dos arts. 72.º e 73.º do Código Penal.
3. Na resposta que apresentou ao recurso, o Magistrado do Ministério Público manifestou-se no sentido da sua improcedência.
Igual posição foi sustentada pelo Ex.mo Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação.
Notificado, nos termos e para os efeitos consignados no art.º 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, a arguida/recorrente não exerceu o seu direito de resposta.
4. Foi cumprido o disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro. Não obstante, como se colhe da informação de fls. 283, as arguidas não pagaram, no prazo legalmente fixado (90 dias), aos serviços competentes da Segurança Social, a totalidade das prestações devidas e os adicionais referidos naquela norma.
5. Colhidos os vistos legais, foi o processo a conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir.

II. Fundamentação:
1. 4. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
No caso sub judice, o recurso versa apenas matéria de direito, sustentando a arguida/recorrente que a situação configurada nos factos provados reclama a atenuação especial da pena e a fixação desta no mínimo legal.

2. No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

1. A “…, Lda.” é uma sociedade por quotas que se dedica às cofragens para a construção civil, sendo a contribuinte n.º 110.023.489 da Segurança Social, tendo a sua sede no local supra indicado.

2. A arguida … é sócia-gerente desde a constituição da sociedade.

3. Nos períodos de Janeiro a Fevereiro de 1997, Abril a Dezembro de 1997, Janeiro a Dezembro de 1998, Março, Maio, Agosto, Setembro e Dezembro de 1999, Maio e Dezembro de 2000, Fevereiro e Dezembro de 2001, a arguida ...., agindo na qualidade de sócia-gerente da sociedade arguida, entregou na instituição da Segurança Social as declarações de remunerações dos trabalhadores ao seu serviço, tendo procedido ao desconto das contribuições devidas à Segurança Social pelos referidos trabalhadores, nas remunerações efectivamente pagas aos mesmos em tais períodos, com a aplicação da taxa de 11%, descontos esses que se traduziram nos seguintes montantes:

Cotizações efectivamente retidas e não pagas:

- Janeiro de 1997 - € 764,65;

- Fevereiro de 1997 - € 725,02;

- Abril de 1997 - € 1.043,38;

- Maio de 1997 - € 831,93;

- Junho de 1997 - € 1.046,57;

- Julho de 1997 - € 1.006,54;

- Agosto de 1997 - € 987,33;

- Setembro de 1997 - € 1.238,55;

- Outubro de 1997 - € 735,70;

- Dezembro de 1997 - € 1.278,99;

- Janeiro de 1998 - € 108,39;

- Fevereiro de 1998 - € 108,39;

- Março de 1998 - € 108,39;

- Abril de 1998 - € 108,39;

- Maio de 1998 - € 368,55;

- Junho de 1998 - € 151,44;

- Julho de 1998 - € 208,50;

- Agosto de 1998 - € 120,71;

- Setembro de 1998 - € 126,20;

- Outubro de 1998 - € 126,19;

- Novembro de 1998 - € 126,19;

- Dezembro de 1998 - € 883,37;

- Março de 1999 - € 164,60;

- Agosto de 1999 - € 384,08;

- Setembro de 1999 - € 261,09;

- Dezembro de 1999 - € 1.367,13;

- Maio de 2000 - € 390,93;

- Dezembro de 2000 - € 1.220,35;

- Fevereiro de 2001 - € 1.026,03;

- Dezembro de 2001 - € 755,77.

4. Nos períodos de Agosto de 1995 e Abril a Dezembro de 1997, a arguida …quando na qualidade e sócia-gerente da sociedade arguida, entregou na instituição da Segurança Social, as declarações de remunerações dos gerentes ao seu serviço, designadamente, a arguida … tendo procedido ao desconto das contribuições devidas à Segurança Social pela referida gerente, nas remunerações efectivamente pagas à mesma em tais períodos, com a aplicação da taxa de 10%, descontos esses que se traduziram nos seguintes montantes:

Cotizações efectivamente retidas e não pagas:

- Agosto de 1995 - € 99,75;

- Abril de 1997 - € 62,35;

- Maio de 1997 - € 62,35;

- Junho de 1997 - € 62,35;

- Julho de 1997 - € 77,32;

- Agosto de 1997 - € 77,32;

- Setembro de 1997 - € 77,32;

- Outubro de 1997 – E 139,66;

- Novembro de 1997 - € 77,32;

- Dezembro de 1997 - € 139,66,

num total de € 875,41.

5. Tais montantes, no total de € 19.824,22, pese embora tenham sido declarados pela arguida, não foram, porém, entregues pela arguida à Segurança Social até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitam, assim como não os entregaram nos 90 dias posteriores.

6. As arguidas gastaram tais montantes no pagamento de salários a trabalhadores e no pagamento de fornecedores para que a sociedade arguida pudesse continuar a trabalhar e em virtude de não terem sido objecto de fiscalização.

7. Ao actuarem da forma descrita, sabiam as arguidas que tais montantes não lhes pertenciam e que prejudicavam o Estado que não os pôde utilizar para as finalidades previstas na legislação da Segurança Social.

8. Agiu a arguida … em nome e no interesse da sociedade arguida e no seu próprio interesse.

9. Agiram as arguidas de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida pela lei penal.

10. a arguida foi, a título pessoal e na qualidade de representante legal da sociedade arguida, notificada para, em 30 dias, proceder ao pagamento voluntário das quantias em dívida, não tendo procedido ao pagamento nesse prazo.

11. A arguida … é casada e tem duas filhas com 9 e 6 anos.

12. Actualmente é doméstica.

13. O marido é fiscal de obras e aufere um vencimento mensal líquido de € 1.200,00.

14. Habitam em casa própria.

15. Pagam uma prestação mensal de cerca de € 780,00 relativa a um empréstimo que contraíram para aquisição de casa própria.

16. Pagam uma prestação mensal de cerca de € 400,00 relativa a um empréstimo que contraíram para pagamento das cotizações em causa nos presentes autos.

17. A arguida … confessou integralmente e sem reservas os factos de que vem acusada.

18. Nada consta do seu certificado de registo criminal.

19. A sociedade arguida encontra-se inactiva desde 2001.

20. Todas as quantias referidas em 3. e 4. já se mostram, entretanto, pagas, assim como os juros de mora referentes às cotizações de Agosto de 1995, Janeiro de 1997, Dezembro de 2001, Maio de 1997, Dezembro de 2000, Fevereiro de 2001 e parcialmente de Junho de 1997.

21. Para pagamento das quantias referidas em 3. e 4. e respectivos juros de mora, correram termos cinco processos de execução fiscal contra a sociedade arguida, os quais foram revertidos contra a responsável subsidiária, a aqui arguida .....

22. A quantia exequenda nos processos referidos em 21. foi paga, na sua totalidade, no prazo de oposição, tendo a responsável subsidiária ficado isenta de juros de mora e custas devidas, nos termos do disposto no art. 23.º, n.º 5 da LGT e sem prejuízo do disposto no n.º 6 do mesmo preceito legal.
6. Do mérito do recurso
6.1. Atenuação especial da pena?
Em primeiro lugar, há que ver se o conspecto fáctico provado justifica a atenuação especial da pena reclamada pela arguida/recorrente.
Dispõe o art. 72, n.º 1, do Código Penal:
«O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena».

Por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo elenca exemplificativamente circunstâncias várias que, correlacionadas com os requisitos contidos no n.º 1, ainda do mesmo normativo, potenciam a atenuação especial da pena.

Com o instituto em causa criou o legislador uma válvula de segurança para situações particulares, que tem sido justificada nos seguintes termos: «Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo “normal” de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, aí teremos mais um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena» [[1]].

«Hipóteses que em muitos casos, o próprio legislador prevê, mas que a apontada incapacidade de previsão leva ainda a suprir com uma cláusula geral de atenuação especial.

O funcionamento de uma tal válvula de segurança obedece a dois pressupostos essenciais, a saber: - Diminuição acentuada da ilicitude e da culpa, necessidade da pena e, em geral, das exigências de prevenção; - A diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá considerar-se relevante para tal efeito, isto é, só poderá ter-se como acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação das circunstâncias atenuantes se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.

O que, por outras palavras, significa que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar. Para a generalidade dos casos, para os casos “normais”, “vulgares” ou “comuns”, “lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios”» [[2]].

A via trilhada pelo legislador ao elaborar as aludidas normas foi a de elencar exemplificativamente circunstâncias atenuantes de especial valor, a fim de dar ao juiz critérios mais rigorosos de avaliação do que aqueles que seriam dados através de uma cláusula geral. Ou seja, sem criar obstáculo à necessária liberdade do juiz, põem-se à disposição deste princípios delimitadores mais sólidos e facilmente apreensíveis para que, em cada caso concreto, se decida pela aplicação ou não do instituto em causa.
Vejamos o caso dos autos.
Em favor da arguida/recorrente regista-se a ausência de antecedentes criminais, a confissão, integral e sem reservas, dos factos imputados, os motivos determinantes da conduta ilícita (assegurar o pagamento de salários a trabalhadores e de produtos fornecidos à arguida sociedade) e o pagamento, entretanto efectuado pela arguida …, de todas as cotizações retidas e uma pequena parte dos juros, tendo, para esse fim, a recorrente contraído um empréstimo, com a amortização do qual despende € 400,00 por mês.
Este quadro, de relevante valor atenuativo, é certo, não configura uma diminuição acentuada da ilicitude do facto ou da culpa do agente e não revela uma diminuição da necessidade da pena, em termos tais que se mostre inadequada a pena concreta dentro da moldura normal do crime de abuso de confiança contra a segurança social.
Por isso, hoc sensu, não se justifica a pretendida atenuação especial da pena.
6.2. Da medida concreta da pena de multa:

Preceitua o art. 40.º, do Código Penal, que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).

Abstractamente a pena é definida em função da culpa e da prevenção, intervindo, ainda, circunstâncias que não fazendo parte do tipo, atenuam ou agravam a responsabilidade do agente - art. 71.º, n.ºs 1 e 2 do CP.

A função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.
O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.
Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.
Ao definir a pena o julgador nunca pode eximir-se a uma compreensão da personalidade do arguido, afim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a desconformação com a personalidade suposta pela ordem jurídica-penal, exprimindo a medida dessa desconformação a medida da censura pessoal do agente, e, assim, o critério essencial da medida da pena [[3]].
Assim, ao elemento culpa, enquanto tradutor da vertente pessoal do crime, a marca, documentada no facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonómica volitiva e a sua radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos) pede-se que imponha um limite às exigências, porventura demasiado expansivas, de prevenção geral, sob pena de o condenado servir de instrumento a tais exigências.
Neste sentido, a medida da tutela dos bens jurídicos, como finalidade primacial da aplicação da pena, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime. Entre esses limites devem satisfazer-se, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.
Quer dizer, as exigências de prevenção fixam, entre aqueles limites óptimo e mínimo, uma submoldura que se inscreve na moldura abstracta correspondente ao tipo legal de crime e que é definida a partir das circunstâncias relevantes para tal efeito e encontrando na culpa uma função delimitadora do máximo da pena. Entre tais limites actuam, justamente, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, cabendo a esta determinar em último termo a medida da pena, evitando, em toda a extensão possível (...) a quebra da inserção social do agente e dando azo à sua reintegração na sociedade [[4]].
No quadro da média gravidade própria do crime perpetrado pela arguida, o grau de ilicitude e o seu modo de execução não se destacam das situações normalmente ocorridas.
As consequências advindas da prática do crime não são particularmente graves, tendo em conta o valor global das cotizações retidas e não entregues à Segurança Social.
O dolo apresenta-se na sua modalidade mais vincada, ou seja, directo.
Favorece a arguida o quadro atenuativo de relevante valor acima individualizado [ausência de antecedentes criminais; confissão, integral e sem reservas, dos factos imputados; os motivos determinantes da conduta ilícita (assegurar o pagamento de salários a trabalhadores e de produtos fornecidos à arguida sociedade); e o pagamento, entretanto efectuado, de todas as cotizações retidas e uma pequena parte dos juros, tendo, para esse fim, a recorrente contraído um empréstimo, com a amortização do qual despende € 400,00 por mês].
No plano das condições pessoais e económicas, dizem-nos os factos provados que a arguida é doméstica; tem duas filhas, com 9 e 6 anos de idade; o marido é fiscal de obras e aufere um vencimento mensal líquido de € 1.200,00; para amortização do empréstimo obtido para aquisição de casa de habitação própria despende € 780,00 em cada mês.
Na consideração global dos factores supra enunciados, temos como proporcional, justa e adequada a pena de 90 dias de multa, à razão diária de € 5 que, afigura-se-nos, respeita o limite máximo correspondente à medida da culpa e reflecte a consideração equilibrada das exigências concretas de prevenção geral positiva ou de integração.
III. Dispositivo:
Posto o que precede, na procedência do recurso, decide-se alterar a decisão recorrida, ficando a arguida … condenada, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelos artigos 105.º, n.º 1 e 107.º, ambos do RGIT, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros).


[1] Cfr. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 444, pág. 302.

[2] Ac. do STJ de 08-11-2001, proferido no proc. n.º 1099/01 - 5.ª Secção, e Figueiredo Dias, obra já referenciada, § 444, § 451 e § 454.
[3] Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa, Direito Penal, pág. 184.
[4] Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 231.