Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
638/09.0 PBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES
Data do Acordão: 11/17/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSOP PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 152º E 143º DO CP
Sumário: Integra, tão só, a prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143º, n.º 1 do CP, e não um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, a agressão com duas bofetadas na cara, presenciada por uma testemunha que ia a passar, não se evidenciando que o arguido tivesse procurado agredir perante terceiros, de forma a sujeitar a ofendida a vexame e humilhação pública,não sendo comportamento reiterado, e não revelando uma intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado, que seja suficiente para lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

O Ministério Público veio interpor recurso da sentença que condenou o arguido V... pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, n.º 1 do CP, na pena de 140 dias de multa, à razão diária de € 7,00 e, ainda no pagamento à demandante F... da quantia de € 500,00 a título de danos não patrimoniais.

E, da respectiva motivação extraiu as seguintes conclusões:
1- Ao condenar o arguido pelo crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo art. 143°, n.º 1, do Cód. Penal, entendeu a sentença recorrida que a conduta do arguido não revestiu suficiente gravidade para integrar o crime de violência doméstica que era imputado na acusação ao arguído (cf. art. 152º, n.º 1, do Cód. Penal).
2- Entendeu ainda a sentença recorrida que o tipo legal de crime de violência doméstica exige uma gravidade intrínseca suficiente para contender com o bem jurídico tutelado, uma especial violência,
3- E que a conduta do arguido - desferiu duas bofetadas na cara à mãe dos seus filhos, na rua, à frente de terceiros, por causa de uma discussão relacionada com a filha, vítima essa que é Professora Universitária - não reveste tal gravidade.
4- Porém, ao interpretar os factos assim, qualificou-os a sentença recorrida erradamente, pois estamos perante a autoria material, sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152°, n.º 1, do Cód. Penal.
5- Neste tipo legal de crime não se exige qualquer intensidade da conduta, como chegou a constar do Projecto de Lei, bastando um acto isolado, uma ofensa psíquica - a maioria, aliás, dos maus-tratos conjugais.
6- Termos em que a sentença deve ser alterada, condenando-­se o arguido pelo crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152°, n.º 1, do Cód. Penal e em pena que reflicta este novo enquadramento penal e esta diferente perspectiva dos factos.

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O arguido respondeu, defendendo a improcedência do recurso.
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer acompanhando o Ministério Público da 1ª instância, concluindo, assim, pela condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1 do CP, por que se encontrava acusado.
Os autos tiveram os vistos legais.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
Consta da sentença recorrida (por transcrição):
a) Factos provados
1. O arguido V… e a ofendida F… viveram em condições análogas às dos cônjuges durante cerca de 14 anos, em Buarcos, Figueira da Foz, partilhando, durante este período temporal, habitação, mesa e leito, tendo a sua coabitação terminado no final do mês de Setembro de 2008;
2. O arguido e a ofendida têm dois filhos em comum: I..., nascida a 12/09/1997, e T..., nascido a 03/11/2004;
3. No dia 22/07/2009, pelas 09H00, quando o arguido foi a casa da ofendida, sita na Rua …, em Buarcos, para levar a filha I... para passar férias com uma tia em Itália, como havia sido combinado pelos dois, gerou-se uma discussão entre ambos, junto às escadas de acesso àquela casa;
4. Durante a discussão o arguido abeirou-se da ofendida e desferiu-lhe duas bofetadas na cara;
5. Na sequência destes factos a ofendida sofreu dores, incómodos físicos, desgosto, vergonha, humilhação, nervosismo e constrangimento;
6. Agiu sempre o arguido de forma livre e voluntária, com plena consciência de que não lhe era permitido atingir a integridade física da mãe dos seus filhos, submetendo-a a violência física;
7. O arguido actuou sempre com a intenção concretizada de atingir a ofendida na respectiva integridade física;
8. Ao proceder assim, bem sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei;
9. O arguido tem uma licenciatura e aufere cerca de € 1.000,00 mensais como engenheiro de electrónica, por conta própria e ao serviço da empresa SG …, reside na casa pertencente a si e à ofendida, suportando mensalmente o pagamento de cerca de € 500,00 na amortização de um empréstimo bancário contraído para aquisição daquela casa e € 200,00 a título de pensão de alimentos, relativamente aos dois filhos e faz as refeições do almoço e jantar em casa dos pais;
10. O arguido é considerado, na comunidade onde vive, uma pessoa bem-educada, calma, sensata, respeitadora e um pai responsável e preocupado com os seus filhos;
11. O arguido não tem antecedentes criminais;
12. Em consequência dos factos acima descritos, por não se sentir capaz de conduzir o seu veículo automóvel, a assistente pediu a uma amiga para a levar a uma reunião à Universidade de Aveiro, onde é professora, e para a trazer de regresso à Figueira da Foz;
13. A assistente chegou atrasada a esta reunião de trabalho e teve que justificar a demora ao seu superior hierárquico, contando-lhe os factos ocorridos nesse dia;
14. A assistente é pessoa educada, sendo respeitada pelos colegas de trabalho e pelos seus alunos;
15. A assistente não cumpriu o prazo para entrega de tese de doutoramento na Universidade do Minho;

b) Factos não provados
- No decurso dessa discussão o arguido dirigiu-se à ofendida apelidando-a de ‘puta”, ‘”vaca”, e acusando-a de “andar com todos e levar na cona de todos”, afirmando também que o advogado da ofendida era um palhaço e que lhe iria tirar os filhos;
- O arguido deu um murro no ouvido da ofendida, só tendo parado as agressões porque esta fugiu e se refugiou na sua casa;
- A ofendida sofreu desgosto e medo tendo as agressões causado instabilidade emocional que se reflectiu na sua vida;
- O arguido actuou sempre com a intenção concretizada de atingir a ofendida na respectiva saúde psíquica, bem como de lesar a sua integridade moral e dignidade pessoal, com plena consciência de que não lhe era permitido atingir a integridade psíquica da mãe dos seus filhos, submetendo-a a violência psíquica, humilhando-a e fragilizando-a publicamente;
- Após a ocorrência dos factos praticados pelo arguido na pessoa da ofendida, esta viu agravada a depressão emocional, doença de que já estava quase curada;
- Como tal situação se foi agravando, a assistente teve que recorrer ao seu médico de família, cuja última consulta tinha sido em Maio de 2009, o qual lhe diagnosticou uma crise de ansiedade aliada a uma depressão e aconselhou-a a retomar a medicação cuja toma tinha deixado em Maio de 2009, receitando-lhe medicamentos no valor de € 32,92;
- A demandante sentiu-se intimidada e passou a sentir crises de ansiedade, medos e receios de fazer a sua rotina normal;
- As agressões provocaram na ofendida muitas dores, incómodos, contrariedades que se prolongaram por várias semanas.
- As frases e expressões proferidas pelo arguido provocaram na ofendida um sofrimento profundo ao nível psíquico, pela vergonha, humilhação, nervosismo, constrangimento, desgosto e medo a que o demandado a sujeitou;
- Em consequência da conduta do arguido, a assistente viu-se incapacitada para prosseguir a sua carreira académica, o que levou a que não pudesse cumprir o prazo para entrega de tese de doutoramento na Universidade do Minho;
- Enquanto viveram em condições análogas às dos cônjuges, sempre foi o arguido quem se preocupou com as tarefas domésticas e com vestir os filhos, dar-lhes o pequeno-almoço e levá-los à escola, dormindo a ofendida até tarde, no sofá da sala desde o nascimento do segundo filho do casal, e tendo por hábito sair à noite com as suas amigas, chegando a casa de madrugada e embriagada, levando pessoas para dentro de casa do casal, perturbando desse modo, o sono do arguido e dos seus filhos;
- O arguido encontrou na casa onde viviam bilhetes escritos pela ofendida, com expressões que evidenciam uma relação adúltera, passando a sentir-se angustiado e infeliz com essa situação;
- A ofendida nunca permitiu um diálogo calmo e cooperante, tendo, por diversas vezes, apelidado o arguido de “corno” e “cabrão”;
- A ofendida provocou uma discussão em 17/06/2008, entre as 21:00 e as 22:00 horas quando o casal ainda vivia em união de facto, dentro da residência de ambos, vendo-se o arguido obrigado a ter de chamar a polícia;
- Quando o arguido tocou à campainha da casa da ofendida esta desceu as escadas a correr e começou a agredi-lo verbalmente e a cuspir-lhe na cara.
- Ao subirem os dois as escadas a ofendida empurrou o arguido e tropeçou;

Não se provaram quaisquer outros factos, com interesse para a decisão da causa, invocados nas peças processuais ou alegados em audiência, que não estejam em oposição ou não tenham resultado prejudicados pelos que ficaram provados e não provados.

c) Motivação da decisão de facto
Para a formação da convicção quanto à factualidade dada como provada, o tribunal baseou-se na apreciação crítica das declarações do arguido e da prova testemunhal produzida em sede de audiência, bem como nos documentos juntos aos autos, nos termos em seguida indicados.
A vivência em condições análogas às dos cônjuges, assim como a existência de dois filhos em comum (pontos 1 e 2) foram admitidas pelo arguido e pela ofendida, factos ainda corroborados pelas testemunhas S..., N… e P…, todas com conhecimento directo acerca dos factos sobre os quais depuseram, uma vez que a primeira é amiga da ofendida e os últimos são, respectivamente, cunhado e irmã do arguido, não tendo tais relações pessoais e familiares obstado a que os respectivos depoimentos tivesses sido produzidos de forma descomprometida, segura e espontânea.
Estas duas últimas testemunhas – com as quais a filha do arguido e da ofendida iria de férias – comprovaram o motivo pelo qual aquele se dirigiu a casa desta (ponto 3), o que foi igualmente admitido por estes (apesar da divergência quanto à relevância para o que havia sido acordado da ida do arguido nessas férias, causa próxima da discussão), cujos relatos coincidiram ainda na existência de uma discussão na via pública, à entrada da casa, acerca das férias da filha.
Da mesma forma, a testemunha M... – a qual se revelou isenta e credível – referiu que conhece o arguido e a ofendida “de vista”, tendo constatado aquela discussão quando se dirigia para o seu trabalho, nas imediações da casa da ofendida, sem, no entanto, conseguir precisar o respectivo conteúdo porquanto, segundo a mesma, nesse momento “não parou” e “seguiu a sua vida”.
A mesma testemunha confirma que, nessa ocasião, viu o arguido a bater com as mãos na cara da ofendida, quando esta subia as escadas do prédio, o que se coincide com a versão apresentada pela ofendida, a qual descreveu a sequência de actos que culminaram com as agressões de que foi alvo (ponto 4).
Na verdade, não obstante o depoimento da assistente transparecer uma notória animosidade em relação ao arguido, decorrente não só dos factos em apreciação nestes autos como do atribulado relacionamento entre ambos desde a cessação da vida em comum, não deixa o mesmo de ser valorado, na parte em que é corroborado por outros elementos probatórios (em particular, na existência e forma de execução das agressões). Assim, além do testemunho de M…, a prova das agressões é ainda suportada pelo depoimento da testemunha S…, a qual, pese embora não tenha assistido às agressões, encontrava-se no interior da casa desta e pôde constatar que a assistente, após ter estado no exterior com o arguido, regressou alterada e a chorar e tinha a face do lado direito vermelha dizendo que lhe doía a cabeça, o que se revela compatível com a natureza e intensidade da agressão (duas estaladas na cara), bem assim como com a circunstância de, no dia 23/07/2009, data do exame médico-legal (um dia após a agressão), não serem já constatáveis quaisquer lesões ou sequelas.
Acresce que o próprio arguido, negando aquela agressão e referindo um primeiro empurrão por parte da assistente, admite que “a empurrou como ela o empurrou” “para o deixar passar”, coincidindo as circunstâncias em que se deu este contacto físico com o relato daquela e da testemunha M… (encontrando-se ambos nas escadas de acesso ao prédio, estando a assistente umas escadas acima, no decurso de uma discussão).
Ao invés, nenhuma outra testemunha inquirida – designadamente A… e B…, cuja presença no local aquando das agressões foi referida pela ofendida – revelou ter conhecimento directo dos factos, não se valorando, nesta medida, e relativamente a esta matéria, os respectivos depoimentos.
As dores e sequelas psicológicas das agressões (ponto 5) foram relatas pela própria na audiência de discussão e julgamento de forma consistente, tendo sido corroboradas pela testemunha S... que com ela convive de forma regular e constatou o estado em que a mesma se encontrava imediatamente após as agressões, sendo aqueles efeitos coerentes com a natureza das agressões e as circunstâncias em que as mesmas se deram (na sequência de uma discussão na via pública, junto à entrada da residência da ofendida, cerca das 9:00 horas, na presença de terceiros), apelando à experiência comum e a um critério de razoabilidade, sem prejuízo de, no dia seguinte, não ser perceptível, qualquer lesão ou sequela física, como se constata no exame médico-legal efectuado.
As considerações acima referidas, designadamente as circunstâncias anteriores às agressões e, em particular, as declarações prestadas pelo arguido, pela ofendida e pela testemunha presencial, em conjugação com regras de experiência comum, permitem inferir que aquele agiu de forma livre, deliberada e consciente ao praticar as referidas agressões (pontos 6 e 7).
A consciência da natureza penal dos factos praticados (ponto 8) corresponde a um conhecimento que qualquer cidadão possui ou está em condições de possuir, e que o arguido não podia deixar de ter, considerando a natureza dos factos que praticou, bem assim como a sua idade, escolaridade e experiência profissional.
As condições pessoais, profissionais e económicas do arguido (ponto 9) sustentam-se nas declarações do mesmo que se revelaram, nesta parte, sérias e credíveis.
As testemunhas N… e P…, próximas do arguido, em virtude do vínculo familiar que os une, depuseram de forma isenta e espontânea relativamente à inserção social do arguido (ponto 10).
A ausência de antecedentes criminais (ponto 11) constatou-se através do certificado do registo criminal junto aos autos (fls. 86).
As circunstâncias relativas à viagem de ida e regresso a Aveiro e à reunião de trabalho na Universidade (pontos 12 e 13) foram relatadas de forma coincidente pela assistente e pela testemunha S..., que a transportou nessa viagem, por força do estado anímico em que aquela se encontrava após as agressões que sofreu. A mesma testemunha aludiu à personalidade da assistente – que foi possível constatar na audiência de discussão e julgamento – e relacionamento profissional da mesma (ponto 14), ao qual se referiu igualmente a própria assistente.
O incumprimento do prazo para entrega da tese de doutoramento (ponto 15) resulta, sobretudo, da declaração emitida pela Universidade do Minho (fls. 132 e 133), em conjugação com o depoimento da assistente.
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A decisão do Tribunal quanto aos factos dados como não provados resulta da falta de produção de prova suficiente nesse sentido.
Assim, no que se refere às expressões constantes da acusação, somente foram confirmadas pela assistente, sendo que foram negadas pelo arguido e a única testemunha presencial (M…) foi peremptória ao referir que, tendo constatado a discussão, não ouviu o teor da mesma. Pelas considerações supra expostas acerca da relevância do depoimento da assistente, considera-se o mesmo insubsistente para, por si só, sustentar a prova do facto em apreço, o que, consequentemente, impede a comprovação do conhecimento e vontade de o arguido o praticar e as eventuais consequências para a ofendida.
O mesmo sucede relativamente ao motivo pelo qual as agressões pararam e a ter sido desferido um murro, o qual apenas é mencionado pela assistente, não logrando aquela testemunha esclarecer se as agressões produzidas com a mão consistiram em bofetadas ou murros. Nesta medida, afigura-se mais consentâneo com a lesão visível na cara da assistente imediatamente após as agressões (face vermelha) e com o teor do exame médico-legal realizado no dia seguinte (no qual se fez constar a ausência de lesões) a ocorrência apenas de bofetadas.
Nenhuma testemunha se referiu à existência de um sentimento de medo, intimidação ou ansiedade por parte da assistente após as agressões, tendo mesmo sido negado, de forma categórica, pela testemunha U…, amiga de infância daquela.
Da mesma forma, nenhuma das referidas testemunhas ou a própria assistente confirmou que as dores, incómodos e contrariedades se prolongaram por várias semanas, o que de resto, se revela incompatível com o exame médico-legal efectuado logo no dia seguinte às agressões.
Não obstante a assistente, e as testemunhas, U…, S... e G... – todas amigas da assistente – terem feito referência à instabilidade emocional daquela e, mais concretamente, à depressão de que padece, não foram os respectivos depoimentos suficientes para suportar a existência de um nexo de causalidade entre as agressões e aquele estado anímico da assistente, considerando que todas elas (e ainda o arguido) admitiram que já antes das agressões aquela padecia de uma depressão, sendo medicamente acompanhada e tomando medicação para o efeito.
Assim, ainda que daqueles depoimentos resulte que em momento temporal posterior às agressões o estado anímico da assistente se degradou, não se revelam os mesmos suficientes para dar como assente que foram aquelas agressões que deram causa a uma crise de ansiedade aliada a uma depressão ou à toma de qualquer medicação.
Uma vez que não foi concretizado factualmente, constituindo uma expressão genérica e conclusiva, não resultou comprovado que as agressões se reflectiram na vida da assistente – além da factualidade já dada como provada –, por via da instabilidade emocional que teriam causado.
Pese embora comprovado o incumprimento do prazo de entrega da tese de doutoramento, não se verificou, também aqui, a existência de um nexo de causalidade entre este facto e a conduta do arguido, sendo certo que o doutoramento tinha uma duração de 4 anos e o limite data para a apresentação da tese era 01/03/2010, como se constata na declaração emitida pela Universidade do Minho junta aos autos.
Não obstante não se afigurar relevante para o objecto dos presentes autos (porquanto se reporta a factos anteriores a Julho de 2008 – data da cessação da vivência em comum do arguido e da assistente – sem conexão directa com o episódio em apreço neste processo), verifica-se que somente o arguido fez referência à factualidade por ele alegada respeitante relacionamento entre ele e a assistente no período em que viveram em condições análogas às dos cônjuges, o que, face à posição que ambos assumem neste processo, à factualidade que se discute e à conturbada convivência de ambos desde então, se afigura manifestamente insuficiente para a sua prova (ainda que conjugado com os documentos que o mesmo apresentou nos autos, cuja autoria e proveniência não foi sequer demonstrada).
Atendendo aos factos provados respeitantes à sequência de actos que antecederam as agressões e aos elementos probatórios que os suportam, deu-se como não provada a versão apresentada pelo arguido, nessa parte, à qual só ele se referiu.

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APRECIANDO

Sendo o objecto do recurso fixado pelas conclusões retiradas pelo recorrente da respectiva motivação, uma única questão é colocada à apreciação deste tribunal: - a da qualificação jurídica dos factos provados. Considera o recorrente que a conduta do arguido configura a prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1 do CP, por que se encontrava acusado, e não de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, n.º 1 do CP, pelo qual foi condenado.

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Dispõe o artigo 152º do Código Penal, sob a epígrafe “Violência doméstica”:
«1- Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1º grau, ou
d) A pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
É punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.»

Na anterior redacção do Código Penal (anterior à Lei n.º 59/2007, de 4.9), o artigo 152º dispunha relativamente ao crime de maus tratos (“quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos ou o tratar cruelmente, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo art. 144.º do mesmo diploma”).
Porém, com as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 04.09, e no que ao crime de maus tratos respeita, houve um alargamento do tipo, verificando-se a autonomização do crime de violência doméstica (art. 152º), passando o crime de maus tratos a estar previsto no artigo 152º-A.
Este tipo de crimes visa a protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, sustentando Taipa de Carvalho ( - in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 332.) que o bem jurídico aqui protegido é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que afectem a dignidade pessoal do cônjuge.
Os crimes de violência doméstica e de maus tratos realizam-se através de uma pluralidade de actos, ou através de um único acto, que atingiram a saúde física, psíquica ou mental do cônjuge e afectaram a sua dignidade pessoal.
Suscitou-se alguma divergência na doutrina e na jurisprudência, relativamente ao crime de maus tratos, porquanto alguns defendiam a exigência de uma reiteração das condutas. Todavia, com a alteração introduzida ao Código Penal pela Lei n.º 59/2007, o legislador veio clarificar a forma da verificação do crime.
Assim, na “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei n.º 98/X ( - vide Diário da Assembleia da República, II Série –A, n.º 10, de 18-10-2006.), que esteve na origem da Lei n.º 59/2007, de 04.09, diploma que alterou o Código Penal, pode ler-se:
«Ainda em sede de crimes contra a integridade física, os maus tratos, a violência doméstica e a infracção de regras de segurança passam a ser tipificados em preceitos distintos, em homenagem às variações de bem jurídico protegido. Na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa. No crime de violência doméstica, é ampliado o âmbito subjectivo do crime passando a incluir as situações de violência doméstica que envolvam ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges. Introduz-se uma agravação do limite mínimo da pena, no caso de o facto ser praticado contra menores ou na presença de menores ou no domicílio da vítima, ainda que comum ao agente».
De salientar ainda que, no que respeita à intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado, as situações de violência doméstica têm de ser aptas para lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana ( - Plácido Conde Fernandes, in Violência Doméstica, Novo quadro penal e processo penal – Revista do CEJ n.º 8, 1º semestre, pág. 308.).

No caso vertente, não tendo sido impugnada a matéria de facto, a factualidade dada como assente, a atender, é a seguinte:
- O arguido V… e a ofendida F...viveram em condições análogas às dos cônjuges durante cerca de 14 anos, tendo a sua coabitação terminado no final do mês de Setembro de 2008;
- têm dois filhos em comum: a I… nascida a 12/09/1997, e o T… nascido a 03/11/2004;
- No dia 22/07/2009, pelas 09H00, quando o arguido foi a casa da ofendida, (…) gerou-se uma discussão entre ambos, junto às escadas de acesso àquela casa;
- Durante a discussão o arguido abeirou-se da ofendida e desferiu-lhe duas bofetadas na cara;
- O arguido trabalha engenheiro de electrónica;
- O arguido é considerado, na comunidade onde vive, uma pessoa bem-educada, calma, sensata, respeitadora e um pai responsável e preocupado com os seus filhos;
- O arguido não tem antecedentes criminais;
- A assistente é professora na Universidade de Aveiro;
- A assistente é pessoa educada, sendo respeitada pelos colegas de trabalho e pelos seus alunos;

Ainda conforme a Motivação da decisão de facto:
A discussão entre o arguido e a assistente, acerca das férias da filha de ambos, ocorreu na via pública, à entrada da casa;
A testemunha M…, que ía a passar, apercebeu-se da discussão e viu o arguido bater com as mãos na cara da ofendida, quando esta subia as escadas do prédio;
Arguido e ofendida têm mantido um atribulado relacionamento, desde a cessação da vida em comum,
A testemunha S..., que se encontrava no interior da casa da assistente, não assistiu às agressões, mas pôde constatar que a assistente, após ter estado no exterior com o arguido, regressou alterada e a chorar e tinha a face do lado direito vermelha dizendo que lhe doía a cabeça,
No dia seguinte, não era perceptível, qualquer lesão ou sequela física, como se constata no exame médico-legal efectuado à assistente.
Nenhuma testemunha se referiu à existência de um sentimento de medo, intimidação ou ansiedade por parte da assistente após as agressões, tendo mesmo sido negado, de forma categórica, pela testemunha U…, amiga de infância daquela.

Ora, decorre da materialidade transcrita que, efectivamente, a assistente, quando subia as escadas do prédio onde morava, foi agredida pelo arguido, com duas bofetadas na cara, agressão que foi presenciada por uma testemunha que ía a passar; não se evidenciando que o arguido tivesse procurado agredi-la perante terceiros, de forma a sujeitá-la a vexame e humilhação pública.
Como se salienta na sentença recorrida “sem prejuízo de assumir relevo criminal, (…) a conduta do arguido não se afigura, só por si, suficiente para representar a afectação do bem jurídico protegido pela norma que incrimina a violência doméstica, não consubstanciando uma ofensa à dignidade da pessoa humana, que coloque a ofendida numa situação humanamente degradante”.
Ou seja, não sendo o comportamento do arguido reiterado, a agressão em causa (tratando-se de uma acção isolada) não revela uma intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado, que seja suficiente para lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.
Por conseguinte, e contrariamente à pretensão do recorrente, entendemos que a conduta do arguido integra, tão só, a prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143º, n.º 1 do CP, e não um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, do mesmo Código, nenhum reparo nos merecendo a sentença recorrida.


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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:
- Negar provimento ao recurso.
Sem tributação.


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Coimbra,