Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
107/07.3GBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: PROVA
CONVICÇÃO DO TRIBUNAL
DÚVIDA RAZOÁVEL
Data do Acordão: 04/22/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ÁGUEDA – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 127º
Sumário: 1. A convicção do tribunal é formada antes de mais com base nos dados objectivos fornecidos pela prova documental, pericial e outras provas constituídas de apreciação vinculada.
2. Conjugando e articulando criticamente esses meios de prova com os depoimentos prestados na plenitude da audiência, apreciados em função do distanciamento de cada depoente do objecto do processo, da sua razão de ciência, das certezas e das lacunas dos depoimentos, das humanas paixões, da ligação de cada depoente ao objecto do litígio e aos sujeitos processuais, na comunicação dialéctica que se estabelece na audiência de discussão e julgamento, sob a fiscalização directa dos sujeitos processuais, sob a vigilância da comunidade, na publicidade da audiência.
3. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de formação de uma convicção positiva sobre a realidade e/ou a autoria de um facto, distingue-se da dúvida abstracta, meramente possível, ou hipotética. Apenas a dúvida séria e razoável - identificada, resultante da apreciação exaustiva e crítica dos meios de prova relevantes em conformidade com os critérios legais de produção e valoração da prova - impede a valoração dessa dúvida na perspectiva contrária ao interessa do arguido.
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO

J... , arguido nos autos, recorre da sentença em que o tribunal recorrido decidiu (após comunicação da alteração da qualificação jurídica efectuada na acusação):
- Absolvê-lo do crime de maus tratos a cônjuge, p e p pelo artigo 152º n.ºs 1 e 2 do C. Penal, pelo qual vinha pronunciado; e
- Condená-lo, como autor de um crime de ofensa à integridade física simples p e p pelo art. 143º, n.º1 do C. Penal, na pena de 180 dias de multa à taxa diária de € 7,00.
*
Na motivação formula as seguintes CONCLUSÕES:
1. A douta sentença obedece a um mero formalismo condenatório.
2. Faz tábua rasa da prova produzida em audiência, sem dar qualquer relevância ao depoimento do próprio arguido, que foi isento, e das testemunhas por ele apresentadas, valorizando-se, em contrapartida, os depoimentos das testemunhas arroladas pela assistente, as quais mais não fizeram do que reproduzir a versão da assistente, sem que tenha havido ponderação, conjugação e articulação de todos os depoimentos prestados.
3. Ao julgador se exige de acordo com o disposto no art. 374º nº 2 do CPP — uma enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal’.
4. Para apuramento da matéria de facto e sua fundamentação, o Meritíssimo Juiz “a quo’ socorreu-se do depoimento da assistente M... e das testemunhas A... e D... , as quais, aliás, não presenciaram os factos em discussão, ou seja, não presenciaram qualquer agressão do arguido, descurando completamente o depoimento prestado pelo arguido J... e o depoimento das testemunhas P... , L... , H... e F... .
5. A Douta decisão recorrida não fez um exame crítico das provas apresentadas em Tribunal descurando em absoluto as declarações do arguido e das testemunhas por ele apresentadas, determinado pelo n0 2 do art. 3740 do CPP.
6. O arguido foi acusado de no dia 22 de Janeiro de 2007, cerca das 13:00 horas, na residência da assistente e do arguido, este empurrou a assistente contra a parede e apertou-lhe o pescoço.
7. Com tal conduta, o arguido causou à assistente as lesões corporais descritas no auto de exame médico-legal de fis. 13 a 15, designadamente, equimose na face direita, resultando de traumatismo de natureza contundente.
8. O Tribunal “a qua” deu tais factos como provados, formando a sua convicção com base na conjugação e apreciaçáo crítica dos vários meios de prova produzidos.
9. Designadamente, “as declarações da assistente, conjugadas com o auto de exame médico de fís. 13 a 15”.
10. “Reforçadas pelos depoimentos das testemunhas A... , vizinha do casal, que disse que houve um dia em que a assistente lhe foi pedir ajuda para buscar a sua carteira a casa, porque o arguido lhe tinha batido, apresentando-se a assistente muito nervosa e a chorar; e D... , que, também não tendo assistido a qualquer agressão, disse, no entanto, que no dia em que a assistente acabou por sair de casa, viu-a com marcas vermelhas no pescoço e a chorar, queixando-se que o marido lhe tinha batido”.
11. Os depoimentos das testemunhas A... e D... contrariam em absoluto a versão apresentada pela assistente, designadamente o auto de exame médico, relativamente aos factos imputados ao arguido.
12. Questionada a testemunha da acusação A... sobre os factos imputados ao arguido — cfr. cassete n.º 1, lado A, rotação 328 a 406 — a mesma referiu “Eu saber não sei. (...) Não vi, não sei. (...) Eu nunca presenciei nada, de barulhos nenhuns. (...) Nunca vi agressões nenhumas. (...) Ela disse que ele a tinha agredido, mas eu não vi. (...) Eu não notei nada, não posso dizer.”
13. A testemunha A... foi a primeira pessoa a quem a assistente se dirigiu a pedir ajuda, e questionada pela defesa acerca se tinha notado algumas lesões ou feridas na face da assistente - cfr. cassete n.0 1, lado A: rotação 328 a 406 - referiu ‘sinceramente não notei e se notei não fixei. (...) Não, não vi, eu não vi, pronto mas eu não vi”. (...) A Senhora notou alguma coisa especial na cara, a não ser o nervosismo? Não, não notei nada”.
14. A testemunha de acusação D…, colega de trabalho e amiga da assistente — cfr. cassete n.º 1, lado A, rotação 407 a .581 — quando questionada se assistiu a alguma agressão, começou por referir “Assistir não assisti. No último dia que ele a agrediu, ela apareceu na hora de almoço muito agitada, com o pescoço todo encarnado, notava-se mesmo que tinha marcas (…)”. Quando questionada se se recordava da roupa que a assistente usava à data dos alegados factos e se a mesma permitia ver o pescoço da assistente, a mesma testemunha referiu “sim sim, ela tinha uma t-shirt, tipo uma t-­shirt, um pólo, notava-se mesmo, porque ela fez assim e nós víamos (…)”.
15. Os depoimentos prestados pelas referidas testemunhas de acusação, A... e D... , assentam exclusivamente naquilo que a assistente lhes contou, pois não presenciaram os factos em discussão.
16. O arguido foi pronunciado por no dia 22 de Janeiro de 2007, cerca das 13:00 horas, ter empurrado a assistente contra a parede e lhe ter apertado o pescoço. Porém, a primeira pessoa a quem a assistente se dirigiu logo após a alegada prática dos factos, A... , foi peremptória em afirmar que não viu nenhuma lesão na assistente. Do relatório de exame médico efectuado alguns dias após a data dos alegados factos, resulta equimose na face direita, resultando de traumatismo de natureza contundente. No entanto, a testemunha D... , que esteve com a assistente na parte da tarde do dia dos alegados factos, foi também peremptória em afirmar que viu o pescoço da assistente todo arranhado, com marcas (!?) - o que de facto é incompreensível e não foi explicado na douta sentença recorrida.
17. Perante tais depoimentos, e sua contradição com o relatório de exame médico, impunha-se ao Tribunal “a quo” a dúvida sobre se tais lesões descritas no auto de exame médico foram efectivamente resultado de uma alegada conduta do arguido.
18. Ou se, pelo contrário, tais lesões foram provocadas pela assistente, corroborando assim a tese do arguido, o qual referiu “(...) isto não passa de um esquema que montaram para me prejudicar. E lamentável a forma caluniosa como me estão a acusar. Tudo começou com a família e muitas das vezes provocava-me (...) e eu mesmo assim, confrontado com situações adversas (...), não sou pessoa de discutir nem violento, muitas das vezes virava costas e, efectivamente, fugia aos problemas. O mote principal da acusação é lavar uma situação de abandono do lar e, consequente, usurpação do meu património, meu e dela. No próprio dia que saiu de casa, e outro dia após ter saído de casa, ela foi e levou o património comum e que também me pertencia. Isso é o mote principal desta situação de estarmos aqui. Se eu a humilhei? Qual é o casal que não tem uma discussão? Acho que isso é normal. Tive discussões sim senhor, tive, como qualquer casal tem, mas era de parte a parte. Muitas das vezes era ela que começava essa humilhação, não era eu” Quando questionado pela acusação se alguma vez tinha agredido a assistente, referiu “Não, não, não, não faz parte da minha maneira de ser.” - cfr. cassete n.º 1, lado A, rotação 264 a 327.
19. Estes depoimentos e respectivas contradições com o auto de exame médico são, salvo melhor opinião, susceptíveis de fundar a ausência de prova para a matéria de facto dada como assente na sentença:
“No dia 22 de Janeiro de 2007, cerca das 13:00 horas, na residência da assistente e do arguido, este empurrou a assistente contra a parede e apertou-lhe o pescoço.
Com tal conduta, o arguido causou à assistente as lesões corporais descritas no auto de exame médico-legal de ff5. 13 a 15, designadamente, equimose na face direita, resultando de traumatismo de natureza contundente.”
20. Na fundamentação da matéria de facto dada como assente na sentença recorrida, e perante tais depoimentos e referidas contradições com o auto de exame médico, não podia o Tribunal de Primeira Instância, como fez, alegar que formou a sua convicção com base nas declarações da assistente, conjugadas com o auto de exame médico de fís. 13 a 15, reforçadas pelos depoimentos das testemunhas A... e D... .
21. As declarações da assistente prestadas em sede de inquérito conduziram o Digno Magistrado do Ministério Público a proferir despacho de arquivamento do inquérito, pois entendeu não existirem indícios suficientes da prática do crime.
22. As testemunhas de acusação ouvidas em sede de instrução, e em audiência de julgamento, não presenciaram os factos alegadamente ocorridos no dia 22 de Janeiro de 2007.
23. O auto de exame médico-legal a fls. 13 a 15, padece da já referida, e insanável, contradição com os depoimentos das testemunhas arroladas pela assistente.
24. A prova produzida, designadamente os depoimentos das testemunhas e auto de exame médico, nada permite corroborar a versão da assistente quanto aos alegados factos ocorridos no dia 22 de Janeiro de 2007.
25. Muito pelo contrário, depoimentos contraditórios e exames médicos que descrevem lesões incompatíveis com as agressões que a assistente afirma ter sido vítima, têm forçosamente de gerar dúvidas no julgador -assim não tendo acontecido há violação do princípio in dubio pro reo.
26. Na fundamentação da decisão recorrida o Tribunal ‘a quo” não fez qualquer referência à manifesta contradição entre os depoimentos das testemunhas de acusação, nem à contradição entre estes e o relatório de exame médico-legal.
27. Toda a fundamentação da decisão e a respectiva valoração da prova produzida em audiência de julgamento assenta numa manifesta presunção de culpa, que, de forma evidente, subverte os princípios fundamentais e estruturantes de um Estado de Direito.
28. Com base na prova produzida, designadamente os depoimentos das testemunhas nada permite concluir pela prática dos factos imputados ao arguido.
29. Atenta a matéria de facto e os vários depoimentos, nomeadamente os supra referidos, uma dúvida que se nos afigura insanável, sendo que, a mesma não pode, em circunstância alguma servir para punir o arguido, antes pelo contrário, pois que num domínio como o do Processo Penal, todo o cidadão se presume inocente até ao trânsito em julgado de decisão em contrário, na dúvida tem, necessariamente, de se dar o facto como não provado por força do Princípio In Dúbio Pro Reo, corolário lógico daquele. Assim, na dúvida, que nos autos é patente e deveria ter sido esclarecida, não podia o Tribunal a quo” condenar.
30. Na decorrência daquele princípio concluir, sem contestação possível, que à sua luz o arguido está isento do ónus de provar a sua inocência, a qual aparece imposta pela lei.
31. O que carece de prova é o contrário, ou seja, a culpa do arguido.
32. Conforme ensinava o Mestre Manuel Cavaleiro de Ferreira, “A prova para a condenação tem de ser plena, enquanto a dúvida ou incerteza impõe a absolvição. É essa a consequência da presunção de inocência, que a razão material impõe e a Constituição elevou a Princípio Constitucional” — In “Curso de Processo Penal”, vol. 1, pág. 212.
33. Este princípio impõe que o arguido seja titular de um estatuto e receba um tratamento e uma consideração próprias de alguém que é considerado inocente (vide Ac. Tribunal Constitucional de 31-03-1992 — Ac. N.º 123/92 in BMJ 415, 264), o que no caso em apreço não se verificou.
34. No decurso de um processo penal, “O arguido está mergulhado num estado de dúvida”, no que concerne à sua responsabilidade pelos factos em apreciação (vide neste sentido Rui Patrício, in “O Princípio da Presunção de Inocência do Arguido na Fase de Julgamento no Actual Código de Processo Penal Português”, pág. 35), razão pela qual se impõe decisão diversa da que fora tomada pelo Tribunal “a quo”, mostrando-se, igualmente, violado o art. 127º do Código de Processo Penal, cuja validade cumpre repor.
35. À sentença condenatória se exige a prova plena dos factos imputados ao arguido, na verdade as declarações das testemunhas, bem como os documentos juntos aos autos de fls. 13 a 15, são manifestamente insuficientes para alcançar tal desidrato.
36. A decisão recorrida omite o exame crítico das provas oferecidas em audiência, determinado pelo nº 2 do art. 374º do CPP, pois desconsidera em absoluto os depoimentos contraditórios prestados das testemunhas de acusação, as declarações do arguido e das testemunhas de defesa, valorizando tão somente as declarações da assistente, ocorrendo a nulidade da decisão por via do disposto no art.379º al. a) do CPP, que expressamente se invoca.
37. O nosso sistema processual as decisões de facto não assentam puramente no íntimo convencimento do julgador, num mero intuicionismo, antes se exigindo um convencimento racional, devendo, pois, o juiz, pesar com justo critério lógico o valor das provas produzidas, — o que não aconteceu no caso vertente — o que está em conexão com o também neste aspecto chamado “princípio da publicidade”, definido por Castro Mendes “Do Conceito de Prova”, pg.302, como sendo “aquele segundo o qual o processo - e portanto a actividade probatória e demonstrativa — deve ser conduzido de modo a permitir que qualquer pessoa siga o juízo e presumivelmente se convença como o julgador (…)”, o que, no entanto, não exclui a intuição ou conhecimento por outros sentidos, em si susceptíveis de serem demonstrados exteriormente.
38. A decisão recorrida, no segmento relativo à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, aporta a enumeração dos meios de prova considerados, designadamente os depoimentos da assistente, conjugadas com o auto de exame médico de fls. 13 a 15, cujas lesões aí descritas em nada retratam as alegadas agressões, e os depoimentos das duas testemunhas de acusação, completamente contraditórios no que às lesões diz respeito e que não presenciaram os factos em discussão.
39. Impunha-se, em vista do exame crítico das provas a que se refere a última fracção do n.º2 do art.374º do CPP, que se explicitassem, designadamente, as razões que levaram o Tribunal “a quo” a credibilizar a versão da assistente, no cotejo com a versão do arguido - importaria, sobretudo, explicar ou esclarecer todas as dúvidas e contradições insanáveis que resultaram da prova produzida em audiência e que já foram referidas, para além do motivo do total descrédito dos depoimentos prestados pelo arguido e pelas testemunhas de defesa apresentadas, em confronto com a credibilização total das testemunhas da acusação, especialmente se tivermos em conta as contradições que os seus depoimentos encerram.
40. A motivação da decisão de facto não pode deixar de contemplar, para além da indicação das provas a partir das quais se formou a convicção do Tribunal, também os motivos que levaram o juiz a considerar aquelas provas como idóneas e relevantes, eventualmente em detrimento de outras e, bem assim, os critérios utilizados na apreciação daquelas e o substrato racional que conduziu à convicção concretamente estabelecida (Veja-se a propósito o Acórdão da Relação de Coimbra de 05/10/2000 — Colect. Jurisp., ano XXV, tomo IV, pg.53 e ss.)
41. Retira-se a génese e o desenvolvimento da convicção do Tribunal do alcance crítico dos sujeitos processuais, sonega-se à decisão a esperada e exigível “força de convencimento do arguido e dos membros da comunidade jurídica relativamente à bondade da decisão encontrada” — Acórdão do STJ de 02/05/2002 (Proc.157/02 – 5ª secção) in www.stj.pt) em nítida infracção do dever de fundamentação estabelecido, maxime, nos arts.205º, nº1, da CRP e 374º nº2 do CPP.
42. A sentença recorrida é nula, em vista do disposto no art.379º nº1 al. a) do CPP, pois que não contém todas as menções exigidas no nº 2 do art. 374º do CPP, designadamente o falado exame crítico das provas, cumprindo ao Tribunal recorrido a reparação deste vício.
43. A decisão apoiou-se e, matéria de facto ostensivamente, a qual é insuficiente, erradamente apreciada e assente em premissas contraditórias.
TERMOS EM QUE deve revogar-se a decisão recorrida e o arguido ser absolvido ou, em alternativa, declarar-se nula a sentença nos termos so art. 379º, n.º1, al. a), do CPP, por violação do art. 374º n.º2 do CPP, reenviando o processo para novo julgamento.
*
Não foi apresentada resposta ao recurso nem o MºPº junto do tribunal recorrido nem pela assistente.
No visto a que se reporta o art. 416º do CPP, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no qual, tomando posição sobre todas as questões suscitadas pelo recorrente, conclui no sentido da total improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP.
Corridos os vistos e após julgamento, em conferência, cumpre apreciar e decidir.
***

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação do objecto do recurso
Nos termos do art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Daí que, sem prejuízo do dever de apreciação das questões de conhecimento oficioso, constitui entendimento uniforme que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso - cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173, fazendo eco da jurisprudência uniforme daquele alto tribunal.
Assim, no caso, emergem as seguintes questões a decidir: Nulidade da sentença por falta de exame crítico dos meios de prova; E erro de apreciação – por insuficiência (da prova), contradição entre prova pericial e testemunhal, violação do princípio in dubio pro reo.
Para a sua apreciação, vejamos a decisão do tribunal recorrido.



2. A decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido, com a motivação que a suporta, é a seguinte:

A) Factos Provados:
1. A assistente M... e o arguido J... casaram entre si no dia 18/8/2001.
2. No dia 22 de Janeiro de 2007, cerca das 13:00 horas, na residência de ambos, sita na Rua E… em Águeda, o arguido empurrou a assistente contra a parede e apertou-lhe pescoço.
3. Assustada, a assistente foi pedir ajuda a urna vizinha.
4. Com tal conduta, o arguido causou à assistente as lesões corporais descritas no auto de exame médico-legal de fls. 13 a 15, designadamente, equimose na face direita, resultando de traumatismo de natureza contundente.
5. Na sequência da referida actuação do arguido, a assistente saiu de casa, com a sua filha menor, em 22 de Janeiro de 2007.
6. O arguido agiu livre e conscientemente, actuando com o propósito de atentar contra a integridade física da assistente, bem sabendo que tais actos eram criminalmente puníveis.
7. O documento de fls. 101 reporta-se a um episódio de urgência decorrente de lesões sofridas pela assistente em consequência de acidente de trabalho, ocorrido em 27.02.2005.
8. Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.
9. O arguido é considerado, fora do seu contexto familiar, como um cidadão respeitado e respeitador e bom trabalhador.
10. É programador de fabrico na empresa “I…, Lda.”, em Águeda, onde aufere o vencimento mensal de cerca de € 800,00.
11. Paga € 120,00 mensais de prestação de alimentos à filha.
12. Contribui com cerca de € 150,00 mensais para os pais, dado que o arguido faz as refeições em casa destes.

B) Factos não provados:
a) O arguido ameaçava a assistente de morte constantemente;
b) A assistente nunca teve coragem de acusar o arguido, com medo de represálias posto que este sempre a ameaçou de que seria pior se o denunciasse às autoridades:
c) O arguido disse à assistente no dia 22 de Janeiro de 2007, cerca das 13:00 horas: “Vou partir-te toda; qualquer dia até a Vida te tiro”;
d) Já não era a primeira vez que o arguido praticava os factos descritos em 2) dos Factos Provados;
e) O arguido tem tido um comportamento familiar irrepreensível sendo por todos reconhecido como bom filho e bom marido.
*
C) Não se responde à seguinte matéria da pronúncia, na medida em que se Considera Conclusiva:
o arguido maltratou física e psiquicamente a assistente, repetidamente;
tendo a assistente suportado todas as agressões físicas e psicológicas;
o arguido agiu dolosamente, representando e conformando-se com a adequação dos maus tratos infligidos à assistente;
*
D) Motivação:
O Tribunal formou a sua convicção, quanto aos factos praticados pelo arguido, com base na conjugação e apreciação crítica dos vários meios de prova produzidos.
Assim, as declarações da assistente, conjugadas com o auto de exame médico de fls. 13 a 15 (a assistente referiu que deu luta para se libertar das mãos do arguido, pelo que em nada nos surpreende o facto de daquele exame médico resultar como lesão visível uma equimose na face da assistente), convenceram o Tribunal quanto aos factos ocorridos em 22/01/2007, na casa do casal, sendo que aquelas declarações foram prestadas de modo que nos mereceu inteira credibilidade, de modo circunstanciado, revelando a assistente uma postura objectiva e séria. Revelador dessa seriedade foi o facto de a assistente ter admitido, de pronto, que o documento junto a fls. 101 nada tinha a ver com qualquer agressão por banda do arguido, mas apenas com um acidente de trabalho (sendo certo que a junção de tais elementos hospitalares não foi da autoria da assistente, mas foi ordenada pelo Tribunal, sem menção de datas — cfr. fls. 94).
Acresce que as declarações da mesma quanto aos factos — passados no seio do lar conjugal, e por isso, como é natural, não presenciados por terceiros — foram, ainda, reforçadas pelos depoimentos das testemunhas A... , então vizinha do casal, que disse que houve um dia em que a assistente lhe foi pedir ajuda para buscar a sua carteira a casa, porque o arguido lhe tinha batido, apresentando-se a assistente muito nervosa e a chorar; e D... , que, também não tendo assistido a qualquer agressão, disse, no entanto, que no dia em que a assistente acabou por sair de casa, viu-a com marcas vermelhas no pescoço e a chorar, queixando-se que o marido lhe tinha batido, tendo-se oferecido a testemunha para acompanhá-la à polícia e para buscar as suas coisas a casa. Os referidos depoimentos pareceram-nos sérios e descomprometidos, merecendo credibilidade ao Tribunal.
No confronto com estes elementos de prova, surgem-nos as declarações do arguido, o qual negou a prática dos factos em questão, dizendo desconhecer qual a razão pela qual a assistente o acusa, mas imaginando que tenha a ver com algum propósito de vir a beneficiar em termos patrimoniais. Admitiu que havia discussões entre o casal — o que é normal mas diz que nunca agrediu a assistente, como vem descrito na pronúncia. O arguido tem o direito de negar os factos, mas não logrou convencer o Tribunal de que todos os demais depoimentos e meios de prova supra referidos tivessem sido uma cabala para o prejudicar.
Quanto às testemunhas de defesa, P... , L... , H... e F... , são todas, à excepção do H... , colegas de trabalho do arguido, sendo a última patrão deste. Foram todas unânimes em dizer que consideram o arguido da máxima correcção e educação, e que é muito trabalhador, dizendo, ainda, que ficaram muito surpreendidas com a acusação feita ao arguido pela esposa, porque o não pensavam — e não pensam — capaz de tal. Nenhuma dúvida nos mereceu o depoimento destas testemunhas sobre a personalidade relevada pelo arguido no trabalho e em sociedade, sendo certo, todavia, que daí se não pode extrapolar para um bom comportamento em casa. O perfil típico do agressor conjugal é, exactamente, a dupla face que exibe em público e em privado — o que bem foi relatado pela assistente, dizendo que o arguido, perante outras pessoas, não se mostrava da mesma maneira.
Quanto às condições sócio-económicas do arguido, relevaram, para a formação da convicção do Tribunal, as declarações daquele e os depoimentos das testemunhas de defesa referidas supra.
No que respeita aos antecedentes criminais, o Tribunal atendeu ao CRC junto aos autos.
Os factos não provados deveram-se à total ausência de meios probatórios, sendo que não foram os factos em causa relatados quer pela assistente, quer pelas testemunhas inquiridas, nem tão pouco resultaram das declarações do arguido.
**

3. Apreciação

As conclusões 1 a 7 e 35 a 42 referem-se à nulidade da sentença por falta de exame crítico dos meios de prova. E as conclusões 8 a 34 e 43 reportam-se à impugnação da apreciação da prova efectuada.
Assim, de um lado, o recorrente sustenta a ausência de exame crítico da prova; e de outro, critica os fundamentos dessa apreciação efectuada pelo tribunal recorrido previamente negada.
A crítica dirigida à valoração da prova efectuada pela decisão recorrida evidencia que o recorrente compreendeu perfeitamente a fundamentação da decisão. Tanto que, depois de negar a sua existência critica o seu bom fundamento ou o mérito dessa mesma fundamentação, sustentando que não deve prevalecer.
O que demonstra que se trata de uma questão de discordância da fundamentação que não da sua ausência, levando, só por si, à improcedência da invocada nulidade.
De qualquer forma da reprodução da sentença recorrida, supra efectuada, resulta manifesto que a decisão recorrida procede à apreciação de todos os meios de prova produzidos, apreciando a credibilidade de cada depoimento em função da razão de ciência de cada depoente, do seu interesse na causa, da “proximidade” com o caso e os sujeitos processuais, bem como do seu confronto/corroboração pela prova pericial e regras da experiência comum.
Veja-se, além do mais (reproduz-se novamente):
O Tribunal formou a sua convicção, quanto aos factos praticados pelo arguido, com base na conjugação e apreciação crítica dos vários meios de prova produzidos.
Assim, as declarações da assistente, conjugadas com o auto de exame médico de fls. 13 a 15 (a assistente referiu que deu luta para se libertar das mãos do arguido, pelo que em nada nos surpreende o facto de daquele exame médico resultar como lesão visível uma equimose na face da assistente), convenceram o Tribunal quanto aos factos ocorridos em 22/01/2007, na casa do casal, sendo que aquelas declarações foram prestadas de modo que nos mereceu inteira credibilidade, de modo circunstanciado, revelando a assistente uma postura objectiva e séria. Revelador dessa seriedade foi o facto de a assistente ter admitido, de pronto, que o documento junto a fls. 101 nada tinha a ver com qualquer agressão por banda do arguido, mas apenas com um acidente de trabalho (sendo certo que a junção de tais elementos hospitalares não foi da autoria da assistente, mas foi ordenada pelo Tribunal, sem menção de datas — cfr. fls. 94).
Acresce que as declarações da mesma quanto aos factos — passados no seio do lar conjugal, e por isso, como é natural, não presenciados por terceiros — foram, ainda, reforçadas pelos depoimentos das testemunhas A... , então vizinha do casal, que disse que houve um dia em que a assistente lhe foi pedir ajuda para buscar a sua carteira a casa, porque o arguido lhe tinha batido, apresentando-se a assistente muito nervosa e a chorar; e D... , que, também não tendo assistido a qualquer agressão, disse, no entanto, que no dia em que a assistente acabou por sair de casa, viu-a com marcas vermelhas no pescoço e a chorar, queixando-se que o marido lhe tinha batido, tendo-se oferecido a testemunha para acompanhá-la à polícia e para buscar as suas coisas a casa. Os referidos depoimentos pareceram-nos sérios e descomprometidos, merecendo credibilidade ao Tribunal.
No confronto com estes elementos de prova, surgem-nos as declarações do arguido, o qual negou a prática dos factos em questão, dizendo desconhecer qual a razão pela qual a assistente o acusa, mas imaginando que tenha a ver com algum propósito de vir a beneficiar em termos patrimoniais. Admitiu que havia discussões entre o casal — o que é normal mas diz que nunca agrediu a assistente, como vem descrito na pronúncia. O arguido tem o direito de negar os factos, mas não logrou convencer o Tribunal de que todos os demais depoimentos e meios de prova supra referidos tivessem sido uma cabala para o prejudicar.
Quanto às testemunhas de defesa (…) Nenhuma dúvida nos mereceu o depoimento destas testemunhas sobre a personalidade relevada pelo arguido no trabalho e em sociedade, sendo certo, todavia, que daí se não pode extrapolar para um bom comportamento em casa. O perfil típico do agressor conjugal é, exactamente, a dupla face que exibe em público e em privado — o que bem foi relatado pela assistente, dizendo que o arguido, perante outras pessoas, não se mostrava da mesma maneira.»» (fim de reprodução).

Perante a reprodução acabada de efectuar, em especial as passagens com destaque em itálico, dizer que a sentença não aprecia criticamente a prova produzida equivale a negar, por não querer ver, o óbvio.
Em síntese, estando em causa ofensa á integridade física, existindo prova pericial da lesões físicas atribuídas pela assistente à conduta consciente do arguido, embora negando este a agressão, o tribunal deu-a como provada com base na conjugação da prova pericial com o depoimento da queixosa, tido por credível e sério (pelas razões enunciadas, designadamente por ter reconhecido que documentos juntos em audiência, aparentemente favoráveis ao seu ponto de vista, não se reportam à matéria da acusação) além de corroborado pelos depoimentos das testemunhas, que, ainda que não tendo presenciado a agressão (intra muros, entre marido e mulher) testemunharam que a ofendida se lhes dirigiu queixando-se de que o arguido a agredira e que apresentava marcas visíveis de agressão.
Aliás o recorrente, contraditoriamente, depois de invocar a nulidade da sentença por falta de exame crítico da prova, critica essa mesma apreciação, demonstrando que é uma questão de discordância do mérito da análise efectuada que não de ausência dela.
É pois manifesta a falta de fundamento da alegada falta de apreciação crítica da prova.
*

Em termos de valoração da prova invoca o recorrente a insuficiência da prova para o estabelecimento dos factos com base na alegada contradição entre a prova testemunhal e a prova pericial e violação do princípio in dubio pro reo.
A este respeito, postula o art. 127º do C. P. P.: Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
O princípio da livre convicção ressuma da apreciação crítica e racional dos meios de prova validamente produzidos, fundada nas regras da experiência mas também da lógica e da ciência, exigindo que a convicção do julgador seja objectivada e motivada, únicas características que lhe permitem impor-se a terceiros.
A livre convicção não pode nem deve significar o impressionista-emocional arbítrio ou a decisão irracional “puramente assente num incondicional subjectivismo alheio à fundamentação e a comunicação” – cfr. Prof. Castanheira Neves, citado por Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 1, 43.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias (Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss), que no processo de formação da convicção há que ter em conta os seguintes aspectos:
- a recolha dos dados objectivos sobre a existência ou não dos factos com interesse para a decisão, ocorre com a produção de prova em audiência,
- é sobre estes dados objectivos que recai a livre apreciação do tribunal, como se referiu, motivada e controlável, balizada pelo princípio da busca da verdade material,
- a liberdade da convicção anda próxima da intimidade pois que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos conhecimentos não é absoluto, tendo como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, portanto, as regras da experiência humana.
Assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque para a sua formação concorrem a actividade cognitiva e ainda elementos racionalmente não explicáveis como a própria intuição.
Esta operação intelectual, não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis) e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente — aqui relevando, de forma especialíssima, os princípios da oralidade e da imediação — e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” - cfr. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss..

A gravação dos depoimentos prestados oralmente em audiência permite o controlo, pelo tribunal superior, da conformidade da decisão com as afirmações produzidas em audiência. Mas não substitui a plenitude da comunicação que se estabelece na audiência pública com a discussão cruzada dos meios de prova, a oralidade e imediação, no confronto dialéctico dos depoentes por parte dos vários sujeitos processuais, no exercício vivo do contraditório, na discussão cruzada levada a cabo na plenitude da audiência, pública, de discussão e julgamento.
E “só os princípios da oralidade e da imediação permitem avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Só eles permitem, por último, uma plena audiência desses mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso” – Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, p. 233-234.
Daí que os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, perante duas versões dos factos, só podem afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da 1ª instância, naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art. 347º, n.º2 do CPP – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, p. 126 e 127, que por sua vez cita o Prof. Figueiredo Dias e jurisprudência uniforme desta Relação, designadamente acórdãos 19.06.2002 e de 04.02.2004, nos recursos penais 1770/02 e 3960/03; 18.09.2002, recurso penal 1580/02; Ac. R. C. de 06.03.2002, publicado na CJ, ano 2002, II, 44.
A convicção do tribunal é formada antes de mais com base nos dados objectivos fornecidos pela prova documental, pericial e outras provas constituídas de apreciação vinculada. Conjugando e articulando criticamente esses meios de prova com os depoimentos prestados na plenitude da audiência, apreciados em função do distanciamento de cada depoente do objecto do processo, da sua razão de ciência, das certezas e das lacunas dos depoimentos, das humanas paixões, da ligação de cada depoente ao objecto do litígio e aos sujeitos processuais, na comunicação dialéctica que se estabelece na audiência de discussão e julgamento, sob a fiscalização directa dos sujeitos processuais, sob a vigilância da comunidade, na publicidade da audiência.
Por outro lado a certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza prática, empírica, moral, histórica – crf. Climent Durán, La Prueba Penal, ed. Tirant Blanch, Barcelona, p. 615.

Toda a decisão judicial constitui - precisamente - a superação não só da dúvida metódica, como da “dúvida razoável” sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do acusado. Daí a submissão a um rígido controlo formal e material do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno.

O princípio in dubio pro reo situa-se no âmago da livre apreciação da prova. Constituindo como que “o fio da navalha” onde se move a missão de julgar. Livre convicção e dúvida razoável limitam-se e completam-se reciprocamente, obedecendo aos mesmos critérios de legalidade da produção e da valoração da prova e da sua apreciação em conformidade com o critério do art. 127º do CPP. Sujeito ainda à mesma exigência de legalidade da prova e da sua apreciação motivada e crítica, da objectividade, racionalidade e razoabidade dessa apreciação.

O princípio in dubio pro reo é considerado pela doutrina largamente maioritária um princípio estritamente atinente ao direito probatório, como tal relevante em termos da apreciação da questão de facto e não na superação de qualquer questão suscitada em matéria de direito – cfr. entre outros Cavaleiro Ferreira, Direito Penal Português, 1982, vol. 1, 111, Figueiredo Dias Direito Processual Penal, p. 215, Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967-1968, p. 58.

Constituindo um princípio geral de direito (processual penal) cuja violação conforma uma autêntica questão-de-direito – Cfr. Medina Seiça, Liber Discipulorum, p. 1420; Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1974, p. 217 e segs.), criticando o entendimento contrário do STJ.

Significando que “em caso de dúvida razoável, após a produção de prova, tem de actuar em sentido favorável ao arguido” – formulação de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, ed. de 1974, p. 215, fazendo a síntese da doutrina.
Não é assim toda a dúvida, lançada em abstracto, que legitima o funcionamento deste princípio – estando em causa factos pretéritos existe sempre uma dúvida abstractamente possível sobre a sua verificação e/ou autoria, na certeza de que quem os aprecia não os presenciou. Mas apenas a dúvida argumentada que, em concreto - após a produção e análise crítica de todos os meios de prova relevantes e sua valoração de acordo com os critérios legais – deixa o julgador (objectivo e distanciado do objecto do processo) num estado em que permanece como razoavelmente possível mais do que uma versão do mesmo facto.
Com efeito “A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme á razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio razoável” – cfr. Ac. STJ de 04.11.1998, BMJ 481º, p. 265.
A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de formação de uma convicção positiva sobre a realidade e/ou a autoria de um facto, distingue-se da dúvida abstracta, meramente possível, ou hipotética. Apenas a dúvida séria e razoável - identificada, resultante da apreciação exaustiva e crítica dos meios de prova relevantes em conformidade com os critérios legais de produção e valoração da prova - impede a valoração dessa dúvida na perspectiva contrária ao interessa do arguido.
A dúvida deve ser argumentada, coerente, razoável – cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (19966), p. 25.
Assim, dúvida e convicção constituem como que a face e verso do critério geral de apreciação da prova, limitando-se reciprocamente. Ambas devem ser fundamentadas na apreciação crítica e racional dos meios de prova. Acabando a livre convicção positiva onde surge a dúvida razoável; e deixando de subsistir a dúvida razoável quando o tribunal estabelece a convicção positiva ancorada numa análise objectiva e racional dos meios de prova validamente produzidos e valorados em conformidade com os critérios legais. A livre convicção assenta na legalidade da prova, nos critérios de apreciação vinculada e, na ausência destes, na razoabilidade da sua apreciação á luz do critério previsto no art. 127º do CPP. E o princípio in dubio pro reo assenta, afinal, no mesmo critério. Uma e outro estão limitados pela legalidade da prova e pela razoabilidade da análise crítica dos meios de prova validamente produzidos sobre o facto submetido a juízo - conhecimentos científicos adquiridos, racionalidade, objectividade, regras do convívio social, da proximidade, interesses, paixões subjacentes a cada depoimento na dimensão da condição humana.
*

Focando o caso concreto pode dizer-se, liminarmente, que a negação da motivação da decisão, deixa antever a ausência de razões de fundo para discutir ou rebater essa motivação, sendo por isso ignorada.
A decisão recorrida não refere, em ponto algum, que as testemunhas presenciaram a agressão. Pelo contrário deixa claro que deu como provada a ofensa apesar de não presenciada por ninguém para além do casal interveniente, no recesso do lar.
Por outro lado, não é verdadeira a asserção conclusiva ínsita na conclusão 15ª - que as testemunhas A... e D... tenham deposto, exclusivamente, com base no que a assistente lhes contou.
Com efeito, A... , então vizinha do casal, referiu, além do mais, que “houve um dia em que a assistente lhe foi pedir ajuda para buscar a sua carteira a casa, porque o arguido lhe tinha batido, apresentando-se a assistente muito nervosa e a chorar”.
Depôs assim sobre o pedido da ajuda que lhe foi dirigido directamente e daquilo que então presenciou - ofendida “nervosa e a chorar … queixando-se de o marido lhe ter batido”.
Pedido de ajuda, entre mulheres, que seria incompreensível sem um justificado motivo.
Sendo certo que, dirigindo a testemunha a sua atenção, naturalmente, para o pedido de ajuda, atenta a natureza das lesões (mera equimose na face direita compatível com pressão na face pelos dedos da mão - cfr. relatório do exame médico legal a fls. 15), é perfeitamente possível não se ter apercebido das mesmas, no momento.
Também D... , embora não tendo assistido à agressão, situa a ocorrência no “dia em que a assistente acabou por sair de casa”.
Dizendo que a viu “com marcas vermelhas no pescoço e a chorar, queixando-se que o marido lhe tinha batido, tendo-se oferecido a testemunha para acompanhá-la à polícia e para buscar as suas coisas a casa”.
De onde resulta que embora não incidindo directamente sobre a agressão constitui depoimento directo na medida em que contextualiza a ocorrência e refere as “marcas” no corpo da queixosa, ajustadas à agressão de que se queixava, visionadas pela própria testemunha. Além de corroborarem as declarações da queixosa sobre cuja honestidade não foi lançada, qualquer sombra. Tanto mais que dúvida não há de que efectivamente sofreu as lesões descritas no auto de exame médico-forense. E não emergiu da discussão da causa qualquer outra causa possível, muito menos razoável, das referidas lesões.
Por outro lado, ao contrário do que sustenta o recorrente, não existe qualquer contradição entre os testemunhos e a prova pericial – os testemunhos não excluem ou não atestem que a assistente não tivesse ou não pudesse ter sofrido as lesões que vieram a ser examinadas. Pelo contrário uma atesta que viu “marcas vermelhas” ajustadas à agressão de que se queixava, sofridamente, imputando a agressão ao marido. Sendo certo que as “marcas vermelhas no pescoço” referidas pela testemunha não são incompatíveis com a lesão na cara que veio a manifestar-se na equimose descrita no exame.
Do mesmo modo a circunstância de a outra testemunha não se ter apercebido de qualquer lesão, não inviabiliza que a mesma existisse ou pudesse existir efectivamente. Sabido que as equimoses não se manifestam de imediato, constituindo a vulgar “negra” que apenas costuma aparecer algum tempo depois da lesão, consequência do derrame sanguíneo e deterioração dos tecidos.
E no caso o Exame médico-legal foi efectuado no dia seguinte (32.01.2007 – cfr. fls. 15). Precisamente quando as equimoses costumam revelar-se.
A prova pericial, pela sua natureza descreve, objectivamente, as lesões visionadas, com o auxílio da lege artis do perito.
Não podendo, pela natureza da perícia, subtraída à livre apreciação (art. 163º do CPP) haver contradição entre a descrição efectuada no exame e uma outra qualquer (que no caso não existe) que pudesse ser indicada por uma testemunha sem conhecimentos específicos na matéria, havendo, em tal hipótese, não verificada, diga-se, que prevalecer a descrição efectuada na perícia.
As testemunhas de defesa nada disseram – nem podiam dizer - sobre a ocorrência porque não têm qualquer razão de ciência sobre a mesma. Sendo certo que a reputação do arguido não obsta a que num determinado contexto de litígio aberto e discussão e com a consorte possa ter perdido o controlo e ter praticado os factos questionados.
Permanece a negação do recorrente.
O arguido não é obrigado a prestar declarações não podendo retirar-se qualquer consequência probatória do exercício do direito ao silêncio. No entanto daí não resulta o oposto, ou seja, quando decide prestar declarações, não existe preceito que lhe atribua qualquer presunção legal de verdade.
Não se lhe exige qualquer contributo, por mínimo que seja, para a sua auto-incriminação. Mas, ao contrário do que parece supor o recorrente, a negação da prática dos factos da acusação não tem valor de prova (muito menos plena) da sua inexistência. Ou de “confissão” da negação dos factos da acusação - que equivaleria a atribuir a força de prova plena, não só de factos negativos como ainda de factos favoráveis ao “confitente”.
O artigo 344º, n.º1 do CPP prevê expressamente a valoração da confissão do arguido. Fazendo-o porém – cfr. corpo do referido preceito - relativamente aos “factos que lhe são imputados”.
Reporta-se à confissão do arguido quanto a “factos que lhe são imputados”. O mesmo é dizer, factos descritos na acusação, constitutivos do crime ou crimes imputados na acusação, como tal “desfavoráveis” ao confitente.
Em conformidade com elementares regras da experiência (por princípio ninguém confessa factos que o prejudiquem) mas com o princípio enunciado pelo artigo 353º do C. Civil: Confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.
E o recorrente, limitando-se a negar a ofensa física à ofendida, acaba por assumir “razões” (ainda agora não esquecidas) que constituem um móbil adequado para a ofensa à integridade física da mulher - cfr. designadamente o “abandono do lar” e “usurpação de património” de que acusa a ofendida no excerto do depoimento reproduzido na conclusão 18ª. Além das discussões também ali assumidas.
Sendo certo que durante a discussão da causa em audiência (onde toda a prova é produzida ou analisada – art. 355º do CPP) não foi ventilada qualquer outra causa, possível, muito menos plausível ou razoável, para as lesões objecto do exame pericial, que não o diferendo com o marido ocorrido na véspera e de que a assistente apresentara queixa, prontamente, na GNR.
Em conclusão, apontando a conjugação de todos os meios de prova produzidos (exaustivamente analisados e apreciados criticamente à luz das normas vigentes em termos de valoração e apreciação da prova) claramente no sentido assumido pela decisão recorrida, esta não merece censura.
*

Inscrevendo-se a motivação do recurso apenas em matéria de facto, nada mais há a considerar, designadamente em termos de direito.

***

III. Decisão
Nestes termos decide-se negar provimento ao recurso, julgando-o improcedente. -
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) UC.