Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1731/08.2TXCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO VENTURA
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
PRISÃO POR DIAS LIVRES
Data do Acordão: 07/20/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DE PENAS - COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 61º
Sumário: O disposto no artº 61º do Código Penal e o regime da liberdade condicional não se aplica às penas cumpridas de forma não contínua, mormente à pena de prisão por dias livres.
Decisão Texto Integral: I. Relatório



[1] Nos presentes autos, com o NUIPC 1731/08.2TXCBR.C1 do Tribunal de Execução das Penas de Coimbra, veio o Ministério Público interpor recurso do despacho que negou a apreciação da liberdade condicional ao arguido, extraindo as seguintes conclusões:
1. Antes da última revisão do CPP apenas a prisão carcerária podia ultrapassar os seis meses;
2. O regime de semi-detenção ou prisão por dias livres não podia ter duração superior a seis meses;
3. Não existia a pena de prisão domiciliária, cuja duração máxima pode ser superior a seis meses;
4. A todas as formas de cumprimento de pena de prisão com uma duração superior a seis meses, tem de se aplicar o instituto da liberdade condicional;
5. Tal aplicação implica a necessária adaptação dos respectivos termos;
6. Não se vê a razão de ser de distinguir as diversas formas de cumprimento da pena de prisão para se concluir que apenas à prisão carcerária se aplica o instituto da liberdade condicional;
7. Aquilo que no espírito da lei releva é a privação drástica do bem jurídico que é a liberdade, não apenas que esta privação resulte da cadeia cumprida de forma contínua;
8. Ubi lex non distinguit, nec non destinguere debemos;
9. Foram violadas as normas dos artigos 61º e do Código Penal e 484º do Código do Processo Penal.

[2] O condenado não apresentou resposta.
[3] A Srª Juiz do T.E.P. admitiu o recurso e manteve a decisão.
[4] Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral adjunto apôs visto, salientando que o termo da pena ocorrerá a 02/08/2009, altura em que o recurso perderia utilidade.
[5] Entende-se que o recurso deve ser rejeitado, por manifesta improcedência, pelo que cabe proferir decisão sumária, com especificação abreviada dos fundamentos da mesma (artºs. 417º, nº6, al. b) e 420º, nº1, al. a) e 2, do CPP).

II. Fundamentação

2.1. Âmbito do recurso
[6] A questão colocada no recurso consiste em saber se o disposto no artº 61º do Código Penal e o regime da liberdade condicional aplica-se às penas cumpridas de forma não contínua, mormente à pena de prisão por dias livres.

2.2. Elementos relevantes para o recurso
[7] Para a apreciar da questão colocada, importa reter os seguintes elementos:
i. Por acórdão proferido nesta relação em 09/01/2008, foi N... condenado na pena de 10 meses de prisão, a cumprir em regime de dias livres.
ii. Por despacho de 11/06/2008, foi liquidada a pena em 60 (sessenta) períodos correspondentes a um fim-de-semana, com termo em 02/08/2009.
iii. Em 15/09/2009 foi proferido o despacho recorrido, com o seguinte teor:
Não cumprindo pena em regime contínuo (artº 61 do C.P.), não há lugar a apreciação da liberdade condicional. Assim, oportunamente arquive.

2.3. Apreciação

[8] Entrando na apreciação dos fundamentos do recurso, importa dizer que estamos perante recurso manifestamente falho de razão. Vejamos.
[9] A argumentação apresentada pela magistrada recorrente reduz-se à consideração de que também a prisão por dias livres pode ter duração superior a seis meses e à identidade da situação dos presentes autos com aquela em que o arguido cumpre a pena em regime de permanência na habitação. Para tanto, aponta a regra de interpretação de que onde a lei não faz distinção, também o intérprete a não deve fazer.
[10] Simplesmente, é patente que não existe igualdade de situações, vistas à luz da teleologia da liberdade condicional.
[11] O instituto da liberdade condicional foi introduzido no nosso ordenamento jurídico por legislação de 1893, então com natureza graciosa, com o sentido de benefício ou prémio aos condenados, a título de estímulo e recompensa pela boa conduta na prisão António Manuel de Almeida Costa, Passado, Presente e Futuro da Liberdade Condicional no Direito Português, in Boletim da Faculdade de Direito, Vol.LXV-1989 e assim subsistiu até ao Código Penal de 1982. Passou então a inscrever-se na finalidade de ressocialização da intervenção penal, como emerge do seguinte passo do preâmbulo: «Definitivamente ultrapassada a sua compreensão coma medida de clemência ou de recompensa por boa conduta, a liberdade condicional serve, na política do Código, um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão».
[12] Sem tomar aqui posição quanto à aplicabilidade de jure constituto do regime da liberdade condicional ao regime de cumprimento de pena em regime de permanência na habitação A questão está longe de recolher uniformidade jurisprudencial., certo é que nessas situações encontra-se afastamento do convívio social regular durante toda a sua duração, podendo então argumentar-se que existe analogia com a prisão efectiva de duração superior a seis meses.
[13] Porém, na pena de prisão por dias livres o mesmo não acontece. O condenado vê intocadas as condições de interacção social, com destaque para a permanência do contacto familiar e dos vínculos laborais, vendo a sua liberdade coactada unicamente durante os fins-de-semana.
[14] Numa perspectiva de prevenção especial positiva, finalidade em que assenta o instituto da liberdade condicional, não existem aqui os perigos de diminuição de capacidades na interacção social que justificam estabelecer um período de transição regulada entre a prisão e a liberdade, nem existe propriedade em desenvolver juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do delinquente em liberdade. Afinal, essa liberdade acontece regularmente durante todos os dias de semana que decorrem entre os períodos de reclusão.
[15] É que a magistrada recorrente esquece que a pena de prisão por dias livres constitui verdadeira pena de substituição Assim Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, págs. 335-336., e não apenas uma forma de cumprimento de pena de prisão (contínua), orientada exactamente por evitar as consequências criminógenas daquela, incorporando já na apreciação dos seus pressupostos os propósitos político-criminais que regem a liberdade condicional.
[16] Por outro lado, reclama por identidade de tratamento mas, na verdade, o entendimento propugnado introduziria injustificada diferença de tratamento entre o condenado a que fosse aplicada a pena de um ano de prisão efectiva (contínua) e prisão por dias livres em substituição dessa mesma pena. Enquanto ao primeiro não seria aplicável liberdade condicional, dada a regra do artº 61º, nº2 do C.P., já a imposição, no limite, de 72 períodos distribuídos por mais de um ano, permitira ao segundo beneficiar desse instituto, apesar de menores consequências criminógenas.
[17] Não se ignora voz autorizada que considera que o legislador pode ter ido longe demais quando admite que a pena da prisão por dias livres decorra por mais de um ano, ao ponto de questionar se ainda é compatível com os propósitos político-criminais originários Cfr. Des. Jorge Gonçalves, A revisão do Código Penal: alterações ao sistema sancionatório, Revista do CEJ, nº 8, 2008, pág. 26. e não gera os mesmos efeitos criminógenos da pena curta de prisão. Simplesmente, afigura-se-me que essa ponderação deve ser feita no momento da escolha por essa pena de substituição detentiva, em que se atende à solidez da inserção socioprofissional a preservar e à capacitação do condenado para suportar aquela pena de substituição sem desestruturação.
[18] Note-se ainda que o legislador faz equivaler o período máximo de quarenta e oito horas a cinco dias de prisão contínua Artº 45º, nº3 do C.P., o que significa que essa maior severidade da prisão por dias livres já encontra tradução na redução da reclusão, ajudando a tornar clara a ausência de identidade normativa entre o cumprimento continuado de seis meses de privação de liberdade e a prisão por dias livres durante igual período.
[19] Por estas razões, considero que o condenado N..., porque imposta pena de prisão por dias livres, não pode beneficiar de liberdade condicional e que o recurso deve ser rejeitado, por manifestamente improcedente.

III. Tramitação do recurso no T.E.P.
[20] O presente recurso tem a natureza urgente conferida pelo artº 103º, nº2, al. a) do C.P.P.. Constata-se, porém, que foi interposto em 27/10/2008 mas apenas foi remetido a esta Relação em 13/07/2009, ou seja, sete meses e meio depois e em data muito próxima do final de cumprimento da pena de prisão por dias livres.
[21] Nesse período, verifica-se que entre o despacho de fls. 42 e o seu cumprimento passaram 21 dias e que os autos estiveram vários meses parados entre o decurso do prazo de resposta do mandatário do condenado e a abertura de conclusão, em 22/06/2009. Acresce que, por despacho de 26/06/2009, a fls. 57, foi ordenado que a secção do TEP informasse sobre as razões para essa demora na tramitação, o que não foi cumprido, seguindo os autos para esta Relação.
[22] Assim, e para apreciação em sede própria, será ordenada a remessa de certidão integral dos autos ao C.O.J.

IV. Dispositivo
Pelo exposto, decide-se:

1. Rejeitar o recurso, por manifestamente improcedente (artº 420º, nº1, al. a) do CPP).

2. Sem custas.

3. Extraia certidão integral do processado, incluindo esta decisão, e remeta ao C.O.J..

Notifique.




Texto elaborado em computador e revisto (artº 94º nº2 do CPP).

Recurso nº 1731/08.2TXCBR.C1

Coimbra, 20/07/2009

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(Fernando Ventura)