Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1653/18.3T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: DIREITO DE VIZINHANÇA
DIREITO DE PROPRIEDADE
FUNÇÃO SOCIAL
VIZINHOS
PLANTAÇÃO DE ÁRVORES
Data do Acordão: 06/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – J.L. CÍVEL DA FIG. DA FOZ – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1305º E 1366º, Nº 1, AMBOS DO C. CIVIL.
Sumário: a) A moderna teorização do “direito de vizinhança” não se compadece com uma concepção pandectística do direito de propriedade, baseando-se antes na função social do direito de propriedade, pelo que a problemática da vizinhança deriva sobretudo da “relação de facto” emergente da utilização da propriedade em consequência do exercício da actividade económica privada, socialmente vinculada, cujo equilíbrio da “coexistência pacífica” é rompido pela perturbação anormal ou excessiva, isto é, intolerável.

b) É justamente o rompimento desse equilíbrio, com a violação das obrigações recíprocas de vizinhança, que faz desencadear o mecanismo sancionatório, com vista à reposição do “status quo ante”, quer através da tutela ressarcitória, quer da tutela inibitória.

c) Em determinadas situações o proprietário do prédio vizinho está legitimado a impor ao proprietário lesante a prática de actos necessários a evitar a lesão (o corte de raízes, ramos ou mesmo das árvores), pois que o art.1366º, nº 1 do CC não obsta ao exercício do direito de exigir os actos necessários à remoção das agressões tanto com fundamento no art.1305º CC, como por aplicação analógica do art.1346º CC.

d) Constitui princípio geral do direito civil o dever geral de prevenção do perigo, no sentido de que quem cria ou mantém uma situação especial de perigo tem o dever jurídico de agir, tomando as providências necessárias para prevenir os danos com ela relacionados.

Decisão Texto Integral:









Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1.1.- A Autora – M (…) e marido E (…)– instauraram (13/10/2016) acção declarativa, com forma de processo comum, contra os Réus

J (…)

C (…) e mulher A (…)

R (…) e mulher I (…)

Alegaram, em resumo:

Os Autores são donos de uma moradia unifamiliar de rés – do – chão e primeiro andar, destinada a habitação e sita na Rua (…) (...) .

Os Réus, únicos e universais herdeiros de M (…) e C (…), são donos e legítimos compossuidores em comum e partes iguais de uma casa de habitação composta de cave ampla para garagem, rés–do–chão e primeiro andar, o qual confina do lado sul, em toda a sua extensão com o prédio dos AA.

Ambos os prédios se encontram murados por esse lado, sendo o muro propriedade dos A.A. que o construíram.

Há cerca de 9 anos a esta parte, mais concretamente durante o ano de 2007, os RR., mesmo junto à estrema do lado norte do seu prédio e em toda a extensão desta, plantaram cerca de 30 cedros, da espécie Cedrus Deodara Loud, ou vulgarmente denominado Cedro – do – Himalaia. Tais árvores devido ao seu grau de desenvolvimento, já atingem proporções manifestamente grandes, em tão curto espaço de tempo, mais concretamente cerca de 10 metros de altura, estando ainda em plena fase de crescimento.

Por esse facto verificam-se infiltrações das raízes no prédio dos A.A., ocasionando o levantamento do pavimento do logradouro do mesmo, bem como inúmeras rachas ao longo do muro que separa ambas as propriedades.

Além disso, as árvores ensombram a casa dos A.A., impedindo a penetração do sol dos lados sul e oeste da mesma e tornando-a excessivamente húmida. Em dias de forte ventania, a ramagem das mesmas árvores bate na varanda, janelas e telhado da casa dos A.A., ao mesmo tempo que fazem muito barulho ensurdecedor, e em dias de fortes chuvadas, desprendem-se dessas árvores ramagens secas e não só, as quais se depositam prédio dos A.A., ocasionando o entupimento dos ralos de escoamento existentes no mesmo.

A copa das mesmas árvores, dada a sua densidade e posicionamento, devido a se encontrarem mesmo em cima do muro do prédio dos A.A., permite a proliferação indiscriminada de insectos, moscas e mosquitos em quantidades muito superiores ao normal, o que afecta a salubridade do prédio destes. 

Pediram a condenação dos Réus:

 a) – A reconhecerem o direito de propriedade dos A.A. sobre o prédio referido no art. 1º da petição e em consequência absterem-se de praticar quaisquer actos que prejudiquem o normal exercício do direito de propriedade destes sobre o mesmo.

 b) – A reconhecer que a plantação das árvores id. na PI, atentas as suas características, é manifestamente ilegal e serem os Réus condenados a removê-las em toda a extensão da estrema sul do prédio dos A.A.

c) - Quanto assim se não entenda, serem os mesmos Réus condenados, a removerem as mesmas árvores do acima referido lado sul do prédio dos A.A.

d) - Serem ainda os Réus condenados solidariamente a  pagarem aos Autores a quantia de € 5.000,00€ a título de indemnização por todos os danos sanos não patrimoniais.

Contestou a Ré com a  ilegitimidade passiva para a presente acção por ser divorciada do co-Réu R (…), concluindo pela improcedência da acção.

Contestaram os RR defendendo-se por impugnação motivada, alegando que as árvores foram plantadas durante o ano de 2007e são cedros vermelhos pelo que não podem atingir as dimensões indicadas pelos AA.

Há muito que vem querendo aparar as árvores do lado dos AA , o que não tem conseguido porque os AA disso impedem e não permitem subir ao muro, exigindo ao RR que corte as arvores pela raiz.

1.2.- No saneador julgou-se procedente a excepção de ilegitimidade passiva da Ré I…) absolvendo-a da instância.

1.3.- Realizada audiência de julgamento, foi proferida (28/12/2018 )  sentença que, na parcial procedência da acção, decidiu condenar os Réus a reconhecerem o direito de propriedade dos A.A. sobre o prédio dos AA supra descrito em 1. , absolvendo os Réus do demais pedido.

          1.4. Inconformados, os Autores recorreram de apelação com as seguintes conclusões:

(…)

          Os Réus contra-alegaram no sentido da improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO

          2.1.- O objecto do recurso

          A nulidade da sentença

          A contradição de facto

O direito de vizinhança, o direito de propriedade e a tutela dos direitos de personalidade – a acção inibitória.

          2.2.- A nulidade da sentença

          Os Apelantes arguiram a nulidade da sentença (art.615 nº1 c) CPC), alegando que os fundamentos estão em manifesta oposição com a decisão.

As nulidades da sentença reconduzem-se a erros de actividade ou de construção e não devem confundir-se com erros de julgamento (de facto ou de direito).

A nulidade por contradição verifica-se quando os fundamentos de facto e de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão. Trata-se de um vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso. Porém, esta nulidade não abrange o erro de julgamento, seja de facto ou de direito, designadamente a não conformidade da sentença com o direito substantivo.

Para além de não concretizarem, os Apelantes justificam num pretenso erro de julgamento, o que tanto basta para a improcedência da nulidade da sentença.

          2.3.- A contradição de facto ( ponto 6 e ponto 11)

          O tribunal deu como provado que

6.º (art.º 17º da PI) Em data não concretamente apurada, os R.R., mesmo junto à estrema do lado norte do seu prédio e em toda a extensão desta, plantaram cerca de 30 cedros, de espécie não apurada.

“11.º (art.º 10.º) São da espécie “thuja plicata zebrina” ou cedro vermelho”

Para efeitos do disposto nos arts. 662º, nº2 c) CPC só releva a contradição insanável que pressupõe a existência de posições antagónicas e inconciliáveis entre a mesma questão de facto. A colisão deverá ocorrer entre a matéria de facto constante de uma das respostas e a matéria de facto de outra ou então com a factualidade provada no seu conjunto, de tal modo que uma delas seja o contrário da outra.

          Consistindo o vício da contradição em erro de julgamento, ele tem, no entanto, que resultar do texto da decisão recorrida, sem recurso a elementos externos (designadamente a elementos de prova), logo não pode confundir-se com a alteração da matéria de facto, com base no erro notório na apreciação da prova.

É evidente que se verifica contradição de facto, na acepção, definida, pois se por um lado se decide que os cedros são de espécie não apurada, por outro afirma-se que são espécie “thuja plicata zebrina” ou cedro vermelho”, conforme alegação dos Réus.

A contradição implica a anulação do julgamento, mas quando “não constando do processo todos os elementos  que, nos termos do número anterior permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto”, como dispõe o art.662 nº2 c) CPC. Isto significa, como escreve LOPES DO REGO que “ o exercício do poder de rescisão ou cassatório conferido por este preceito deverá, pois, entender-se como subsidiário relativamente aos poderes de reapreciação ou reexame dos pontos da matéria de facto questionados no recurso – só tendo lugar quando se revele absolutamente inviável o eficaz e satisfatório exercício destes pela Relação” ( Comentário ao Código de Processo Civil, pág.486 ).

          Ouvida a gravação da prova verifica-se que nenhuma das testemunhas caracterizou a espécie dos cedros, nem ela resulta dos documentos juntos (fotografias), pelo que se impõe manter o decidido no ponto 6 e julgar não provado o ponto 11.

2.4.- Os factos provados

1. (art.º 5 da PI) Os A.A. são donos e legítimos possuidores do seguinte prédio: “Moradia unifamiliar de rés–do–chão e primeiro andar, destinada a habitação e sita na Rua (…) (...) a confrontar do norte com (…), sul com (…), nascente com estrada e poente com futura zona verde e que faz parte do descrito na Conservatória do Registo Predial da (...) , sobre o número ... da freguesia de (...) e inscrita na matriz predial respectiva sob o art. ...

2. (art.6º da Pi) Este prédio adveio ao património dos A.A. por escritura de compra e venda celebrada no dia 4 de Outubro de 1985, no Cartório Notarial de (...) e lavrada de fls. ...

3. (art.º14º da PI) A “Casa de habitação composta de cave ampla para garagem, rés–do–chão com sala, um quarto, cozinha, dispensa, banho, vestíbulo e um alpendre e primeiro andar com três quartos, dois banhos e um vestíbulo, não descrita na Conservatória do Registo Predial da (...) e inscrita na matriz predial respectiva sob o art. ... pertence aos RR em comum e sem determinação de parte ou direito. 

 4. (art.º 15º da PI) O prédio dos A.A. confina do lado sul, em toda a sua extensão com o prédio dos R.R., 

5. (art.º 16ºda PI Ambos os prédios se encontram murados por esse lado, sendo o muro do lado dos AA pertença destes que o construíram.

 6.º (art.º 17º da PI) Em data não concretamente apurada, os R.R., mesmo junto à estrema do lado norte do seu prédio e em toda a extensão desta, plantaram cerca de 30 cedros, de espécie não apurada.

7.º (art.º 19º da PI) Essas árvores, atingiram uma dimensão não concretamente apurada, mas pelo menos nível do 1.º andar do prédio dos AA, de acordo com os documentos fotográficos juntos a fls. 18  a 23v. e 71v.

 8.º (art.º 25º da PI) Em dias de forte ventania, a ramagem das mesmas árvores bate na varanda, janelas e telhado da casa dos A.A., ao mesmo tempo que fazem um barulho ensurdecedor.

9.º (art.º 26º da PI) Nos dias de fortes chuvadas, desprendem-se dessas árvores ramagens secas e não só, as quais se depositam prédio dos A.A., ocasionando o entupimento dos ralos de escoamento existentes no mesmo. Contestação:

10.º (art .9 da Contestação) Ás arvores foram plantadas em 2003.

12.º (art.º 11.º) Esta é a terceira acção que os AA intenta com o mesmo objecto, apos a acção ordinária ... e a acção sumaria n.º ..., nas quais os AA narravam os mesmos factos, ou seja, já em 2009 e em 2012, os AA diziam que as arvores eram de “crescimento rápido” e que “em tão curto espaço de tempo” já haviam atingido “cerca de 10 metros de altura”

13.º (art.º 15) Em Outubro de 2016 as arvores já tinham as mesmas dimensões de Dezembro de 2009.

 14.º (art.º 26) O RR  aquando das obras efectuadas pelos AA., que culminaram na construção do muro e telheiro deu nota das suas preocupação junto dos competentes serviços camarários, nos termos constantes dos doc. 5 e 6 que junta com a contestação e que se dão por reproduzidos, sem que, contudo, tivesse obtido qualquer resposta.

15.º (art.º 41) O RR (…) há muito que vem querendo aparar as arvores do lado dos AA, de modo a não invadirem o espaço aéreo daqueles.

16.º (art.º 42) Só não o podendo fazer porque os AA disso impedem não permitindo subir ao muro para o fazer

2.5.- Os factos não provados

Da petição inicial:

- Os cedros foram plantados há cerca de 9 anos a esta parte, mais concretamente durante o ano de2007, 

São da espécie “thuja plicata zebrina” ou cedro vermelho

As árvores são da espécie Cedrus Deodara Loud, ou vulgarmente denominado Cedro – do – Himalaia, árvore conífera de grande porte e crescimento rápido que chega a atingir 40 a 50 metros de altura.

 - Ás arvores têm cerca de 10 metros de altura, estando ainda em plena fase de crescimento. 

 - Devido ao porte das mesmas árvores, já são inúmeras as infiltrações das raízes das mesmas no prédio dos A.A., ocasionando o levantamento do pavimento do logradouro do mesmo,

- Bem como ocasionando inúmeras rachas ao longo do muro que separa ambas as propriedades, ameaçando o mesmo, a curto prazo de perigo de ruptura devido não só à pressão da vegetação exercida no mesmo e das suas raízes, situação que foi confirmada pelo Serviço Municipal de Protecção Civil da Câmara Municipal da (...) . 

 - De acordo com a mesma peritagem acima referida, de igual modo, estes serviços municipais constataram e confirmaram uma eventual situação de risco para o prédio dos A.A. em caso de incêndio. 

- As árvores provocam humidade na habitação.

- Os AA veem-se obrigados a  limpar o logradouro do seu prédio diversas vezes ao dia, a fim de evitarem a sua inundação. –

  Aquelas árvores ensombram  a casa dos A.A., impedindo a penetração do sol dos lados sul e oeste da mesma.

- A copa das mesmas árvores, dada a sua densidade e posicionamento, devido a se encontrarem mesmo em cima do muro do prédio dos A.A., permite a proliferação indiscriminada de insectos, moscas e mosquitos em quantidades muito superiores ao normal, o que afecta a salubridade do prédio destes.

 - De igual forma, dado o mesmo posicionamento e densidade das acima referidas copas das árvores, estas permitem a passagem para o prédio dos A.A. de ratos e ratazanas por cima do muro, provenientes do prédio dos R.R.

Da contestação

11. As arvores já atingiram  o seu grau máximo de crescimento, não vindo a ultrapassar de futuro o tamanho actual.

19. As fissuras e rachas existentes no prédio dos AA resultam de deficiente edificação do muro , por os alicerces não serem suficientes bom.

21. O muro da propriedade da herança está intacto em toda a extensão que confina com as arvores, à excepção, exatamente, do local onde os muros dos AA. que suportam o telheiro existente na respetiva propriedade e o da herança confinam, onde apresenta fissuras.

24. Tal circunstancialismo aponta para o facto de ser o muro dos AA que, por deficiente edificação, se estará a deteriorar,

25. Provocando, idêntico efeito naquele edificado na propriedade da  herança.

28. O muro da herança (RR.) era, em toda a sua extensão, de muito menor altura do que actualmente, 29. tendo sido os AA. que, com a tolerância ou não oposição do pai dos RR., altearam esse muro, em cerca de 30 a 50 centímetros, para o colocarem à mesma altura  do deles próprios (AA.).

30. Sucede que o muro (do prédio da herança) não tem alicerces em alvenaria aptos a sustentar tão grande altura,

31. Motivo pelo qual vem fissurando ao longo da linha desse acrescento e,

32. bem assim, de alto a baixo, em cada diferença de nível (altura) do mesmo.

33. Isto é: em virtude da carga excessiva - em relação ao que fora projetado - provocada pelo alteamento efetuado pelos AA., o muro do prédio da herança apresenta linhas horizontais de fissura no ponto de junção do acrescento sobre o muro original, e linhas verticais de fissura nos pontos de elevação do muro - quer do original, quer do resultante dos acrescentos, 

34. Sendo precisamente do mesmo tipo as mesmas linhas de fissura nos sítios onde não existem árvores  e naqueles onde estão localizadas as árvores.

 36. As árvores estão aparadas e geram pouca sombra. 

          2.6.– O direito de vizinhança, o direito de propriedade e a tutela dos direitos de personalidade – a acção inibitória

A sentença, perspectivando a questão pelo direito de propriedade, no domínio das relações de vizinhança, negou a pretensão dos Autores, visto não se comprovar que a actuação dos Réus viole o direito de propriedade

          Em contrapartida, os Apelantes insistem na violação dos direitos fundamentais, de forma a justificar a acção inibitória.

          No conflito entre os titulares de prédios vizinhos, o problema da protecção da vizinhança é hodiernamente uma questão não só de direito privado, mas também de direito público, pelo que o já chamado “direito de vizinhança” ganha cada vez mais foros de cidadania, em que extrapolando a clássica tutela do direito privado se impõe como um verdadeiro direito subjectivo público.

          No caso concreto, o conflito estruturado pelas partes circunscreve-se aos parâmetros do direito privado, em sede das relações de vizinhança (arts.1346 e 1366 do CC) e à tutela dos direitos de personalidade dos Autores (art.70 nº2 do CC ).

A moderna teorização do “direito de vizinhança”, engendrada no terreno fértil da jurisprudência, não se compadece com uma concepção pandectística do direito de propriedade, como direito absoluto e ilimitado, já que no actual estádio da dominialidade dos bens cada vez mais se acentua a função social do direito de propriedade, perspectivado agora como um “dever social”, pelo que a problemática deriva sobretudo da “ relação de facto” emergente da utilização da propriedade em consequência do exercício da actividade económica privada, socialmente vinculada, cujo equilíbrio da “coexistência pacífica” é rompido pela perturbação anormal ou excessiva, isto é, intolerável.

          Daí que alguns autores empreguem sugestivamente a noção de “quase contrato de vizinhança” para realçarem as obrigações recíprocas entre titulares de prédios vizinhos. É justamente o rompimento desse equilíbrio, com a violação das obrigações recíprocas de vizinhança, que faz desencadear o mecanismo sancionatório, com vista à reposição do “status quo ante”, quer através da tutela ressarcitória, quer da tutela inibitória, também chamada de “acção negatória” ( cf. P. CAPOULADI, “ Les Troubles de Voisinage”, in La Protection du Voisinage et de l’Environnement, Travaux des Journees Francaises de L’Association Henri Capitant, 1976,pág. 93 e segs.; OLIVEIRA ASCENSÃO, “ A previsão do equilíbrio imobiliário como princípio orientador das relações de vizinhança”, ROA 67, pág. 7 e segs. ).

A regulamentação do direito de vizinhança no Código Civil Português foi enquadrada no capítulo reservado à propriedade de imóveis, cujo art.1346 consagra a “acção negatória”, ao atribuir ao proprietário de um imóvel o poder de se opôr às emissões ou “outros quaisquer factos semelhantes” provenientes de prédio vizinho.

          Este normativo, inspirado no § 906 do BGB, apresenta um conceito geral de emissão, o qual abrange realidades físicas, materiais, sob a forma energética, gasosa ou em pequenas partículas, corpos gaseiformes misturados com o ar, mas cuja enumeração é meramente exemplificativa, como, aliás, resulta do próprio texto (cf. RODRIGUES BASTOS, Direito das Coisas, II, pág.13, HENRIQUE MESQUITA, Direitos Reais, pág.142).

          Por outro lado, contemplam-se somente as emissões que resultem reflexamente da actividade exercida em certo prédio, quando esta actividade ou os seus efeitos se propaguem ou difundam naturalmente e atinjam os prédios vizinhos. Mas para que seja fundada a oposição é necessário que as emissões importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel vizinho ou que não resultem da utilização normal do prédio que emanam. Note-se, porém, que a essencialidade do prejuízo deve ser apreciada objectivamente, conforme a natureza e a finalidade do prédio vizinho, e o uso normal do prédio depende do seu destino económico, também objectivamente considerado.

          Acresce ser pressuposto da tutela inibitória o carácter de continuidade, ou, pelo menos de periodicidade, pois só nesta medida é que a concreta perturbação se poderá configurar como excessiva e, por isso, intolerável.

          Importa realçar que o conceito de “prejuízo substancial para o uso do imóvel“ deve ser entendido de forma lata, de modo a abranger também as lesões que a conduta do vizinho infractor cause ao morador do imóvel (cf., por ex., VAZ SERRA, RLJ ano 103, pág.378), ou seja, que afectem os seus direitos de personalidade, no caso o caso concreto, o direito fundamental à saúde e qualidade de vida ( arts.64 e 66 da CRP e art.70 do CC ).

          O art.1366 nº2 CC proíbe a plantação de determinadas plantas até à linha divisória, nomeadamente sem uma distância regulamentar, como eucaliptos, acácias ou outras árvores igualmente noscivas nas proximidades de terrenos cultivados ou prédios urbanos

          O DL nº 565/99, de 21/12, proíbe a introdução de espécies invasoras (art.8 nº2), sendo que o anexo I considera como invasoras por exemplo o Cedrus atlantica (Endl.) Carriére - cedro-do-atlas; e o Cedrus deodara Loud. - cedro-do-himalaia;

          No caso não se sabendo qual a espécie de cedros (provou-se serem de espécie não apurada) não se pode concluir tratar-se de uma plantação legalmente proibida.

          Por outro lado, não têm aqui aplicação as proibições e restrições positivadas no art.15 nº2 do DL nº 124/2006 de 28/6, cujo espectro normativo abrange os proprietários que “detenham terrenos confinantes a edifícios inseridos em espaços rurais”, na acepção definida no art3 nº1 i), ou seja os espaços florestais e terrenos agrícolas, o parece não ser o caso.

          Neste contexto, sendo, em princípio, lícita a plantação dos trinta cedros por parte dos Autores junto à estrema do lado norte do seu prédio, resta averiguar se afectam o direito de propriedade dos Autores e colidem com o direito de vizinhança.

          Comprova-se que os cedros atingiram uma dimensão concretamente não apurada, mas pelo menos ao nível do 1º andar do prédio dos Autores e em dias de forte ventania a ramagem das árvores bate na varanda, janelas e telhado da casa dos Autores, fazendo barulho ensurdecedor, e nos dias de fortes chuvadas desprendem-se ramagens secas que se depositam no prédios dos Autores entupindo os raros de escoamento ( cf. pontos 7, 8 e 9 ). Ou seja, é manifesto que os ramos dos cedros invadem o prédio dos Autores, causando-lhes prejuízo, logo verifica-se uma clara violação do seu direito de propriedade e à qualidade de vida.

          Questiona-se se, dada a faculdade concedida pelo art.1366 nº1 CC ao proprietário do prédio vizinho, se ele pode exigir que o corte seja feito pelo dono das árvores ou que ele impeça a emissão dos ramos e raízes.

          Adere-se ao entendimento de que em determinadas situações o proprietário do prédio vizinho está legitimado a impor ao proprietário lesante a prática de actos necessários a evitar a lesão (o corte de raízes, ramos ou mesmo das árvores), argumentando-se que o art.1366 nº1 tem aplicação apenas quando seja fácil ao vizinho proceder ao corte, e já não quando se revela demasiado onerosa, ou ainda que tal norma visa tão somente legitimar a acção directa, mas sem prejuízo do exercício do direito de exigir  os actos necessários à remoção das agressões com fundamento no art.1305 CC ou até por aplicação analógica do art.1346 CC, porque violadoras do direito de propriedade (cf. HENRIQUE MESQUITA, Direitos Reais, 1967, pág. 158 e segs.; Ac RC de 21/1/2014 ( proc. nº 32/12), Ac RC de 8/11/2016 ( proc. nº 968/13), disponíveis em www dgsi.pt ).

          Poder-se-á acrescentar, como reforço argumentativo, também o princípio geral do dever de prevenção do perigo, há muito objecto de especial atenção pela jurisprudência e doutrina alemãs, como informa VAZ SERRA (BMJ 84, pág.109 e segs. ).

O dever geral de prevenção do perigo encontra a sua base de sustentação em razões de natureza ética, no princípio geral do “ neminem laedere “ e ANTUNES VARELA ( RLJ ano 114, pág.77 e segs.,em anotação ao Ac STJ de 26/3/80) veio enfatizar no plano dogmático este princípio geral do direito civil, o qual, embora não expressamente plasmado em preceito legal, decorre de várias normas do Código Civil, no sentido de que “ a pessoa que cria ou mantém uma situação especial de perigo tem o dever jurídico de agir, tomando as providências necessárias para prevenir os danos com ela relacionados “, e, por conseguinte, com plena acuidade e pertinência no âmbito do direito de vizinhança.

Na situação dos autos os Autores não provaram a altura dos cedros, que eles provoquem salubridade e humidade, permitindo proliferação de insectos, ratos, infiltrações, danos no muro, com risco de ruptura (cf. factos não provados). Porém, demonstra-se que os cedros atingiram pelo menos o nível do 1º andar do prédio dos Autores, causando prejuízo, de tal forma que com o vento forte a ramagem atinge a varanda, janelas e telhado da casa dos Autores, e depositam-se no logradouro com entupimento dos raros.

          É certo provar-se que os Réus vêm querendo aparar as árvores do lado dos Autores, de modo a não invadirem o espaço aéreo daqueles, sendo estes não permitem a subida ao muro para o fazer (pontos 15 e 16). Desconhece-se, porém, desde quando e em que circunstâncias, e para a sua execução não estavam os Réus impedidos de exercer judicialmente o direito conferido pelo art.1349 CC, tanto mais que foram eles quem deram causa à situação lesiva.

          No balanceamento dos direitos de cada uma das partes, e considerando a factualidade apurada, em sede de direito de vizinhança a solução passará não pela remoção integral dos cedros, mas pela sua limitação atento o local de implantação e as repercussões para o prédio vizinho, o que implica o corte do tronco e ramos que propendem sobre o prédio dos Autores, bem assim a limitação em altura, que deve ter como máximo a altura do rés-do-chão da moradia dos Autores.

          Muito embora tenha sido formulado o pedido de remoção dos cedros, tal não obsta à condenação no corte parcial, ou seja, não ocorre violação do  pedido, pois é um minus (cf., por ex, MIGUEL MESQUITA, “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno Processo Civil, “ RLJ ano 143, pág.135 e segs.)

          Por fim, os Autores reclamaram indemnização (€ 5.000,00) por danos não patrimoniais, mas que não lograram demonstrar, nem mesmo factualmente alegar (alegação do art.43 da petição é vaga).

          2.7.- Síntese conclusiva

a) A moderna teorização do “direito de vizinhança” não se compadece com uma concepção pandectística do direito de propriedade, baseando-se antes na função social do direito de propriedade, pelo que a problemática da vizinhança deriva sobretudo da “relação de facto” emergente da utilização da propriedade em consequência do exercício da actividade económica privada, socialmente vinculada, cujo equilíbrio da “coexistência pacífica” é rompido pela perturbação anormal ou excessiva, isto é, intolerável.

          b) É justamente o rompimento desse equilíbrio, com a violação das obrigações recíprocas de vizinhança, que faz desencadear o mecanismo sancionatório, com vista à reposição do “status quo ante”, quer através da tutela ressarcitória, quer da tutela inibitória.

c) Em determinadas situações o proprietário do prédio vizinho está legitimado a impor ao proprietário lesante a prática de actos necessários a evitar a lesão (o corte de raízes, ramos ou mesmo das árvores ), pois que o art.1366 nº1 CC não obsta ao exercício do direito de exigir os actos necessários à remoção das agressões tanto com fundamento no art.1305 CC, como por  aplicação analógica do art.1346 CC.

d) Constitui princípio geral do direito civil o dever geral de prevenção do perigo, no sentido de que quem cria ou mantém uma situação especial de perigo tem o dever jurídico de agir, tomando as providências necessárias para prevenir os danos com ela relacionados.


III – DECISÃO

          Pelo exposto, decidem:

1)

          Julgar a apelação parcialmente procedente e revogando em parte a sentença:

          a) Condenar os Réus a procederem ao corte do tronco e ramos dos cedros que propendem sobre o prédio dos Autores, bem assim a limitação em altura, que deve ter como máximo a altura do rés-do-chão da moradia dos Autores.

          b) Manter o demais decidido.


2)

          Condenar Autores e Réus nas custas em ambas as instâncias, na proporção de 50%, respectivamente.

          Coimbra, 11 de Junho de 2019.


Jorge Arcanjo ( Relator )

Isaías Pádua

Teresa Albuquerque