Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
29/16.7EACTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: DESPACHO DE PRONÚNCIA;
INDÍCIOS SUFICIENTES;
CRIME DE USURPAÇÃO;
AC. UNIFORMIZADOR N.º 15/2013;
DOLO
Data do Acordão: 06/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (J L CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: 27-06-2018
Legislação Nacional: ARTS. 283.º, 286.º E 308.º DO CPP; ART. 42.º DA CRP; ARTS. 68.º, 149.º, 178.º, 184.º, 195.º E 197.º DO CDADC; ARTS. 14.º E 16.º DO CP
Sumário:
I – Os indícios são suficientes sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
II – São elementos constitutivos do tipo de crime usurpação, que tutela o bem jurídico criação intelectual, artística e científica:
[Tipo objectivo]
- Que o agente, sem autorização do autor, do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilize uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas no código;
- Que o agente divulgue ou publique, abusivamente, uma obra ainda não divulgada nem publicada pelo autor ou não destinada à divulgação ou publicação, mesmo que identifique a respectiva autoria;
- Que o agente colija ou compile obras publicadas ou inéditas, sem autorização do autor;
- Que o agente, estando autorizado a usar obra, prestação de artista, fonograma, videograma ou emissão radiodifundida, exceda os limites da autorização, com excepção dos casos previstos no código;
[Tipo subjectivo]
- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade [em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal].
III – A comunicação pública da obra não se confunde com a transmissão e a retransmissão, também modalidades de utilização da obra. Nestas, o que está em causa é a radiodifusão da obra, incluindo a sua recepção, que constitui o termo do processo de transmissão e que é livre. Já na comunicação pública existe uma reutilização da obra, a concreta transmissão efectuada acrescenta, modifica ou inova [relativamente à obra que está a ser radiodifundida], produzindo uma nova utilização dela, através de uma modificação da forma de recepção operada por meios técnicos, de modo a obter o seu aproveitamento para a produção de um efeito visual ou sonoro, criador de uma encenação ou espectáculo, que não teriam lugar com a mera recepção da obra radiodifundida (cfr. Acórdão Uniformizador n.º 15/2013).
IV - A especialíssima e relevantíssima circunstância de o tribunal do topo da hierarquia dos tribunais judiciais portugueses ter deixado expresso, através de um Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, que condutas como a imputada nos autos pela assistente à arguida, não integram a prática do crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149º, 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, aliada à ampla divulgação pública feita de tal aresto uniformizador, tornam claramente desrazoável o entendimento de que deva exigir-se à arguida, perante a posição do Supremo Tribunal de Justiça e contrariamente a esta, a consciência de que a sua conduta era contrária à ordem jurídica.
V - Deste modo, tendo em conta o disposto no art. 16.º, n.º 1 do CP, não se pode ter por suficientemente indiciado o dolo da arguida, em qualquer das modalidades previstas no art. 14.º do mesmo código.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO
Nos autos de instrução nº 29/16.7EACTB que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – Juízo Local Criminal da Guarda foi proferida decisão instrutória de não pronúncia das arguidas A… e B…, no termo de instrução requerida pela assistente C… [doravante, C…], na sequência de despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, para pronúncia das identificadas arguidas pela prática de um crime de usurpação, p. e p. pelo art. 195º nº 1 por referência aos arts. 184º, nº 2 e 197º, todos do C. do Direito de Autor e dos Direitos Conexos [doravante, CDADC].
*
Inconformada com a decisão, recorreu a assistente C..., formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
(…)
*
Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, remetendo para a argumentação apresentada no despacho de encerramento do inquérito, aderindo aos fundamentos da decisão instrutória recorrida e concluiu pelo não provimento do recurso.
*
A Sociedade Portuguesa de Autores, CRL [doravante, SPA], requereu a sua constituição como assistente, qualidade em que foi admitida a intervir nos autos, por despacho de 8 de Março de 2018.
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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, aderindo aos fundamentos da resposta do Ministério Público e ao entendimento da decisão recorrida, posto que suportado pela jurisprudência fixada no Acórdão nº 15/2013 e, afirmando não estarem preenchidos os elementos típicos do crime de usurpação, concluiu pela improcedência do recurso.
*
Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se a arguida A... deve ou não ser pronunciada, como autora material de um crime de usurpação, p. e p. pelo art. 195º do CDADC.
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Para a resolução desta questão importa ter presente o teor do despacho recorrido, que é o seguinte:
“ (…).
Declaro encerrada a instrução.
I. Relatório:
No âmbito dos presentes autos, findo o inquérito instaurado contra a denunciada A..., o Ministério Publico proferiu despacho de arquivamento nos termos do disposto no art. 277.º n.º 1 do Código de Processo Penal (fls. 139 a 140).
Inconformada com a decisão proferida, veio a assistente C… requerer a abertura da instrução (fls. 146 a 171), onde pugna pela pronúncia da arguida pela prática do seguinte ilícito criminal:
- um crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 195.º n.º 1, por referência ao artigo 184.º, n.º 2 e 197.º, todos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
Os actos de instrução:
Por despacho de fls.180 a 182 foi declarada aberta a instrução.
Em instrução procedeu-se à realização do debate instrutório, com observância do devido formalismo legal.
II. Saneamento:
O Tribunal é competente em razão da matéria e hierarquia.
Não há nulidades que cumpra conhecer.
III. Fundamentação:
A) Considerações gerais sobre a Instrução:
Nos termos do artigo 286º do CPP a instrução visa, designadamente, a comprovação judicial da decisão final do inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, mediante a verificação (ou não verificação) de indícios suficientes.
Os indícios são suficientes, na perspectiva do normativo invocado, quando, em face dos mesmos, seja em termos de prognose, muito provável a futura condenação do arguido ou esta seja mais provável que a sua absolvição (cfr. art.º. 283º, n.º 1 ex vi do art.º 308º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Penal) [Cfr. também José Mouraz Lopes, Garantia Judiciária no Processo Penal – Do Juiz e da Instrução, Coimbra, 2000, pág. 68 v. e ss.].
Dito de outro modo, por «indícios suficientes» para efeitos da decisão instrutória, deve entender-se a possibilidade razoável de que o arguido tenha praticado os factos que lhe são imputados e de que lhe será aplicada uma pena ou medida de segurança, devendo o juiz, nas palavras de Germano Marques da Silva, (Curso de Processo Penal III, 2000, p.179), pronunciar o arguido apenas e só “quando pelos elementos constantes dos autos forme a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido”.
A decisão instrutória, no sentido da pronúncia, depende, assim, da existência de indícios suficientes, obtidos por via do inquérito e/ou da instrução, que preencham os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. art.º. 308º, n.º. 1 do Cód. Proc. Penal).
A concretização do que sejam “indícios suficientes” assume fulcral importância nos ulteriores desenvolvimentos e metodologia empregue na apreciação do processado. Assim, referia-se Cavaleiro Ferreira aos indícios, por aproximação às presunções naturais civis, nos seguintes termos: “A prova indiciária é prova indirecta. Os factos probatórios indiciários são os que permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros factos por meio de raciocínio em regras da experiência comum, ou da ciência, ou da técnica” [Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 237].
A instrução não é, contudo, constituída apenas por prova indiciária. Como refere Germano Marques da Silva [Do Processo Penal..., pág. 347], o indício é um meio de prova e todas as provas são indícios “enquanto são causas, ou consequências morais ou materiais, recordações e sinais do crime”. É neste sentido e segundo este autor que se deve interpretar o disposto no art.º 308º do Cód. Proc. Penal.
De todo o modo, nesta fase preliminar do processo, não se visar “alcançar a demonstração da realidade dos factos”[ João de Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, citado por Germano Marques da Silva, op. e loc. cit. 5 Op. e loc. cit.].
Como conclui ainda Germano Marques da Silva [Op. e loc. cit.]5, “As provas recolhidas nas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento” (sublinhado nosso).
Assim, de acordo com o art. 308º do CPP se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, haverá decisão de pronúncia pelos respectivos factos, no caso contrário, haverá despacho de não pronúncia.
O objecto da instrução está delimitado pelos factos constantes do despacho de acusação proferida nos autos ou pelo RAI, sem prejuízo do disposto no artigo 303º do CPP
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B) Os factos resultantes do inquérito:
No final do inquérito instaurado contra a denunciada A..., o Ministério Publico proferiu despacho de arquivamento nos termos do disposto no art. 277.º n.º 1 do Código de Processo Penal (fls. 139 a 140).
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C) Resultado das diligências realizadas na Instrução quanto aos factos imputados:
Foi unicamente realizado o debate instrutório.
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D) Ponderação global dos Indícios, por referência ao crime imputado:
A assistente C… pretende ver a arguida pronunciada pela prática de um crime de usurpação de direitos de autor.
Aqui se transcrevem os seguintes preceitos legais do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos com relevância para a decisão.
Art.68.º
1 – A exploração e, em geral, a utilização da obra podem fazer-se, segundo a sua espécie e natureza, por qualquer dos modos actualmente conhecidos ou que de futuro o venham a ser.
2 – Assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes:
(…)
e) A difusão pela fotografia, telefotografia, televisão, radiofonia ou por qualquer outro processo de reprodução de sinais, sons ou imagens e a comunicação pública por altifalantes ou instrumentos análogos, por fios ou sem fios, nomeadamente por ondas hertzianas, fibras ópticas, cabo ou satélite, quando essa comunicação for feita por outro organismo que não o de origem;
(…).
Art. 149.º
1 – Depende de autorização do autor a radiodifusão sonora ou visual da obra, tanto directa como por retransmissão, por qualquer modo obtida.
2 – Depende igualmente de autorização a comunicação da obra em qualquer lugar público, por qualquer meio que sirva para difundir sinais, sons ou imagens.
3 – Entende-se por lugar público todo aquele a que seja oferecido o acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem ela, ainda que com reserva declarada do direito de admissão.
Art. 155.º
É devida igualmente remuneração ao autor pela comunicação pública da obra radiodifundida, por altifalante ou por qualquer outro instrumento análogo transmissor de sinais, de sons ou de imagens.
Art. 195.º
1 – Comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste Código.
2 – Comete também o crime de usurpação:
a) Quem divulgar ou publicar abusivamente uma obra ainda não divulgada nem publicada pelo seu autor ou não destinada a divulgação ou publicação, mesmo que a apresente como sendo do respectivo autor, quer se proponha ou não obter qualquer vantagem económica;
b) Quem coligir ou compilar obras publicadas ou inéditas sem autorização do autor;
c) Quem, estando autorizado a utilizar uma obra, prestação de artista, fonograma, vídeograma ou emissão radiodifundida, exceder os limites da autorização concedida, salvo nos casos expressamente previstos neste Código.
3 – Será punido com as penas previstas no artigo 197.º o autor que, tendo transmitido, total ou parcialmente, os respectivos direitos ou tendo autorizado a utilização da sua obra por qualquer dos modos previstos neste Código, a utilizar directa ou indirectamente com ofensa dos direitos atribuídos a outrem.
Art. 197.º
1 – Os crimes previstos nos artigos anteriores são punidos com pena de prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias, de acordo com a gravidade da infracção, agravadas uma e outra para o dobro em caso de reincidência, se o facto constitutivo da infracção não tipificar crime punível com pena mais grave.
2 – Nos crimes previstos neste título a negligência é punível com multa de 50 a 150 dias.
3 – Em caso de reincidência, não há suspensão da pena.
*
E) Indícios recolhidos em sede de inquérito.
O Direito de Autor assume, sobretudo nos tempos em que vivemos de globalização à escala mundial, crescente relevância jurídica, social e económica, o qual abrange as faculdades de carácter pessoal e patrimonial dos artistas, intérpretes e executantes, dos produtores de fonogramas, de videograma e dos organismos de radiodifusão, e que o legislador, através do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, visou tutelar.
Os presentes autos tiveram origem no auto elaborado pela ASAE, através do qual se dá notícia que, no estabelecimento comercial de bebidas denominado “B...”, sito em (…), quando se encontrava em pleno funcionamento com clientes no seu interior, estava a ser difundida música ambiente através de colunas de som conectadas a um aparelho de TV, sendo que naquelas circunstâncias passavam as músicas denominadas “My Way” e “Hotline Blink”, respetivamente dos artistas “Calvin Harris” e “Drake”.
Tais factos, abstratamente considerados, seriam suscetíveis de integrarem a prática, pelo respetivo explorador de um crime de Usurpação, p. e p. pelos art.ºs 195º, n.º 1; 197º n.º 1, ambos do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos (Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de Março).
O Ministério Público, pelos argumentos expendidos no despacho de arquivamento, entendeu não se mostrarem verificados os pressupostos de que depende o preenchimento do tipo legal de crime, escudando-se para o efeito na jurisprudência fixada pelo STJ.
E o tribunal acompanha este raciocínio. Vejamos.
Os factos existem e não foram objecto de contestação, pelo que a questão que nos ocupa constitui, bem se percebe, matéria de direito.
Como é sabido, muito se disse e escreveu nos nossos tribunais superiores sobre este problema e que o tribunal, por fastidioso, se abstém de relatar.
Após a sucessiva troca de argumentos, o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão n.º 15/2013, de 16 de Dezembro (publicado no DR, 1ª série, n.º 243, de 16 de Dezembro de 2013), fixou jurisprudência nos seguintes termos: “A aplicação, a um televisor, de aparelhos de ampliação do som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso não carece de autorização do autor da mesma, não integrando consequentemente essa prática o crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149º, 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
Pode ler-se na respectiva fundamentação:
A comunicação da obra radiodifundida por altifalante ou instrumento análogo depende, pois, de autorização c confere ao autor da obra direito a uma remuneração.
Mas que se deve entender por comunicação? Trata-se necessariamente de uma modalidade de utilização da obra diferente das previstas no n.º 1 (transmissão e retransmissão).
Na radiodifusão, como vimos, a comunicação direta entre o organismo emissor e o público recetor está prevista no n.º 1 do artigo 149.º, bem como a relação mediada por retransmissor.
A situação prevista no n.º 2 terá, pois, de ser diferente. E é diferente desde logo pelas características do lugar onde é realizada a receção: lugar público.
Mas será que a mera receção em lugar público integrará a previsão do n.º 3, envolvendo o dever de autorização por parte do autor da obra? A audição/visionamento de estações de televisão em cafés, restaurantes, bares, e outros tipos de estabelecimentos abertos ao público em geral determinará a obrigação para os seus responsáveis de obter autorização dos autores das obras transmitidas?
Para decidir tal questão, há que operar a distinção entre receção e comunicação. A receção consiste na captação pelos equipamentos adequados dos sinais de sons e imagens difundidos pelo transmissor. A receção é o terminus do processo de transmissão e só ela o justifica: transmite -se (radiodifunde -se) para o recetor.
Esta utilização das obras pelo recetor confere naturalmente aos autores o direito de a autorizarem (e o consequente direito à remuneração por essa utilização), nos termos do n.º 1 do artigo 149.º.
Mas, uma vez autorizada, a receção é livre, ou seja, o recetor pode organizá-la como bem entender. Ponto é que se mantenha no âmbito da receção.
É necessário, pois, distinguir entre a mera receção (captação dos sinais) e a reutilização da obra, situação prevista no n.º 2 do artigo 149.º. Este preceito tem de reportar -se a situações em que a transmissão acrescenta, modifica ou inova, constituindo assim uma nova utilização da obra. Só assim tem sentido conferir ao autor da obra direito a nova remuneração.
Essa nova utilização passa necessariamente por uma qualquer modificação por meios técnicos na forma de receção, em ordem a aproveitá-la para produzir um efeito visual ou sonoro espetacular, para criar uma encenação que a mera receção do programa radiodifundido não provocaria.
Será esse normalmente o caso quando a receção é convertida ela própria num espetáculo, organizado em estabelecimentos públicos, em torno de eventos desportivos ou musicais, haja ou não entradas pagas, mas publicitado, eventualmente com um arranjo ou decoração especial do espaço, tudo com vista à captação de uma audiência alargada, pelo menos mais alargada do que aquela que normalmente acorreria ao estabelecimento. Aqui já se abandona o plano da simples receção para se invadir o da criação de um espetáculo, ainda que tendo na base a captação de um programa televisivo. Há uma organização e uma "encenação" que alteram a normal receção do programa. Por isso, estamos já no plano da comunicação pública, que deve ser paga.
Aceitar-se-á a mesma solução quando se tratar de uma receção multiplicada, como acontece nos estabelecimentos hoteleiros, em que a receção é distribuída nos quartos e salas comuns, o que se traduz, para além da amplificação exponencial do sinal radiodifundido, num serviço extra prestado pelo hotel aos hóspedes, suscetível de atrair clientela, e por consequência lucros, pelo que se pode considerar uma reutilização da obra, sendo por ela devida uma remuneração.
Mas já não será o caso da mera receção em cafés ou bares abertos à generalidade das pessoas, sem obrigação de pagamento de entrada, estabelecimentos que representam tradicionalmente lugares de convivência ou reunião, sobretudo nos meios pequenos, mas não só neles, nos quais a captação de programas televisivos pode funcionar ocasionalmente como chamariz especial, mas normalmente apenas serve a clientela habitual, para a qual não constitui nenhum atrativo.
Insistindo e resumindo: haverá reutilização da obra se foram empregues meios técnicos que recriem de qualquer forma a difusão da obra, produzindo um espetáculo diferente do que é radiodifundido. Compreende -se que em tais condições, e só nelas, haja a obrigação de pagar uma nova remuneração ao autor.
Assim, sempre que a situação se configure como de mera receção, ainda que alterada por quaisquer equipamentos, mas desde que limitados à função de a aperfeiçoar ou melhorar, não se aplica o disposto nº 2 do artigo 149.º. Doutra forma, seriam cobrados direitos a dobrar sobre a mesma utilização da obra, uma vez que pela autorização da radiodifusão da obra já o autor recebeu a correspondente remuneração.
Analisemos agora a situação que motivou a divergência jurisprudencial.
Em estabelecimento comercial aberto ao público em geral, lugar público para os efeitos do artigo 149.º, n.º 3, difundia-se um programa televisivo presenciado por vários clientes. Ao televisor tinham sido ligadas colunas de som, que não faziam parte originariamente do aparelho, e que serviam para amplificar e distribuir o som pelo estabelecimento.
As colunas de som, embora não fizessem parte do televisor, no sentido de que não o integravam originariamente, não constituem, porém, material diferente do que já vem instalado normalmente nesse tipo de aparelhagem, pois qualquer televisor contém necessariamente o material adequado para difundir o som pelo ambiente.
As colunas não produziam portanto qualquer função nova, o que elas faziam era ampliar e distribuir o som que o televisor já difundia por todo o espaço do estabelecimento. A função delas era apenas a de melhorar a captação do som.
Assim, a instalação das colunas nada acrescentava ou alterava à emissão televisiva. Nenhuma recriação do programa transmitido era produzida. Insiste-se: o que as colunas permitiam era a melhoria da captação do som.
Daí que a situação se enquadre inteiramente no plano da receção da radiodifusão.
O tribunal sabe que esta decisão não constitui jurisprudência obrigatória (ver, a propósito, o art. 445.º n.º 3 do CPP), mas entende que estas palavras são suficientemente claras e com elas se concorda na íntegra.
Todavia, após a publicação deste acórdão que se pretendia de uniformização, a C…, tendo em conta o seu RAI, nem por isso deixou de continuar a esgrimir argumentos em sentido contrário, invocando para tanto a orientação alegadamente perfilhada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, designadamente através da Directiva 2001/29/CE, sobre o que por "comunicação de obra ao público" se deverá entender.
O tribunal não ignora a existência ou sequer pretende recusar a aplicação da mencionada Directiva, mas entende que deve a mesma ser interpretada nos termos já decididos pelo Supremo Tribunal de Justiça, cujo acórdão a assistente defende estar em total contradição com as Directivas e Decisões comunitárias.
A difusão de música, em estabelecimento comercial, através da aplicação, a um aparelho de TV, de sistema de ampliação de som, não configurando uma nova utilização da obra transmitida, não carece de autorização do autor da mesma; consequentemente, não integra a prática do crime de usurpação p. e p. pelos artigos 195.º e 197.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
Assim o decidiu, entre outros, o Acórdão da RC, de 20/01/2016, proc. n.º 36/13.1PFVIS.C1
I – A usurpação é um crime comum e de execução vinculada, que tutela o bem jurídico criação intelectual, artística e científica sendo que, parte significativa da acção típica está remetida para as formas de utilização de obra ou prestação previstas no CDADC, essencialmente contidas no seu art. 68º.
II – O estabelecimento comercial gerido pelo arguido [frutaria] é, face à matéria de facto que se mostra indiciada, obviamente, um lugar público.
III – Deste modo, o que há a decidir é saber se a difusão de obra radiodifundida em local público através de colunas que, ampliando e distribuindo o som, não faziam parte integrante do aparelho que sintonizava a estação emissora de rádio, configura uma mera recepção [recepção – ampliação] da obra ou antes traduz uma nova utilização, uma recepção – transmissão, da mesma obra.
IV – Constitui mera recepção e não reutilização da obra transmitida, a difusão de música ambiente através de várias colunas de som, distribuídas pelo tecto da frutaria, aberta ao público e gerida pelo arguido, ligadas a um circuito integrado de som, marca Efapel, sintonizado em determinada estação emissora de rádio;
V – Por isso, esta actividade de difusão de música ambiente não carece de autorização dos autores das obras radiodifundidas por aquela estação emissora.
O tribunal, em resumo e para o que nos interessa, pode portanto concluir que não se mostram suficientemente indiciados os seguintes factos:
- a arguida, ao agir da forma descrita, estava obrigado a obter uma licença para poder difundir, através da TV as referidas músicas.
- A arguida agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Por tudo, forçoso é concluir que não existem suficientes indícios da verificação do crime, pelo que será proferido despacho de não pronúncia.
*
IV. Decisão:
Face ao exposto, decide-se proferir DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA da arguida A..., pela prática de:
- um crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 195.º n.º 1, por referência ao artigo 184.º, n.º 2 e 197.º, todos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
*
Condena-se a assistente nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça devida pela constituição de assistente em 3 (três) UC e a taxa de justiça devida pela abertura da instrução em 2 (duas) UC – cfr. artigos 515º/1-a), do CPP e 8º/1 e 2 do Regulamento das Custas Processuais.
Notifique.
(…)”.
*
1. Conforme decorre do disposto no art. 286º, nº 1, do C. Processo Penal, a instrução visa exclusivamente a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Esta comprovação judicial tem por objecto a formulação de um juízo sobre a existência ou não de indícios suficientes da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, juízo este a ser explicitado, formalmente, na decisão instrutória.
Por isso, dispõe o art. 308º, nº 1 do C. Processo Penal que, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
Os indícios são suficientes sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (nº 2 do art. 283º do C. Processo Penal, aplicável ex vi, nº 2 do art. 308º do mesmo código).

Como já se deixou referido, a instrução foi requerida pela assistente C..., em reacção ao arquivamento do inquérito no qual era investigada a prática de um crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 195º, nº 1 e 197º do CDADC.

Nos autos é pacífica a suficiente indiciação dos seguintes factos:
- No dia 10 de Dezembro de 2016, pelas 1h30, o estabelecimento de bebidas denominado «B…», situado (…), pertencente à sociedade B…, da qual a arguida A... é gerente, encontrava-se aberto ao público e tinha em funcionamento um aparelho de televisão a que estavam conectadas colunas de som, sintonizado no canal musical TV “Trace Urban” que difundiam imagens e música ambiente para os clientes, passando, no momento da fiscalização, os temas “My way” de Calvin Harris e “Hotline blink” de Drake;
- A arguida, na referida qualidade, não havia obtido, para a sociedade que legalmente representava, autorização válida concedida pela assistente C…, enquanto representante em Portugal dos autores das obras identificadas.
Cumpre, assim, verificar se os factos indiciados são susceptíveis de preencher o tipo do crime de usurpação previsto no art. 195º, nº 1 do CDADC, como pretende a assistente ou não, como se decidiu no despacho recorrido.

2. A Constituição da República Portuguesa assegura no art. 42º, nº 2, a protecção legal dos direitos de autor. A nível infraconstitucional, a tipificação da usurpação constitui um elemento do respectivo escudo protector.
São elementos constitutivos do tipo deste crime, que tutela o bem jurídico criação intelectual, artística e científica:
[Tipo objectivo]
- Que o agente, sem autorização do autor, do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilize uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas no código;
- Que o agente divulgue ou publique, abusivamente, uma obra ainda não divulgada nem publicada pelo autor ou não destinada à divulgação ou publicação, mesmo que identifique a respectiva autoria;
- Que o agente colija ou compile obras publicadas ou inéditas, sem autorização do autor;
- Que o agente, estando autorizado a usar obra, prestação de artista, fonograma, videograma ou emissão radiodifundida, exceda os limites da autorização, com excepção dos casos previstos no código;
[Tipo subjectivo]
- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade [em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal].

A densificação da acção típica impõe a convocação de conceitos contidos noutras normas do CDADC, a saber.
O tipo remete para as formas de utilização de uma obra ou prestação previstas no CDADC o que vale dizer que remete, basicamente para o seu art. 68º. Dispõe o nº 1 deste artigo que, A exploração e, em geral, a utilização da obra podem fazer-se, segundo a sua espécie e natureza, por qualquer dos modos actualmente conhecidos ou que de futuro o venham a ser, e dispõe no seu nº 2, alínea e) [alínea que, para o caso, releva] que, Assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes; (…) e) A difusão pela fotografia, telefotografia, televisão, radiofonia ou por qualquer outro processo de reprodução de sinais, sons ou imagens e a comunicação por altifalantes ou instrumentos análogos, por fios ou sem fios, nomeadamente por ondas hertzianas, fibras ópticas, cabo ou satélite, quando essa for feita por outro organismo que não o de origem; (…).
No que concerne à autorização da radiodifusão e reprodução de sinais, sons e imagens, dispõe o art. 149º do mesmo código:
1 – Depende de autorização do autor a radiodifusão sonora ou visual da obra, tanto directa como por retransmissão, por qualquer modo obtida.
2 – Depende igualmente de autorização a comunicação da obra em qualquer lugar público, por qualquer meio que sirva para difundir sinais, sons ou imagens.
3 – Entende-se por lugar público todo aquele a que seja oferecido o acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem ela, e ainda que com reserva declarada do direito de admissão.
Estabelece ainda o art. 155º do CDADC que é devida igualmente remuneração ao autor pela comunicação pública da obra radiodifundida por altifalante ou por qualquer instrumento análogo transmissor de sinais, de sons ou de imagens.
Aqui chegados.

3. O estabelecimento comercial denominado «B…», pertencente à sociedade gerida pela arguida é um lugar público, atenta a definição legal contida no nº 3 do art. 149º do CDADC. Resta, pois, saber se a difusão de obra radiodifundida em local público através de aparelhagem de ‘televisão’ com colunas distribuidoras e ampliadoras de som, configura uma situação de simples recepção de obra ou, pelo contrário, traduz uma nova utilização [uma recepção – transmissão] de obra.
Como ponto prévio, cabe dizer que toda a exposição que segue acompanha, de muito perto, o acórdão desta Relação de 28 de Junho de 2017 (proferido no processo nº 24/15.3PFVIS.C1, in www.dgsi.pt), subscrito pelos aqui, relator e adjunta.

O princípio geral é o da liberdade de recepção. A radiodifusão da obra está sujeita a autorização do respectivo autor, mas o mesmo já não acontece com a sua recepção no destino. É que na autorização para a radiodifusão da obra está já prevista a sua recepção, sendo, por tal razão, esta livre, mesmo que seja pública e independentemente do modo como se efectiva (cfr. José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Direito de Autor e Direitos Conexos, Coimbra Editora, 1992, pág. 301 e ss.).
Mas a dificuldade reside na qualificação das situações como a objectivamente indiciada nos autos. Durante anos, esta questão fez divergir a jurisprudência nacional, dissensão a que pôs cobro o Acórdão Uniformizador nº 15/2013 (DR, 1ª série – Nº 243 – 16 de Dezembro de 2013), fixando jurisprudência no sentido de que, a aplicação, a um televisor, de aparelhos de ampliação do som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso não carece de autorização do autor da mesma, não integrando consequentemente essa prática o crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149º, 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

Com efeito, resulta nº 2 do art. 149º do CDADC que a comunicação da obra em qualquer lugar público, por qualquer meio que sirva para difundir sinais, sons ou imagens, depende de autorização do respectivo autor, conferindo-lhe o direito a remuneração.
A comunicação pública da obra aqui prevista não se confunde com a transmissão e a retransmissão, também modalidades de utilização da obra, mas previstas no nº 1 do mesmo artigo. É que, nestas, o que está em causa é a radiodifusão da obra, incluindo a sua recepção, que constitui o termo do processo de transmissão e, como se disse, é livre. Já na comunicação pública existe uma reutilização da obra, a concreta transmissão efectuada acrescenta, modifica ou inova [relativamente à obra que está a ser radiodifundida], produzindo uma nova utilização dela, através de uma modificação da forma de recepção operada por meios técnicos, de modo a obter o seu aproveitamento para a produção de um efeito visual ou sonoro, criador de uma encenação ou espectáculo, que não teriam lugar com a mera recepção da obra radiodifundida (cfr. Acórdão Uniformizador nº 15/2013).
A jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador é, seguramente, aplicável à situação em apreço nos autos onde também está em causa um aparelho de televisão e portanto, a recepção e radiodifusão visual e sonora de obra.

a. A Directiva 2001/29/CE não define o conceito de comunicação pública mas o Tribunal de Justiça da União Europeia [doravante, TJUE] vem, pelo menos, desde 2007 entendendo que a transmissão de obras radiodifundidas através de aparelhos de televisão e de rádio em espaços públicos, é abrangida pelo conceito, interpretando o art. 149º do CDADC no sentido de que a autorização para a radiodifusão abrange apenas a recepção das obras em ambientes privados (cfr. acórdãos do TJUE C-403/08, C-429/08 e C-351/12).

O art. 3º [com a epígrafe, Direito de comunicação de obras ao público, incluindo o direito de colocar à sua disposição outro material] nº 1 da Directiva 2001/29/CE tem a seguinte redacção:
Os Estados-Membros devem prever a favor dos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público das suas obras, por fio ou sem fio, incluindo a sua colocação à disposição do público por forma a torná-las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.

A Directiva foi transposta para a ordem jurídica nacional pela Lei nº 50/2004, de 24 de Agosto que, além do mais, deu nova redacção a várias disposições do CDADC, entre elas, as dos arts. 68º, 178º e 184º.
Na parte em que agora releva, as alíneas i), j) e l), do nº 2 do art. 68º passaram a ter a seguinte redacção:
Assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes:
(…)
i) A reprodução directa ou indirecta, temporária ou permanente, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte;
j) A colocação da obra à disposição do público, por fio ou sem fio, por forma a torná-la acessível a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido;
l) A construção de obra de arquitectura segundo o projecto, quer haja ou não repetições.
A alínea d) do nº 1 do 178º passou a ter a seguinte redacção:
Assiste ao artista intérprete ou executante o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes:
(…)
d) A colocação à disposição do público, da sua prestação, por fio ou sem fio, por forma que seja acessível a qualquer pessoa, a partir do local e no momento por ela escolhido.
O nº 2 do art. 184º passou a ter a seguinte redacção:
Carecem também de autorização do produtor do fonograma ou do videograma a difusão por qualquer meio, a execução pública dos mesmos e a colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, por forma que sejam acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.

É pois correcto o entendimento de que a Directiva não definiu o conceito de comunicação ao público, já que apenas faz referência, no seu art. 3º, nº 1, à colocação à disposição do público da obra, referência que foi replicada nas normas do CDADC transcritas.
O considerando 23 da Directiva tem a seguinte redacção: «A presente diretiva deverá proceder a uma maior harmonização dos direitos de autor aplicáveis à comunicação de obras ao público. Esses direitos deverão ser entendidos no sentido lato, abrangendo todas as comunicações ao público não presente no local de onde provêm as comunicações. Abrangem ainda qualquer transmissão ou retransmissão de uma obra ao público, por fio ou sem fio, incluindo a radiodifusão, não abrangendo quaisquer outros atos.». Daqui resulta o inequívoco propósito da Directiva em cimentar a protecção dos direitos de autor no que respeita à comunicação das obras ao público, devendo esta ser entendida em sentido lato.

b. Atentemos agora na jurisprudência do TJUE.
No recurso nº 16/11.1GASJP.C1, desta Relação de Coimbra – interposto pela assistente SPA da sentença absolutória proferida em processo comum singular que tinha por objecto factos integradores do crime de usurpação – foi determinado o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, a fim de ser conhecida, além de outra, a seguinte questão prejudicial: «[Deve o] conceito de comunicação de obra ao público previsto no artigo 3.º, n.º 1, da Directiva 2001/29 ser interpretado no sentido de que abrange a transmissão de obras radiodifundidas, em estabelecimentos comerciais, como bares, cafés, restaurantes, ou outros com características semelhantes, através de aparelhos televisores receptores e cuja difusão é ampliada por colunas e/ou amplificadores, configurando, nessa medida, uma nova utilização de obras protegidas pelo direito de autor?».

Sobre esta questão, por despacho de 14 de Julho de 2015, proferido no processo C-151/15 [in, http://curia.europa.eu/juris/document], o TJUE decidiu como segue:
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:
O conceito de «comunicação ao público», na aceção do artigo 3.°, n.º 1, da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação, deve ser interpretado no sentido de que abrange a transmissão, através de um aparelho de rádio ligado a colunas e/ou amplificadores, pelas pessoas que exploram um café-restaurante, de obras musicais e de obras musico-literárias difundidas por uma estação emissora de rádio aos clientes que se encontram presentes nesse estabelecimento.
Na fundamentação deste despacho, suportando o nele decidido, são mencionados, além de vários outros, os já referidos acórdãos do TJUE C-403/08, C-429/08 e C-351/12.

c. Torna-se assim evidente a frontal oposição entre a jurisprudência fixada pelo nosso mais Alto Tribunal no Acórdão Uniformizador nº 15/2013 e a interpretação que o TJUE tem vindo, uniformemente, a fazer sobre o conceito de «comunicação ao público».

Nos termos do disposto no art. 445º, nº 3 do C. Processo Penal, a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada na decisão.
A fundamentação da divergência tem que ir para além da comum fundamentação da decisão penal, devendo suportar-se em argumento novo, relevante e não ponderado, na notória alteração das concepções doutrinais e/ou jurisprudenciais ou na modificação da composição do Tribunal Supremo (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 1202 e Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1591).

Acontece, porém, que não dispomos argumento novo susceptível de afastar a jurisprudência fixada, nem temos notícia de evolução doutrinal ou jurisprudencial quanto aos argumentos utilizados, determinante, hoje, de uma decisão uniformizadora diferente, quer pela data, ainda próxima, em que foi proferido o Acórdão nº 15/2013, quer pela circunstância de nele serem expressamente referidas decisões do TJUE contrárias, como sejam os acórdãos proferidos nos processos nºs 403/08 e 429/08, este supra mencionado, e o primeiro, mencionado nos fundamentos do despacho 14 de Julho de 2015, proferido no processo C-151/15.

No que respeita aos efeitos da decisão do TJUE, é pacífico o entendimento de que ela se impõe com força obrigatória no processo que lhe deu origem e tem, quanto a outros processos, quando constitua decisão interpretativa, o valor de precedente [tendo em conta que, quando o TJUE interpreta uma norma de direito comunitário, fixa o seu sentido de forma abstracta] (cfr. Miguel Almeida Andrade, Guia Prático do Reenvio Prejudicial, 1991, Gabinete de Documentação e Direito Comparado, pág. 106 e ss., e Carla Câmara, Guia Prático do Reenvio Prejudicial, 2012, Centro de Estudos Judiciários, pág. 16 e ss.).

Mesmo que, em tese, se entendesse obrigatória a formulação de questão prejudicial junto do TJUE tendo por objecto a interpretação do conceito de «comunicação ao público» [dada a insusceptibilidade de interposição de recurso ordinário do presente acórdão], uma vez que aquele tribunal, já anteriormente apreciou e interpretou o conceito, sem modificação de monta o que significa a inexistência de dúvida razoável, sobre o alcance da interpretação feita pelo TJUE, estão verificadas duas das excepções à obrigação de reenvio (cfr. Miguel Almeida Andrade, ob. cit., pág. 60 e ss. e Carla Câmara, ob. cit., pág. 10 e ss.).
Não sendo pois, in casu, obrigatório o reenvio prejudicial, estando claramente precisado o sentido da interpretação dada pelo TJUE ao conceito de «comunicação ao público» e não sendo esta interpretação compatível com a subscrita pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão Uniformizador nº 15/2013, cumpre antes de mais verificar o preenchimento ou não do tipo do crime em questão, na perspectiva destas duas interpretações, à luz dos factos tidos por suficientemente indiciados, supra enunciados.

4. Considerando a jurisprudência uniformizada pelo Acórdão nº 15/2013, temos por seguro que a factualidade objectiva, tida por suficientemente indiciada [No dia 10 de Dezembro de 2016, pelas 1h30, o estabelecimento de bebidas denominado «B…», situado (…), pertencente à sociedade B…., da qual a arguida A... é gerente, encontrava-se aberto ao público e tinha em funcionamento um aparelho de televisão a que estavam conectadas colunas de som, sintonizado no canal musical TV “Trace Urban” que difundiam imagens e música ambiente para os clientes, passando, no momento da fiscalização, os temas “My way” de Calvin Harris e “Hotline blink” de Drake; a arguida, na referida qualidade, não havia obtido, para a sociedade que legalmente representava, autorização válida concedida pela assistente C…, enquanto representante em Portugal dos autores das obras identificadas] não preenche o tipo objectivo do crime de usurpação., da mesma forma que, sujeitando a mesma factualidade objectiva à interpretação que o TJUE faz do conceito de «comunicação ao público», resulta inequívoco o preenchimento do tipo objectivo daquele crime.
Atentemos agora no preenchimento do tipo subjectivo da usurpação, do dolo.
Quando analisado na perspectiva da jurisprudência fixada pelo acórdão uniformizador, a questão torna-se absolutamente inútil, pela simples mas decisiva razão de aquela jurisprudência afastar o preenchimento do tipo objectivo.

Já não assim quando, por via da interpretação feita pelo TJUE do conceito de «comunicação ao público» da obra, se tem por preenchido o tipo objectivo. Vejamos, então.
Já sabemos que a usurpação é um crime doloso, preenchendo-se o respectivo tipo com o simples dolo eventual.

Numa outra perspectiva, a usurpação é um mala prohibita, um crime artificial, cuja punibilidade não se pode presumir conhecida de todos os cidadãos, nem se pode exigir que o seja. Não obstante, quem exerce, de forma estável, uma determinada actividade, como acontece com a arguida, têm o dever acrescido de conhecer as normas legais que a regem.
A arguida estaria pois, em princípio, obrigada a conhecer as regras a que está sujeita a actividade desenvolvida pela sociedade que gere.

Sucede, porém, que a complexidade do quadro jurídico-penal e jurisdicional com que nos deparamos altera os dados da questão.
Com efeito, a especialíssima e relevantíssima circunstância de o Tribunal do topo da hierarquia dos tribunais judiciais portugueses ter deixado expresso, através de um Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, que condutas como a imputada nos autos pela assistente C... à arguida, não integram a prática do crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149º, 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, aliada à ampla divulgação pública feita de tal aresto uniformizador, tornam claramente desrazoável o entendimento de que deva exigir-se à arguida, perante a posição do Supremo Tribunal de Justiça e contrariamente a esta, a consciência de que a sua conduta era contrária à ordem jurídica.
Deste modo, tendo em conta o disposto no art. 16º, nº 1 do C. Penal, não se pode ter por suficientemente indiciado o dolo da arguida, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do mesmo código.
*
Em conclusão, inexistem indícios suficientes da conduta dolosa da arguida, o que vale dizer que, não obstante a consideração da interpretação feita pelo TJUE supra referida, não se mostra suficientemente indiciada a prática do crime de usurpação.
Assim, ainda que por razões não totalmente coincidentes, deve manter-se o despacho recorrido.
*
III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça, em 3 UCS. (arts. 513º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9 do R. das Custas Processuais e tabela III, anexa).

Coimbra, 27 de Junho de 2018

Heitor Vasques Osório (relator)

Helena Bolieiro (adjunta)