Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
910/08.7TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: CRIME DOLOSO
ELEMENTO SUBJECTIVO
ACUSAÇÃO E PRONÚNCIA
Data do Acordão: 09/30/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – JIC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 283º, 286º, 287º, 303º E 30º DO CPP
Sumário: 1. São os elementos subjectivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira.
2. Num crime doloso da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

            Nestes autos provenientes do Tribunal Judicial de Viseu, na fase de inquérito, a assistente C... deduziu acusação particular contra P... imputando-lhe a autoria de um crime de injúria e de um crime de denúncia caluniosa, p. e p., respectivamente, pelos arts. 181º e 365º, ambos do Código Penal.

            O M.P. determinou o arquivamento dos autos no que concerne ao crime de denúncia caluniosa considerando não se indiciarem factos que preencham os respectivos elementos objectivos e subjectivos e acompanhou a acusação particular quanto ao crime de injúria.

            A assistente não se conformou com o despacho de arquivamento e requereu a abertura de instrução, em requerimento com o seguinte teor:

(…)

C..., assistente nos autos supra referenciados, vem, nos termos do artigo 287°, n° 1, al. b) do Cód. Processo Penal, requerer a abertura da Instrução, o que faz pelas seguintes razões:

1. Foi proferido despacho de arquivamento, pelo douto Representante do Ministério Público, relativamente ao crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art. 365º do Código Penal c relativamente ao qual a Assistente havia exercido oportunamente o competente direito de queixa.

2. A Exmª Senhora Procuradora-Adjunta fundamenta, na essência, tal arquivamento no facto de o arguido, ao efectuar a comunicação à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Viseu, se ter limitado a cumprir urna exigência decorrente da lei (“um dever”), já que reputara de "estranha” a ausência injustificada da menor às aulas, atento o facto da menor não apresentar em meio escolar “comportamentos que fossem motivo de preocupação suplementar” e de não existir no processo da aluna documento justificativo para aquelas faltas.

3. Seria, assim, “legítima a participação”, além de não se verificar o preenchido o tipo subjectivo do crime de denúncia caluniosa, na medida em que o arguido não actuara com a consciência da inveracidade da imputação nem com a intenção de que se instaurasse procedimento contra a Assistente.

4. Ora, salvo melhor opinião, nem o comportamento do Arguido foi tão anódino, nem a sua intenção foi tão cândida quanto o que resulta do douro despacho de arquivamento.

5. Assim se procurará demonstrar no decurso desta instrução.

6. Desde logo, cumpre ter presente que, aquando da entrada da filha da Assistente, para o estabelecimento de ensino “Colégio ….” já o arguido ali exercia funções.

7. Tal aconteceu no ano lectivo 2005/2006 c, logo nessa altura, foi entregue naquele estabelecimento de ensino o seu processo escolar, de onde constava a documentação médica que justificava estar a D… abrangida pelo DL 319/91, de 23 de Agosto, diploma que estabelece o regime educativo especial aplicável aos alunos com necessidades educativas especiais.

8. De facto, a D..., em 27 de Maio de 2000, foi vítima de um acidente de viação, em consequência do qual ficou politraumatizada e com traumatismo craneo-encefálico grave. Devido a esses ferimentos foi submetida a várias intervenções cirúrgicas e acabou por ser transferida do Hospital de Viseu para o Serviço de Neurocirurgia dos Hospitais da Universidade de Coimbra em 6 de Junho de 2000, ainda em estado de coma. Durante o internamento foi recuperando os sentidos, tendo, depois, passado pelo hospital de Viseu e pelo Centro de Reabilitação do Alcoitão. Não obstante, ficou com sequelas gravíssimas, com áreas cerebrais comprometidas, que lhe acarretam dificuldades cognitivas, linguísticas e, em especial, flutuações a nível de aprendizagem e comportamento, motivo por que tem de tornar grande quantidade de medicamentos.

9. Estes factos - embora, concede-se, não com a minúcia do antecedente relato - eram do inteiro conhecimento do Arguido, por força até das funções de Director Pedagógico por ele desempenhadas naquela Escola.

10. Tanto assim é que, aquando da entrada da D... para o Colégio …, no ano lectivo 2005/2006, os auxiliares de acção educativa foram instruídos no sentido de a vigiarem durante os intervalos e, ao longo de todos esse ano, houve um acompanhamento permanente por parte de uma tarefeira.

11. Essa situação clínica da D... era ainda sobejamente conhecida do Arguido por outros factores; a mãe da D..., ora Assistente, também é docente e o historial de sofrimento subsequente ao acidente de viação que vitimou a D... foi conhecido por toda a comunidade de docentes de Viseu; por outro lado, o irmão mais velho da D..., E..., frequentava o Colégio havia já 4 anos e relatava a todos os problemas que vivenciava com sua irmã, com quem o relacionamento em casa se tornava extraordinariamente difícil.

12. Em Janeiro de 2006, a D... foi internada pelo pedopsiquiatra que a acompanhava no Serviço de Pediatria do Hospital de São Teotónio e teve alta 9 dias depois. Durante este período, foi visitada quer pelo Arguido, quer pelo seu Director de Turma, quer pela psicóloga do Colégio.

13. O Arguido chegou a referir que não imaginava que o caso da D... fosse tão grave.

14. Durante os contactos formais e informais que manteve com os responsáveis do Colégio - o Arguido, directores de turma e psicóloga -, a Assistente sempre os pôs a par dos problemas comportamentais da D... em contexto familiar, disponibilizando, aliás, os contactos dos médicos e terapeutas que têm acompanhado a D.... De resto, a psicóloga do Colégio tem tido contactos regulares com a Drª A..., psicóloga que acompanha a D... numa Clínica particular do Porto.

15. Na sequência da decisão de internamento da D... por parte do psiquiatra que a acompanhava - Dr. A… - ocorreu, em 19 de Abril de 2008, uma reunião entre o director de turma, a psicóloga, o arguido e a assistente, no âmbito da qual esta informou os presentes que a justificação das faltas da D... (internada a 18 de Abril) iria ser enviada directamente pela clínica.

16. É sabido que as justificações de falta têm de ser apresentadas ao Director de Turma e não ao Arguido, corno, aliás, sempre aconteceu por ocasião das inúmeras situações clínicas que determinavam a ausência da D....

17. A Assistente tentou contactar o director de turma para informar que aguardava a todo o momento, o envio do documento da “Clínica …” comprovativo do internamento da D... c, não o tendo conseguido, comunicou à psicóloga do Colégio tal facto, tendo então esta transmitido à Assistente que poderia ficar descansada já que iria reportar a informação ao Director de Turma,

18. A declaração da Clínica não chegou imediatamente ao destino, por incompleto preenchimento da morada do destinatário, circunstância que a Assistente não deixou de transmitir ao Colégio, com a indicação dos contactos da Clínica para que a Escola pudesse, querendo, confirmar que a D... ali se encontrava internada por determinação médica.

19. Em conclusão, do arrazoado ora oferecido, resulta que a Assistente pretende provar que:

a) o Arguido bem sabia o motivo da ausência da D... às actividades lectivas na Escola de que é responsável;

b) a justificação da ausência da D... tinha de ser dada, corno foi, ao seu Director de Turma, que sabia o local onde da se encontrava a "Clínica do Outeiro" e os respectivos contactos, o que também era do conhecimento do Arguido;

c) o Arguido, no caso de duvidar da informação prestada pela mãe, ora Assistente, poderia ter indagado junto daquela Clínica se a D... ali se encontrava internada e qual a razão, e não o fez;

d) o Arguido conhecia o longo historial clínico e comportamental da D... e, ao arrepio de todo esse historial e faltando à verdade, mencionou na participação efectuada à Comissão de Protecção que a menor não apresentava, em meio escolar, “comportamentos que fossem motivo de preocupação suplementar”, tudo com o único fito de perseguir a Assistente e de determinar a abertura contra ela de um procedimento junto da Comissão de Protecção de Jovens e Crianças de Viseu, o que veio a acontecer;

- Assim, ao efectuar, em 30 de Abril, a comunicação da situação de “perigo” em que se encontraria a menor "D... ", filha da Assistente, à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Viseu, o Arguido cometeu um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo artigo 365º do Código Penal.

Termos em que:

R. a V. Exª se digne proceder à abertura de instrução, levando a cabo os actos infra requeridos e. a final pronunciando o arguido pelo crime de denúncia caluniosa, p. p. pelo art. 365º do Código Penal.

(…)

            O Exmº Juiz de Instrução Criminal, confrontado com aquele requerimento, indeferiu-o, por despacho com o seguinte teor:

C..., admitida a intervir nos autos como assistente, veio requerer a abertura de instrução, concluindo o seu requerimento com a pronúncia do arguido pela prática de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo arte 3650 do Código Penal.

Todavia, analisado o requerimento de fls, 99 a 105, constata-se que a assistente não imputou ao arguido P... quaisquer factos constitutivos dos elementos subjectivos do referido ilícito típico.

A assistente no requerimento de abertura de instrução limita-se, tão-só, a fazer uma exposição de factos objectivamente integrantes do referido ilícito típico, não tendo imputado ao arguido quaisquer factos constitutivos dos elementos subjectivos inerentes ao delito criminal imputado.

O sistema penal português assenta na ideia de culpa do agente, constituindo o suporte para a própria punição, já que em Direito Penal está consagrado o principio "nulla poena sine culpa". Isto significa que só são punidos actos praticados com dolo ou negligência.

No requerimento a que se alude não são concretizados, em termos fácticos, a responsabilidade subjectiva do arguido P....

Cumpre-nos notar que o requerimento de abertura de instrução, no caso de ter sido proferido despacho de arquivamento pelo Ministério Público equivale a uma acusação, definindo e limitando o objecto do processo a partir da sua apresentação, não competindo, pois, ao juiz suprir as suas eventuais falhas ou insuficiências na enumeração dos factos concretos a imputar ao arguido. Não basta alegar os factos integrantes dos elementos objectivos dos tipos legais imputados, é exigível também uma imputação subjectiva de factos.

O Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência no sentido de não haver "lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, n° 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido" (in Acórdão nº 7/2005, publicado no DR I-A, de 4 de Novembro de 2005).

Nesta decorrência, o requerimento formulado pela assistente, como acusação alternativa à do Ministério Público, com a função de delimitar o objecto do processo, deve conter, sob pena de nulidade, "a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada" (cfr. art° 283°, n° 1, al. b), do Código de Processo Penal ex vi art° 287°, n° 2, in fine, do Código de Processo Penal).

Diga-se ainda que seria nula uma decisão instrutória que pronunciasse um arguido por factos não alegados pelo assistente ou que em relação a estes configurasse uma alteração substancial, nos termos do disposto no art. 309°, n° 1, do mesmo diploma legal.

A acusação e a pronúncia fixam, pois, o objecto do processo e é imodificável até ao julgamento.

Reportando-nos ao requerimento de abertura de instrução apresentado, no mesmo não são indicados os elementos subjectivos constitutivos do crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo art° 365° do Código Penal imputado ao aqui arguido.

Os factos alegados no requerimento em apreciação, desacompanhados da imputação dos elementos subjectivos não configura a prática de crimes.

Ademais, mesmo que em sede de audiência se provassem todos os factos alegados, o arguido não poderia legalmente ser punida, porque faltariam os factos integrantes do dolo ou negligência.

Competia, pois, à assistente descrever além da conduta do arguido P...quanto às referidas circunstâncias de tempo, modo e lugar do crime que lhe imputa, alegar factos que preenchem o elemento subjectivo do ilícito criminal.

Pelo exposto, e ao abrigo das referidas disposições legais, indefiro o requerimento para abertura de instrução.

Notifique.

Recorre a assistente deste despacho, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

1 - O requerimento de abertura de instrução contem a indicação dos factos ilícitos, culposos, tipificados como crime de denúncia caluniosa, a forma e o grau de participação daquele que indica como autor da sua prática, o aqui arguido. Ou seja, contém os elementos necessários -- designadamente, os elementos subjectivos do ilícito criminal a que o Juiz de Instrução leve a cabo a sua actividade.

2· A recorrente procedeu, naquele requerimento, a uma narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de urna pena ao arguido, em obediência escrupulosa aos comandos legais ínsitos nos arts 287º e nº 3 e 283º do CPP.

3- Dos factos narrados pela assistente resulta que o arguido, ao participar da assistente à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Viseu, terá agido com a consciência da falsidade da imputação e com a vontade de contra ela ser instaurado procedimento.

4- Constam, assim, do requerimento de abertura de instrução, os factos bastantes – e, designadamente, os integradores dos elementos subjectivos constitutivos do crime - para, uma vez provados, levar à condenação do arguido pela prática de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365° do Código Penal.

5- Deveria, assim, e salvo o máximo respeito por opinião contrária, o Meritíssimo Juiz de Instrução ter recebido o requerimento de abertura de instrução, determinando a respectiva abertura e subsequente tramitação processual, com a produção dos actos de instrução pertinentes.

6- Ao decidir em sentido contrário, o Tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação dos artigos 287º, nºs 1, 2 e 3 e 283°, nº 3 do CPP.

7- Ainda que o requerimento de abertura de instrução não contivesse os factos integradores do dolo inerente ao ilícito criminal imputado ao arguido - o que só por mero dever de patrocínio se aventa - por não se verificar qualquer das causas de rejeição elencadas no nº 3 do art.287° do CPP, deveria o Tribunal a quo ter proferido despacho de aperfeiçoamento, nos termos do artigo123° nº 2 do CPP, não se justificando, por isso, o indeferimento do requerimento instrutório, reservado apenas para os casos de absoluta omissão de narração dos factos atinentes.

8- Aliás, inexiste qualquer disposição legal que comine com nulidade insanável, de conhecimento oficioso, a falta de narração de elementos integrantes do ilícito criminal, num requerimento de abertura de instrução.

9- Não decidindo assim, o douto despacho recorrido violou, por incorrecta interpretação, o disposto no artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal e o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, que consagra o direito de acesso à justiça.

Termos em que,

Em face do acervo conclusivo acabado de expor, e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, pede-se a concessão de provimento ao presente recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que determine a abertura de instrução ou, quando assim não se entender, pelo menos, convide a assistente a aperfeiçoar o seu requerimento, como é de justiça.

            O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

            Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância, pronunciando-se também pela improcedência do recurso.

            A assistente, por seu turno, notificada para os termos do art. 417º, nº 2, do CPP, respondeu, mantendo integralmente a posição que já havia assumido.

            Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

            Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

            No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há apenas que verificar se no requerimento de abertura de instrução da assistente consta a indicação dos elementos subjectivos do crime, como aquela sustenta; e não constando tais elementos, saber se deverá a assistente ser convidada a completar o requerimento apresentado, antes da respectiva rejeição.

                                                                       *

                                                                       *

II - FUNDAMENTAÇÃO:

            Como é sabido, o requerimento de abertura de instrução, quando esta tenha por objecto a comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito, em ordem a submeter a causa a julgamento, (art. 286º, n.º 1, do Código de Processo Penal, diploma a que se reportam todas as demais disposições legais citadas sem menção de origem), tem que narrar, ainda que sinteticamente, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis [art. 283º, nº 3, als. b) e c), por expressa remissão do nº 2 do art. 287º]. Atenta a finalidade visada, em tal caso, pela instrução, o requerimento de abertura da instrução tem que se conformar como uma verdadeira acusação, já que é esse requerimento que fixa o objecto do processo, delimitando o âmbito da ulterior actividade investigatória a desenvolver pelo juiz de instrução, como resulta, aliás, dos artigos 303º, nº 3 e 309º, nº 1. Deve, pois, conter a descrição fáctica equivalente a uma acusação pública, com a indicação precisa e completa dos factos que a requerente entende estarem indiciados, integradores tanto dos elementos objectivos do crime como dos seus elementos subjectivos e que justificariam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Não obedecendo a este condicionalismo, o requerimento deve ser rejeitado por inadmissibilidade da instrução (art. 287º, n.º 3, parte final).

No caso vertente, o requerimento da assistente foi indeferido com fundamento na falta de narração de factos que preencham o elemento subjectivo do crime. Sustenta no entanto a recorrente que esses elementos constam do requerimento em análise.

            Registe-se que são precisamente os elementos subjectivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira. Tanto assim que, como afirma Figueiredo Dias, “…também estes elementos cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado” [1]. Ou seja:

            - Os elementos objectivos, que constituem a materialidade do crime, traduzem a conduta, a acção, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos (inútil desenvolver aqui a especificidade relativa aos crimes de omissão pura, por não interessar ao caso dos autos).

- Os elementos subjectivos traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.

Num crime doloso – só esse interessa tratar aqui – da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).

Contudo, por muito que a recorrente procure convencer do contrário na motivação do recurso interposto, o que é certo é que não contemplou na narração dos factos a totalidade destes elementos.      Não contendo o requerimento da assistente a descrição dos elementos subjectivos do crime que imputa ao arguido, não poderia o juiz de instrução atender a tais elementos, ainda que viesse a considerar suficientemente indiciados os elementos materiais. Sem essa indicação não se mostra perfectibilizada a imputação criminosa; e sendo assim, jamais poderia ser proferido despacho de pronúncia contra o arguido, porquanto o art. 308º, nº 1, e o art. 283º, nº 3, correspondentemente aplicável, impõem a descrição, ainda que sintética, de todos os factos relevantes para fundamentar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança. Ora, como se refere no Ac. da Relação do Porto de 11/10/2006 [2], “uma instrução que não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido é uma instrução que a lei não pode admitir, até porque seria inútil, e não é lícito praticar no processo actos inúteis, conforme preceitua o artigo 137º do Código de Processo Civil, ex vi o artigo 4º do Código de Processo Penal”.

            Em conclusão, não sendo legalmente admissível a instrução requerida pelo assistente quando este não descrever no requerimento de abertura de instrução a totalidade dos factos que consubstanciam o crime por cuja prática pretende a pronúncia do arguido, deve a instrução ser rejeitada por inadmissibilidade legal, nos termos previstos no art. 287º, nº 3.

           

Por outro lado, é ponto assente que “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 28º, nº 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”. É esse o sentido da jurisprudência fixada pelo Ac. nº 7/2005 do STJ  [3]. E nem se diga que o facto de não estar em causa, no caso dos autos, uma ausência total de narração de factos, mas apenas uma falta parcial, justifica solução diversa da encontrada no acórdão de uniformização de jurisprudência. A questão de fundo coloca-se essencialmente ao nível dos direitos e garantias do arguido e, como se refere na fundamentação do acórdão citado, “a faculdade de, pelo convite à correcção, o assistente apresentar novo requerimento colidiria com a peremptoriedade do prazo previsto no art. 287º, nº 1, do CPP. Essa dilação de prazo sequente àquele convite pelo juiz de instrução, que não se inscreve no âmbito de comprovação judicial, atribuído à função da instrução, no artigo 286.º, n.º 1, do CPP, atentaria, assim, contra direitos de defesa do arguido, porque a peremptoriedade do prazo funciona, claramente, em favor do arguido e dos seus direitos de defesa (…). O convite à correcção encerraria, isso sim, uma injustificada e desmedida, por desproporcionada, compressão dos seus direitos fundamentais, em ofensa ao estatuído no artigo 18.º, nºs 2 e 3, da CRP, que importa não sancionar”.

            A recorrente invoca, cautelarmente, o argumento constitucional, apontando violação do art. 20º da Constituição da República Portuguesa a esta interpretação, supostamente restritiva do direito de acesso à justiça. Contudo, também neste particular aspecto lhe não assiste razão. O inalienável direito da assistente de aceder à justiça e aos tribunais em momento algum foi posto em causa, tanto assim que teve a oportunidade de requerer a abertura de instrução e de recorrer para a 2ª instância da decisão que lhe indeferiu esse requerimento. E se esse requerimento foi indeferido e se tal indeferimento é agora confirmado, são consequências imputáveis apenas à própria assistente, que não deu cumprimento aos normativos legais a cujo cumprimento estava obrigada para atingir a finalidade que se propunha. De resto, a constitucionalidade desta interpretação já foi por várias vezes sindicada e confirmada pelo Tribunal Constitucional. Vejam-se, a título de exemplo, os acórdãos do TC nº 27/2001, de 23/03/2001 [4] e nº 310/2005, de 14/07/2005 [5].                   

*

                                                                       *

III – DISPOSITIVO:

            Nos termos apontados, nega-se provimento ao recurso da assistente.

            Por ter decaído integralmente no recurso que interpôs, pagará a recorrente a taxa de justiça, já reduzida a metade, de 4 UC.

 

                                                                       *

                                                                       *

                                                                                  Coimbra,09-09-30 JACOB ____________

 


[1] - “Direito Penal - Parte Geral”, tomo 1, 2ª Ed., pag. 379.

[2] - Consultável em http://www.dgsi.pt/, processo nº 0416501, nº convencional JTRP00039552
[3] - Publicado no D.R., Série I-A, n.º 212, de 4 de Novembro de 2005.

[4] - Publicado no D.R., Série II, de 23/03/2001.
[5] - Publicado no D.R., Série II, de 19/10/2005.