Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3644/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. BELMIRO ANDRADE
Descritores: PROVA - DEPOIMENTO INDIRECTO
Data do Acordão: 01/07/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FUNDÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ART.º 129 CPP
Sumário:

I - O depoimento indirecto, no âmbito limitado em que é admitido pelo art. 129º do CPP não viola os direitos de defesa do arguido previstos na Constituição ou na Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
II - Assentando a decisão recorrida, relativa à questão de facto, na credibilidade atribuída a determinado meio de prova em detrimento de outro, com base na oralidade/imediação, não pode o tribunal de recurso alterar a decisão, salvo se se revelar inadmissível face à regras da experiência comum.
III - O princípio in dubio pro reo não se aplica a qualquer dúvida sobre a questão de facto, mas apenas aquela que, depois de produzida a prova – toda a prova pertinente – e efectuada a sua avaliação de acordo com as regras da experiência, deixe o tribunal em situação de “dúvida razoável” sobre o facto.

Decisão Texto Integral:


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA


I. RELATÓRIO

1. O arguido B, divorciado, reformado, natural do Castelejo, A, nascido em 03.12.1924, filho de C e de D, residente no sítio dos Arraiais, …, foi pronunciado, em processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo:
- pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível nos termos do disposto nos artigos 131° e 132°, n.º1 e n.º 2 alíneas d), h) e i) do Código Penal.
E, F e G, deduziram pedido de indemnização civil, pedindo a condenação do arguido no pagamento da quantia global equivalente a 17.710.000$00, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, que sofreram por via da conduta do arguido, bem como a pagar todas as despesas e custas relativas à assistência prestada por hospitais à vítima, que venham a mostrar-se serem devidas e a ser reclamadas directamente às requerentes.
Os Hospitais da Universidade de Coimbra reclamaram o pagamento da quantia equivalente a € 11 851.45, valor da assistência aí prestada à vítima.

2. Realizado o julgamento, o Tribunal Colectivo decidiu:
- operar a convolação do crime agravado pelo qual o arguido vinha pronunciado para o crime “simples” e, como autor do crime de homicídio p. e p. pelo artigo 131º do C Penal, condenou o arguido na pena de 13 anos de prisão.
- Na parcial procedência do pedido cível deduzido pela assistente e filhas, condenou o arguido, a pagar-lhes, a indemnização global equivalente a Esc. 13.500.000$00, sendo o arguido condenado ainda a pagar aos HUC a quantia de € 11.851,45 acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação até integral pagamento.


3. Inconformado, recorreu o arguido daquela decisão, extraindo da motivação apresentada, a final, as seguintes CONCLUSÕES (transcrição):
A) QUANTO À ALTERAÇÃO DA MEDIDA DE COACÇÃO
1. - À data do julgamento o arguido encontrava-se sujeito a três medidas de coacção, mais precisamente à obrigação de não se ausentar das freguesias de Valverde e A e proibição de contactar com a família do falecido, à obrigação de se apresentar no posto policial da área da sua residência, 3 vezes por semana, e, finalmente, à prestação de caução no valor de (5.000 (cinco mil euros), através de depósito bancário - situação que, nessa altura, perdurava havia cerca de 10 meses.
2. - Dos autos não resulta o mínimo indício de que o arguido tenha inobservado qualquer das medidas cautelares.
3. - o arguido apresentou-se no Tribunal, a fim de ser julgado, logo na primeira
data que para o efeito lhe foi designada, revelando ao longo de todo processo uma atitude processual correcta e de perfeita colaboração com a Justiça, exercendo legitimamente os direitos que a Constituição e a Lei lhe conferem, não usando de qualquer expediente meramente dilatório.
4. - Não decorre dos autos qualquer indício que permita a mínima desconfiança quanto a um eventual perigo de fuga e, encontrando-se o processo julgado, não pode sequer verificar-se o pressuposto previsto na alínea b) do artigo 204º do CPP.
5. - O arguido tem 79 anos de idade, nada consta do seu certificado de registo criminal; esteve mais de ano e meio sujeito à obrigação de permanência em habitação e, posteriormente, durante cerca de 10 meses, sujeito às obrigações que lhe foram impostas após a extinção daquela medida, atrás enunciadas, tendo tudo cumprido rigorosamente, não havendo notícia de que tenha praticado qualquer crime ou perturbado minimamente a ordem e tranquilidade públicas.
6. - É dono das propriedades confinantes com as da família da vítima, aludidas no douto acórdão recorrido, há mais de oito anos, situação que se manteve no decurso do processo, não ocorrendo nesse hiato temporal o mínimo incidente.
7. - Perante o circunstancialismo concreto do caso, o tempo já decorrido, o comportamento do arguido ao longo do processo, a inexistência de notícia de qualquer incidente entre o arguido e a família da vítima desde a data dos factos até ao presente, a idade do arguido e a sua personalidade apurada em julgamento, não pode inferir-se que haja fundado receio, ou tão pouco a mínima suspeição, de que o mesmo persista na actividade criminosa.
8. - As medidas de coacção a que o arguido estava sujeito à data do julgamento mostraram-se suficientes e adequadas para prevenir as finalidades que justificaram a sua adopção, não tendo ocorrido qualquer alteração significativa da situação existente, pelo que o seu agravamento, ao ponto de lhe ser aplicada a medida cautelar mais gravosa, é claramente desnecessário, injustificado e desproporcionado, não podendo a condenação em pena de prisão, aplicada em sentença não transitada, só por si, justificar o agravamento das medidas de coacção, o qual deve assentar em específicas circunstâncias ou elementos de facto que, se conhecidos antes, seriam susceptíveis de ditar o agravamento.
9. - o perigo (relevante) de continuação da actividade perigosa tem de ser aferido a partir de elementos factuais que o revelem ou o indiciem e não de mera presunção (abstracta ou genérica), ou seja, terá de ser apreciado caso a caso em função da contextualidade de cada caso ou situação, pelo que não cabem aqui juízos de mera possibilidade e só o risco real (efectivo) de continuação da actividade criminosa pode justificar a aplicação das medidas de coacção, maxime da prisão preventiva. Assim sendo, a mera possibilidade de continuação da actividade criminosa não constitui motivo suficiente para concretizar uma qualquer situação consubstanciadora de perigo de continuação da actividade criminosa.
10. - No caso em apreço não decorre dos autos qualquer elemento factual que revele ou indicie o mínimo perigo real de que o arguido possa vir a cometer qualquer crime, fundando-se a decisão recorrida numa mera probabilidade, abstracta, sem o mínimo suporte fáctico ou real - e, mesmo enquanto probabilidade, bastante remota e forçada, atentas as medidas de coacção a que o arguido se encontrava sujeito e o efeito pelas mesmas produzido.
11. - A decisão que alterou as medidas de coacção a que o arguido estava sujeito, agravando-as, ao ponto de lhe aplicar a medida cautelar mais gravosa do nosso sistema jurídico processual penal, é, assim, desadequada, desproporcionada e desprovida de qualquer suporte fáctico real, violando, por isso, o preceituado nos artigos 191°, 193°, 202°, 209° e 375°, n.º 4, todos do Código de Processo Penal, pelo que deve ser revogada, mantendo-se as medidas a que o Recorrente se encontrava sujeito ou, quando assim não se entenda, quaisquer outras, menos gravosas que a prisão preventiva.

B) - QUANTO À DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
12. - Da prova produzida em julgamento e da própria fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto resulta, entre outros aspectos, que nenhuma das pessoas ouvidas em julgamento presenciou o disparo; que foram realizadas diversas buscas no próprio dia da ocorrência, não tendo sido encontrada qualquer arma com a qual o arguido pudesse ter disparado contra a vítima; e que no momento da detenção o arguido tinha consigo uma pistola de calibre 6,35 mm, devidamente legalizada.
13. - O Tribunal formou a sua convicção quanto à autoria do disparo, dando como provado que foi o arguido que disparou contra a infeliz vítima, no facto do arguido ter confessado que esteve na propriedade que possui nas proximidades do local onde foi encontrada a vítima e nos depoimentos da assistente e das testemunhas que declararam ter ouvido dizer ao ofendido que fora o B ("o bandido", o "malandro do B") que o atingira e ainda nos depoimentos das testemunhas que declararam ter-se cruzado com o arguido nesse dia por volta das 17.25/17.30 horas.
14. - Resulta da prova produzida em julgamento e da própria fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto que o arguido negou a prática dos factos que lhe foram imputados, prestando o seu depoimento directamente, em Tribunal, tendo, por isso, os julgadores e todos os demais sujeitos processuais a imediação dessa prova e a possibilidade de exercerem o contraditório;
15. - Por sua vez, as alegadas afirmações do ofendido, supostamente efectuadas há mais de dois anos e cinco meses, constituem prova indirecta, sem imediação e sem possibilidade de contraditório, não traduzindo os diversos depoimentos prestados pelas pessoas que afirmaram ter ouvido dizer ao ofendido que o autor do disparo foi o B mais do que a reprodução dum depoimento daquele (ofendido), sendo indiferente que tal reprodução seja feita por uma, por cinco ou por cinquenta pessoas, não representando ou valendo mais do que as declarações do ofendido, com a desvantagem de serem prestadas indirectamente.
16. - O caracter indirecto dessa prova impede, desde logo, o Tribunal de perscrutar a razão de ciência subjacente às alegadas afirmações do ofendido no sentido de que o autor do disparo foi o B, ou seja, impossibilita o apuramento da razão que terá levado o ofendido a fazer - se é que, na verdade, fez - tal afirmação, surgindo, por isso, a dúvida se a vítima terá visto quem efectuou o disparo que o atingiu, ou se terá afirmado que foi o B ("O Bandido", "O Malandro") devido às divergências existentes entre ambos, por questões de propriedades.
17. - Tal dúvida ganha maior ênfase quando conjugada com o depoimento da viúva e assistente, E (registo audio: cassete 3, lado A, rotações 0000 a 2450, e lado B, rotações 0000 a 0767), na parte em que afirma estar certa de que o autor do disparo foi o arguido por ter a certeza de que não havia no Castelejo ninguém capaz de dar um tiro à vítima, seu marido. Mais:
l8. - A descrição feita pela assistente quando ao modo como a vítima lhe descreveu projécteis e a posição em que se encontraria o autor do disparo, indiciam de que aquele não viu - nem podia ter visto - quem o atingiu.
19. - Tudo isto, só por si, retira credibilidade aos relatos das alegadas afirmações da vítima, cuja veracidade fica ainda seriamente abalada pelas divergências verificadas entre os diversos depoimentos prestados a esse respeito, já que não é crível que o ofendido que, segundo o Auto de Notícia, devido ao seu estado de saúde não falava de forma compreensível, tenha tido discernimento e imaginação para contar a "história" pelo menos em três versões diferentes - credibilidade que sai irremediavelmente afectada se atentarmos que na fase de inquérito nem todas as testemunhas que em julgamento afirmaram ter ouvido tais expressões da boca do ofendido declararam tê-lo ouvido dizer o que quer que fosse e as que ouviram, com excepção do H, chegaram ao ponto de declarar que a vítima terá dito que foi o B que lhe tinha dado um tiro e fugido em direcção à Enxabarda - versão que não mantiveram em julgamento e que, de resto, o ofendido não lhes podia ter transmitido, já que do local onde o mesmo foi encontrado não se avista o entroncamento da Enxabarda.
20. - A referida prova indirecta, que o Tribunal valorou mais do que as declarações do arguido, prestadas em audiência, para além de vaga e imprecisa quanto à pessoa do B (bandido ou malandro) que, supostamente, terá disparado sobre o ofendido, está, assim, eivada de discrepâncias e contradições - o que tudo abala irremediavelmente a sua credibilidade, sobretudo num caso com a gravidade deste, atento o crime em apreço e a pena a que o seu autor se habilita. De todo o modo:
21. - Da prova produzida em julgamento, nomeadamente dos depoimentos das testemunhas H (registo áudio: cassete 3, lado B, rotações 0835 a 2150), J (registo áudio: cassete 3, lado B, rotações 2150 a 2340) e L(registo áudio: cassete 4, lado A, rotações 0000 a 0656), conjugada com o relatório de ocorrência de fls. 236, decorre que os factos não podem ter ocorrido quer à hora indicada no despacho de pronúncia (18:00 horas), quer à hora - corrigida - indicada nos factos que o Tribunal deu como provados (17:30 horas), mas, sim, entre as 17:45 horas e as 17:53 horas.
22. - Resulta, por outro lado, nomeadamente dos depoimentos das testemunhas I (registo áudio: cassete 4, lado A, rotações 0657 a 2187), M(registo áudio: cassete 4, lado A, rotações 2188 a 2431, e lado B, rotações 0000 a 2282), N (registo áudio: cassete 5, lado A, rotações 2098 a 2471, e lado 6, rotações 0000 a 1835) e O (registo áudio: cassete 5, lado A, rotações 0000 a 2097) que à hora em que o crime terá efectivamente sido praticado o arguido não se encontrava no local do mesmo, já que foi visto a afastar-se do mesmo por volta das 17:25/17:30 horas. Em suma:
23. - Da prova produzida em julgamento decorre, assim, claramente que o arguido não se encontrava no local onde os factos terão ocorrido no momento em que os mesmos terão sucedido.
24. - Ainda que assim não se entenda, tais elementos probatórios, no mínimo, lançam a dúvida relativamente à versão do ofendido, indirectamente trazida pela assistente e pelas testemunhas que dizem ter falado com ele momentos após a prática dos factos. Mais ainda:
25. - O facto do arguido ter negado a prática dos factos desde o primeiro momento, conjugado com a serenidade, calma e despreocupação perante a suspeita que sobre si foi lançada e a atitude colaborante manifestada, autorizando todas as buscas que vieram a ser efectuadas na viatura e nos imóveis de sua pertença, aumenta consideravelmente a dúvida quanto ao seu envolvimento no crime, já que é das regras da experiência que, perante uma situação desta natureza, é difícil manter a calma e despreocupação quando se está comprometido com a mesma. Acresce que
26. - O arguido podia ter abandonado o local dos factos, regressando à sua residência, na cidade do A, sem passar pelo Castelejo, localidade que se situa a poucas centenas de metros do local onde foi encontrada a vítima, já que, como resultou da prova produzida, existiam estradas que permitiam ao arguido deslocar-se da Freixieira para o A ou da Enxabarda para o A sem que tivesse de passar no Castelejo - actuação que se nos afigura incompatível com a prática dos factos em apreço e indiciadora do desconhecimento do arguido relativamente ao sucedido na Freixieira.
27. - Ainda que se entenda que a prova produzida não permite arredar completamente a hipótese de ter sido o arguido o autor do disparo - em nossa opinião até permite -, não permite também afirmar, com aquela dose de certeza exigível em processo penal, que foi este o autor desse acto. Assim:
28. - Da prova produzida não resulta para além de toda a dúvida razoável, ou, dito doutro modo, com o grau de certeza exigível em direito penal, nomeadamente, que no dia 02 de Março de 2001, por volta das 17;30 horas, no local denominado Sítio do Freixieiro, Castelejo, área desta comarca, o arguido, utilizando uma arma de caça, de calibre 12 mm, desferiu um disparo, de um cartucho, com chumbo n.º 5, atingindo a vítima P; que após ter efectuado o disparo e com o P caído na estrada, o arguido abandonou o local na sua viatura, marca Mercedes, de cor branca, seguindo com pressa, na direcção da localidade da Enxabarda, tendo-se cruzado com Q e a sua Neta R, e tendo esta última tido que saltar para a berma para evitar que o arguido embatesse nela, tal era a pressa em se ausentar do local onde havia perpetrado o crime; que o arguido, já por uma ocasião, havia proferido ameaças de morte dirigidas ao P.
29. - Ao decidir de forma diferente, dando como provado que foi o arguido que disparou contra a vítima P, o Tribunal apreciou e valorou incorrectamente a prova produzida, violando, nomeadamente, os princípio do acusatório, da imediação e da presunção de inocência, e o disposto no artigo 32°, n.ºs 2 e 5, da CRP e 127° do CPP.
30. - Ao decidir dessa forma, a coberto do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127° do CPP, o Tribunal interpretou tal dispositivo em manifesta violação do disposto no artigo 32°, nos 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa, onde se consagram, respectivamente, os princípios da presunção de inocência e do acusatório, sendo tal interpretação, por isso, inconstitucional.
31. - Deve, assim, revogar-se o douto acórdão recorrido, dando-se como não provados os factos acima aduzidos, absolvendo-se, consequentemente, o arguido, com todas as legais consequências.

C) - QUANTO À DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO
32. - Quando assim não se entenda, o que só como mera hipótese e por cautela de patrocínio se concebe, na esteira da jurisprudência dominante - que vem perfilhando o entendimento de que, na vigência do código penal de 1982, o ponto de partida para a determinação da medida da pena se deve situar na média entre os limites mínimo e máximo da respectiva moldura abstracta, devendo os casos menos graves ser punidos do mínimo para a média e os casos mais graves da média para a máxima -, deverá reduzir-se a pena de prisão aplicada ao arguido para o limite mínimo da moldura penal aplicável ao crime por que foi condenado, por estarmos perante um caso qualificável como menos grave e não resultaram provadas circunstâncias agravantes da culpa do arguido, nem as invocadas necessidades de prevenção geral, redundando em seu benefício a sua provecta idade (79 anos) e a inexistência de antecedentes criminais.
33. - No que concerne à pena aplicada ao arguido, o acórdão recorrido viola do disposto no artigo 71º do Código Penal, pelo que, nessa parte, sempre teria de revogar-se, reduzindo-se a pena para o limite mínimo, ou próximo deste, da moldura penal abstractamente aplicável.
***

3. Respondeu o MºPº, sustentando que o Colectivo de Juizes fez uma correcta apreciação dos factos e aplicação da lei, devendo a decisão recorrida ser mantida na íntegra. Salienta ainda que a prisão preventiva anteriormente sofrida pelo arguido à ordem dos presentes autos apenas foi revogada porque atingiu o limite do prazo razoável e não porque se tivesse entendido que fosse inadequada ou desproporcionada, que existe perigo de fuga, uma vez que após a decisão do Tribunal Colectivo, apesar da idade não é fácil aceitar passar o resto da vida na prisão.

4. Respondeu também à fundamentação do recurso a assistente E, concluindo que, tendo seleccionado e ponderado a prova de modo rigoroso, congruente e consequente, o Tribunal recorrido fez acertada interpretação da lei e dos princípios aplicáveis, tendo aplicado a pena adequada ao desvalor da conduta do arguido, à sua personalidade e à serena defesa dos fins de prevenção geral e especial, pelo que a decisão não merece censura.

5. Neste Tribunal o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer.
Suscita a questão prévia de que, tendo a decisão de submeter o arguido a prisão preventiva sido objecto de recurso a correr termos neste Tribunal da Relação com o n.º 3318/03-5ª, deve ser junta aos presentes autos cópia da respectiva motivação e, confirmando-se terem ambos os recursos o mesmo objecto, se declare a existência de litispendência, ficando prejudicado o conhecimento do presente recurso nessa parte.
Alega ainda, no que respeita ao recurso da matéria de facto: que o depoimento indirecto é válido nos casos admitidos pela lei, sendo, portanto, um meio de prova válido, livremente apreciado pelo tribunal, que no caso efectuou uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos; não se demonstra, em termos objectivos, que o arguido não podia estar no local dos acontecimentos no momento em que estes tiveram lugar; pelo contrário, o arguido foi visto a vir do lado de onde eles aconteceram e a conduzir em circunstâncias que indicavam claramente pressa em afastar-se do mesmo.
Relativamente à medida da pena entende que não se provaram circunstância atenuantes de relevo e nada impõe ou justifica que a pena seja fixada no seu mínimo legal, sob pena de não restar espaço para distinguir toda a variedade de casos em que existam circunstâncias de maior ou menor relevo que deponham a favor do arguido. A ponderar-se nalguma medida a pretendida redução da pena, nunca seria a pretendida redução para o mínimo legal.


4. Foi comprido o disposto no art. 417º do CPP, não tendo havido contra-alegações.
Corridos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre conhecer e decidir.



II. FUNDAMENTAÇÃO

1. AS QUESTÕES A DECIDIR
São as questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões que o tribunal de recurso tem que apreciar, sendo o âmbito do recurso definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação – Cfr. Germano Marques as Silva, Curso de processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada, bem como Recursos em Processo Penal, Simas Santos / Leal Henriques, 5ª ed., p. 74 e decisões ali referenciadas).
Isto sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente os vícios indicados no art. 410º, n.º2 do CPP, de acordo como o Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95.
Assim, no caso em apreço, importa: em primeiro lugar apreciar a questão prévia do conhecimento do recurso sobre a prisão preventiva, por estar a correr termos um outro recurso com esse objecto; em segundo lugar reapreciar a decisão da matéria de facto, no essencial quanto a saber se as provas produzidas permitem estabelecer que foi o arguido o autor do disparo que matou a vítima; e por ultimo, caso essa questão seja decidida pela afirmativa, apurar se a pena foi bem doseada.


2. A QUESTÃO PRÉVIA
Como se alcança da certidão que foi mandada juntar aos autos, encontra-se pendente neste Tribunal, nesta mesma Secção, um outro recurso – com o n.º 3318/03-5ª - o qual tem precisamente por objecto único e exclusivo, a reapreciação da medida de prisão preventiva decretada na audiência de discussão e julgamento.
Esse procedimento – autuação em separado do recurso sobre a prisão preventiva - tem subjacente a circunstância de ter sido demorada a transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não podendo o recurso da prisão preventiva ser prejudicado por tal atraso, dada a sua natureza urgente, tendo-se seguido o procedimento de mandar subir desde logo o recurso da prisão preventiva, instruído com as peças necessárias.
Verifica-se assim que nem é o caso de haver dois recursos – nesta parte – sobre a mesma questão. Mas apenas um recurso – este que foi interposto da decisão que ordenou a prisão preventiva – que foi autonomizado e mandado subir “antecipadamente” para que o arguido não fosse prejudicado pela morosiddade da transcrição necessária para a reapreciação do julgamento da matéria de facto. Aliás o recurso em causa foi entretanto já decidido, como se alcança da certidão junta aos autos.
Assim - por maioria de razão - encontrando-se o recurso a seguir os seus trâmites legais em processo autónomo, carece de fundamento a apreciação do mesmo nos presentes autos.
Pelo que nesta parte, por aplicação das regras sobre a excepção dilatória de litispendência, que obsta ao conhecimento de mérito, levando à absolvição da instância, não se conhece do mesmo, na parte relativa à reapreciação da decisão que decretou a prisão preventiva, dado tal constituir objecto de recurso que foi instruído e julgado autonomamente.



3. O RECURSO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Para a apreciação do recurso nesta vertente, importa ter presente a decisão que é a seguinte:
3.1. FACTOS PROVADOS
No dia 02.03.2001, cerca das 17h.30m., no denominado Sítio do Frexieiro, Castelejo, área da comarca de A, o arguido, utilizando uma arma de caça, de calibre 12 mm desferiu um disparo, de um cartucho, com chumbo n.º 5, atingindo a vítima P, no terço inferior da face lateral do hemitórax direito, projéctil este com um trajecto no corpo da vítima na direcção de diante para trás e de cima para baixo.
Em virtude do que resultaram para o P, lesões tóraco-abdominais, seguidas de broncopneumonia bilateral e necrose renal tubular aguda, que foram causa directa e necessária da sua morte.
Após ter efectuado o disparo e com o P caído na estrada, o arguido abandonou o local na sua viatura, marca Mercedes, de cor branca, seguindo, com pressa, na direcção da localidade da Enxabarda, tendo-se cruzado com Q e a sua neta R, e tendo esta última tido que saltar para a berma para evitar que o arguido embatesse nela, tal era a pressa em se ausentar do local onde havia perpetrado o crime.
Em virtude dos ferimentos apresentados, o P veio a ser socorrido e transportado em ambulância para o Centro Hospitalar Cova da Beira e posteriormente para os Hospitais da Universidade de Coimbra, onde veio a ser submetido a várias intervenções cirúrgicas, que não foram suficientes para evitar a sua morte.
Dada a gravidade dos ferimentos sofridos e o número de órgãos atingidos, fígado, diafragma e cólon, a vítima não conseguiu resistir, vindo a falecer em consequência das lesões provocadas pelo disparo efectuado pelo arguido, nos HUC, 32 dias depois da agressão de que foi vítima.
Após ter atingido o P o arguido teve como única preocupação abandonar o local rapidamente, colocar a arma do crime em local não apurado a fim de ocultar o crime que havia sido cometido, para dessa forma não poder vir a ser responsabilizado pela sua prática.
Entre o arguido e a infeliz vítima eram conhecidas divergências antigas por causa da divisão dos prédios confinantes pertencentes a ambos e sitos nas proximidades da localidade do Castelejo, tendo, o arguido, já por uma ocasião, proferido ameaças de morte dirigidas ao P.
O arguido agiu com o propósito deliberado e concretizado de disparar contra o P, utilizando para o efeito uma arma de caça de 12 mm, meio idóneo para produzir lesões graves ou mesmo a morte, como veio a acontecer, do que o arguido tinha perfeito conhecimento.
O arguido agiu tendo perfeito conhecimento da natureza e características da arma por si utilizada.
Agiu ainda o arguido com o propósito deliberado e concretizado de tirar a vida ao P, cujo resultado conseguiu, pese embora os esforços das diversas equipas de saúde que assistiram a infeliz vítima, quer no Centro Hospitalar Cova da Beira, quer, posteriormente, nos HUC.
O arguido agiu de forma deliberada, voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo ser-lhe proibida e punida por lei a sua conduta.
A vítima era casada com a assistente, com quem vivia em total comunhão de vida, desde 19.8.1950, formando um casal unido.
Do casamento nasceram as demandantes cíveis, Alice e Laura Maria.
A vítima estava reformada da profissão de instrutor de condução automóvel.
A vítima tinha um tractor e alfaias agrícolas, que utilizava no amanho das terras que possuía.
A assistente sofreu e ainda sofre com a morte do marido.
As filhas da vitima visitavam, regularmente, os pais, aos fins de semana.
As filhas da vítima acompanharam o pai enquanto este esteve internado.
As filhas da vítima sofreram com a morte do pai, sofrimento agravado com a tristeza da mãe.
A vítima ficou consciente nos momentos imediatamente posteriores ao disparo.
Na tarde dos factos, o arguido deslocou-se a um prédio que possui no sítio do Freixieiro, proximidades do Castelejo, seguindo daí para a Enxabarda e voltando ao Castelejo, com a intenção de se dirigir ao A onde reside.
O arguido tem 78 anos de idade.
É de média condição económica e social.
Nada consta do C.R.C. do arguido.
À data da morte a vítima tinha 79 anos de idade.



3.2. A esta decisão aponta o recorrente, em primeiro lugar a violação dos princípios do acusatório, da imediação da prova e da presunção de inocência - em virtude de ele, arguido, ter negado a prática dos factos, em audiência onde foi exercido plenamente o princípio do contraditório enquanto que a restante prova, que reproduz as declarações do ofendido, constitui prova indirecta, tendo-se processado sem possibilidade de contraditório e sem que o tribunal pudesse perscrutar a razão de ciência subjacente às afirmações do ofendido.
Questiona assim o recorrente, em primeiro lugar, a valoração dos depoimentos indirectos das testemunhas na parte em que relataram o que ouviram dizer à vítima.
É certo que a lei afasta, em princípio, o depoimento indirecto, obrigando a pessoa que tem conhecimento directo dos factos a depor perante o Tribunal, submetendo-se ao interrogatório cruzado da acusação e da defesa.
No entanto tal não pode verificar-se desde logo quando o depoimento directo é de todo impossível.
Com efeito postula o art. 129º: 1. Se o depoimento resultar de se ouvir dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível, por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.
A possibilidade do depoimento indirecto assenta designadamente na ideia de «melhor prova», quando é de todo impossível ouvir a pessoa que tinha razão de ciência directa sobre os factos.
Se é certo que a admissibilidade dos depoimentos indirectos ou de ouvir dizer implica alguma limitação de alguns princípios processuais relativos à produção de prova, tal limitação é mitigada pela referida impossibilidade material de ouvir a pessoa que presenciou os factos. E justifica-se ainda pelas finalidades ultimas do processo penal, afinal a descoberta da verdade material, num domínio onde estão em causa valores essenciais de descoberta da verdade material, num domínio onde são protegidos os valores mínimos (o mínimo ético) indispensáveis à vida em comunidade.
Aliás subjacente a toda a problemática da proibição das provas em processo penal está subjacente – como aliás em todo o direito - a ponderação e a hierarquização de valores, interesses ou bens jurídicos em conflito.
Como escreve COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, p. 198, “Apesar das proibições de prova ... acaba por prevalecer o entendimento assente na ponderação entre os bens jurídicos tutelados pelas proibições de prova e os valores encabeçados pela perseguição penal”.
Valores, que adiante-se, no caso, são a descoberta da verdade material e a impossibilidade efectiva de fazer comparecer o autor do testemunho originário.
Referindo-se a uma outra modalidade de depoimento indirecto, muito mais discutível que a agora está em causa - informações recolhidas por um oculto anónimo – em considerações aqui aplicáveis, portanto, por maioria de razão, escreve mais uma vez Costa Andrade, ob. cit. p. 164: “Mais do que um problema de admissibilidade ou legitimidade, os testemunhos de ouvir dizer suscitam sobretudo um problema de ponderação relativa do seu valor probatório ... será em sede de livre apreciação da prova que há-se, em concreto, sindicar-se e acertar-se o peso probatório dos testemunhos de ouvir dizer”.
Os princípios de imediação, da dignidade da pessoa humana, da igualdade de armas e do contraditório compaginam-se com o testemunho de ouvir dizer, dentro do quadro limitado em que este é admitido pelo nosso sistema processual.
O próprio CPP foi submetido a apreciação prévia de constitucionalidade, não se tendo merecido reprovação a consagração da admissibilidade do depoimento indirecto nos moldes referidos. E “teve por influência marcante as grandes construções dogmáticas do pensamento jurídico germânico” (cfr. Costa Andrade, cit. p. 188), sendo certo que também ali é aceite sem quaisquer dúvidas de constitucionalidade tal regime.
Aliás o arguido pode contraditar plenamente a testemunha que relatou aquilo que ouviu dizer à pessoa falecida, requerer as diligências que entenda pertinentes, tendentes a demonstrar a sua falta de idoneidade, a contraditar a sua razão de ciência, a impossibilidade do seu testemunho.
Não viola assim o regime legal a Constituição da República.
Nem tão-pouco a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que não impõe ao direito interno um determinado e específico conceito de testemunha de acusação – Cfr. Costa Andrade, ob., cit., p. 165-166.
O cerne da questão reside pois no crédito que mereceram ao tribunal os depoimentos da assistente e testemunhas que afirmaram ter ouvido dizer à vítima, que tinha sido o arguido que o havia atingido com o tiro, por confronto com o (não) crédito que ao mesmo mereceram as declarações do arguido, sobre que nos pronunciaremos de seguida.


3.3. Nesta vertente – valoração dos depoimentos - alega o recorrente que ainda que se entendesse que a decisão não viola os princípios a que já se fez referência, sempre seria legítima a dúvida sobre se a infeliz vítima viu quem efectuou o disparo que a atingiu ainda porque: a descrição dos factos feita pela assistente indica que a vítima não viu quem o atingiu; existem três versões diferentes dos relatos das alegadas afirmações da vítima; os factos não podem ter ocorrido à hora indicada na pronúncia (18,00 horas) ou na sentença (17,30 horas), mas sim entre as 17,45 horas e as 17,53 horas); à hora em que o crime terá sido efectivamente praticado o arguido não se encontrava no local do mesmo, já que foi visto a afastar-se do mesmo por volta das 17,25 horas/17,30 horas; o comportamento do arguido no dia e no tempo imediatamente a seguir aumenta consideravelmente a dúvida quanto ao seu envolvimento no crime.
Dado que no caso houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva transcrição integral, dada a forma como o arguido impugna a decisão da matéria de facto, esta será reapreciada na perspectiva ampla prevista no art. 431° do C. P. Penal.
Depois de alguma limitação da revisão da decisão da questão de facto pelo tribunal de recurso que se verificava no CPP de 1929, o C.P.P. vigente surgiu animado do propósito explícito de “emprestar efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico”, bem como de “emprestar ao recurso maior consistência procura contrariar-se a tendência para fazer dele um labor meramente rotineiro, efectuado sobre papéis” – cfr. v. ponto III 7 do respectivo preâmbulo.
Isto dentro do entendimento que poderia sintetizar-se na expressão de MARQUES FERREIRA (in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo C. de Processo Penal, Ed. do Centro de Estudos Judiciários, 1988, p. 221): “o direito probatório, abrangendo as normas relativas à produção e valoração de provas, constitui o verdadeiro cerne da qualquer processo” ... “a arte do processo não é essencialmente senão a arte de administrar as provas”.
Dentro dessa perspectiva “O Código de PP normativizou cuidadosamente a matéria atinente à prova quer em termos genéricos quer de forma específica” de onde ressalta “a preocupação de acatamento dos imperativos constitucionais relativos à dignidade pessoal e integridade física do cidadão e intimidade da vida privada que é legítimo esperar de um processo penal no quadro de um Estado de Direito Democrático e Social em que a justiça seja alcançada exclusivamente por meios processualmente válidos e efectivamente controláveis” – cf. Marques Ferreira, cit., p. 221, 222.
Salvas as referidas limitações em que a apreciação da prova é normativizada, vigora como princípio geral, no âmbito da apreciação das provas, o princípio fundamental da livre apreciação das provas, acolhido, de forma expressa, no art. 127º do CPP, princípio esse que, como refere o mesmo autor (ob. cit. p. 227), citando a melhor doutrina , “entre nós tem sido unanimemente aceite a partir da primeira metade do Séc. XIX com as reformas judiciárias saídas da Revolução Liberal”.
Nesta matéria, apesar da minuciosa regulamentação das provas, continua assim a vigorar o princípio fundamental de que na decisão da “questão de facto”, a decisão do tribunal assenta na livre convicção do julgador, ainda que devidamente fundamentada, devendo aparecer como conclusão lógica e aceitável à luz dos critérios do art. 127º do Cód. Proc. Penal.
No entanto não deixa de se assinalar como resulta mais uma vez do respectivo preâmbulo – n.º7 cit.. - que “o código aposta confiadamente na qualidade da justiça realizada a nível de 1ª instância”.
Isto porque é na 1ª instância que se tem o contacto directo, físico e imediato com as mesmas provas, assim as podendo valorar em toda a sua amplitude.
Do princípio da livre apreciação da prova, resulta que a decisão não consiste numa operação matemática (“não é a demonstração de um teorema”, numa conhecida expressão de Antunes Varela), devendo o julgador apreciar as provas, analisando-as dialecticamente e procurando harmonizá-las entre si e de acordo com os princípios da experiência comum, sem que o julgador esteja limitado por critérios formais de avaliação.
A reconstituição processual da realidade histórica de certo facto humano não é ou dificilmente poderá ser a expressão precisa e acabada de um qualquer meio de prova e particularmente da prova testemunhal, dadas as naturais dificuldades em se reproduzir fiel e pormenorizadamente o que foi percepcionado ou vivenciado, geralmente de forma passageira e ocasional, muito antes da audiência de discussão e julgamento, local privilegiado para a produção e discussão das provas.
Muito menos podem os vários depoimentos ser entendidos isoladamente, retirando-os do respectivo contexto, apenas com base em frases transcritas num mero suporte documental e em certas imprecisões de algum dos testemunhos – por vezes justificáveis desde logo pelas circunstâncias dialécticas em que são produzidos, durante o interrogatório cruzado, formal, surgindo sempre um novo elemento em cada questão suscitada por cada um dos sujeitos processuais. Questões já de si formuladas dentro da perspectiva antagónica e por vezes conflituante de acordo com a posição cada sujeito processual.
Como refere o Prof. FIGUEIREDO DIAS (Direito Processual Penal, p. 202-203) “ a apreciação da prova é na verdade discricionária, tem evidentemente como toda a discricionalidade jurídica os seus limites que não podem ser ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova, é, no fundo uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios de objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e de controlo”...”não a pura convicção subjectiva ... se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão ... a convicção do juiz há-de ser .. em todo o caso uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de se impor aos outros ... em que o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável”.
“A livre convicção é uma conclusão livre, porque subordinada á razão e á lógica e não limitada por prescrições formais exteriores ... o julgador, em vez de se encontrar ligado por normas prefixadas e abstractas sobre a apreciação de prova, tem apenas de se subordinar à lógica, à psicologia, e às máximas da experiência” – cfr. CAVALEIRO FERREIRA, Curso de Processo Penal, II, p. 298.

Perante a fundamentação da decisão de facto dada pelo Tribunal Colectivo, o recorrente penas questiona a avaliação dos depoimentos das testemunhas, não o seu conteúdo propriamente dito.
E a transcrição de tais depoimentos confirma a síntese efectuada relativamente ao conteúdo de cada depoimento que serviu para o Tribunal Colectivo formar a sua convicção – cujas passagens mais relevantes se destacaram na respectiva transcrição, por facilidade de compreensão e que por isso desnecessário se torna aqui transcrever de novo. Aliás não vem sequer alegado que a decisão tenha tido por base a deficiente ou má percepção dos depoimentos, antes e apenas que os valorou mal.
O tribunal de recurso poderá sempre controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos, nos termos acima referidos. Pode sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico que levou à consideração de que era uma, e não outra, a prova que se produziu.

Vejamos porém, em síntese, a fundamentação da decisão neste âmbito:
O Tribunal Colectivo fundamentou assim a sua decisão (com destaque, a negrito, nosso, dos excertos que se afiguram mais relevantes, por facilidade de exposição):
«««««««« nas declarações do próprio arguido, que admitiu que no dia dos factos, se dirigiu par a uma sua propriedade na Freixieira, por volta das 17.15 horas, que pouco depois se ausentou, na direcção da Enxabarda ... que depois veio ao Castelejo, ao café do Renato, por volta das 18 horas, onde tomou um Nescafé e toda agente olhava para ele “com cara de caso”, tendo sido abordado por uma patrulha da GNR quando já estava no seu carro, para ir para a sua residência no A, confirmando que mantinha com a vítima e com a mulher um diferendo, desde há cerca de 8 anos, por causa das estremas das propriedades e confirmando ainda que à entrada de um caminho na Freixieira, escreveu no chão, qualquer coisa como “caminho perigoso”;
nas declarações da assistente, que referiu que o marido saiu de casa para ir à Freixieira, por volta das 17 horas, que cerca de 15 a 20 minutos depois, a testemunha Germana lhe foi bater à porta a dizer para trazer um cobertor porque o marido, estava ferido caído no chão e lá chegada viu que assim era, tendo o taxista H colocado um guarda chuva sobre o marido, dado estar a chuviscar, que o marido lhe disse que “foi o B que me deu um tiro” ... tendo ainda relatado que cerca de 1 ano antes o arguido havia disparado um tiro, no meio de uma discussão com o marido, não tendo dúvida em afirmar, que o autor do disparo que veio a vitimar o marido só poderia ter sido o arguido;
no depoimento da testemunha H, taxista, que foi a 1ª pessoa a chegar ao local, quando regressava do A com destino a Lavacolhos, tendo saído dali por volta das 17.30 horas, que ao chegar ao local, cerca de 15 minutos depois, viu alguém caído no chão, no “meio da estrada” a levantar um braço, tendo parado e constatado que era a vítima, que conhecia, caído de costas para a estrada, sobre uma poça de sangue e com uma bucha, também, ali, no local, tendo-lhe dito que “foi o B”, que o corpo estava em frente de um caminho e perto de uma casa do arguido;
nos depoimentos das testemunhas Maria Manuela e Paulo Pais, que vivem a cerca de 2 km do local, aquela que ouviu um tiro, quando o marido ia a sair de casa para o trabalho, entre as 17.30 e as 18 horas, este que referiu que quando saiu de casa para ir para o A, já atrasado, viu um corpo no chão e pessoas em volta dele, na estrada e que foi telefonar a casa da testemunha Gracinda, para o 112 e foi embora para o A;
no depoimento da testemunha Olga Carneiro, filha da referida Gracinda, irmã da testemunha Belmira e mãe da Anabela, que saiu do emprego no Centro de Dia, às 17 horas e estava em casa depois de ter dado o lanche à filha que, esta, depois disso saiu para casa da avó, como era costume, que pouco depois, entre as 17.30 e as 18 horas a filha lhe telefonou a dizer que a casa da avó tinha ido um senhor telefonar, que saiu logo para ver o que se passava e quando chegou ao local já lá estava a mãe, que a vítima lhe disse que “foi aquele bandido”, pensando logo a testemunha que se estava a referir ao B ... que pensa que no local estava escrito no pavimento “perigo de morte” e que referiu que cerca de 1 ano antes, ouviu um tiro, tendo-se deslocado ao local de onde veio o som e a assistente disse-lhe que tinha sido o B a ameaçar o marido...;
no depoimento da referida Gracinda da Anunciação, que tinha saído de casa da filha para a sua a cerca de 1 km, que estava a chover, que voltou para trás à procura de uma ponta da vareta do guarda chuva, que, a hora seria entre as 17.30 e as 17.45 horas que nesse trajecto se cruzou com a neta que saíra da casa da mãe para se dirigir para a da avó, que nesse entretanto, pararam a conversar, cada uma do seu lado, da estrada que liga a Enxabarda à Freixieira e ao Castelejo, estando a testemunha de costas, ouviu um carro “à bolina”, a ir na direcção da Enxabarda, que deu uma guinada forte, tendo a neta saltado para a berma para não ser por ele colhida e que viu perfeitamente que era o arguido, sozinho, num seu carro branco ... que se deslocou ate ao local onde estaria a vítima, a cerca de 1 km viu o Sr. Martins caído na estrada, que não falou com ele mas ouviu-o dizer a sua filha que “tinha sido aquele malandro ou bandido do B”, que sabe que eles tinham problemas e que já 1 ano antes o B terá disparado 1 tiro para ameaçar a vítima;
no depoimento da testemunha Anabela Antunes ...que viu um carro a alta velocidade, ouviu os pneus a chiar, a fazer a curva, era o Sr. B sozinho, no seu carro branco, que deu uma guinada para não sair da estrada para o ribeiro, na direcção contrária, onde estava a testemunha, que saltou para a berma para não ser colhida ... que foi ao local ... que ouviu o Sr. P dizer à mãe que “foi aquele bandido”, fazendo um sinal, acenando, com a cabeça para o lado da casa do arguido, que é a única que ali existe, que se percebia a voz da vítima, que referiu que havia ali uns escritos no chão;
no depoimento da testemunha Belmira Casimiro ... que foi ao local, viu que o Sr. Martins estava caído na estrada, que ouviu a vítima dizer “foi o bandido do B que me deu 1 tiro” ... que referiu que pensa que à entrada do caminho estava escrito “cuidado, perigo de morte”;
no depoimento da testemunha João Baptista, soldado da GNR colocado no Posto do A, que já se tinha deslocado à Freixieira, por 2 ou 3 ocasiões, anteriormente, a solicitação da assistente, por desentendimentos entre a vítima e o arguido e que no dia dos factos, estava de folga e por volta das 17 e pouco, passou no local no sentido Lavacolhos, A e se apercebeu que o arguido estava dentro do seu carro, o Mercedes de cor branca, virado para Lavacolhos, uns metros antes do local onde foi encontrado a vítima ... e que, quando chegou ao A, se dirigiu ao Posto, para saber a escala do dia seguinte e ouviu dizer que tinha havido tiros no Castelejo, que ainda nesse dia confrontou o arguido com o facto de o ter visto no interior do carro, facto que ele negou; ...
no depoimento da taxista Germana, que no dia dos factos vinha do A, de onde saiu por volta das 17.10h, tendo chegado ao local entre as 17.30 e as 18 horas e seguia no sentido de Lavacolhos, que se apercebeu de um corpo caído na estrada, que parou, já lá estava o seu colega H e mais gente e, reconheceu o Sr. Martins, que depois foi chamar a mulher a casa, não sem que antes a vítima lhe dissesse que “foi o B que me deu um tiro”;
A conjugação desta prova testemunhal entre si e relacionada com a prova pericial produzida nos autos, relatório da autópsia e exame dos objectos apreendidos, bucha, arma, munições e roupa, são de molde a poder-se concluir, com o grau de certeza exigível, para fundamentar um juízo de valor, em processo criminal, que o arguido esteve no local do crime, à hora do disparo, tinha, na sua perspectiva, motivo para querer mal ao arguido, já não sendo a 1ª vez que utilizava uma arma em confronto com a vítima, saiu do local, de forma apressada, conduzindo de maneira desajeitada, perigosa e por forma a chamar a atenção dos transeuntes, que viu, não só não se confirmar o seu alibi, como, antes, sair, irremediavelmente, abalado, já que a ida a casa do António Pedro teve lugar 4 horas, antes dos factos, no café onde parou, todos lhe imputavam, em surdina, com olhares, ditos reprovadores ou de censura, os factos, ainda no local, a vítima disse a todos que quiseram ouvir, que o autor do disparo fora o arguido, o que todos aceitaram sem surpresa, não vislumbrando, qualquer das testemunhas quem mais poderia ter sido, sendo o trajecto do projéctil, de cima para baixo, compatível com o relevo, no local, uma vez que a casa do arguido, única nas imediações, pelo que as peças do puzzle, se encaixam, perfeitamente e se ajustam, ao facto de haver sido o arguido o autor do disparo»»»»»»».

No caso em apreço, para além da ponderação de depoimentos indirectos, a que já se fez referência o arguido aponta à decisão do Tribunal Colectivo (v. conclusões 21-22) que o tiro que matou a vítima não pode ter sido disparado à hora dada como provada, mas entre as 17h.45m. e as 17h.53m. E que não ponderou os depoimentos das testemunhas que dizem tê-lo visto afastar do local por volta das 17h.25m./ 17h.30m.
Ora das alegações de recurso, tendo em vista a fundamentação minuciosa a que acaba de se fazer referência e que a transcrição integral dos depoimentos prestados em audiência não belisca sequer ao de leve, antes confirma, como já foi evidenciado, verifica-se que o próprio o arguido reconhece ter estado no local – numa casa que ali tem e que é a única existente nas redondezas – no dia da ocorrência, muito próximo da hora dos factos, bem como as suas graves e já antigas desavenças com a vítima.
Nem sequer é aventada a presença de qualquer outra pessoa ou pessoas, no local, que pudesse ter efectuado o disparo letal .
Por outro lado, a circunstância das testemunhas não terem referido todas, com as mesmas palavras, aquilo que ouviram à vítima não é motivo para se afirmar que existem versões diferentes, até porque os depoimentos coincidem no essencial. Desde logo, porque o ofendido não falou de uma só vez para todas as pessoas que relataram o facto, antes o referindo autonomamente a cada pessoa que foi chegando. Depois porque, ainda que admitindo que todas tivessem ouvido as mesmas expressões verbais, tal não constitui motivo para não admitir que as mesmas exprimiram com inteira fidelidade aquilo que ouviram, relativamente ao facto essencial que, como mais relevante é retido pela memória. Nem é de estranhar face à perda de sangue e acelerada deterioração do estado de saúde da vítima, cujas lesões sofridas acabaram por levar à morte dias depois, que, à medida que o tempo passava, as afirmações posteriores fossem menos claras.
Diga-se até que nem o arguido aponta razões algumas para as testemunhas faltarem à verdade. E, no desconhecimento de que o falecido P tinha sido alvejado com um tiro, nem as testemunhas nem quaisquer outras pessoas (e também se aplica ao próprio o arguido) tinham qualquer motivo para anotar o momento exacto das suas actividades ou das actividades de terceiros.
Tão-pouco a circunstância do arguido, após os acontecimentos, ter estado num café da aldeia próxima altera o que acaba de ser referido. Desde logo porque na sua própria versão tal aconteceu próximo das 18 horas. O que torna possível que o mesmo tenha estado no local dos acontecimentos meia hora antes, dado ter-se deslocado no seu automóvel.
Pode até ponderar-se, como vem mencionado no douto parecer do Ex.mo magistrado do MºPº junto deste Tribunal que o facto do arguido ter estado após os acontecimentos num café da aldeia próxima pressupõe a intenção de criar uma aparência que iluda ou enfraqueça a sua ligação aos mesmos.
Por ultimo, a confirmar as declarações da infeliz vítima, o cartucho utilizado no disparo, encontrava-se junto da casa que o arguido ali possui - Vide auto de notícia, fls. 3 do vol. I, de onde consta que o cartucho foi encontrado junto da casa do arguido, o qual era titular de licença de uso e porte de arma de fogo e licença de uso e porte de arma de caça.
Arma de caça compatível com o disparo que acabou por ser apreendida, na posse do arguido, depois de vicissitudes várias.
Não se demonstra, pois, em termos objectivos, que o arguido não pudesse estar no local dos acontecimentos no momento em que estes tiveram lugar.
Pelo contrário, o arguido foi visto a afastar-se do local onde eles aconteceram, a hora coincidente com a dada como provada, de automóvel, a conduzir em circunstâncias que indicavam claramente pressa em fugir do mesmo.
Aliás o arguido não nega que tenha estado no local em momento muito próximo daquele em que foi dado como provado terem ocorrido os factos. Apenas põe em causa a hora exacta, invocando em contrapartida o “alibi” de ter sido visto no café pouco tempo depois. Alibi, que como bem conclui o Tribunal recorrido “não só não se confirma como, antes, sai, irremediavelmente, abalado”.
O arguido teve a oportunidade (esteve no local), os meios (espingarda), o móbil (disputas grave com a vítima), tudo se conjugando, no sentido da decisão tomada pelo T. Colectivo.
A decisão do Tribunal Colectivo não ignorou os depoimentos das testemunhas referenciados pelo arguido. Deu como provados os factos depois de uma cuidada e minuciosa análise de toda a prova produzida, tendo em conta não só os depoimentos indirectos a que o arguido faz referência mas também os demais elementos de prova, o cartucho encontrado no local, a arma apreendida.
Além de que procedeu à análise de todos esses elementos de prova de forma crítica e dialéctica, explicitando, objectivamente, as razões pelas quais se convenceu desse facto, chegando à conclusão de que as provas invocadas pelo arguido a favor do “alibi” não põem em causa, antes, conjugadas entre si, complementam-se no sentido da autoria dos factos pelo arguido.
De onde se conclui que também aqui não se mostrem violados os princípios da apreciação da prova.


3.4. Acresce que na apreciação do recurso em matéria de facto o tribunal de recurso não pode esquecer que o tribunal recorrido dispôs de um elemento de relevo, no que toca designadamente à apreciação de depoimentos testemunhais, que aquele não dispõe: a discussão em audiência e a imediação com as provas produzidas.
Ora, “só os princípios da oralidade e da imediação permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem, por último, uma plena audiência desses mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso” – Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, p. 233-234.
A imediação constitui um factor de grande relevo para a formação da convicção do tribunal recorrido, não só no sentido de obter os meios de prova mais próximos ou mais directos de forma directa pelo órgão competente, como ainda na utilização dos meios de prova originais – Cavaleiro Ferreira, ob. cit., p. 317.
E, como decidiu, entre outros, o Acórdão da Relação de Coimbra de 06.03.2002, publicado na CJ, ano 2002, II, 44, .... “quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face ás regras da experiência comum”.
Assim, seguindo o dito aresto, assentando a decisão do Tribunal Colectivo na atribuição de credibilidade das fontes de prova, com base na imediação, tendo por base um juízo objectivável e racional, não estando demonstrado, como não está – antes pelo contrário - que tal juízo contrarie as regras da experiência comum, também por aqui não há fundamento minimamente válido para alterar a decisão recorrida.


3.5. Também se mostra violado, de forma alguma o princípio in dubio pro reo.
Trata-se de um princípio vigente no que diz respeito à decisão da questão de facto. Quer se entenda que constitui «um princípio natural de prova imposto pela lógica e pleo senso moral, pela probidade processual» (Cavaleiro Ferreira, ob., cit. II, 310) quer como princípio fundamental do processo penal em qualquer Estado de Direito (F. Dias, Direito Processual, cit. p. 214), trata-se de um princípio indiscutível no que concerne à apreciação da prova na decisão da “questão de facto”. Tanto no que diz respeito à prova dos elementos constitutivos do crime, como à prova dos factos extintivos ou causas de exclusão da responsabilidade criminal – cfr. Cavaleiro Ferreira, ob., cit., II, 312 e Figueiredo Dias, ob. cit., 215.
Tal princípio significa que “em caso de dúvida razoável” após a produção de prova, tem de actuar em sentido favorável ao arguido – formulação de F. Dias, ob. cit. p. 215, citando a doutrina nacional e estrangeira no mesmo sentido.
Não é assim uma qualquer dúvida que obriga à aplicação do princípio, mas apenas a dúvida “razoável”, após a produção de todas as provas e sua avaliação de acordo com a lei e as regras da experiência comum, nos termos acima referenciados.
Mas no caso em apreço, após a produção de prova, tal “dúvida razoável” não se instalou no espírito dos julgadores – e trata-se de um tribunal colectivo, que confere as mais amplas garantias dadas pelo sistema em termos de apreciação da matéria de facto, tendo em atenção a sua componente colectiva, com a democraticidade daí resultante.
Com efeito, da análise crítica das provas produzidas (todas as provas produzidas) o julgador não ficou em situação de dúvida insanável, antes se convenceu – através de processo lógico fundamentado e objectivado – da versão dada como provada e não da apresentada em audiência pelo arguido.
E nada aponta no sentido de que essa convicção deva ser substituída pela referida dúvida razoável.

Em conclusão, encontrando-se a decisão da matéria de facto devidamente fundamentada e assentando numa análise racional e objectiva das provas, estando ainda em causa a convicção do julgador formada com base nos meios de prova produzidos em audiência, de acordo com o princípio da oralidade e da imediação, não se mostrando a mesma tenha valorado meios de prova proibidos, que tenha avaliado as provas de forma ilógica ou arbitrária, ou ainda contra as regras da experiência comum, o recurso, neste âmbito, tem que improceder.


3.5. O recurso versa ainda sobre a medida da pena.
A moldura abstracta da pena aplicável é de prisão de 8 a 16 anos.
Dispõe o art. 40º do C. Penal, no seu nº1 que “a aplicação da pena ... visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. E acrescenta o nº2: “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
“A justificação da pena arranca da função do direito penal de protecção dos bens jurídicos; mas esta função de exterioridade encontra-se institucionalmente limitada pela exigência de culpa e, assim, por uma função de retribuição como ressarcimento do dano social causado pelo crime e restabelecimento da paz jurídica violada; o que por sua vez implica a execução da pena com sentido ressocializador – só assim podendo esperar-se uma capaz protecção dos bens jurídicos” – FIGUEIREDO DIAS, in Liberdade, Culpa e Direito Penal, Coimbra editora, 2ª ed., p. 239.
Como refere o mesmo FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, As Consequência Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, p. 227 - tendo já por referência o projecto que veio a ser plasmado no art. 40º da redacção actual do Código Penal - as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas.
Em face da actual redacção do art. 40º, sustenta ROBALO CORDEIO, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal – CEJ - p. 48, que “as exigências geral positiva e de prevenção especial de socialização dominam agora a operação de escolha da pena, a culpa esgotou as suas virtualidades na determinação da pena principal”.
A pena há-de ser eficaz por forma a proteger o bem jurídico violado servindo como elemento dissuasor da prática de novos crimes, constituindo a retribuição justa do mal praticado, dando satisfação ao sentimento de justiça e segurança da comunidade. Para além de dever contribuir, na medida do possível, para a reinserção social do delinquente. Sendo a culpa já não "o critério e medida da pena", mas apenas o seu "limite".
Por sua vez o art. 71º, nº1 (denotando não ter sido adaptado à nova redacção do art. 40º) estabelece um critério geral segundo o qual a medida da pena deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigência de prevenção.
Critério que é precisado depois no nº2: na determinação da pena há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.
Os factores concretos a ter em conta são depois definidos nas várias alíneas do citado nº2. E reconduzem-se a três grupos ou núcleos fundamentais: factores relativos à execução do facto {alíneas a), b) e c)}; factores relativos à personalidade do agente {alíneas d) e f)}; e factores relativos à conduta do agente anterior e posterior a facto {alínea e)}.
Entende o recorrente que não se provando circunstâncias agravantes da culpa ou que permitam atenuar ou agravar a pena, se trata de um caso de homicídio menos grave que deverá ser punido com o mínimo legal da pena aplicável.
Mas, tendo por referência os critérios acabados de referir não lhe assiste razão.
Com efeito a pena abstracta situa-se entre 8 e 16 anos de prisão.
E o arguido apenas beneficia como atenuante da sua avançada idade – a qual, diga-se, foi ponderada pelo Tribunal Colectivo.
Poderia entender-se que com a idade poderia ocorrer uma certa limitação intelectual as consequências da sua acção. Mas tal nem sequer está demonstrado. Não se colhem da matéria provada elementos que apontem para uma menor capacidade de discernimento, desde logo porque o arguido conduzia normalmente o seu veículo automóvel no qual se deslocara para o local da ocorrência e de onde se ausentou a seguir, possuía licenças de uso e porte de arma de caça e de defesa, enfim, fazia uma vida normal. E no seu conjunto os factos mostram que aplicou até uma apreciável energia e grande capacidade de discernimento, na forma como praticou os factos, como ainda a seguir tentou escamotear a sua autoria.
Assim atenta a necessidade de protecção do bem jurídico supremo, a especial gravidade do facto inerente, a ausência de qualquer circunstância imediata que tivesse, de alguma forma, facilitado ou precipitado a resolução do arguido, o meio utilizado, a forma como o arguido agiu para esconder a sua actuação, a ausência de qualquer outra atenuante a não ser a sua idade, que foi ponderada, tendo por referência os critérios da determinação da medida da pena enunciados, conclui-se que a pena concreta aplicada se encontra bem doseada, não merecendo por isso censura.



III. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se julgar improcedente o recurso, na parte em que se conheceu de mérito (decisão da matéria de facto e medida da pena), mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas do recurso arguido, fixando-se a taxa de justiça em 10 UC.