Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
448/22.0T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: ARRESTO
JUSTO RECEIO DE PERDA DE GARANTIA PATRIMONIAL
CRÉDITO ACTUAL
CRÉDITO FUTURO
Data do Acordão: 03/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE COIMBRA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 362.º, N.º 1, 368.º, 391.º, N.º 1, 392.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
Sumário: I) O factualismo apto a preencher, em sede de providência cautelar de arresto, a previsão legal do requisito de justo receio da perda da garantia patrimonial, pode assumir uma larga diversidade. Por exemplo: receio de fuga do devedor, sonegação ou ocultação de bens, situação patrimonial deficitária do devedor ou qualquer outra conduta relativamente ao seu património que, objectivamente, faça antever e temer o perigo de se tornar impossível ou difícil a cobrança do crédito.

II) O crédito que constitui fundamento da decretação do arresto tem de ser actual, constituído, vigente, não podendo ser futuro, hipotético, eventual, mesmo que provável.

Decisão Texto Integral:





Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

REQUERENTE

C... LDA, com sede na Rua..., ... ..., com o N... de Pessoa Coletiva ...

REQUERIDAS

B..., S.A,, com sede na E.N. ..., ..., ... ..., com o NIPC ...

R... LDA, com sede na Rua..., ... ..., com o N... de Pessoa Coletiva ...

A requerente conclui pedindo que seja decretado o arresto do bem imóvel da Requerida B..., S.A, ... na E.N. ..., ..., ... ..., de acordo com a certidão permanente com o código de acesso nº PP-..., bem como os bens sujeitos ou não a registo até perfazerem o valor da dívida para com a Requerente, que se encontrem nas instalações ... na E.N. ..., ..., ... ..., e da Requerida R... LDA, com sede na Rua..., ... ... ou em qualquer outro lugar onde se venha a apurar que as Requeridas tenham bens ou instalações, até perfazerem o valor da dívida para com a Requerente acrescida das demais despesas com o arresto, nomeadamente, agente de execução, remoção, transporte e armazenamento de bens.

Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese:

- A Requerente é legítima possuidora, como Subarrendatária, do prédio rústico, situado em ..., em ..., concelho ..., com uma área total de 357,88 hectares, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...20 da freguesia ..., e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...2, secção EE1- EE5, da união de freguesias ... (... e ...) e ..., conforme “Contrato de Subarrendamento”, celebrado com a ora Requerida R... LDA.

- Este prédio confronta a Norte com ..., a Sul com ..., a Nascente ... e a Poente com ... (...).

- De igual modo, a Requerida B..., S.A intitula-se proprietária da extensão de terreno, que confronta com o limite superior norte da propriedade em questão, em que a Requerente possui quer o seu rebanho de caprinos, bem como todo o restante objecto do contrato de subarrendamento.

- O prédio onde a Requerente é Subarrendatária, a confrontação a norte é com uma serventia, que serve aquele prédio, sem qualquer outro acesso.

- Foi transmitido à Requerente que o acesso ao local constante do contrato, entradas e saídas bem como ao local onde se encontram os caprinos, é aquele acesso de servidão.

- No passado dia 29/12/2021, a requerente deslocou-se ao local acompanhada do médico veterinário, na medida em que existem animais a necessitar de cuidados médico-veterinários urgentes e com a alimentação necessária para os caprinos.

- Lá chegados a Requerente e os demais foram impedidos de passar para o terreno que é possuidora e no qual, além do objecto do contrato, se encontram os referidos animais 19 cabras.

- Foi transmitido à Requerente que efectivamente o caminho existia, mas que havia sido destruído.

- No entanto afirmaram que por aquele local havia acesso ao local onde se encontravam as cabras, mas que não permitiam a passagem.

- Os 19 animais se encontram sem alimentação e com o estado de saúde desconhecido desde dia 29 de Dezembro, o que causa sério prejuízo quanto a estes á ora Requerente.

- Ao celebrar tal contrato de subarrendamento o mesmo se destinava à actividade laboral da requerente e que a mesma por causa imputável à Requerida B..., S.A não consegue de qualquer das formas fazê-lo o que leva a Requerente a inúmeros prejuízos que ainda não consegue apurar.

- A Requerente tinha diversos projectos para aquele local, que rondavam valores de cerca de 10 milhões de Euros, e com os quais não consegue seguir por causa imputável às Requeridas, à Requerida B..., S.A porque não permite o acesso à Requerente, quanto à Requerida R... LDA, porque nunca informou a requerente que o acesso ao prédio se encontrava vedado.

- Tais factos conduzem a um prejuízo avultado para a Requerente, por causas não imputáveis à mesma.

- A Requerente vai interpor a necessária acção principal, para fixar judicialmente o valor dos seus prejuízos.

- O montante em causa é significativo, tendo causado à Requerente inúmeros transtornos de tesouraria.

- No caso em apreço, existe um sério, concreto e fundado justo receio da Requerente em perder a garantia patrimonial do seu crédito, pelo perigo de que, sem o decretamento do arresto ora requerido, as Requeridas dissipem inúmeros bens, designadamente, a propriedade do imóvel em causa no qual se encontra a servidão que a requerida B..., S.A nega a passagem.

- A factualidade supra descrita faz a Requerente temer pela garantia patrimonial do seu crédito.

- Sobretudo, porque o património “à vista” ou conhecido é escasso e facilmente ocultável e dissipável.

- A Requerente teme que a Requerida B..., S.A, confrontada com a com tal situação e face aos avultados prejuízos da Requerente, se lhe for dada a oportunidade e tempo, possa diligenciar no sentido de alienar o seu património.

- As Requeridas poderão dissipar os seus bens a qualquer momento ou ficar insolvente.

- Atento o facto de não se conhecerem quaisquer outros bens ás Requeridas, aliado ao significativo montante prejuízo da requerente em cerca de dez milhões de euros.

O Juízo Central Cível de Coimbra decide:

“Nestes termos e ao abrigo do disposto nos art.ºs 186.º/1, 186/2-a), 196.º, 278.º/1-b) e 226.º, n.º 4, al. b) e 590, n.º 1 do CPC, julgo inepta a petição inicial e indefiro liminarmente a providência requerida.

Valor da providência: o indicado pela requerente.

Custas a cargo da requerente (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil).“

“C... LDA”, Requerente nos autos à margem referenciados, não se conformando com a decisão interpõem o seu recurso, assim concluindo:

(…)

 

2. Do objecto do recurso

I. A apelante alegou elementos suficientes que permitem ajuizar pelo receio da perda da garantia patrimonial da apelante, encontrando-se preenchidos os requisitos constantes do art.º 391. ° do Código de Processo Civil?

II. Em caso de dúvida quanto à bondade/suficiência dos factos invocados para a sustentação da pretensão, sempre deverá o tribunal responsabilizar o requerente, convidando-a a aperfeiçoar, completar ou concretizar o alegado?

A 1.ª instância entendeu que não, escrevendo assim:

“Afigurando-se que a providência requerida não poderá proceder, cumpre decidir.

(…) Assim, dispõe o art.º 362.º, n.º 1 do C.P.C. que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”.

Por outro lado, a providência será decretada havendo uma probabilidade séria da existência do direito e mostrando-se suficientemente fundado o receio da sua lesão, podendo ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela emergente para o requerido exceda consideravelmente o dano que o requerente pretende obter através da mesma (art.º 368.º, n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil).

O arresto surge como providência cautelar em que o efeito conservatório é visível, visando garantir a realização da pretensão do requerente e assegurar a sua execução.

Determina o art.º 391.º, n.º 1 do C.P.Civ. que “o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto dos bens do devedor”.

Concretizando os requisitos supra referidos, para que o arresto seja decretado, deverá o requerente demonstrar os factos que tornam provável a exigência do seu crédito e justificam o receio invocado (art.º 392.º, n.º 1 do C.P.Civ.).

Este justo receio de perda da garantia patrimonial do crédito pressupõe a alegação e prova, ainda que em termos indiciários, de um concreto circunstancialismo fáctico que permita fazer antever a dificuldade ou impossibilidade da cobrança do crédito. E o critério de avaliação deste requisito não pode assentar em juízos subjetivos do julgador ou do credor, nem em meras especulações ou desconfianças deste, antes devendo basear-se em factos concretos que permitam concluir que a providência cautelar é efetivamente necessária para assegurar a eficácia da ação declarativa ou executiva.

É pressuposto ou requisito essencial para o decretamento da providência cautelar de arresto que o requerente da mesma seja credor do requerido, tenha sobre ele um crédito.

Primeiro salienta-se que “As enunciações constantes dos articulados das partes que se reconduzem a meros juízos conclusivos e de direito, a afirmações genéricas, vagas e abstractas que não se reconduzem a factos – só estes importam –, não devem ser incluídas no acervo fáctico probatório; quando o são, indevidamente, têm as mesmas que ser desconsideradas, isto é, impõe-se que (oficiosamente) se considerem as mesmas como juridicamente irrelevantes – não escritas, na terminologia da anterior lei processual civil (art. 646º, nº4)” - http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/- 0A38208E1E243C2E80257D5C00429E2A/http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/8517d13a77f5dfb380257de10056f463?OpenDocument

No caso vertente, para além das variadas outras referências em termos conclusivos a prejuízos sérios e avultados, a requerente alega que tinha diversos projetos para aquele local, que rondavam valores de cerca de 10 milhões de Euros, e com os quais não consegue seguir por causa imputável às Requeridas, à Requerida B..., S.A porque não permite o acesso à Requerente, quanto à Requerida R... LDA, porque nunca informou a requerente que o acesso ao prédio se encontrava vedado. Ficando desde logo por esclarecer que projetos eram esses e qual a relação entre a alegada impossibilidade de uma exploração agrícola com um rebanho de 19 caprinos e a determinação daquele invocado prejuízo por uma concreta conduta imputável às aqui requeridas.

Embora em sede de procedimento cautelar baste que se conclua pela séria probabilidade da existência do crédito, tem de tratar-se de crédito atual, constituído, vigente e não de crédito futuro, hipotético, eventual (ainda que provável).

António Abrantes Geraldes, na obra Temas da Reforma do Processo Civil, IV Vol., interroga-se sobre se o arresto poderá tutelar situações em que só mediatamente a quantificação pecuniária se verifique, respondendo que “ainda é o património do devedor que assegura, por via indireta, o cumprimento dessas obrigações. Por isso, não é errado afirmar que a preservação dos bens do devedor ainda pode revelar-se uma medida eficaz para a tutela dos interesses do credor” (pg. 187). Reporta-se, contudo, às situações de obrigação de entrega de coisa certa ou de prestação de facto, sempre que haja recusa de cumprimento e subsequente execução específica, o que não é, manifestamente, o caso.

Na mesma obra, afasta-se, contudo, claramente a possibilidade de recurso ao arresto quanto a créditos futuros porque “a sua constituição ainda está dependente de eventos vindouros, podendo existir, porventura, uma expetativa quanto à sua concretização, mas que não encontra nas regras do arresto qualquer espécie de tutela” (pg. 190) -  http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/42edccd3d5435b8680257460004bc5f8?OpenDocument

Se não está sequer alegado que os factos invocados pela requerente não a constituem, por ora, credora, por facto ilícito imputável à requerida B..., S.A nem por incumprimento da R... LDA, então, há desde logo e com prejuízo de quaisquer outras diligencias, improcedência manifesta da pretensão cautelar, sendo certo que não há outros factos, de entre os que se mostram alegados, que revelem ter havido dano e qual é a sua medida pecuniária.

Além disso, a requerente fundamenta o seu alegado receio de perda de garantia patrimonial do seu crédito pelo perigo de que, sem o decretamento do arresto ora requerido, as Requeridas dissipem inúmeros bens, designadamente, a propriedade do imóvel em causa, mas não concretiza este seu receio, nem fornece ao tribunal elementos que lhe permitam formar uma ideia, ainda que aproximada, da real situação económico-financeira das requeridas, por forma a avaliar até que ponto será justificado o receio de perda da garantia do seu crédito se for concretizada a por si temida (e nem sequer anunciada) intenção de vender esse imóvel.

O justo receio de o credor perder a garantia patrimonial do seu crédito é o pressuposto fundamental do arresto e, já pelas consequências que esta providência acarreta para o devedor, já porque importa prevenir abusos, a sua verificação tem de ser inequivocamente demonstrada - 4 http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/8bbe20a3486937ea802587110035fbd6?OpenDocument.

Desta forma, uma vez que da matéria de facto assim alegada não pode concluir-se nem pela provável existência de um crédito atual e vigente da requerente nem pelo perigo de perda da garantia patrimonial, a providência requerida sempre estaria votada ao insucesso”.

Com o devido respeito, pela alegação da apelante, entendemos que o Juízo Central Cível de Coimbra decidiu correctamente, ao julgar inepta a petição inicial e indeferir liminarmente a providência requerida.

Senão vejamos:

No procedimento cautelar especificado de arresto, o justo receio da perda de garantia patrimonial preenche o requisito “periculum in mora” que serve de fundamento à generalidade das providências cautelares, constituindo fator distintivo do arresto relativamente às restantes formas de tutela cautelar de direitos de natureza creditícia. Conforme tem sido pacífica e reiteradamente admitido na doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores, o preenchimento do requisito enunciado pressupõe a alegação e prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo fáctico que permita antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito, e o seu critério de avaliação não pode assentar em simples conjeturas, em meras suposições ou em juízos puramente subjetivos do juiz ou do credor, devendo necessariamente basear-se em factos ou em circunstâncias concretas que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata – neste preciso sentido, por ex. o Acórdão da Relação do Porto de 14.9.2021, pesquisável em www.dgsi.pt.

Embora sendo uma providência cautelar nominada ou especificada na lei, a função do arresto – artigo 391.º do Código do Processo Civil -  é, tal como nas demais providências, a de obviar ao perigo na demora da declaração e execução do direito, afastando o receio de dano jurídico.

Do mesmo modo que nas demais providências cautelares, o decretamento do arresto depende sempre da verificação dos dois requisitos cumulativos: i) a verificação da aparência de um direito, que aqui se traduz na provável existência do crédito; ii) a demonstração do perigo de insatisfação desse direito aparente, neste caso, o justificado receio de perda da garantia patrimonial.

Nas palavras da lei “O requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência.

No arresto, o factualismo apto a preencher a previsão legal do requisito justo receio da perda da garantia patrimonial, pode assumir uma larga diversidade, nele cabendo casos como os de receio de fuga do devedor, da sonegação ou ocultação de bens, da situação patrimonial deficitária do devedor, ou qualquer outra conduta relativamente ao seu património, que, objectivamente, faça antever e temer o perigo de se tornar impossível ou difícil a cobrança do crédito.

Para a prova do justo receio da perda da garantia patrimonial, não se reveste como suficiente ou bastante que o Requerente alegue uma panóplia de meras convicções, desconfianças, suspeições de carácter subjectivo, sendo antes exigível que enforme ou densifique a sua alegação factual com razões concretas, identificadas, objectivas e persuasivas, longe de qualquer juízo subjectivo ou de meras conjecturas, suficientemente justificativas e bastantes a que o Requerido se veja privado da livre disponibilidade do seu património. Só a efectiva prova de tal núcleo factual permitirá, na aplicação de regras de experiência, a consequente adopção da decisão cautelar, de forma a garantir e potenciar a posterior eficácia do decidido em sede de acção declarativa ou executiva.

O requerente da providência tem de alegar e provar factos reais, certos e concretos que mostrem que o receio que invoca é fundado e não é fruto da sua imaginação exacerbada ou da sua desconfiança, não sendo suficiente para o decretamento de uma providência cautelar a mera possibilidade remota de o requerente vir a sofrer danos. Para efeitos da aferição da existência do requisito do “periculum in mora” só devem ser ponderadas as lesões graves e dificilmente reparáveis, sendo que quanto aos prejuízos materiais o critério de aferição deve ser mais rigoroso do que o utilizado para a aferição dos danos imateriais, pois que, por regra, os primeiros são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva - no sentido de que para a comprovação do justo receio da perda da garantia patrimonial não basta o receio subjetivo do credor, baseado em meras conjeturas, devendo tal conclusão assentar em factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação, vejam-se os seguintes arestos, todos disponíveis em www.dgsi.pt: da Relação de Coimbra, de 10.02.2009, Proc. 390/08.7TBSRT.C1; de 19.12.2012, Proc. 244/10.7JAAVR-B.C1; de 30.10.2010, Proc. 308-B/2002.C1; de 10.02.2009, Proc. 390/08.7TBSRT.C1; desta Relação, de 10.02.2009, Proc. 3994/08.4TBVLG-C.P1; de 7.03.2002, Proc. 0230228; de 16.12.2009, Proc. 459/09.0TJVNF-A.P1; de 16.06.2009, Proc. 3994/08.4TBVLG-C.P1; e de 07.10.2008, Proc. 0823457; da Relação de Lisboa, de 25.02.2010, Proc. 1114-A/2001.L1; e de 16.10.2003, Proc. 7016/2003-6.

Por isso, devassado o requerimento inicial da ora apelante, teremos de concluir, como o fez a 1.ª instância, que no “ caso vertente, para além das variadas outras referências em termos conclusivos a prejuízos sérios e avultados, a requerente alega que tinha diversos projetos para aquele local, que rondavam valores de cerca de 10 milhões de Euros, e com os quais não consegue seguir por causa imputável às Requeridas, à Requerida B..., S.A porque não permite o acesso à Requerente, quanto à Requerida R... LDA, porque nunca informou a requerente que o acesso ao prédio se encontrava vedado. Ficando desde logo por esclarecer que projetos eram esses e qual a relação entre a alegada impossibilidade de uma exploração agrícola com um rebanho de 19 caprinos e a determinação daquele invocado prejuízo por uma concreta conduta imputável às aqui requeridas”.

Mas, pese embora algum défice de densificação e concretização no plano factual, porque não se reconduz ao uso de conceitos normativos de que dependa a solução, no plano jurídico, do caso e na medida em que contém um inquestionável substrato factual, entendendo-se que a alegação é insuficiente - que é coisa diferente de faltar em absoluto a indicação dos factos necessários para sustentar a pretensão submetida a juízo, isto é, da falta de causa de pedir - , a 1. ª instância  pode, em casos contados, lançar mão do despacho de aperfeiçoamento, uma vez que, em casos de dúvida quanto à bondade/suficiência dos factos invocados para a sustentação da pretensão, deve o juiz responsabilizar o requerente convidando-o a aperfeiçoar/completar/concretizar o alegado – Acórdão desta Relação de Coimbra de 6.3.2018.

No entanto, tal despacho não deverá ser usado nas situações de manifesta e indiscutível improcedência do pedido, que é, manifestamente o caso em análise nestes autos.

Como escreve a 1.ª instância:

“Embora em sede de procedimento cautelar baste que se conclua pela séria probabilidade da existência do crédito, tem de tratar-se de crédito atual, constituído, vigente e não de crédito futuro, hipotético, eventual (ainda que provável).

António Abrantes Geraldes, na obra Temas da Reforma do Processo Civil, IV Vol., interroga-se sobre se o arresto poderá tutelar situações em que só mediatamente a quantificação pecuniária se verifique, respondendo que “ainda é o património do devedor que assegura, por via indireta, o cumprimento dessas obrigações. Por isso, não é errado afirmar que a preservação dos bens do devedor ainda pode revelar-se uma medida eficaz para a tutela dos interesses do credor” (pg. 187). Reporta-se, contudo, às situações de obrigação de entrega de coisa certa ou de prestação de facto, sempre que haja recusa de cumprimento e subsequente execução específica, o que não é, manifestamente, o caso.

Na mesma obra, afasta-se, contudo, claramente a possibilidade de recurso ao arresto quanto a créditos futuros porque “a sua constituição ainda está dependente de eventos vindouros, podendo existir, porventura, uma expetativa quanto à sua concretização, mas que não encontra nas regras do arresto qualquer espécie de tutela” (pg. 190) -  http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/42edccd3d5435b8680257460004bc5f8?OpenDocument

Se não está sequer alegado que os factos invocados pela requerente não a constituem, por ora, credora, por facto ilícito imputável à requerida B..., S.A nem por incumprimento da R... LDA, então, há desde logo e com prejuízo de quaisquer outras diligencias, improcedência manifesta da pretensão cautelar, sendo certo que não há outros factos, de entre os que se mostram alegados, que revelem ter havido dano e qual é a sua medida pecuniária.

Além disso, a requerente fundamenta o seu alegado receio de perda de garantia patrimonial do seu crédito pelo perigo de que, sem o decretamento do arresto ora requerido, as Requeridas dissipem inúmeros bens, designadamente, a propriedade do imóvel em causa, mas não concretiza este seu receio, nem fornece ao tribunal elementos que lhe permitam formar uma ideia, ainda que aproximada, da real situação económico-financeira das requeridas, por forma a avaliar até que ponto será justificado o receio de perda da garantia do seu crédito se for concretizada a por si temida (e nem sequer anunciada) intenção de vender esse imóvel.

O justo receio de o credor perder a garantia patrimonial do seu crédito é o pressuposto fundamental do arresto e, já pelas consequências que esta providência acarreta para o devedor, já porque importa prevenir abusos, a sua verificação tem de ser inequivocamente demonstrada - 4 http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/8bbe20a3486937ea802587110035fbd6?OpenDocument.

Desta forma, uma vez que da matéria de facto assim alegada não pode concluir-se nem pela provável existência de um crédito atual e vigente da requerente nem pelo perigo de perda da garantia patrimonial, a providência requerida sempre estaria votada ao insucesso”

A figura da ineptidão da petição inicial persegue o fito de impedir o prosseguimento de uma ação viciada por falta ou contradição interna da matéria ou objeto do processo, denotando‑se, desde logo, que não é possível um acto de julgamento correto, coerente e unitário - Castro Mendes, Direito Processual Civil, ed. AAFDL, Vol. 3.º, p. 47.

Para as partes, o instituto da ineptidão da petição inicial visa assegurar o princípio da controvérsia, segundo o qual o réu deve ter conhecimento das razões fácticas que alicerçam o pedido do autor para poder exercer cabalmente o contraditório.

Improcedem, assim, as conclusões da apelante, mantendo-se o decidido pelo Juízo Central Cível de Coimbra.

(…)
3.Decisão
Assim, na improcedência do recurso, mantemos a decisão proferida pelo Juízo Central Cível de Coimbra - Juiz 3.

As custas ficam a cargo da apelante.

Coimbra, de 8 Março de 2022

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(Paulo Brandão - 1.º adjunto)

(Arlindo Oliveira– 2.º adjunto)