Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
520/04.8TBPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRIORIDADE DE PASSAGEM
Data do Acordão: 05/27/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGO 31º, N.º1, ALÍNEA A) DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário: 1. A regra da prioridade de passagem prevista no CE não é absoluta ou incondicional, não estando o condutor que goza desse direito dispensado da observância do dever de diligência ou cuidado requerido pelas circunstâncias concretas do caso por forma a garantir a segurança do trânsito.
2. Mas uma vez nascido tal direito, porque observado o dever de cuidado ou prudência, tal direito apresenta-se como absoluto, não ficando o condutor que dele goza colocado numa situação de paridade com o condutor não prioritário.
3. No limite pode acontecer que o condutor que aparentemente goza de prioridade de passagem seja o único culpado do acidente.
4. Impõe-se especial dever de prudência e cuidado ao condutor que goza de prioridade de passagem, mas que surge de um caminho de terra batida, de noite, conduzindo um tractor a que vai atrelado um reboque, com intenção de entrar numa estada com muito movimento e manobrando por forma a ocupar as duas faixas de rodagem dessa estrada.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                    I)- RELATÓRIO  

 

A...., B....e C....intentaram, no Tribunal Judicial de Porto de Mós,  acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra D....., pedindo a condenação da Ré a pagar a quantia  global de € 146.047,04, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos em consequência de acidente de viação, bem como a pagar juros moratórios legais, desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

Para tanto, alegaram, em resumo, o seguinte:

-no dia 15 de Setembro de 1999, cerca das 21horas e 55 minutos, E....conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 3O-75-JS, na Estrada Nacional, n.º 8, no sentido de marcha São Jorge – Batalha, pela hemifaixa direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha ;

-no mesmo circunstancialismo de tempo, F...., conduzia o tractor com a matrícula 15-75-MX, ao qual estava atrelado um semi-reboque com a matrícula L-143759, num caminho em terra batida que dá acesso à Fábrica de Cerâmica Margon, denominado Rua dos Avelinos que entronca na Estrada Nacional n° 8, com vista a entrar nesta última via ;

-a determinada altura do percurso, ao aproximar-se do entroncamento formado pela referida Rua dos Avelinos e a aludida Estrada Nacional nº 8, ao km 129,5, junto da localidade de Moitalina, o condutor do tractor não parou o veículo por si conduzido e, prosseguindo a marcha, entrou na referida Estrada Nacional n° 8 onde pretendia entrar, mudando de direcção para a sua esquerda, em direcção a São Jorge, por forma a ocupar a hemifaixa de rodagem do lado direito, atento este sentido de marcha ;

-sem se certificar previamente de que o poderia fazer sem perigo para o trânsito que circulava na Estrada Nacional nº 8, onde pretendia entrar ;

-vindo a ser embatido com a parte frontal esquerda do veículo conduzido pelo referido E…., que circulava na sua mão de trânsito, no penúltimo rodado do lado esquerdo do semi-reboque, por aquele conduzido ;

-o condutor do tractor não respeitou a obrigação que sobre ele impendia de ceder a passagem aos veículos que circulassem na mencionada Estrada Nacional, violando a regra consagrada no art. 31°, no 1, alínea a), do Código da Estrada ;

-o E....em nada contribuiu para o acidente, circulando pela metade direita da faixa de rodagem, considerando o sentido em que seguia, a velocidade não superior a 80 km/hora ;

-E....sofreu ferimentos que terminaram como causa directa e necessária a sua morte ;

-com o funeral da vítima, os AA despenderam a importância de 279.400$00, ou seja, 1 395,64 € ;

-o veículo pertencente ao casal constituído pela A. A....e seu falecido marido ficou, em consequência do embate, total e completamente destruído, sendo que, antes do acidente, o seu valor rondaria os 17.457,93 € (3.500.000$00) ;

-o falecido marido compartilhava nas despesas da casa e nas suas próprias despesas ;

-a A. A....viu-se privada, com a morte do marido, de uma importância que ronda os 5.074.44 € (1.017.334$00 ) / ano, razão pela qual deverá ser indemnizada pela quantia de 69.831,71 € ( 14.000.000$00);

-os AA.  têm direito a ser indemnizados pela supressão da vida de seu marido e pai em indemnização que se calcula em 24.939,89 € ( 5.000.000$00) ;

-durante o período em que sobreviveu às lesões sofridas, o E....sentiu dores horríveis, tendo tido consciência do seu estado e da aproximação da morte, pelo que deve ser indemnizado em valor não inferior a 4.987,98 € (1.000.000S00) ;

-os AA. devem ainda ser indemnizados por danos não patrimoniais sofridos em consequência da morte de seu marido e pai, justificando-se, assim, que a A. A....seja indemnizada pela quantia de 12.469,95 € (2.500.000$00) e cada um dos seus filhos pela quantia de 7.481.97 € (1.500.000$00);

-O condutor e proprietário do tractor, único culpado do acidente, havia transferido para a Ré a responsabilidade civil por danos causados a terceiros na condução daquele veículo.

Regularmente citada, a Ré contestou, por excepção e por impugnação, alegando, em resumo, o seguinte:

-entre a data do acidente e a data da entrada da acção decorreram mais de três anos, pelo que, à data da propositura da presente acção, encontrava-se prescrito o direito indemnizatório ;

-o veículo tractor seguro na Ré, de matrícula 15-75-MX, circulava por uma rua pública denominada Rua dos Avelinos ;

-puxando um atrelado o qual se encontrava carregado de tijolos ;

-era intenção do condutor do tractor, ao chegar ao entroncamento da rua dos Avelinos com a E.N.8, entrar nesta e tomar o sentido de S. Jorge, mudando assim, e para tal, de direcção à esquerda no referido entroncamento ;

-atento o sentido de marcha do tractor inexiste na rua dos Avelinos qualquer sinal de Stop ou outra sinalética que lhe retire a prioridade de passagem sobre quem nesse entroncamento se lhe apresente pela esquerda na E.N. 8 ;

-para quem circule na E.N.8, antes e depois do local de entroncamento desta com a rua dos Avelinos, existe um limite de velocidade de 50 km/h ;

-o citado tractor, porque transportava um atrelado e este estava carregado de tijolos, circulava a uma velocidade não superior a 30Km/h ;

-ao chegar ao local de intersecção das linhas de entroncamento da rua dos Avelinos com a E.N.8 o condutor do tractor imobilizou o mesmo antes de entrar nesta ;

-verificou que da sua esquerda, ou seja do lado de S. Jorge, e no raio de visão permitido por uma curva ali existente, que a E.N.8 ali desenha, nenhum veículo se aproximava ;

-olhou só então para a sua direita, ou seja no sentido de Alcobaça, verificando que daí também nenhum veículo se aproximava ;

-tendo então reiniciado a sua marcha, e entrado assim na E.N.8, o que fez a uma velocidade bastante lenta, nunca superior a 10 km/h, tendo em conta o tipo de veículo e a carga que transportava no atrelado ;

-quando estava a iniciar a travessia da hemifaixa de rodagem direita, atento o sentido de marcha S. Jorge – Alcobaça, afim de tomar de seguida a hemifaixa esquerda desse mesmo sentido, tendo percorrido já cerca de 20 metros desde o local onde se imobilizara, é violentamente embatido pelo veículo de matrícula 30-75-JS ;

-o qual circulava a uma velocidade sempre inferior a 100 km/h bem como condutor deste desatento ao demais trânsito ;

-ocorrendo assim a colisão entre os referidos veículos na hemifaixa de rodagem direita da E.N.8 atento o sentido de marcha S. Jorge – Alcobaça ;

-o embate ficou-se a dever à culpa única e exclusiva do condutor do veículo de matricula 30-75-JS, nomeadamente ao facto de conduzir em violação do limite de velocidade estabelecido para o local, bem como por ter violado o disposto no artigo 30° do Código da Estrada, nomeadamente a regra de prioridade à direita no dito entroncamento ;

-O valor do veículo à data era de 2.560.000$00, sendo atribuído aos salvados o valor de 250.000$00, pelo que o dano decorrente de tal perda foi de 2.310.000$00.

Concluiu a Ré pela procedência da excepção invocada, e pela improcedência da acção e sua consequente absolvição do pedido. 

 Os Autores replicaram, defendendo a improcedência da excepção de prescrição.

Foi proferido despacho saneador, tendo sido julgada improcedente a excepção peremptória de prescrição, seleccionando-se de seguida a factualidade relevante.

No decurso da audiência de julgamento os Autores requereram a ampliação do pedido, ou seja, a fixação da indemnização no montante de € 20.000,00 por danos não patrimoniais sofridos pela viúva e em € 15.000,00 para cada um dos filhos, também a esse título, e arbitramento da indemnização pelo dano morte no montante de € 45.000,00. Tal ampliação foi deferida.

Após audiência de julgamento foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente e provada, sendo a Ré condenada a pagar solidariamente a todos os AA.:

-a quantia de € 696,82 pelo ressarcimento das despesas com o funeral do falecido.

-a quantia de € 5.885,81 valor do veículo destruído.

-a quantia de € 20.000,00 relativa aos danos não patrimoniais sofridos pela própria vítima.

Todas essas quantias acrescidas de juros de mora desde a citação, no tocante aos danos patrimoniais, e a contar de 10/09/2002 relativamente aos danos não patrimoniais.

Mais foi a Ré condenada a pagar à viúva  a quantia de € 32.500,00, decorrente da perda de alimentos e a quantia de € 8.000,00 relativa aos danos não patrimoniais. A cada um dos filhos da vítima  foi arbitrada a indemnização de € 6.000,00 relativa aos danos não patrimoniais próprios. Todas essas quantias acrescidas de juros moratórios a contar de 10/09/2007 até integral pagamento.

Irresignada com tal decisão, apelou a Ré, pugnando pela total absolvição do pedido, e extraindo da sua alegação as seguintes conclusões:

1ª-No entroncamento da Rua dos Avelinos com a EN 8, assistia ao condutor do veículo MX a  prioridade de passagem sobre o veículo JS, visto apresentar-se pela direita;

2ª-Não foi concedida pelo condutor do JS a prioridade de passagem ao condutor do veículo MX;

3ª-O veículo JS circulava em velocidade superior aos 50 Km/h legalmente estipulados para o local;

4ª-Por virtude da não concessão da prioridade de passagem e ainda devido ao excessos de velocidade, o veículo JS veio a colidir no veículo MX;

5ª-Colisão que se dá na hemifaixa de rodagem direita, atento o sentido de marcha do JS;

6ª-Colisão que ocorre entre a frente do JS e a roda traseira esquerda do veículo MX;

7ª-Face à violação dos normativos do Código da Estrada, o condutor do JS foi o único e exclusivo culpado do acidente.

Os AA. contra-alegaram em defesa do julgado.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                   II)- OS FACTOS

Na sentença impugnada foi dada por assente a seguinte factualidade:

 Da matéria de facto assente:

1-No dia 15 de Setembro de 1999, cerca das 22.55 horas, ocorreu um acidente na Estrada Nacional nº 8, ao km 125, na localidade de Moitalina, concelho de Porto de Mós - alí. A) ;

2-O embate ocorreu na hemifaixa de rodagem direita da Estrada Nacional nº 8, atento o sentido de marcha S. Jorge» Alcobaça – alí. B) ;

3-O embate deu-se entre a frente do veículo de matrícula 30-75-JS e o rodado traseiro do lado esquerdo do semi-reboque puxado pelo tractor de matrícula 15-75-MX – alín. C) ;

4-No acidente referido em 1 foram intervenientes o veículo tractor com semi-reboque de matrícula 15-75-MX, conduzido por F.... – alín. D) ;

5-…e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 30-75-JS, conduzido por E....que circulava no sentido de marcha S. Jorge» Alcobaça – alín. E) ;

6-E....conduzia o seu veículo de matrícula 30-75-JS na Estrada Nacional nº 8 e pela metade direita da sua faixa de rodagem – alín. F) ;

7-F.... conduzia o tractor de matrícula 15-75-MX, ao qual estava atrelado um semi-reboque, por um caminho de terra batida, que dá acesso à Fábrica de Cerâmica Margon, denominado Rua dos Avelinos – alín. G) ;

8-O veículo de matrícula 30-75-JS apresentava-se pela esquerda, do veículo tractor / semi-reboque, no entroncamento formado pela Rua dos Avelinos e pela EN nº 8 – alín. H) ;

9-A Rua dos Avelinos entronca na Estrada Nacional nº 8 – alín. I) ;

10-O veículo de matrícula 30-75-JS, em consequência do embate, ficou completamente destruído e sem possibilidade de reparação – alín. J) ;

11-Em consequência do acidente, E....sofreu ferimentos que foram a causa directa e necessária da sua morte, que ocorreu no dia 16 de Setembro de 1999 – alín. K) ;

12-Por contrato de seguro titulado pela apólice no 3066865/7 F.... transferiu para a Axa – Companhia de Seguros, SA, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo seu veículo de matrícula 15-75-MX – alín. L) ;

13-Conforme assento de casamento no 343, E....casou com A....no dia 27 de Outubro de 1969 – alín. M) ;

14-B….. nasceu no dia 15 de Setembro de 1969 e é filha de E....e de A.... – alín. N) ;

15-C....nasceu no dia 26 de Maio de 1971 e é filho de E....e de A.... – alín. O) ;

16-E....nasceu no dia 23 de Setembro de 1942 – alín. P) ;

17-E....estava reformado da TAP e auferiu, em 1999, a pensão de reforma no valor ilíquido de 4.596.000$00 – alín. Q).

     Da matéria de facto controvertida:

   18- – A via, no local do acidente, assume a configuração de uma recta com o pavimento asfaltado - resp. facto 1º ;

    19-– ...em bom estado de conservação – resp. facto 2º ;
    20- – …e com a largura de 7,1 metros – resp. facto 3º ;

    21 – no entroncamento referenciado em 9, o condutor identificado em 4 manobrou no sentido de entrar na Estrada Nacional nº 8, mudando de direcção à sua esquerda, de forma a passar a circular no sentido Alcobaça/São Jorge – resp. factos 5º e 6º ;

    22 – … de forma a ocupar a hemifaixa do lado direito, atento o sentido de marcha Alcobaça » S. Jorge – resp. facto 7º ;

    23 – E....circulava a velocidade não concretamente determinada – resp. facto 8º ;

    24 – os Autores despenderam a quantia de 1.393,64 € no funeral do identificado em 11 – resp. facto 13º ;

    25 – Tratava-se de um veículo da marca Mercedes do ano de 1989 – resp. facto 14º ;

    26 – …. em “bom estado de conservação” – resp. facto 15º ;

    27 – E…., no ano de 1999, recebeu da Caixa Geral de Aposentações a pensão ilíquida de esc: 4.596.000.00, correspondente á pensão líquida anual de esc: 3.701.859.00, e mensal de esc. 308.488.00 (3.701.859.00 : 12) ou de esc: 264.418.50 (3.701.859.00 : 14), sendo que, após o seu óbito, a Autora viúva passou a receber apenas parte não concretamente determinada de tal montante  – resp. facto 16º ;

    28 – A viúva A....não exerce actividade remunerada – resp. facto 17º ;

    29 – …e era com a pensão de reforma do marido que fazia face aos encargos familiares – resp. facto 18º ;

    30 – E....era globalmente saudável – resp. facto 19º ;

    31 – …activo e empreendedor – resp. facto 20º ;

    32 – Durante o período que sobreviveu ao acidente, E....sofreu dores – resp. facto 21º ;

    33 – teve consciência do seu estado – resp. facto 22º ;

    34 – tratava-se de uma família unida – resp. facto 23º ;

    35 - … de laços familiares apertados – resp. facto 24º ;

    36 - E....era um homem bom – resp. facto 25º ;

    37 - Amigo do seu amigo – resp. facto 26º ;

    38 - marido “exemplar” – resp. facto 27º ;

    39 - … pai “extremoso” – resp. facto 28º ;

    40 - …sempre preocupado com o bem-estar da família – resp. facto 29º ;

    41 - E....proporcionava atenção e cuidados á família – resp. facto 30º ;

    42 – os Autores sofreram um grande choque com a morte de E….., sentindo saudade – resp. facto 30º-A ;

    43 – o semi-reboque puxado pelo tractor estava carregado de tijolos – resp. facto 31º ;

    44 – junto ao entroncamento referido em 9 existia, na data mencionada em 1, pelo menos um poste de iluminação pública, encontrando-se os demais a distância não concretamente determinada, sendo que, aquando do embate mencionado em 1 já era de noite – resp. facto 32º ;

    45 – o condutor do tractor/semi-reboque pretendia, ao chegar ao entroncamento referido em 9, mudar de direcção à esquerda – resp. facto 33º ;

    46 - … e tomar o sentido Alcobaça » S. Jorge – resp. facto 34º ;

    47 – quem circule pela EN nº 8, no sentido de marcha São Jorge/ Alcobaça, a aproximadamente 300 a 400 m do entroncamento referida em 9, descreve uma ligeira curva para a sua direita, sendo que tal entroncamento é visível, em distância não concretamente apurada, mesmo antes da descrição de tal curva – resp. facto 35º ;

    48 - o condutor do tractor de matrícula 15-75-MX circulava pela Rua dos Avelinos – resp. facto 37º ;

    49 - o condutor do tractor entrou na EN nº 8 a velocidade não concretamente apurada, mas necessariamente inferior a 20 km/hora, atenta a dimensão do veículo (com semi-reboque), a manobra a efectuar (de mudança de direcção à esquerda) e o referenciado em 43– resp. facto 42º ;

    50 – o embate referido em 2 e 3 ocorre quando o tractor com semi-reboque se encontrava a efectuar a manobra descrita em 21, já com o tractor, em posição oblíqua, direccionado no sentido Alcobaça/São Jorge, na respectiva hemifaixa direita, enquanto o semi-reboque ocupava, quase na totalidade, a hemifaixa direita, atento o sentido de marcha do veículo JS (São Jorge/ Alcobaça) – resp. facto 43º ;

    51 - por força do embate o eixo basculante do semi-reboque foi arrancado – resp. facto 44º ;  

    52 – o pneu do antepenúltimo rodado traseiro do lado esquerdo do semi-reboque fez de mola – resp. facto 45º ;

    53 - …o que levou a que o veículo de matrícula 30-75-JS tivesse sido projectado à retaguarda em cerca de 12,5 metros – resp. facto 46º ;

    54 – o veículo de matrícula 30-75-JS, à data do acidente, tinha o valor de, pelo menos, esc: 2.560.000.00, computando-se em aproximadamente esc: 200.000.00 o valor residual do mesmo (salvados) após o embate – resp. factos 48º e 48º-A ;

    55 - à data do acidente, E....era amputado de parte não concretamente determinada do membro inferior direito, constando do relatório de autópsia, como cicatriz, amputação não recente do membro inferior direito pelo terço médio da perna – resp. facto 49º. 

                                III)- MÉRITO DO RECURSO

Delimitado que é, em princípio, o objecto do recurso pelas conclusões da alegação (arts. 690º, n.ºe 684º, n.º3, ambos do CPC), submete a Ré seguradora a julgamento deste Tribunal apenas a questão de saber se o condutor do veículo seguro concorreu culposamente para a produção do acidente

Na tese da Ré não é de assacar qualquer culpa àquele condutor, uma vez que gozava da prioridade de passagem, não violou qualquer norma estradal e adoptou o grau de diligência exigível a um bonus pater familias em face do condicionalismo próprio do caso concreto. Diversamente, porém, a sentença impugnada propendeu para a concorrência de culpas e graduou em igual medida a culpa dos condutores dos dois veículos intervenientes no acidente.

À dinâmica ou processo causal do acidente em apreço reportam os n.ºs 1 a 11, 18 a 23 e 43 a 53 da factualidade assente. Com relevância, resulta que o veículo seguro, ou seja o tractor de matrícula 15-75-MX ao qual estava atrelado um semi-reboque carregado de tijolos, circulava por um caminho de terra batida que dá acesso a uma fábrica de cerâmica. Esse caminho de terra batida, denominado Rua dos Avelinos, entronca na Estada Nacional n.º8. Nesse entroncamento o condutor do tractor manobrou no sentido de entrar naquela EN n.º8, mudando de direcção para a sua esquerda  a fim de passar a circular  EN n.º8, sentido Alcobaça/São Jorge, na hemifaixa do lado direito. O condutor do tractor entrou na EN a velocidade não concretamente apurada, mas inferior a 20 km/h. O embate ocorreu quando o tractor com semi-reboque se encontrava a efectuar a manobra de mudança de direcção à esquerda, já com o tractor em posição oblíqua, direccionado no sentido Alcobaça/São Jorge, na respectiva hemifaixa direita, enquanto o semi-reboque ocupava, quase na totalidade, a outra hemifaixa, ou seja, a hemifaixa por onde circulava o outro veículo automóvel interveniente no acidente e conduzido pela infeliz vítima. O embate ocorreu na hemifaixa de rodagem direita da EN n.º8, atento o sentido São Jorge/Alcobaça, por onde circulava o veículo conduzido pela infeliz vítima e deu-se entre a frente deste veículo e o rodado traseiro do lado esquerdo do semi-reboque. Quem circule pela EN n.º8, no sentido em que seguia o veículo conduzido pela infeliz vítima, a aproximadamente 300 a 400 metros do mencionado entroncamento, aquela EN n.º8 descreve uma ligeira curva para a sua direita, sendo que tal entroncamento é visível, em distância não concretamente apurada, mesmo antes da descrição de tal curva. O acidente ocorreu cerca das 22.55 horas, do dia 15.09.1999, já era noite, existindo junto do dito entroncamento, pelo menos um poste de iluminação pública. A EN n.º8, no local do acidente, assume a configuração de uma recta com o pavimento asfaltado, em bom estado de conservação e com a largura de 7,1 metros.

Perante este quadro fáctico, está afinal o condutor do veículo seguro isento de qualquer culpa na produção do acidente?

Os AA. intentaram a presente acção imputando ao condutor do veículo seguro a violação da regra estradal de prioridade de passagem de que beneficiava o veículo automóvel conduzido pela infeliz vítima, uma vez que o tractor provinha de um caminho de terra batida que dá acesso à Fábrica de Cerâmica Margon, infracção essa prevista na alínea a) do n.º 1 do art. 31º do CE então aplicável. Nos termos dessa norma, “ “deve sempre ceder a passagem o condutor que saia de um parque de estacionamento, de uma zona de abastecimento de consultava ou de qualquer prédio ou caminho particular”.

 Como decorre da sentença impugnada, apesar de provado que o caminho é em terra batida e dá acesso à aludida fábrica, não provaram, porém, os AA. que tal caminho fosse particular ou não aberto ao trânsito público. Daí que, naquele entroncamento formado pelo caminho de terra batida e EN n.º8, sobre a infeliz vítima recaía o dever de ceder a passagem ao tractor que se apresentava pela sua direita e circulando por um caminho público (n.º1 do art. 30º do CE).

Considerou-se, e bem, como recorrentemente é afirmado na jurisprudência[1], que a regra de prioridade de passagem prevista no CE não é absoluta ou incondicional, de forma que os condutores que gozem desse direito não estão dispensados da observância do dever de diligência ou condução prudente requerido pelas circunstâncias concretas do caso, como flui do n.º 2 do art. 3º daquele diploma, embora não sendo exigível que o condutor deva prever a negligência alheia. A prevalência do dever de condução prudente é até expressamente proclamada no n.º2 do art. 29º do CE, nos termos do qual “o condutor com prioridade de passagem deve observar as cautelas necessárias à segurança do trânsito”. No limite, pode até acontecer que o condutor com prioridade possa surgir como o único culpado na produção de um acidente. Contrariamente, pois, à opinião sustentada pela Ré/Recorrente, o princípio da relativização do direito de prioridade de passagem tem suporte, quer legal quer jurisprudencial, só existindo quando o condutor se apresente pela direita e o faça com as indispensáveis precauções, tendo em conta, designadamente, a posição relativa dos veículos. Mas uma vez nascido, esse direito é absoluto, não pode ser regateado na sua eficácia, ou seja, e como é evidente, o condutor prioritário jamais fica colocado numa situação de paridade com aquele que não goza de prioridade [2].

No caso em apreço, o condutor do veículo seguro provinha de um caminho de terra batida que dá acesso a uma fábrica, com as características reflectidas nas fotografias juntas aos autos, a fls. 31 e 32, e entroncando numa EN onde o movimento de veículos será incomparavelmente mais intenso, com pavimento asfaltado, em bom estado de conservação, e com a largura de 7,1 metros. Caminho, que atentas as suas características, função (acesso a uma fábrica) e natureza da via onde entronca, não sendo particular, bem justificaria a colocação de um sinal Stop. Sendo noite (22,55 h. de um dia do mês de Setembro), mas existindo um poste de iluminação pública junto do entroncamento, tratando-se de um tractor a que estava atrelado um semi-reboque carregado de tijolos, pretendendo o condutor manobrar no sentido de entrar na EN, mudando de direcção à sua esquerda, de forma a ocupar a hemifaixa do lado direito, face a esta realidade fáctica, e como acertadamente enfatiza a sentença sob exame, impõe-se, no caso presente, uma acrescida relativização do reconhecido direito de prioridade. Com efeito, o condutor do tractor ou do veículo seguro sabia que ia entrar numa Estrada Nacional, necessariamente com maior intensidade de tráfego …, sabia que ia ocupar toda a hemifaixa de rodagem de rodagem por onde circulavam os veículos no sentido São Jorge/Alcobaça (isto é, a hemifaixa por onde circulava o automóvel da infeliz vítima), dado pretender circular em sentido contrário (Alcobaça/São Jorge) o que demandaria cuidados acrescidos e redobrada atenção”[3]. Devem, na verdade, ser exigíveis especiais precauções aos condutores que se apresentem pela direita, provindos de caminhos, e com propósito de entrar numa estrada. Cuidados também exigíveis face às dimensões do tractor a que estava atrelado um semi-reboque carregado de tijolos, e à previsível duração da manobra de mudança de direcção para a esquerda,  circulando aquele veículo  a velocidade inferior a 20 Km/h..

 E, como nota ainda a sentença recorrida, o condutor do tractor “podia, e deveria, ter-se apercebido da aproximação do JS, o qual vislumbrava a distância superior a 300/400 metros, ponderar a velocidade provável de aproximação, e calcular se tinha tempo para, em segurança, efectuar e concluir a pretendida mudança de direcção à esquerda”. Na verdade, como ficou demonstrado, no local do acidente, a EN assume a configuração de uma recta, e o entroncamento é visível para os condutores que circulam no sentido São Jorge/Alcobaça (o sentido de marcha seguido pelo veículo da infeliz vítima) para além de uma ligeira curva à direita, situada a aproximadamente 300 ou 400 metros. E o embate entre veículos, pela forma descrita no n.º 50 da factualidade assente, ocorreu dentro da hemifaixa de rodagem por onde circulava a infeliz vítima, e necessariamente violento atentas as consequências descritas nos n.ºs  10, 11, 51, 52 e 53, e não restando vestígios de travagem do veículo automóvel por falta de reacção do condutor.

Em suma, a valoração cuidadosa e sensata a que procedeu a 1ª instância acerca da actuação do condutor do veículo seguro, provindo de um caminho de terra batida de acesso a uma fábrica e entrando numa EN, qualificando a mesma de culposa, é, pois, de sufragar inteiramente, não vindo impugnada a culpa da infeliz vítima assente em excesso de velocidade. Como não merece censura a graduação igualitária de culpa de cada um dos condutores na produção do acidente, ao abrigo da parte final do n.º2 do art. 506º do CC. Não se justificando aditar quaisquer outras considerações, resta remeter para os fundamentos da decisão impugnada, como permite o n.º5 do art. 713º do CPC.

                                     IV)- DECISÃO

Nesta conformidade, acorda-se em negar provimento ao recurso e confirmar inteiramente a sentença na parte impugnada.

Custas a cargo da Recorrente.


[1] Para além  da jurisprudência citada na sentença recorrida, cfr., e entre muitos outros, os acórdãos do STJ, publicados no BMJ n.º 287º, p. 300, no BMJ n.º 268º, p. 218, BMJ n.º 253º, p. 157, BMJ 307º, p. 191 e disponíveis na base de dados do STJ, P. 07B1078, de 10.05.2007, P. 0A2625, de 03.10.2006, P. 01ª050, de 05.03.2002, P. 087241, de 21.09.1995, P. 99ª131, de 27.04.1999 e P. 03ª1339, de 03.06.2003.
[2] Neste sentido Dário Martins de Almeida in Manual de Acidentes de Viação, p. 464 a 476,. Cfr, ainda, Código da Estrada, p. 47 a 50, de Manuel de Oliveira Matos. Cfr., ainda, acórdão do STJ, publicado no BMJ n.º 280º, p. 278.
[3] Cfr., a este respeito, acórdãos da Relação de Évora, publicados na CJ 1983, 5º, p. 275 e na CJ 2003, 2º, p. 238.