Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
758/07.6TBOHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: COMPRA E VENDA
MÚTUO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
RESERVA DE PROPRIEDADE
Data do Acordão: 03/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 409.º, N.º 1, 428.º, N.º 1, 798º, 799º, Nº. 1 E 882, N.º 2 DO CC, 12º DO DL 359/91, DE 21/9 E DL 54/75, DE 12/12.
Sumário: 1. Apesar de, em condições normais, a responsabilidade pela não entrega do título de registo de propriedade só poder ser assacada ao vendedor do veículo automóvel e não ao financiador, no caso em apreço, dado que se trata de dois contratos (mútuo e compra e venda, interdependentes entre si, por força do qual o autor financiou a aquisição de um bem transaccionado pelo vendedor) e porque se acordou que a obrigação de legalização de todos os documentos inerentes à transferência da propriedade de tal veículo para o 1.º réu incumbia ao autor financiador, já a este pode ser assacada a responsabilização pelo incumprimento de tal cláusula contratual.

2. Donde se tem de concluir que ao réu é conferida a possibilidade de invocar a excepção de não cumprimento para suspender o pagamento das prestações relativas ao contrato de mútuo que celebrou com o financiador, até lhe ser entregue o documento em falta.

3. A providência de apreensão do veículo automóvel só é possível nos casos em que o requerente seja o vendedor de um veículo automóvel a prestações, com reserva de propriedade registada a seu favor, estando o recurso à mesma vedada à entidade financiadora.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

“A...”, intentou a presente acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, contra B... e C... , já todos identificados nos autos, pedindo a condenação, solidária, dos réus a pagarem-lhe a quantia de 6.883,90 €, de capital em dívida, acrescida da de 320,13 €, de juros de mora vencidos até à data da propositura da acção, a de 12,81 € de imposto de selo sobre estes juros e ainda os juros de mora vincendos, sobre o capital, à taxa anual de 14,49%, desde 07 de Dezembro de 2007 e até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à referida taxa de 4%, sobre estes juros recair.
Para tanto, alegou que, no exercício da sua actividade comercial, em 27 de Julho de 2004, emprestou ao 1.º réu, a quantia de 9.544,20 €, para aquisição de um veículo automóvel, com juros à taxa nominal de 10,49%, ao ano, acrescida de uma indemnização correspondente à taxa de juro ajustada, acrescida de 4%, a ser reembolsada em 72 prestações mensais e sucessivas, com vencimento, a primeira, em 10 de Setembro de 2004 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes, no montante mensal de 184,70 €.
Foi acordado que a falta de pagamento de uma das prestações implicava o vencimento das demais, mas não obstante, o 1.º réu não pagou a 36.ª e seg.s, vencida, a primeira, em 10 de Agosto de 2007, o que confere ao autor o recebimento das quantias peticionadas, por assim contratado.
Alega que a responsabilidade do ora 2.º réu, advém da sua qualidade de fiador do 1.º réu.

Contestando, o 1.º réu, aceitou a existência do contrato celebrado entre si e o autor, mas alegou a excepção de não cumprimento do contrato, com o fundamento em que, na execução daquele contrato, o autor e a vendedora tratariam de toda a documentação necessária à formalização do negócio e inerente à transferência da propriedade sobre tal veículo, para o adquirente, o que não se veio a verificar, já que não lhe foi entregue o livrete nem o título de registo de propriedade, do que alertou a vendedora, que não resolveu a situação, alegando que o autor lhos não tinha enviado, tendo vindo, posteriormente, a apurar que a propriedade do veículo que adquiriu se encontrava registada a favor de uma terceira entidade bancária e cedido em regime de locação financeira a uma outra pessoa, em função do que deixou de pagar as prestações acordadas, por não poder utilizar o veículo, pugnando pela improcedência da acção.
Deduziu pedido reconvencional contra o autor pedindo a condenação deste a pagar-lhe as quantias correspondentes ao que lhe havia pago e requereu a intervenção provocada da vendedora, o que tudo foi liminarmente indeferido, cf. despacho de fl.s 58, já transitado em julgado.

Respondendo, no início da audiência, o autor, alegou que se limitou a enviar à vendedora, com a qual não tem qualquer contrato de exclusividade, os impressos para a formalização do negócio, depois de acordados os respectivos termos, tendo, ainda, exigido, que fosse estabelecida a seu favor a reserva de propriedade e não obstante figurar na declaração de venda como vendedor, o certo é que nunca o adquire nem o vende, limitando-se a sua acção a financiar a aquisição, por parte do comprador.
Mais alega que não procedeu ao registo da aquisição a favor do ora 1.º réu, porque a vendedora, não obstante lhe ter enviado o título de propriedade e o livrete do veículo, nunca lhe enviou a rescisão do contrato de locação financeira que se encontrava registada sobre o dito veículo, o que era imprescindível para a feitura do registo de reserva de propriedade a seu favor e da aquisição a favor do comprador, do que lhe deu conhecimento e face ao que conclui que a não realização dos aludidos registos não lhe pode ser imputada.
Mais alega que a acção sempre teria de proceder porque a obrigação de entregar os documentos do veículo não constitui prestação correspectiva ou recíproca da obrigação do réu de lhe pagar as prestações para reembolso do crédito que lhe concedeu, o que somado ao facto, já referido, de não ter contrato de exclusividade com a vendedora, implica que não se verificam os pressupostos para operar a pretendida excepção de não cumprimento do contrato, por parte do 1.º réu.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, com observância do legal formalismo, tendo-se procedido à gravação dos depoimentos nela prestados.
Após o que foi proferida a sentença de fl.s 130 a 149, na qual se procedeu ao saneamento dos autos, se fixou a matéria de facto dada como provada e respectiva motivação, se aplicou o direito e se decidiu pela improcedência da presente acção, com a consequente absolvição dos réus do pedido, ficando as custas a cargo do autor.

Inconformado com tal decisão, interpôs recurso o autor, recurso, esse, admitido como de apelação e com efeito devolutivo (cf. despacho de fl.s 105), concluindo a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
1. O contrato dos autos foi incumprido pelo 1.º réu ora recorrido nos autos. Porque incumpriu o contrato devia e - deve - o mesmo ser condenado no pedido formulado na acção.
2. Contrariamente ao que se entendeu na sentença recorrida, a pretensa falta de recebimento dos documentos do veículo, não constitui nem poderia constituir fundamento para o não cumprimento – excepção de não cumprimento – pelo 1.º réu, ora recorrido, do contrato de mútuo que celebrou com o autor, ora recorrente.
3. É que a obrigação de entregar o veículo automóvel dos autos em condições e com a documentação necessária para a realização dos respectivos registos, não constitui prestação correspectiva, correlativa ou recíproca da obrigação do 1.º réu, ora recorrido, em pagar ao autor, ora recorrente, as prestações acordadas no contrato de mútuo do autos.
4. A obrigação do 1.º réu de pagar ao autor as prestações em débito constitui prestação correspectiva ou recíproca da obrigação do autor lhe conceder financiamento, prestação, essa, que o autor cumpriu inteiramente.
5. O autor não incumpriu pois com as suas obrigações, pelo contrário, cumpriu inteiramente com aquilo a que se obrigou com o 1.º réu, ou seja, emprestou-lhe a dita quantia de 9.544,20 € com vista à aquisição por ele do veículo identificado no contrato dos autos, ao contrário do que se pretende.
6. Não se verificam pois os pressupostos da excepção de não cumprimento relativamente às prestações do contrato de mútuo dos autos. O recorrente nada vendeu ao recorrido. Concedeu-lhe um empréstimo.
7. A sentença recorrida violou o disposto no artigo 428.º CC já que a excepção invocada pelo recorrido não é correspectiva ou correlativa do contrato de mútuo dos autos.
8. Ao contrário do que se pretende na sentença recorrida a constituição da reserva de propriedade foi solicitada pelo autor a título de mera garantia e acordada entre o fornecedor do veículo dos autos e o 1.º réu, o qual assinou o documento necessário à sua constituição.
9. A não indicação no contrato de crédito que tenha por objecto financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações do acordo de reserva de propriedade gera quando muito a inexigibilidade da dita reserva de propriedade.
10.º. Deve, consequentemente, julgar-se procedente o recurso e substituir-se a sentença recorrida por acórdão que julgue a acção procedente e provada, desta forma se fazendo correcta interpretação da prova produzida e da matéria de facto que se deve considerar provada nos autos e, assim, se fazendo
Justiça.

Contra-alegando, o recorrido, pugna pela manutenção da decisão em análise, apoiando-se nos fundamentos na mesma invocados.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.
Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:
A) Saber se o réu pode, ou não, socorrer-se da excepção de não cumprimento do contrato e;
B) Eficácia da cláusula de reserva de propriedade estabelecida a favor do autor.

São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:

1. No decurso do mês de Julho de 2004, o réuB... contactou a sociedade comercial “D... ”, com sede em X...Oliveira do Hospital, no sentido de proceder à aquisição de um automóvel ligeiro.
2. Em todos os contactos havidos com a dita sociedade o réuB... contactou com o gerente da mesma, G....
3. Este apresentou-lhe um veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca RENAULT, modelo CLIO 1.2, 16V, série TECHROA, com a matrícula 00-00-RX.
4. A propriedade do veículo está registada na C.R. de Automóveis, desde 05/03/2003 e até ao presente, a favor da sociedade “E... ”, sendo objecto de locação financeira da qual é locatário F... .
5. O réu B... ficou interessado na aquisição do veículo e acordou o preço com o referido G... .
6. Dado que o réu B... não dispunha do montante necessário para a compra, o referido G... – em representação da sociedade de que era gerente –propôs ao réu B... a obtenção de financiamento junto da autora.
7. Informou-o de que todos os contactos e diligências com a autora seriam efectuados pela sociedade do dito G....
8. Assim, sem intervenção do réu B..., foi apresentada ao réuB... a proposta de crédito já integralmente preenchida que este se limitou a assinar (fls.81).
9. Foi a sociedade “ D..., L.da” que remeteu à autora toda a documentação para a aprovação do crédito, nomeadamente, a proposta de financiamento, os documentos de suporte de tal proposta, bem assim, como os documentos relativos ao veículo e à respectiva titularidade.
10. O réu B... não viu quaisquer documentos referentes ao veículo ou à titularidade do mesmo.
11. O réu B... recebeu a comunicação de que o financiamento havia sido aprovado, e que já estavam reunidos os documentos necessários para a formalização do negócio.
12. Porém, a autora mais solicitou ao réu B... que, a título de garantia sobre o empréstimo a conceder, fosse constituída sobre o veículo a seu favor uma reserva de propriedade, ao que o réu B... acedeu.
13. Assim, em 27/07/2007, os réus deslocaram-se às instalações da dita sociedade e assinaram a “declaração de venda” do veículo (fls.105 e 106) – na qual o réu B... figura como comprador e a sociedade autora como vendedora, reservando para si a propriedade do veículo até ao pagamento da
quantia de € 13.298,40 – bem assim como os documentos de fls.10 e 11 (contrato de mútuo com fiança), de fls.12 (autorização de débito), e de fls.13 (termo de fiança); todos cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
15. Tendo-lhes sido dito pelo referido G... que o original dos documentos relativos ao veículo – livrete e título de propriedade – lhe seriam remetidos assim que a sociedade autora procedesse à respectiva transferência de titularidade, de que se encarregaria.
16. Nos termos do contrato celebrado entre a autora e o réu B..., que denominaram “CONTRATO DE MÚTUO COM FIANÇA”, este iria pagar à autora a quantia de € 13.298,40 (valor do veículo (€ 9.950,00) mais juros e outras despesas e encargos) em 72 prestações mensais e sucessivas, com vencimento, a primeira, em 10 de Setembro de 2004 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes, no montante mensal de € 184,70.
16. De harmonia com o acordado entre as partes, a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga conforme ordem irrevogável logo dada pelo réu B... para o seu banco – mediante transferências bancárias a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações, para conta bancária logo indicada pela autora.
17. Conforme também expressamente acordado, a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o
vencimento imediato de todas as demais prestações.
18. Mais foi acordado entre a autora o referido réu B... que em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada – 10,49% – acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 14,49%.
19. Nem o referido réu B..., nem qualquer outra pessoa, procedeu ao pagamento da 36.ª prestação e seguintes, vencida a primeira em 10 de Agosto de 2007.
20. O réu C... que assumiu, por termo de fiança também datado de 27 de Julho de 2004, perante a autora a responsabilidade de fiador solidário, ou seja, fiador e principal pagador por todas as obrigações assumidas no contrato referidopelo réu B... para com a autora.
21. A partir de 24/07/2004, o réu B... passou a utilizar o veículo como se de coisa sua se tratasse, e, em contrapartida, passou a proceder à liquidação das prestações mensais acordadas com a autora, o que fez até ao mês de Julho de 2007.
22. Todavia, o tempo foi passando sem que a referida sociedade "D...” lhe remetesse os originais dos documentos relativos ao veículo, e nomeadamente o título de propriedade, onde constasse o veículo devidamente inscrito em seu nome. De tal forma que
23. Por diversas vezes, no decurso dos anos de 2004 e 2005, o réu B... contactou os serviços da referida sociedade a solicitar a entrega dos documentos.
24. Nunca a dita sociedade entregou os documentos do veículo ao réu B..., desculpando-se sempre com o facto de, alegadamente, a sociedade autora não lhos ter ainda remetido após a aprovação do crédito.
25. Atenta a não resolução do problema, o réu B... remeteu, em 16/05/2006, à referida sociedade a carta de fls.37.
26. E em 26/06/2006, perante a falta de resposta, o réu B... remeteu nova carta à referida sociedade (fls.38).
27. Perante a não recepção dos documentos do veículo e por não reunir as condições legais necessárias à circulação com o mesmo, o réu B... viu-se obrigado a imobilizar o veículo em causa, não o usando – por não lhe ser possível – desde finais de Maio de 2006.
28. Perante a manutenção da situação descrita, em 19/07/2007, o réu B... ordenou à “H... que procedesse ao cancelamento da autorização de débito relativo à autora, e não mais procedeu ao pagamento de qualquer prestação relativa ao contrato de mútuo celebrado com a autora.
29. A sociedade autora, apesar de ter recebido o título de registo de propriedade e o livrete do veículo assim como o requerimento-declaração assinado pelo réu B..., não recebeu da sociedade D... a rescisão do contrato de locação financeira que se encontrava registada em nome da sociedade "I....” nem o requerimento-declaração subscrito pela dita “ I....” na qualidade de vendedora do veículo e o requerimento Modelo 6 igualmente subscrito pela dita locadora.
30. Foram diversos os contactos estabelecidos pela autora, quer através da delegação que possui em Coimbra, quer através do seu departamento de transferências, com a dita “D...” para que lhe fossem enviados os documentos em falta sem os quais não era possível, como não foi, proceder à feitura dos registos.
31. Todos os contactos se revelaram, porém, infrutíferos.
Estes os factos provados. Nenhum outro se provou.

A. Saber se o réu pode, ou não, socorrer-se da excepção de não cumprimento do contrato, como forma de obstar à procedência da acção.
Como resulta demonstrado nos autos, o autor fundamenta a sua pretensão no incumprimento por parte do 1.º réu, relativamente ao contrato de mútuo que ambos celebraram, alegando este que as prestações, referentes a este contrato de mútuo, só não foram pagas porque o autor, contrariamente ao acordado, não lhe forneceu o livrete nem o título de registo de propriedade sobre o veículo adquirido, do que, o 1.º réu, deu conhecimento à vendedora, pelo que, considera, ter o direito de não pagar as referidas prestações dado o incumprimento de uma das obrigações assumidas pelo autor.
Na sentença recorrida, considerou-se que foram celebrados dois contratos: um de compra e venda e outro de crédito ou mútuo, interdependentes e correspectivos um do outro, ficando a validade de um dependente da validade e vigência do outro, em função do que se decidiu assistir aos réus a excepção de não cumprimento do contrato, dada a existência de incumprimento por parte do autor, ao não fornecer ao réu o título de registo de propriedade.
A mencionada questão da trilateralidade do contrato celebrado entre as partes, classificando-o como uma união de um contrato de um compra e venda e de um contrato de mútuo, interdependentes e correspectivos entre si, com vista à aquisição, financiada, da viatura automóvel identificada nos autos, é de aceitar, tal como fundamentado na decisão recorrida e, entre outros, é a posição defendida por A. Varela, in Das Obrigações Em Geral, Vol. I, pág.s 282 e 283 e Fernando de Gravato Morais, in União de Contratos de Crédito e Venda para Consumo, pág. 400).

Posto isto, importa, pois, averiguar da possibilidade de o réu se recusar a cumprir o contrato com base na aludida excepção de não cumprimento do contrato, o mesmo é dizer, se ao réu assiste, ou não, o direito de suspender o pagamento das prestações resultantes do contrato de mútuo celebrado com o autor, pelo facto de este não ter providenciado pela entrega do título de registo de propriedade referente ao veículo transaccionado nas condições acima já descritas.
O recorrente entende que tal possibilidade lhe está vedada, porque tal excepção não é correspectiva do contrato de mútuo, mas sim do de compra e venda, a que é alheio.
Já vimos que assim não é (tema a que, aliás, voltaremos aquando da análise da próxima questão), dada a supra referida trilateralidade dos contratos como o sub judice.

Como resulta do disposto no artigo 428.º, n.º 1, CC:
“Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”
Como o referem P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição Revista E Actualizada, Coimbra Editora, 1982, a pág.s 380 e 381, tal excepção pode ter lugar nos contratos com prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra, sendo invocável nos contratos bilaterais ou sinalagmáticos, não bastando que o contrato seja obrigatório, ou crie obrigações para ambas as partes, exigindo-se que as obrigações sejam correspectivas ou correlativas, que uma seja o sinalagma da outra, visando assegurar o equilíbrio em que assenta o esquema do contrato bilateral.
Por outro lado, atento a que se trata de um contrato de crédito ao consumo para aquisição de uma viatura automóvel, importa ter presente o regime instituído pelo DL 359/91, de 21/9, designadamente o disposto no seu artigo 12.º.
Assim, verificadas que sejam as condições ali previstas e dada a relação de trilateralidade consagrada no n.º 2 do artigo 12.º ora referido, quanto aos efeitos do incumprimento contratual do vendedor, é conferida ao consumidor a faculdade de accionar o financiador, ou de, quando demandado, alegar a excepção de incumprimento, fazendo-o repercutir no contrato de financiamento – neste sentido, por último, o Acórdão do STJ, de 24/04/2007, Processo 07A685, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj; desta Relação de 22/01/2008, Processo 2695/06, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrc e da Relação do Porto, de 17/03/2005, Processo 0530505 e de 15/10/2007, Processo 0723560, ambos disponíveis in http://www.dsgi.pt/trp, e nos quais, principalmente no desta Relação, se citam outros, em idêntico sentido.
Consequentemente, importa analisar o teor do artigo12.º do referido DL 359/91, a fim de concluir pela sua aplicabilidade ao caso aqui em apreço.
Dispõe-se neste que:
“1 – Se o crédito for concedido para financiar o pagamento de um bem vendido por terceiro, a validade e eficácia do contrato de compra e venda depende da validade e eficácia do contrato de crédito, sempre que exista qualquer tipo de colaboração entre o credor e o vendedor na preparação ou na conclusão do contrato de crédito.
2 – O consumidor pode demandar o credor em caso de incumprimento ou de cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte do vendedor desde que, não tendo obtido do vendedor a satisfação do seu direito, se verifiquem cumulativamente as seguintes condições:
a) Existir entre o credor e o vendedor um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição de bens fornecidos por este último;
b) Ter o consumidor obtido o crédito no âmbito do acordo referido na alínea anterior.

Ora, no caso dos autos não se verifica a existência do acordo prévio de exclusividade entre o credor e o vendedor, em virtude do qual este se obrigue a direccionar os seus clientes para aquele com vista à concessão de crédito para o financiamento dos bens que vende a terceiros, pelo que, nos termos previstos naquele preceito, o contrato de mútuo não poderia ser afectado pelas vicissitudes do contrato de compra e venda, designadamente, pela falta de entrega do título de registo de propriedade, com a consequente impossibilidade de lhe ser oposta, com tal fundamento, a excepção de não cumprimento.
Como se refere no Acórdão do STJ, acima citado, se não se verificarem os dois requisitos enumerados no artigo 12.º, n.º 2 do DL 359/91 “… o credor não responde pelo incumprimento do vendedor: entendeu o legislador que só em situações com estes contornos a conexão entre os dois contratos é suficientemente apertada para que se possa justificar, mediante a extensão da responsabilidade do vendedor ao financiador, terceiro em relação ao contrato de compra e venda e em nome da efectiva protecção ao consumidor, uma tão clara derrogação do princípio da relatividade dos contratos”, aí citando, no mesmo sentido, Meneses Leitão, in Direito das Obrigações, I, 200 e Gravato de Morais, União de Contratos de Crédito e de Venda para Consumo, 95, 253 e 415.
Pelo que, com base neste fundamento, improcederia a presente acção, por não se verificarem os requisitos previstos no n.º 2 do artigo 12.º do DL 359/91.

No entanto, cf. itens 4, 9, 10 e 12 a 15 dos factos provados, está demonstrado que a propriedade sobre o veículo em causa estava registada a favor do "E...”, sendo objecto de locação financeira da qual é locatário F....
Mais se provou que a vendedora remeteu ao ora autor toda a documentação para aprovação do crédito, bem como os documentos relativos ao veículo e respectiva titularidade, sendo que o ora réu não os viu.
De igual modo, se demonstrou que o autor exigiu que a seu favor fosse constituída reserva de propriedade, o que o réu aceitou.
Concluído o negócio, foi o veículo entregue ao réu, com a promessa de que os originais dos documentos lhe seriam remetidos assim que o autor procedesse à transferência da propriedade, de que se encarregaria.
O que não veio a acontecer em virtude de a vendedora não ter remetido à autora o documento comprovativo da rescisão do registo de propriedade vigente sobre o dito veículo.
Ou seja, daqui resulta que o autor sabia que sobre o veículo impendia o registo de propriedade a favor de uma outra entidade, que impunha anular, a fim de a mesma ser inscrita a favor do comprador, com a aludida reserva de propriedade, desconhecendo o réu da existência daquela propriedade e locação financeira, tendo este contratado, como contratou, no pressuposto de que o autor trataria da transferência da propriedade.
Acordo este que outorgaram no domínio da liberdade contratual e que, como tal, deve ser cumprido, cf. artigos 405.º e 406.º, n.º 1, ambos do Código Civil.
Ora, assim sendo, já ao 1.º réu assiste o direito de suspender o pagamento das prestações correspondentes ao contrato de mútuo, enquanto não lhe fosse, como não foi, entregue o título de registo de propriedade (cf. itens 22 a 27 dos factos provados).
Conforme o disposto no artigo 882, n.º 2, também, do Código Civil, a obrigação de entrega abrange, também, salvo estipulação em contrário (inexistente no caso dos autos) os documentos relativos à coisa ou direito, a qual, em princípio, incumbe ao vendedor.
Tal normativo “justifica-se pela ideia básica de colocar o comprador em condições de fruir plenamente o seu direito”.- P. Lima e A. Varela, in Código Civil, anotado, vol. II, 2.a ed.ão Revista e Actualizada, pág. 157, neles se integrando o título de propriedade e registo, sem os quais a viatura não pode circular - cf. artigos 5, n.º 1, al. a e 2 e 9, do DL 54/75, de 12/02, sob pena de, em caso de detecção, ser apreendida.
Não obstante o cumprimento defeituoso tanto poder derivar da violação de deveres principais como de deveres acessórios de conduta - cf. Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso Em Especial Na Compra E Venda E Na Empreitada, pág.s 519 e 520, o facto é que a excepção de inadimplência ou de contrato incumprido só se verifica em relação às obrigações essenciais ou fundamentais, assim não acontecendo em relação às obrigações secundárias ou obrigações acessórias - neste sentido, podem ver-se os Acórdãos da Relação do Porto, de 26/09/96 e de 11/11/99, respectivamente, in CJ, ano XXI, tomo 4, pág. 201 e seg.s e ano XXIV, tomo 5, pág. 187 e seg.s, aí se citando numerosa doutrina e jurisprudência em idêntico sentido, designadamente A. Varela, in RLJ, ano 128, bem, como mais recentemente, os Acórdãos do STJ, de 23/3/06 e de 12/10/06, Processo 06B722 e 06B2620, respectivamente, ambos disponíveis in http://www.dgsi.pt/jstj, sendo que a obrigação de entrega dos documentos tendentes à efectivação do registo constitui um dever acessório do vendedor.
Como acima referido, o incumprimento da obrigação de entregar o título de registo de propriedade do veículo, impossibilita o 1.º réu de fruir plenamente o veículo adquirido e não obstante a entrega do veículo, o facto é que persiste em falta a entrega dos respectivos documentos. Verificou-se a observância da obrigação principal mas persiste o incumprimento em relação aos citados documentos (isto por referência ao contrato de compra e venda).
Tanto mais que tratando-se de um veículo automóvel, o registo é obrigatório e a sua circulação está dependente desse registo, tal como decorre do disposto no artigo 5.º, n.º 1, do DL 54/75, de 12/2, pelo que o vendedor só cumpre pontualmente o contrato quando emite a declaração de venda necessária à aquisição no registo da aquisição automóvel a favor do comprador, tal como decorre do disposto no artigo 25, n.º 1, do DL 55/75, de 12/2.

Mas, se em condições normais, a responsabilidade pela não entrega do título de registo de propriedade só poderia ser assacada ao vendedor e não ao financiador, no caso em apreço, dado que se trata de dois contratos: mútuo e compra e venda, interdependentes entre si, por força do qual o autor financiou a aquisição de um bem transaccionado pelo vendedor e porque se acordou que a obrigação de legalização de todos os documentos inerentes à transferência da propriedade de tal veículo para o 1.º réu incumbia ao autor, já a este pode ser assacada a responsabilização pelo incumprimento de tal cláusula contratual.
Se é certo que, nos termos expostos, legalmente, a obrigação da obtenção e entrega dos documentos respeitantes ao veículo onera o devedor, no caso em apreço, por via do expressamente contratado pelas partes, tal obrigação foi transferida para a esfera jurídica do autor, financiador, que a incumpriu, donde se tem de concluir que ao réu é conferida a possibilidade de invocar a excepção de não cumprimento para suspender o pagamento das prestações relativas ao contrato de mútuo que celebrou com o ora recorrente, até lhe ser entregue o documento em falta – cf. artigos 428.º e 798.º e 799.º, n.º 1, todos do Código Civil.
Em consequência do que, tem o presente recurso de improceder.

B. Eficácia da cláusula de reserva de propriedade estabelecida a favor do autor.
Defende o autor, ora recorrente, que a constituição da reserva de propriedade a seu favor apenas constitui uma mera garantia do seu crédito, obtida com o acordo do réu, cuja referência no clausulado do contrato é exigida pelo disposto no artigo 6.º, n.º 3, al. f) do DL 359/91, de 21/9, pelo que nunca poderia ser considerada como nula mas apenas, quando muito, como não exigível.
Na sentença recorrida considerou-se que a mesma é nula porque é estabelecida a favor de quem não é seu dono, mas mero financiador da coisa adquirida.

A questão da validade/invalidade da cláusula de reserva de propriedade a favor dos financiadores de crédito ao consumo, começou a surgir com a publicação do DL 54/75, de 12/12, que veio regulamentar as providências de apreensão de veículos automóveis, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL 178-A/2005, de 28/10 e vicissitudes posteriores.
Como tem vindo a ser sublinhado, este diploma legal surgiu no nosso ordenamento jurídico logo após o 25 de Abril de 1974 e procurou dar uma resposta ao aumento da procura da aquisição de viaturas automóveis, por parte de uma grande camada da população que, até aí, por razões económicas, não podia aceder a tal bem. Como que se procurou “democratizar” a possibilidade de aquisição de viaturas automóveis, através do recurso à venda a prestações, mediante a constituição de reserva de propriedade a favor do vendedor, de molde a, de uma forma mais célere e menos dispendiosa, ficarem salvaguardados os direitos destes, no caso de não pagamento das prestações devidas e atenta a elevada desvalorização a que estão sujeitos os automóveis, com o decurso do tempo e, também, como forma de evitar que as viaturas continuassem no domínio do comprador relapso, durante muito mais tempo, dado que tal situação propiciaria um ainda maior grau de potencial mau uso da viatura, com a inerente desvalorização acelerada.
Assim, mediante, a demonstração do incumprimento de crédito hipotecário ou das obrigações que originaram a reserva de propriedade, concedeu-se ao titular dos respectivos registos a possibilidade de requerer em juízo a apreensão do veículo e dos seus documentos, nos termos ali previstos.
Em conformidade com o estabelecido no artigo 15.º, n.º 1 do DL citado:
“Vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e do certificado de matrícula”.
E, de acordo com o seu artigo 16.º, n.º 1:
“Provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo”.
Preceituando o seu artigo 18.º, n.º 1 que:
“Dentro de quinze dias a contar da data da apreensão, o credor deve promover a venda do veículo apreendido, pelo processo de execução ou de venda de penhor, regulado na lei de processo civil, conforme haja ou não lugar a concurso de credores; dentro do mesmo prazo, o titular do registo de reserva de propriedade deve propor acção de resolução do contrato de alienação”.

Face ao teor dos preceitos ora transcritos, dúvidas inexistem de que o mesmo foi pensado para regular as relações entre o vendedor de automóveis e o respectivo comprador, uma vez que se reporta às situações de não pagamento de crédito hipotecário ou de incumprimento das obrigações que originaram a reserva de propriedade, desde que verificados os requisitos de que depende a resolução do contrato de compra e venda, atento a que, à época, o esquema tradicional de compra e venda de automóveis, apenas envolvia as pessoas do vendedor e do comprador.
Com o aumento do consumo, potenciado e explorado de forma constante, aliciante e, por vezes, agressiva, por parte de quem pretende vender os mais variados produtos, designadamente automóveis, passou-se da tradicional venda a prestações para vendas financiadas, através de crédito ao consumo, com vista a facilitar a aquisição de bens ou serviços, por entidades financeiras, cujo escopo é o de conceder crédito ao consumo, ligadas ou não ao vendedor.
E o incremento de tais actividades foi de tal ordem que o legislador, através do DL 339/91, de 21/9, sentiu necessidade de regular o que apelida (cf. preâmbulo deste DL) de “… significativo desenvolvimento do fenómeno do crédito ao consumo, a que correspondem um crescimento notório da oferta e a adopção de novas formas de crédito.”.
Ou seja, o aparecimento de mecanismos de financiamento ao consumo, através de novas formas de crédito, alterou o relacionamento comercial entre o vendedor e o comprador de automóveis, que passou de ser bipolar a tripolar, por envolver estes e o financiador da aquisição de tais bens, de forma a que o vendedor deixou de passar a ter qualquer crédito sobre o comprador a prestações (dado que recebe o preço do financiador), ficando este a ser o titular dos direitos creditórios que anteriormente eram da titularidade do vendedor.
Daí, a que o financiador se passa-se a comportar (em termos contratuais) como o anterior vendedor, foi um pequeno passo.
Isto é, o financiador, com vista à salvaguarda, por meios mais expeditos e menos onerosos, dos seus direitos, passou a contratar em termos semelhantes aqueles em que anteriormente o fazia o vendedor, designadamente, passou a exigir que a seu favor fosse constituída a reserva de propriedade, como forma de garantia da boa execução do contrato.

É o que se verifica no caso em apreço, cf. itens 12 e 13 dos factos provados.
Do contrato outorgado figura como vendedora “D...”, inexistindo qualquer ligação entre esta e o ora requerente, na qualidade de financiador da aquisição do automóvel já acima identificado.
A mesma não chegou a ser registada, como o não foi a propriedade do veículo nele identificado, pelas razões já acima aludidas.
Tudo isto foi feito no seguimento da aludida prática de o vendedor ceder à entidade financiadora a aquisição da sua posição contratual, em termos de possibilitar que a reserva de propriedade seja constituída a favor desta.

O problema que se coloca é o de saber da eficácia ou relevância desta cessão da posição contratual, uma vez que, como acima referido, o DL 54/75, foi pensado apenas para regular a relação entre o vendedor e o comprador, até porque a cláusula de reserva de propriedade, nos termos do disposto no artigo 409.º, n.º 1 do CC, tem sido entendida como condição suspensiva dos contratos de alienação, no sentido do que apenas com o pagamento integral a propriedade do bem transaccionado passa para a titularidade plena do comprador e sem esquecer que a entrega definitiva do mesmo pressupõe a resolução do contrato de compra e venda a prestações com reserva de propriedade, em conformidade com o disposto nos artigos 886.º, 934.º e 434.º, todos do CC – neste sentido, veja-se P. de Lima e A. Varela, CC, Anotado, Vol. I, 3.ª Edição Revista E Actualizada, Coimbra Editora, 1982, a pág. 357 e Luís Lima Pinheiro, A Cláusula de Reserva de Propriedade, Coimbra, 1988, pág.s 62 e 63.
Questão esta que não tem vindo a ser decidida de forma unânime pela jurisprudência (do que se pode ver uma resenha exaustiva no Acórdão da Relação do Porto, de 15/01/2007, Processo 0651966, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrp), optando uns por limitar a validade da cláusula de reserva de propriedade apenas aos casos em que a mesma é estabelecida a favor do vendedor e outros estendendo a possibilidade de recurso à providência aqui requerida à entidade financiadora que resolveu o contrato de mútuo que celebrou com o comprador.
Resumidamente, a fundamentação para uma e outra de tais teses é a de que, respectivamente, no DL 54/75, apenas se prevê a possibilidade de recurso à providência de apreensão do veículo automóvel, no caso de alienação, beneficiando o vendedor de crédito hipotecário ou de reserva de propriedade; ao passo que, para os defensores da segunda, dada a alteração verificada no comportamento dos agentes comerciais, a que o direito deve dar resposta, importa fazer uma interpretação actualista do artigo 18.º, n.º 1 do DL 54/75, de forma a nele incluir os casos de resolução do contrato de mútuo celebrado entre a entidade financiadora e o comprador, sob pena de aquela ficar prejudicada na defesa dos seus direitos e expectativas, por lhe ser vedada a possibilidade de recorrer ao processo, célere, expedito e menos dispendioso, previsto no DL 54/75.

Os argumentos em abono de uma e outra tese já se encontram esmiuçados e objecto de profunda análise pelo que, agora, apenas se trata de uma questão de opção entre uma delas.
A segunda das teses ora enunciadas encontra-se mais difundida no Tribunal da Relação de Lisboa, não obstante aí, igualmente, se encontrem inúmeros Arestos que propugnam pela primeira das teses em confronto (veja-se o Acórdão da Relação do Porto acima referido).
Por nós, e salvo o devido respeito por opinião em contrário, entendemos que por força das especificidades da providência em causa, a mesma só é possível, desde que o requerente seja o vendedor de um veículo automóvel a prestações, com reserva de propriedade registada a seu favor, estando o recurso à mesma vedada à entidade financiadora, dado que a apreensão do veículo automóvel, nos termos de tal DL 54/75, constitui uma providência que, no que concerne ao contrato de compra e venda com reserva de propriedade, visa antecipar o efeito da resolução do contrato de compra e venda, sendo dependente e instrumental da competente acção de resolução do contrato de alienação (no que não cabe o mútuo), para além de que uma interpretação, por mais actualista que seja, tem de partir sempre do texto da lei e sem esquecer a sua compatibilidade ou incompatibilidade com o sistema jurídico unitariamente considerado.
Neste sentido, entre outros e por último, os Acórdãos do STJ, de 12 de Maio de 2005, in CJ, STJ, ano XIII, tomo 2, pág. 94 e seg.s (com voto de vencido do Ex.mo Conselheiro Salvador da Costa), o de 02/10/2007, Processo 07A2680 e o de 10/07/2008, Processo 08B1480, disponíveis in http://www.dgsi.pt/jstj; o do Tribunal da Relação do Porto, já acima referido e os da Relação de Lisboa, de 16/12/2003, Processo 7023/2003-7, de 22/05/2007, Processo 4139/2007-7 (com voto de vencido) e de 14/12/2007 (este, também, com um voto de vencido), Processo 8993/2007-7, todos disponíveis in http://www.dgsi.pt/jtrl.
Isto porque, na situação dos autos, existem dois contratos: um de compra e venda, em que intervieram o vendedor e o comprador, e um de mútuo, celebrado entre a entidade financiadora e o comprador.
Ora, para além da questão da validade da cláusula de reserva de propriedade estabelecida a favor da entidade financiadora (no sentido da sua nulidade se pronunciaram Gravato Morais, União de contratos de crédito e de venda para o consumo, Almedina, 2004, pág. 307, nota 572 e in Cadernos de Direito Privado, n.º 6, Abril- Junho de 2004, pág.s 49 – 53 e Paulo Duarte, in Contratos de concessão de crédito ao consumidor: em particular as relações trilaterais, resultantes da intervenção de um terceiro financiador, dissertação de mestrado, Coimbra 2000, pág. 193), não se pode olvidar que, como acima já referido, a reserva de propriedade se encontra prevista para os contratos de alienação, funcionando como condição suspensiva do efeito translativo da alienação, pelo que só se poderá estipular no âmbito de contratos de alienação e não de quaisquer outros.
Só faz sentido estipular uma cláusula de reserva de propriedade a favor de quem detém a propriedade sobre um certo e determinado bem, ficando suspensa a favor do respectivo beneficiário a transmissão do bem, o que só se pode verificar em relação ao alienante e não em relação ao mutuário e nem a tal obsta o disposto no artigo 6.º, n.º 3 do já citado DL 359/91, porquanto este se aplica aos casos em que o beneficiário de tal reserva é o próprio vendedor e não um terceiro, financiador.
Como se refere no Acórdão do STJ de 10/07/2008, acima citado, a cláusula de reserva de propriedade incluída num contrato de financiamento, a favor do respectivo financiador, é nula, porque legalmente impossível, porque só o alienante pode ser titular do direito que se pretende reservar.

Por outro lado, de acordo com o disposto no artigo 9.º CC, a interpretação da lei não deve cingir-se apenas à sua letra, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, mas sempre fazendo-o corresponder, ainda que minimamente, à letra da lei.
Ou seja, como refere Batista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1990, pág. 182, devem eliminar-se os sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.
Ora, como acima referido, ao tempo da elaboração do DL 54/75, apenas se teve em vista a relação vendedor – comprador, não sendo despiciendo, que aquando da recente alteração deste diploma (a que acima já se aludiu), tal matéria não foi alterada pelo legislador.
Por último, no que a tal matéria tange, não obstante se vedar à entidade financiadora o recurso à requerida providência de apreensão, nem por isso, a mesma fica impedida de fazer valer os seus direitos, podendo optar pela sub-rogação nos direitos do vendedor; constituir hipoteca sobre a viatura, locação financeira ou o recurso ao procedimento cautelar comum.

Alega, ainda, o recorrente que a validade de tal cláusula resulta sancionada pelo disposto no artigo 6.º, n.º 3, al. f) do DL 359/91, de acordo com o qual o contrato deve indicar o acordo sobre a reserva de propriedade.
Também tal argumento não convence uma vez que em tal DL se prevê a situação em que o crédito é concedido para financiar o pagamento de um bem alienado pelo próprio credor, caso em que o financiador é também o proprietário do bem alienado (v. g. artigo 2.º, n.º 1, al. a) deste DL) – cf. Acórdão do STJ de 10/07/2008, acima já citado.
Consequentemente, também no que a esta questão concerne improcede o presente recurso.

Nestes termos se decide:
Julgar improcedente a apelação deduzida, em função do que se mantém a decisão recorrida.