Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1883/04.0TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
OBRIGAÇÕES
EMPREITEIRO
DEFEITOS DA OBRA
ÓNUS DO DONO DA OBRA
DIREITOS DO DONO DA OBRA
Data do Acordão: 09/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 5º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1208º, 1209º, 1218º, 1220º E 1221º DO C. CIVIL.
Sumário: I – No contrato de empreitada a actividade do empreiteiro, traduzida na realização de uma obra como prestação de facto positiva (art. 1208 do CC), obriga este último a executar essa mesma obra em conformidade com o que haja sido convencionado, isto é, sem vícios que excluam ou reduzam o seu valor ou a sua aptidão para o uso ordinário previsto no contrato (art. 1209 CC).

II - O empreiteiro está obrigado a cumprir o contrato sem defeitos, sob pena de incorrer em responsabilidade civil contratual, reparando os danos causados ao dono da obra com o seu comportamento inadimplente, tendo aplicação neste domínio a regra do art. 799 nº1 do CC que faz presumir a culpa do devedor/empreiteiro.

III - Assim, para demandar o empreiteiro pelos defeitos, basta ao dono da obra alegar e provar a existência do defeito, mesmo sem ter que provar a sua causa, ficando aquele com o ónus de alegar e provar que o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua para afastar a responsabilidade.

IV - Sendo um dos interesses do empreiteiro a definição no mais curto espaço de tempo possível da sua responsabilidade pelos defeitos da obra, foi atendendo a este interesse que a lei fez recair sobre o dono da obra o ónus de verificar o estado da obra no momento da sua aceitação (art. 1218 nº1 CC) e, também, o da denúncia dos defeitos em prazos curtos após o seu conhecimento (art. 1220 nº1 CC).

V - Analisando o mecanismo legal de que dispõe o dono da obra após o empreiteiro a ter concluído e a ter disponibilizado para que possa verificar a sua boa execução, observamos que aquele tem o direito de a examinar (art. 1218 nº1 CC) e o ónus de comunicar o resultado dessa verificação sob pena de se ter a obra por aceite (nº 5 do mesmo artigo).

VI - Em face de defeitos supervenientemente verificados o dono da obra, por imposição legal, tem a obrigação de exigir ao empreiteiro a sua eliminação, se não puderem ser eliminados, o direito de exigir uma nova construção, e só no fim desse caminho a resolução do contrato ou a redução do preço (art. 1221 nº1 CC), isto sem exclusão do direito de indemnização (art. 1223).

Decisão Texto Integral:                         Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

Nos Juízos Cíveis do Tribunal Judicial de Leiria, J…, Ldª, com sede em …, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra União Desportiva de …, com sede em…, pedindo a condenação desta no pagamento de € 4.982,00 acrescida de juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento, bem como custas e procuradoria.

Para tanto alegou, em síntese, que no exercício da sua actividade de projecção, construção e decoração de espaços verdes efectuou para a ré os serviços no valor peticionado que a ré não pagou.

Citada, a ré contestou e deduziu pedido reconvencional alegando que os trabalhos contratados foram mal executados, para o que alertou a ré desde o seu início.

Assim, quanto ao arrelvamento, a relva não nasceu nas devidas condições, pois ficaram grandes clareiras no campo de futebol, o que se deveu à pouca quantidade de substrato orgânico utilizado e ao facto de não ter sido espalhado uniformemente. Por outro lado, o sistema de rega nunca funcionou em condições, tendo sofrido várias avarias no sistema de bombagem, rupturas dos canos e abatimentos de terras. Por força de tais factos, na época de 2002/2003 a relva existente estava completamente seca.

Mais alega que comunicou à autora os defeitos e avarias existentes, mas esta apesar de os ter reconhecido não procedeu à sua reparação, pelo que a ré recorreu a uma outra empresa que procedeu à ressementeira do campo e eliminou os defeitos e avarias no sistema de rega. E em virtude de tais factos, no início da época futebolística de 2003/2004, os treinos e os jogos de fim de semana tiveram que ser efectuados noutros campos de futebol, tendo a autora despendido com deslocações, alugueres de transportes e de campos de futebol, várias quantias, a que acrescem os incómodos sofridos em quantia estimada de € 15.000,00.

A autora apresentou a réplica negando que os trabalhos tivessem sido mal executados ou que a ré, tivesse alertado, por alguma forma a autora para esse facto e que o relvado foi inaugurado no dia 04.08.2002 com o jogo de futebol entre a equipa de futebol da ré e a União Desportiva de …, estando em perfeitas condições, sendo que o primeiro corte foi inclusivamente efectuado pela autora em 14 de Maio de 2002 e o segundo dias antes do referido jogo. Como tal, os problemas existentes no relvado apenas terão que ver com a falta de manutenção do relvado, e com a sobrecarga de inúmeros jogos e treinos no seu início, aos quais a autora é alheia.

O sistema de rega e grupo de bombagem fornecidos foram bem executados, tendo aliás a autora alertado a ré para o facto de o reservatório poder acumular areias, uma vez que a água utilizada provinha de um furo artesiano.

Proferido despacho saneador e fixados os factos assentes e os da Base Instrutória, realizou-se julgamento e foi proferida sentença na qual se julgou a acção procedente, condenando-se a ré a pagar à autora a quantia de € 4.982,00, acrescida de juros de mora (desde a data da citação, à taxa de 12% até 30.09.2004, à taxa de 9.01% desde 01.10.2004 até 31.12.2004, à taxa de 9,09% desde 01.01.2005 até 30.06.2005, à taxa de 9,05% desde 01.07.2005 até 31.12.2005 e à taxa de 9,25% desde 01.01.2006 até 30.06.2006, à taxa de 9,83% desde 01.07.2006 até 31.12.2006, à taxa de 10,58% desde 01.01.2007 até 30.06.2007, à taxa de 11,07% desde 01.07.2007 até 31.12.2007, à taxa de 11,2% desde 01.01.2008 até 30.06.2008, à taxa de 11,07% desde 01.07.2008 até 31.12.2008, à taxa de 9,50% desde 01.01.2009 até 30.06.2009, à taxa de 8% desde 01.07.2009 até 31.12.2009, à mesma taxa de 8% desde 01.01.2010 até 30.06.2010, à mesma taxa de 8% desde 01.01.2010 até 31.12.2010 e partir daqui, à respectiva taxa legal até efectivo e integral pagamento ( Portaria 262/99 de 12 de Abril, Aviso DGT 10097/04 de 30 de Outubro, Portaria 597/2005 de 19 de Julho e Aviso DGT 310/2005 de 14 de Janeiro, Aviso DGT 6923/2005 de 25 de Julho e Aviso DGT 240/2006 de 11 de Janeiro, e Aviso DGT 7706/2006 de 28 de Julho, Aviso DGT 191/2007 de 6 de Janeiro de 2007, Aviso DGT 13665/2007 de 30 de Julho de 2007, Aviso DGTF 2151/2008 de 28 de Janeiro de 2008, Aviso DGTF 19995/2008 de 2 de Julho de 2008, Aviso DGTF 1261/2009 de 14 de Janeiro, Aviso DGTF nº 12184/2009 de 10 de Julho, Despacho 597/2010 DGTF de 11 de Janeiro, Aviso DGTF nº 13746/2010 de 30 de Junho). E mais se julgou improcedente o pedido reconvencional.

Inconformada com esta decisão dela interpôs recurso a ré que nas conclusões, e em vez de concluir conforme determinado pelo art. 690 nº1 e 2 do CPC, reproduziu o teor das suas alegações.

Contudo, porque a aplicação do nº 4 do mesmo preceito, com o convite ao aperfeiçoamento, se traduziria apenas numa dilação temporal do processo e sem garantia de que esse convite fosse aceite e sem que, neste caso, por referência ao vício assinalado, o recurso pudesse deixado de ser conhecido, entendemos que para além de deixar registada a situação anómala de as conclusões reproduzirem o teor das alegações, se deve prosseguir no conhecimento do recurso.

Assim, a Apelante alegou/concluiu que: 

“…”

A recorrida contra alegou, sustentando o acerto da decisão Apelada.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

O tribunal de primeira instância deu como provada a seguinte matéria de facto:

… …

Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do CPCivil), nem criar decisões sobre matéria nova, a Apelação impugna parte da matéria de facto fixada pelo tribunal a quo (as respostas aos arts. 8 e 13 da base instrutória) e reclama diferente decisão de direito, com a condenação da autora no pedido reconvencional.

Da impugnação da matéria de facto

Apreciando o objecto do recurso, no que se refere à impugnação da matéria de facto, cumprirá enquadrar a natureza, finalidade e limites da apreciação dessa matéria pelo Tribunal de recurso.  

O Tribunal da Relação pode alterar a decisão sobre a matéria de facto se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690-A do CPC a decisão com base neles proferida.

Este último preceito citado refere no seu nº1 que o recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; quais os concretos meios probatórios constante do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, cabendo ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº2 do art. 522-C do CPC (vd. nº2).

Porque a recorrente indica quais os concretos pontos da matéria de facto que entende como incorrectamente julgados e, bem assim, os elementos de prova (depoimentos das testemunhas e documentos) que impunham diferente decisão, encontram-se preenchidos os pressupostos formais da impugnação sendo que os fundamentos de prova invocados para alteração da decisão facto remetem para os critérios de convicção do julgador na apreciação da prova produzida.

Quanto a esta convicção e ao modo de a apreender, o Tribunal da Relação tem a possibilidade de alterar o decidido em 1ª instância, reapreciando as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em conta o conteúdo das alegações do recorrente e do recorrido, para o que procederá, nos termos sobreditos, à audição dos depoimentos indicados pelas partes, excepto se o relator considerar necessária a sua transcrição, que será realizada por entidades externas, contratadas pelo tribunal (arts. 712º, nºs 1 a), 2ª parte, e 2 e 690º-A/5). E pode mesmo, para proferir a sua decisão, «oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados» (art. 712º/2, 2ª parte).

A extensão desta reapreciação, que o Tribunal da Relação realiza, coincide, em tese e na amplitude, com a da primeira instância, traduzindo-se na audição dos depoimentos, atendendo aos meios probatórios que existam nos autos destinados à demonstração desses concretos pontos, apreciando-os criticamente de forma a responder-lhes convictamente e em consciência, segundo critérios razoabilidade e segurança, e emitindo um juízo de concordância ou discordância com a matéria fixada e que foi impugnada, mantendo-a ou alterando-a.

Independentemente de um ponto de vista da exegese dos preceitos se poder questionar a natureza da impugnação e a sua finalidade, na perspectiva do modo como funciona a apreciação da impugnação, aquilo que se realiza é, sempre, um juízo de valoração sobre a prova, procedendo-se à sua apreciação e revelando-se o modo como esses concretos pontos, em face da prova, no escrutínio da segunda instância, deverão ser julgados.

É pacífico, para nós, que não é por referência às respostas dadas aos quesitos e à sua motivação, que consta do despacho fundamentador, sem audição dos depoimentos e sem consulta da demais prova que exista, que se pode decidir a matéria de facto impugnada, nem esta decisão dispensa a formação e formulação de uma convicção própria, ou se basta e tem por suficiente que tenha havido depoimentos sobre essa matéria, independentemente do seu conteúdo ou do modo como tenham sido valorados. E temos por evidente, também, que o resultado dessa actividade de apreciação é sempre a da formação de uma convicção, pois não se compreenderia sequer que um juiz (ainda que da Relação) fosse convocado para uma fase probatória, em que a lei lhe determina que reaprecie as provas, e não se lhe pedisse a formação de uma convicção própria e, mais ainda, que a formulasse.

Acontece, contudo, que a actividade de reapreciação, mesmo com a formação de uma convicção própria acaba sempre por constituir um veredicto sobre uma actividade anterior já que o que a lei determina é que a reapreciação a realizar pela Relação confirme ou altere a matéria anteriormente decidida. Isto é, o objecto da reapreciação, no caso que agora nos importa, é delimitado pela própria impugnação e destina-se, imediatamente, à emissão de um juízo sobre essa matéria de facto e, mediatamente, à declaração de manutenção ou de alteração dessa matéria anteriormente firmada.

A percepção das diferentes condições de apreciação da prova em 1ª e 2ª instância, bem como da advertência de que ao Tribunal d Relação reaprecia a prova para apreciar o sentido da decisão do tribunal a quo é sublinhada no ac. STJ de 19/3/ 2009 no proc. 08B1745, in dgsi.pt, onde se lê que “Vigoram, em ambos os casos, para os julgadores desses tribunais, as mesmas regras e os mesmos princípios, dos quais avulta o da livre apreciação da prova ou sistema da prova livre (...) consagrado no artigo 655º, n.º 1, do CPC.

Significa isto que a prova há-de ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, tudo se resolvendo, afinal, na formulação de juízos e raciocínios que, tendo subjacentes as ditas regras, conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão dos pontos de facto sob avaliação.”

Porém, tudo isto que acabamos de dizer, atendendo à circunstância sublinhada de a apreciação da matéria de facto impugnada ser sempre uma reapreciação de uma convicção anteriormente formada impõe que se tenha presente que o relacionamento desta instância com a prova testemunhal (a prova que o Apelante considera ter sido mal apreciada pela primeira instância em alguns aspectos) tem lugar de forma indirecta, através do acesso às gravações áudio realizadas na audiência de julgamento.

O carácter mediato do relacionamento deste Tribunal com esta prova assume particular relevância, dando sentido à asserção de que o controlo que ora se exerce se refere à detecção e correcção, sendo caso disso, “(…) de manifestos erros de julgamento e de falhas mais ou menos evidentes na apreciação da prova”[1], sendo certo - e seguimos aqui, desta feita, a argumentação constante do Acórdão do STJ de 10/05/2007[2] - que o legislador do Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro (que estruturou o 2º grau na apreciação da matéria de facto, com base no registo da prova produzida em audiência) “[…] afora pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento - preferiu acreditar, em regra, no juiz que faz a imediação da prova, por mais qualificado que possa parecer, pela natureza e a hierarquia das coisas, um juízo feito num tribunal superior”.

A valoração da prova testemunhal assenta no princípio da livre apreciação (artigo 396º do CC), expressando este a aceitação de uma margem de ponderação subjectiva do julgador, cuja essência reside em algo irrepetível num controlo mediato por terceiros, nas condições em que os subscritores deste Acórdão, enquanto juízes de uma instância de recurso, se encontram. Não existe, estamos seguros, fundamento prático ou legal, dentro da lógica própria de um acesso mediato aos factos (assente, tão-só, na audição de uma gravação sonora de depoimentos), para que o Tribunal de recurso substitua a “livre apreciação” do julgador imediato, pela sua (mediata) “livre apreciação”. E se o recorrente tem direito a que sobre a livre apreciação do julgador imediato da prova (tribunal a quo), seja exercido algum tipo de controlo, convocando o tribunal ad quem a declarar a sua convicção, este exercício de valoração da prova feito nesta instância e com a amplitude sublinhada anteriormente, não equivale, por óbvia impossibilidade, a um direito do recorrente a que sobre a causa incidam, sucessivamente, duas “livres apreciações” de igual natureza e condição. É que, a ideia de um recurso que assuma natureza substitutiva – e este não deixa de a assumir – e incida sobre a matéria de facto, não implica qualquer tipo de “substituição” de “livres apreciações”[3].

O julgamento dos factos - o julgamento dos factos assente no depoimento das testemunhas - não se repete na segunda instância, quando esta ouve as gravações, porque é irrepetível, não obstante ser controlável em alguns elementos. O que aqui se aprecia, porque, isso sim, é possível perceber e, consequentemente, pode ser controlado, é a racionalidade da fixação de determinados factos e não de outros. A substituição opera, pois, fora de um quadro valorativo em que a instância de recurso se limite a invocar, substituindo-a à da instância recorrida, a “sua” “livre apreciação” da prova testemunhal.

O controlo de uma “livre apreciação” através de uma convicção própria e autónoma afirmada pelo Tribunal da Relação como resposta à impugnação da matéria de facto, entende-se pois possível nos termos abordados por Jordi Ferrer Beltrán, quando refere que “livre valoração da prova é livre, só no sentido de não estar sujeita a normas jurídicas que predeterminem o resultado dessa valoração. Com efeito, a operação consistente em julgar o apoio empírico que um conjunto de elementos de julgamento aportam a determinada hipótese, está sujeita aos critérios gerais da lógica e da racionalidade”[4], querendo isto dizer que é no controlo do carácter lógico e racional da fixação dos factos por referência à prova produzida, que se exerce o poder da Relação de actuar sobre o julgamento desses factos, quando estão em causa asserções que assentem na prova testemunhal. Quando se trata, enfim, de controlar a valoração da prova testemunhal feita pelo tribunal de primeira instância.

Explicados os termos em que se realiza a apreciação da impugnação da matéria de facto, observamos que a Apelante defende que as respostas aos arts. 8 e 13 da BI deveriam ter tido diferente resposta.

Assim, cremos também que deverá ser mantida a resposta negativa ao artigo 13 da BI, improcedendo a impugnação da matéria de facto protestada pela Apelante.

… …

Quanto à decisão de direito

A apelante sustenta que ao ter sido dado como provada a existência de abatimento no terreno, que o sistema de rega avariou nos meses de Junho/Julho de 2003 e ao ter dado conhecimento dessa avaria à autora, não tinha de provar mais nada para obter ganho de causa.

Apreciando, e tendo presente que não se discute a qualificação como de empreitada, do contrato celebrado entre a Autora e a Ré tendo por objecto o trabalho referido no nº 2 dos factos provados referidos na sentença, observamos que a actividade do empreiteiro, traduzida na realização de uma obra como prestação de facto positiva (art. 1208 do CC) obriga este último a executar essa mesma obra em conformidade com o que haja sido convencionado, isto é, sem vícios que excluam ou reduzam o seu valor ou a sua aptidão para o uso ordinário previsto no contrato (art. 1209 CC).

Sabendo-se que os vícios referidos são “anomalias objectivas da obra, traduzindo-se em estrados patológicos desta, independentemente das características convencionadas” e que as desconformidades se revelam “em desvios ao projecto da obra, expressa ou tacitamente convencionado”[5], havendo neste caso defeito por realização de obra diferente da estipulada, o empreiteiro está obrigado a cumprir o contrato sem esses defeitos sob pena de incorrer em responsabilidade civil contratual, reparando os danos causados ao dono da obra com o seu comportamento inadimplente, tendo aplicação neste domínio a regra do art. 799 nº1 do CC que faz presumir a culpa do devedor/empreiteiro.

Assim, para demandar o empreiteiro pelos defeitos, basta ao dono da obra alegar e provar a existência do defeito, mesmo sem ter que provar a sua causa,[6] ficando aquele com o ónus de alegar e provar que o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua para afastar a responsabilidade.

E se um dos interesses do empreiteiro é a definição no mais curto espaço de tempo possível da sua responsabilidade pelos defeitos da obra, foi atendendo a este interesse que a lei fez recair sobre o dono da obra o ónus de verificar o estado da obra no momento da sua aceitação (art. 1218 nº1 CC) e, também, o da denúncia dos defeitos em prazos curtos após o seu conhecimento (art. 1220 nº1 CC).

Analisando o mecanismo legal de que dispõe o dono da obra após o empreiteiro a ter concluído e a ter disponibilizado para que possa verificar a sua boa execução, observamos que aquele tem o direito de a examinar (art. 1218 nº1 CC) e o ónus de comunicar o resultado dessa verificação sob pena de se ter a obra por aceite (nº5 do mesmo artigo).

Com este procedimento concluímos que se o dono da obra, feita a verificação da mesma, comunica o resultado desse exame ao empreiteiro conformando-se com ele, ou se nada diz, com esse comportamento aceita a obra e, após, apenas os defeitos de que só posteriormente se possa aperceber são da responsabilidade do empreiteiro como decorre expressamente do teor do art. 1219 nº 2 ao estabelecer que se presumem conhecidos os defeitos aparentes, tenha ou não havido aceitação da obra. Isto é, nas situações em que a obra foi aceite sem denúncia de defeitos que nesse momento existiam e eram aparentes, o dono da obra pode responsabilizar o empreiteiro por eles mas, neste caso, cabe-lhe a si o ónus de alegar e provar que não tinha conhecimento deles quando aceitou a obra.

Fazendo, desde já uma primeira abordagem a situação em recurso, sabemos que a Ré como dona da obra contratou com a Autora o referido no ponto 2 dos factos provados na sentença e que, em 4 de Dezembro de 2002, emitiu a declaração (constante de fls. 34) afirmando que (a obra) foi executada de acordo com as regras de arte e regularmente concluída.

  Porém, provou-se igualmente que nos meses de Junho/Julho de 2003 houve uma avaria no sistema de rega e que se verificaram abatimentos no terreno.

Buscando fundamento nas considerações normativas que antes enunciámos, parece-nos inquestionável que houve aceitação da obra por parte da Ré e que a declaração prestada em 4 de Dezembro de 2002 traduz de forma inequívoca e expressa uma declaração de conformidade nessa data, se bem que saibamos que essa mesma obra já tinha sido entregue Agosto de 2002 o que resulta de se ter dado como provado que “o relvado do campo de futebol foi inaugurado em Agosto de 2002, com o jogo de futebol entre a equipa de futebol da ré e a União Desportiva de ...”.

Ora, a circunstância de terem ocorrido abatimentos no terreno e de o sistema de rega ter tido avaria nos meses de Junho/Julho de 2003 coloca de imediato a questão de analisar em concreto essas anomalias/defeitos uma vez que a sua qualificação como aparentes ou não determina a possibilidade ou a impossibilidade de eles poderem ser reclamados, de acordo com a exegese que fizemos do art. 1218 e 1219 do CC.

E se quanto à avaria do sistema de rega cremos poder afirmar que o defeito não se pode ter por aparente, nem por aceite, atendendo ao facto o facto de a avaria se ter registado em Junho/Julho de 2003 quando se sabe que “quando (…) foi montado, foi testado e ensaiado, funcionando em perfeitas condições”, já quanto ao abatimento do terreno, a prova da sua simples existência, sem sabermos em que momento ocorreu ou foi verificada, impede verdadeiramente de se poder considerar como invocável pois seria em absoluto necessário que tivesse ficado demonstrado esse momento da ocorrência e verificação.

Tratando-se o abatimento no terreno de um defeito objectivamente aparente por ser verificável directamente e sem necessidade de quaisquer conhecimentos científicos, a possibilidade da sua invocação apenas poderia ser admitida se houvesse alegação e prova (realizada pela ré /dona da obra) de que tinha ocorrido depois da obra ter sido aceite ou, que tendo ocorrido antes, não lhe tinha sido possível fazer esse conhecimento.

Não desconhecemos que no articulado da Ré esta situava o abatimento no terreno também em Junho/Julho de 2003 e como consequência da avaria do sistema de rega (vd. arts. 11 a 13 da contestação), mas o importante era que tivesse ficado provada a data desse abatimento ou a do seu conhecimento e tal não decorre da prova como ficou expressa.

Diga-se no entanto que não só por esta razão, mas também por outra, a invocação destes defeitos por parte da Ré, como fundadores da responsabilidade civil contratual, não poderiam ser legalmente admissíveis.

Mesmo que se aceitasse que os defeitos enunciados (a avaria no sistema de rega e o abatimento no terreno) eram reclamáveis pela ré, não obstante a declaração de aceitação e conformidade da obra em 2 de Dezembro de 2002, por tais vícios serem supervenientes ou, pelo menos, conhecidos supervenientemente a tal data, a verdade é que em face desses defeitos o dono da obra, por imposição legal, tem a obrigação de exigir ao empreiteiro a sua eliminação, se não puderem ser eliminados, o direito de exigir uma nova construção, e só no fim desse caminho a resolução do contrato ou a redução do preço (art. 1221 nº1 CC), isto sem exclusão do direito de indemnização (art. 1223).

Compreende-se esta imposição de um direito preferencial do dono da obra exigir ao próprio empreiteiro a eliminação do defeito e isto porque na composição dos interesses contratuais em presença se entendeu que se por um lado o dono da obra tem como primeiro direito o de ver a prestação fielmente cumprida, também “ [o] empreiteiro tem o direito de ser ele a efectuar a obra de reparação permitindo-lhe o controlo dos custos e evitar o agravamento dos prejuízos causados pelo defeito”[7].

Em face do exposto, impunha-se à ré, para poder fazer valer o direito que invoca contra o reclamado pela autora, ter provado que em face dos defeitos verificados, situando-os no tempo, havia reclamado junto do empreiteiro a sua reparação e que este não a tinha realizado ou que a tinha realizado mas de novo com defeito o que, em nosso entender também, converteria o incumprimento defeituoso em definitivo[8] e permitiria então à ré obter de outrem, sem ser a autora, a reparação.

Consultando a prova obtida, reconhece-se que não ficou demonstrado que a ré em face dos defeitos enunciados (quer a avaria do sistema de rega quer o abatimento no terreno) tenha solicitado junto da autora a sua reparação ou que esta tenha recusado fazê-la, sabendo-se apenas que “a empresa A…, em Junho/Julho de 2003 procedeu à desmontagem e ao transporte dos componentes do grupo de bombagem que se encontravam avariados para o local em que se iria proceder à sua reparação e após esta encarregou-se de proceder ao transporte e montagem no local”. Porém, a intervenção de outrem sem ser o empreiteiro a realizar a reparação teria de estar sufragada, como dissemos anteriormente, pela circunstância de se lhe haver dado, sem sucesso, conhecimento do defeito e exigido a reparação ou de ele haver liminarmente recusado a reparação.

Sem que tal se tenha provado, cremos que deve improceder a defesa da ré e, mesmo a prova de que   “[n]o ano de 2003 houve treinos e jogos de fim de semana que tiveram que ser efectuados noutros campos de futebol, designadamente na Marinha Grande, tendo a ré que deslocar jogadores e técnicos, 4 a 5 vezes por semana, para estes campos de futebol” ou que “[O]s factos referidos em 13 provocaram incómodos e arrelias à ré.”, é irrelevante no sentido de fundamentar qualquer pedido indemnizatório, pois este teria de ter na base aquele exigível exercício do direito de reclamação da ré junto da autora que não ficou demonstrado.

A verificação objectiva de ter havido jogos e treinos que não decorreram no relvado - o objecto da obra contratada entre autora e ré - sem a certificação de que a ré havia denunciado esses defeitos e, também, que a não utilização do campo derivava da avaria do sistema de rega ou do abatimento no terreno (únicos defeitos provados) impossibilitava desde logo a fixação da indemnização peticionada, acrescentando-se como explicação que se à ré bastava apontar os defeitos presumindo-se a culpa da autora, tinha no entanto de demonstrar que esses defeitos haviam sido causa dos danos que reclamava, no caso, que a avaria do sistema de rega e abatimento no terreno fora a causa de, no ano de 2003, ter havido treinos e jogos de fim de semana que tiveram que ser efectuados noutros campos de futebol e que a ré tivesse de deslocar jogadores e técnicos, 4 a 5 vezes por semana, para esses campos de futebol.

Assim, sem se saber se o dono da obra reclamou junto do empreiteiro quaisquer defeitos, exigindo-lhe, a ele, a sua reparação, não cremos que se possa fixar uma indemnização por danos decorrentes desses defeitos e por indisponibilidade da obra durante um determinado período de tempo, quando esse período de tempo, ainda que provado como adequado e necessário à reparação (o que não acontece nos autos), teria decorrido no desconhecimento por parte do empreiteiro dos defeitos sem que ele pudesse evitá-los com a rápida reparação. 

No essencial a ideia mestra é a de que, perante a verificação de defeitos, a ré/dona da obra deveria ter denunciado as anomalias para fazer entrar a autora em incumprimento, solicitando a sua reparação (ou exigir nova construção se não pudessem ser eliminados) e, igualmente, a indemnização.

Sem esta denúncia ao empreiteiro e exigência de reparação não pode o dono da obra reclamar a indemnização (ainda que a ela tenha direito) uma vez que não desencadeou o mecanismo legalmente exigido para fazer incorrer a autora em incumprimento.

Por outro lado, no mesmo sentido, como é aceite[9], o dono da obra pode também excepcionar o cumprimento defeituoso do empreiteiro para fazer suspender o cumprimento da sua prestação de pagar o preço, utilizando assim a faculdade prevista no art. 428 do CC. Porém, esta defesa para lá de estar condicionada, desde logo, a que a obrigação de pagamento não seja de vencimento anterior à da entrega da obra[10], exige-se igualmente que o dono da obra tenha denunciado os defeitos a manifestado a sua opção pelo direito que pretendia exercer (salvo o direito de resolução que não é compatível com aquele meio de dilação de pagamento)[11].

E assim concluímos, mais uma vez, pela importância de denúncia dos defeitos e exigência do direito de reparação quer para que possa pedir a indemnização, quer para que possa invocar a excepção de não cumprimento e, em face do sobredito, que a ausência de prova dessa denúncia e exigência faz improceder, na totalidade, as conclusões da recorrente.

… …

Decisão 

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a Apelação e, em consequência, em manter a decisão recorrida.

Custas pela Apelante.

Coimbra, 6 de Setembro de 2011

Relator:
Manuel Capelo

Adjuntos:
Jacinto Meca
Falcão de Magalhães

 


[1] Acórdão do STJ de 14/03/2006 (Ferreira Girão), na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XIV, Tomo I/2006, pp. 130/131.
[2] Proferido no processo nº 06B1868 (Pires da Rosa), disponível, nestes campos, in dgsi.pt.

[3] O legislador, aliás, assumiu este condicionalismo ao consignar no preâmbulo do referido Decreto-Lei nº 39/95 que “ O objecto do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova […]”.
[4] La valoración racional de la prueba, Marcial Pons, Madrid, 2007, p. 45.

[5] Vd. João Cura Mariano, in Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, p. 64 e 68.
[6] Vd. João Cura Mariano, op, cit. P. 76 e 77
[7] Vd. João Cura mariano, op. cit. p. 115.
[8] Vd. João Cura Mariano, op, cit. p. 123 e Pedro Romano Martinez, in Direito das Obrigações, p. 485 e em Incumprimento defeituoso, p. 351.
[9] Vd. Pedro Romano Martinez , in Cumprimento defeituoso, p. 290 e Pires de Lima /Antunes Varela in CC Anotado Vol. II p. 896 e ainda ac.STJ de 18-2-2003 CJ/STJ Ano XI , tomo I p. 103
[10] Vd. João Cura Mariano, op. cit. p. 167 e 168
[11] Vd. ac.RC de 21-10-2003 no site www.dgsi.pt relatado por Jorge Arcanjo.