Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
779/03.8TBOBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
ACIDENTE DE VIAÇÃO
MORA
Data do Acordão: 09/29/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA- ANADIA - 2º J GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 712.º, N.º 1, DO CPC, N.º 2 DO ARTIGO 456.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ARTIGOS 798.º, 804.º E 813.º DO CÓDIGO CIVIL, N.º 1 DO ARTIGO 570.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1) Não é possível à Relação alterar a matéria de facto fixada em 1.ª instância com base em prova documental e testemunhal, quando o recorrente não impugnou os depoimentos em causa e a prova documental não tem força probatória plena;


2) Ao contrário do que sucedia no regime anterior ao introduzido pelo DL 180/96, de 25 de Setembro, a litigância de má fé pode ter por fundamento, tanto o dolo como a negligência grave;


3) O simples facto de se ter provado a versão factual contrária à alegada pela parte, não acarreta, só por si, a litigância de má fé;


4) No âmbito dos acidentes de viação, não cessa a mora do lesante, se o mesmo se limita a comunicar ao lesado qual o valor de indemnização que entende correcto, mas não o coloca à sua disposição.


5) É ao lesante que cabe restituir o lesado à situação em que se encontrava antes do acidente;


6) No entanto, o lesado está obrigado a agir com diligência, nomeadamente não dilatando no tempo a propositura de acção de indemnização, sob pena de contribuir para o agravamento dos danos e ver reduzido o montante a atribuir.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

 

A... , com sede na...., concelho de Vagos, instaurou acção declarativa de condenação, com forma de processo ordinário, contra B.... , com sede na...., alegando, em síntese, que:

Em 13.02.2002, pelas 12H20, na Estrada Nacional n.º 235, ocorreu um embate entre o veículo pesado de matrícula 00-00-00, de sua propriedade, e a viatura ligeira de passageiros de matrícula Y..., propriedade de C.... , seguro na ré.

A responsabilidade pelo acidente coube exclusivamente ao condutor do ligeiro, por se ter atravessado à frente do pesado, na sequência de uma manobra repentina de mudança de direcção para a esquerda.

Do embate resultaram danos graves para o pesado, que ficou irrecuperável e não mais pôde ser utilizado na actividade de transportes diversos a que se dedica, o que lhe causou e continua a causar um prejuízo diário de € 153,93.

Concluiu pelo pedido de condenação da ré no pagamento da importância de € 18.700,00, relativa ao valor comercial do pesado, e, bem assim, do montante diário de € 153,93, desde o dia 13 de Março de 2002 até efectivo cumprimento, tudo acrescido de juros a contar da citação.

Regularmente citada, a ré contestou, afirmando, por um lado, a culpa do condutor do pesado na produção do acidente, por circular com excesso de velocidade, contrariando, por outro, o valor comercial da viatura, que seria de € 12.000,00, valendo os salvados € 3.250,00, e impugnando, finalmente, o prejuízo diário alegado, por não ser matéria do seu conhecimento.

Terminou pela absolvição do pedido.

Em réplica, a autora manteve o teor da petição inicial e requereu a condenação da ré em multa e indemnização não inferior a € 20.000,00, por litigar de má fé.

A selecção da matéria de facto considerada relevante para a decisão do litígio não mereceu reclamação.

Realizado o julgamento e proferida a decisão de facto, de que as partes não reclamaram, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 8.750,00, respeitante ao valor comercial do pesado, e o prejuízo diário de € 153,93, em virtude de esta não poder utilizar a viatura no serviço de transportes, desde o dia 13 de Março de 2002 até ao cumprimento dos deveres da ré e, ainda, os juros legais desde a citação.

Da decisão interpuseram recurso tanto a autora como a ré, que apresentaram, oportunamente, as respectivas alegações, concluídas assim:

A. Quanto à autora:

1) A resposta ao quesito 11.º deveria ter sido mais extensiva, de molde a incluir os prejuízos diários até ao dia do julgamento, de acordo com os elementos fornecidos pela ANTRAM, que é a entidade competente para dar os prejuízos;

2) A ré alterou a dinâmica do acidente, a qual está em contradição com o croquis da GNR e a declaração amigável dos intervenientes no acidente de viação;

3) Para adiar o normal andamento do processo, a ré pediu uma carta rogatória para França, quando sabia que o segurado, de apelido C..., não ia alterar a dinâmica do acidente;

4) A ré litiga com má fé substancial e processual, pelo que deve ser condenada na multa de 100 UC e em igual quantia de indemnização a favor da autora.

5) Foram violados os artigos 653-663 e 665 do Código de Processo Civil.

B. Quanto à ré:

            1) A resposta aos quesitos 10.º e 11.º deveria ter sido negativa e não afirmativa, como sucedeu;

            2) Alteradas as respostas, não pode a ré ser condenada no pagamento do montante diário de € 153,94, a título de prejuízo diário pela imobilização do veículo da autora; mas, mesmo que assim se não entenda,

            3) Resultou provado que a reparação do pesado era excessivamente onerosa, já que, sem desmontagem, ascendia a € 15.609,46, o valor comercial do veículo era de € 12.000,00 e os salvados valiam € 3.250,00.

            4) A autora não aceitou ser indemnizada na base de tais valores, como lhe foi proposto por carta de 23 de Abril de 2002, pelo que, a partir de tal data, cessou a mora da ré e, consequentemente, o direito da autora a ser indemnizada pelos lucros cessantes; mas, quando assim não seja,

            5) Não é razoável que a autora, tendo serviço para o pesado, o tenha deixado sem reparação, tanto mais que, ao fim de quatro meses, o prejuízo emergente da paralisação era já superior ao do valor comercial do veículo;

            6) A opção por não proceder à reparação agravou tremendamente e sem necessidade os danos resultantes do acidente, que hoje ascendem a cerca de € 391.000,00;

            7) A indemnização a arbitrar a título de paralisação da viatura deve ser reduzida em 50%, por aplicação do n.º 1 do artigo 570.º do Código Civil;

            8) A sentença violou os artigos 804.º, n.º 2, e 570.º, n.º 1, ambos do Código Civil.

            Qualquer das partes respondeu à alegação da contraparte.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, já que nada a tal obsta.

            São estas as questões a requerer solução, consoante deflui das conclusões das alegações apresentadas:

            A. Recurso da autora:

            a) A alteração da matéria de facto e suas consequências;

            b) A má fé.

            B. Recurso da ré:        

            a) A alteração da matéria de facto e suas consequências;

            b) A cessação da mora;

            c) O agravamento dos danos.

            II. Na sentença foi considerada a seguinte matéria de facto:

A) Encontra-se registada a favor da autora a propriedade de um camião de 14 rodas, com a matrícula 00-00-00 – alínea A) dos factos assentes.

B) No dia 13.03.2002, cerca das 12.20 horas circulavam, na Estrada Nacional n.º 235, o veículo da autora, conduzido, ao serviço desta, pelo motorista D... , e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula Y, tripulado pelo seu proprietário, C..., no sentido de marcha Aveiro – Oliveira do Bairro – alínea B) dos factos assentes.

C) O veículo ligeiro de matrícula Y seguia à frente do veículo pesado de mercadorias – alínea C) dos factos assentes.

D) O camião da autora surgiu em velocidade superior a 50 Kms/hora – resposta ao artigo 16.º da BI.

E) O condutor do veículo ligeiro, ao chegar ao cruzamento do Portinho, Oliveira do Bairro, encostou o seu automóvel à direita, não chegando a parar – resposta ao artigo 1.º da BI.

F) Efectuando, de seguida e repentinamente, uma manobra de mudança de direcção para a esquerda em direcção à localidade de Fermentelos – resposta ao artigo 2.º da BI.

G) Pelo que, ao condutor do pesado, que seguia na sua marcha, lhe aparece pela frente o veículo ligeiro em frente do cruzamento – resposta ao artigo 3.º da BI.

H) Tendo sido impossível ao condutor do pesado evitar a colisão – resposta ao artigo 4.º da BI.

I) O camião despistou-se e só parou quando colidiu contra uma parede – resposta ao artigo 5.º da BI.

J) O camião ficou de tal forma danificado, que é irrecuperável – resposta ao artigo 6.º da BI.

L) O camião da autora tem estado parado desde 13.03.2002 – resposta ao artigo 8.º da BI.

M) A autora dedica-se à actividade de transportes diversos – resposta ao artigo 9.º da BI.

N) A autora tem serviço para o camião, mas não o pode utilizar – resposta ao artigo 10.º da BI.

O) O prejuízo dum camião igual ao da autora é de € 153,94 por cada dia em que esteja parado – resposta ao artigo 11.º da BI.

P) O valor venal do veículo da autora era de € 12.000 – resposta ao artigo 18.º da BI.

Q) O veículo da autora contava com doze anos de circulação e com 829.456 quilómetros rodados – resposta ao artigo 19.º da BI.

R) A reparação do veículo sem desmontagem é de € 15.609,46 – resposta ao artigo 20.º da BI.

S) E os salvados valem aproximadamente € 3.250,00 – resposta ao artigo 21.º da BI.

T) À data do acidente, a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pelo veículo ligeiro de matrícula Y encontrava-se transferida para a ré, através da apólice nº F 181/37412481 – documento de folhas 79 a 85.

            III. O direito:

            A. Recurso da autora

            1) A alteração da matéria de facto e suas consequências:

            A decisão de facto pode ser alterada pela Relação na hipótese de ocorrer alguma das seguintes situações:

            a) Constarem do processo todos os elementos de prova que lhe serviram de base ou, apoiando-se a mesma em depoimentos gravados, forem estes impugnados, nos termos do artigo 690.º-B;

            b) Os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

            c) Ser apresentado documento novo superveniente, que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou (n.º 1 do artigo 712.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à introduzida pelo decreto-lei n.º 303/07, de 24 de Agosto).

            O artigo cuja resposta foi questionada – 11.º da BI – foi elaborado sob alegação da autora e tem esta redacção:

            “O prejuízo dum camião igual ao da autora é de € 153,94 por dia em que esteja parado?”

             A resposta foi afirmativa e “fundou-se na ponderação do parecer ínsito na declaração da ANTRAM de fls. 97, analisado segundo as regras de experiência, associadas aos valores genéricos indicados pela testemunha F..., industrial do ramo de camionagem”.

            Na óptica da autora, a resposta devia ter sido mais extensiva, por forma a considerar que, no ano de 2004, o prejuízo foi de € 164,00, no ano de 2005 teve um aumento de 2,5%, no ano de 2006 foi de € 173,15, no ano de 2007 teve um aumento de 2,7% em relação a 2006, no ano de 2008 teve um aumento de 2,9% em relação a 2007 e, no ano de 2009, teve um aumento de 2,3% em relação a 2008.

            Apelou, para tanto e em exclusivo, ao que diz serem “5 documentos, passado ANTRAM, os quais não foram impugnados”, juntos em Fevereiro de 2008.

            Cumpre assinalar, antes de mais, que, em Fevereiro de 2008, concretamente, no dia 22, a autora juntou, apenas, quatro documentos (não cinco), sendo que só um deles provém da ANTRAM, onde se faz referência a uma tabela de paralisação para veículos pesados, pretensamente acordada com a APS, nos termos da qual se estabeleceu o valor de € 173,15 por dia para os pesados de 26 a 40 toneladas. Os restantes documentos são simples informações do Instituto Nacional de Estatística, que indicam os valores da inflação para os anos de 2005, 2007 e 2008, situada nos 2,3% (não 2,5%, como disse a autora), 2,5% (e não 2,7%) e 2,9%, respectivamente.

            Juntou, de facto, um outro documento, mas em 28 de Abril de 2004, no qual a ANTRAM declarou que, “conforme Acordo entre esta Associação e a Associação Portuguesa de Seguradoras (A.P.S.), o valor de paralisação para pesados de mercadorias de categoria de 26 a 40 toneladas”, era de € 155,20/dia, € 160,60/dia e € 164,80 dia”, no que tange aos anos de 2002, 2003 e 2004, respectivamente (documento de folhas 97, que serviu de fundamentação para a resposta ao quesito em apreço).

            Em relação ao ano de 2009, nenhum documento foi junto, seja emitido pela ANTRAM, seja pelo Instituto Nacional de Estatística.

            Mas, retomando o fio do discurso, a ideia da autora é a de que os documentos que juntou impõem resposta mais abrangente ao artigo 11.º, por terem sido fornecidos pela ANTRAM, “que é a entidade competente para dar às Partes tais Prejuízos”.

            Com o devido respeito, não é à ANTRAM que compete dar prejuízos às partes; estas é que têm de os alegar e provar, se quiserem ver reconhecido o direito que invocam em juízo (artigos 342.º, n.º 1, do Código Civil e 264.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). A ANTRAM limita-se a defender os interesses dos seus associados, os transportadores públicos rodoviários de mercadorias, nos termos estabelecidos nos respectivos estatutos.

            A questão que se coloca é, exactamente, a de saber se a autora alegou e provou os prejuízos que agora pretende ver consignados.

            A resposta é, decididamente, negativa.

            Começando pela alegação, é manifesto, pela simples análise dos autos, que o não fez. O que consta da petição (e mais nenhum articulado foi produzido, à excepção da réplica, que, para o caso, nada tem de útil) é que sofreu um prejuízo diário de € 153,93, por não poder utilizar o camião sinistrado no exercício da sua actividade de transportadora. É verdade que juntou documentos alusivos a acordos celebrados entre a ANTRAM e a APS, onde se estabeleceram valores mais elevados de paralisação, com referência a anos posteriores à propositura da acção. O problema é que – e dando de barato, para já, a força probatória dos documentos e a possibilidade legal de a sua junção suprir a alegação – se esqueceu do mais importante, que era a ampliação do pedido, essencial para que os novos valores pudessem ser atendidos, por força do princípio da estabilidade da instância, plasmada no artigo 268.º do Código de Processo Civil.

            O mesmo sucede com a prova. Como se disse, a fundamentação da resposta baseou-se na conjugação da declaração da ANTRAM com o depoimento de uma testemunha, industrial de transportes, tal qual a autora. Não tendo tal depoimento sido impugnado, a alteração da resposta só poderia ocorrer se os elementos fornecidos pelo processo, mormente os documentos juntos e ora invocados, impusessem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas [alínea b) do n.º 1 do citado artigo 712.º do CPC].

            E não é esse o caso. Nenhum elemento, incluindo os falados documentos, faz prova plena em relação à questão suscitada. Farão prova de qual foi a taxa de inflação em determinados anos e de que a ANTRAM celebrou acordos com a APS, com vista a estabelecer um certo valor para a paralisação de veículos pesados de transporte de mercadorias, isto é, das declarações atribuídas aos seus autores (artigo 376.º, n.º 2, do Código Civil); mas não fazem prova do montante dos prejuízos sofridos pela apelante.

            São elementos atendíveis, naturalmente, mas sem valor intrínseco e absoluto. Os quantitativos fixados nos acordos da ANRAM com a APS são válidos para quem os quiser aceitar, para quem pretender, no fundo, escapar às delongas e contratempos de uma acção judicial; no mais, não passam de mero valor referencial, a conjugar com outros elementos de prova; aproximar-se-ão de uma certa bitola de normalidade, mas não mais do que isso. Na sua actividade diária, as empresas de transportes efectuam trabalhos muito diferentes e com margens de lucro (ou de prejuízo) muito diferentes, também.

            A taxa de inflação vale o que vale; significa que o valor das coisas em geral aumentou, mas não que todas aumentaram na mesma proporção; algumas, porventura, terão diminuído. Não significa, seguramente, que a autora tenha visto os seus prejuízos acrescer nessa mesma percentagem.

            Destituídos os documentos de força probatória plena e sendo insindicável, por falta da sua impugnação, a prova testemunhal produzida, não se configura qualquer dos fundamentos a que alude o artigo 712.º, n.º 1, do CPC, razão pela qual a matéria de facto fixada em 1.ª instância não pode ser alterada.

            Inalterada a decisão de facto, não pode ser alterada a de direito no sentido pretendido pela autora (condenação da ré no pagamento de quantia diária superior à estabelecida na sentença), uma vez que, de acordo com o teor das alegações, a reapreciação do mérito da causa dependia inteiramente da modificação da matéria de facto pela forma propugnada.

           

             2) A má fé:

           

            Na réplica a autora requereu a condenação da ré em multa e em indemnização a seu favor em montante não inferior a € 20.000,00, invocando, para tanto, a litigância de má fé, consistente, alegadamente, no facto de esta descrever a dinâmica do acidente de viação de forma diferente da indicada pelo seu segurado na declaração amigável que, na altura, assinou. 

            Posteriormente, vindo a ré a pedir a devolução de uma carta rogatória cuja expedição a França requerera, pelo facto de a testemunha a inquirir ter regressado, entretanto, a Portugal, voltou a autora a pedir a condenação daquela, agora na multa de € 50 UC e na indemnização de 100 UC, sob a alegação se estar perante uma manobra dilatória, pedido que reiterou depois de a ré vir informar que prescindia do depoimento da testemunha, por não ter conseguido obter a sua actual morada em Portugal.

            Não obstante o peticionado, a sentença é completamente omissa quanto à questão colocada, incorrendo, por conseguinte, na nulidade prevista na 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, mas que não foi invocada por qualquer das partes, mormente por aquela a quem poderia aproveitar.

            Insiste, no entanto, a autora, na alegação de recurso, pela condenação da ré como litigante de má fé, invocando as mesmas circunstâncias (falsa descrição do acidente e pedido de expedição de carta rogatória a França, sabendo que o segurado não poderia alterar a descrição do acidente) e pedindo a imposição de multa e de indemnização no montante, cada qual, de 100 UC.

            Na opinião da ré, a condenação por litigância de má fé mais não seria do que uma injustificada limitação ao exercício do seu direito de defesa.

            E tem toda a razão na sua oposição.

            Para se configurar a litigância de má fé é necessário, segundo o n.º 2 do artigo 456.º do Código de Processo Civil, que, com dolo ou negligência grave:

            a) Se tenha deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento se não devesse ignorar;

            b) Se tenha alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

            c) Se tenha praticado omissão grave do dever de cooperação;

            d) Se tenha feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

            Esta disposição, cuja redacção deriva do Decreto-lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, corresponde, no essencial, à primitiva redacção do preceito e, também, à do artigo 465.º do Código de 1939, com pequenas alterações quanto às situações tipificadoras da litigância de má fé (a introdução da omissão grave do dever de cooperação e uma abrangência maior dos casos de uso manifestamente reprovável do processo) e uma grande alteração quanto à intenção (enquanto antes se exigia o dolo, agora releva, também, a negligência grave).

            Contempla o artigo, como ensina o Prof. Alberto dos Reis, tanto a má fé substancial – a que respeita ao fundo da causa –, como a instrumental – a que diz respeito à relação jurídica processual, acrescentando que, no primeiro caso, se usa de má fé para obter decisão de mérito que não corresponde à verdade e à justiça e, no segundo, a parte procura sobretudo cansar e moer o seu adversário, ou somente pelo espírito de fazer mal, ou na expectativa condenável de o desmoralizar, de o enfraquecer, de o levar a uma transacção injusta (Código de Processo Civil Anotado, páginas 263/264).

            Em causa está, continua o mesmo autor, o dever de probidade processual, ditado no artigo 264.º,[1] que é como quem diz, o dever de não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade, não requerer diligências meramente dilatórias (loc. cit.).

            Não obstante a ampliação do dever de boa fé, com a colocação da negligência grave a par do dolo, o certo é que a nossa jurisprudência, nomeadamente a do Supremo Tribunal de Justiça, tem vindo a entender que se deve ser muito prudente no juízo que a tal respeito se faça, em homenagem à garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e ao exercício do contraditório, próprias do estado de direito, concluindo, por isso, pela ilegitimidade de interpretações apertadas do referido artigo 456.º, no âmbito das quais pudesse caber, sem mais, a condenação de má fé da parte que não logrou fazer prova da sua versão dos factos e viu provada a da parte contrária (Acórdão do STJ de 11.12.2003, pesquisado na Internet).

            A esta luz, pois, haverá de ser apreciada a questão ora colocada.

            Resumindo o pensamento da autora, a ré teria incorrido em má fé processual, não só por ter trazido aos autos uma versão do acidente diferente da avançada pelo seu segurado, que ela bem conhecia, por via da declaração amigável (má fé substancial), mas, também, por agir com evidente intuito dilatório, ao requerer a inquirição do segurado através de um meio moroso, como é a carta rogatória, quando sabia que ele não iria alterar o que declarara inicialmente (má fé instrumental).

            Teoria forçada, convenha-se, porque parte, afinal, de uma certeza que, em momento algum, a ré poderia ter: o de ser verdadeiro o teor da declaração amigável e de o seu segurado o manter “ad aeternum”.

Só que não é isso o que a prática judiciária e a experiência do dia a dia nos ensina; a declaração amigável de acidente nem sempre corresponde à realidade dos factos – será preciso perguntar quantas vezes se forjam acidentes ou se deturpa a descrição dos efectivamente ocorridos, para fazer recair sobre as seguradoras a responsabilidade que caberia aos intervenientes? – e as declarações inicialmente prestadas sofrem, muitas vezes, modificações apreciáveis.

É razoável, nesta perspectiva, que as companhias de seguros, cientes da situação e procurando pôr-se a coberto de surpresas desagradáveis, não aceitem, sem melhor prova, o que os seus segurados lhe transmitem.

Foi isso e, apenas, isso, o que a ré fez no caso vertente. Estribada, porventura, em elementos de que disporia e que lhe levantariam dúvidas quanto à dinâmica do acidente, começou por dilatar para mais tarde a assunção de responsabilidades – na carta que dirigiu à autora em 23 de Abril de 2002, pouco mais de um mês após a ocorrência do sinistro, constante de folhas 19 dos autos, referiu expressamente não se encontrar habilitada a assumir qualquer responsabilidade do segurado – e, no momento próprio, contestou a versão veiculada pela autora, sem deixar, porém, de a intentar comprovar ou infirmar através do condutor do veículo seguro.

Não se vê onde esteja a violação do dever de probidade, quando, apenas, se discutem factos, dos quais se não tem, por natureza, conhecimento directo e a (eventual) percepção indirecta não é isenta de dúvidas.

Como se não vê onde esteja a vontade de “moer” a contraparte, quando se intenta, tão-somente, não deixar escapar meios de prova com inegável interesse para a descoberta da verdade. Não é culpa da ré se o seu segurado residia em França (é o que consta da participação de acidente de viação lavrado pela GNR), como lhe não pode ser imputada a responsabilidade do seu regresso, entretanto, a Portugal.

A questão, muito simplesmente, para além de quaisquer outras considerações, é que nada há nos autos que permita concluir que a ré, ao impugnar a descrição do acidente de viação e ao requerer a expedição de carta rogatória para inquirição do seu segurado, o tenha feito em violação das cautelas que a prudência aconselharia (em função, obviamente, dos factos conhecidos ou de que devesse ter conhecimento).

Em resumo, não se demonstra a má fé processual, pelo que o recurso da autora haverá de improceder, também, nesta parte.

           

            B. Recurso da ré

           

            1) A alteração da matéria de facto e suas consequências:

           

            O recurso enquadra-se na alínea a) do n.º 1 do artigo 712.º do Código de Processo Civil, acima transcrita a propósito do recurso da autora, sendo certo, por outro lado, que a ré/recorrente observou o preceituado nos n.ºs 1 e 2 do artigo 690.º-A e no n.º 2 do artigo 522.º-C do mesmo diploma, pois que indicou os pontos de facto que considerava incorrectamente julgados (n.ºs 13 e 14 da matéria assente, resultante da resposta aos artigos 10.º e 11.º da Base Instrutória), os meios de prova que impunham decisão diversa e os depoimentos em que se fundava, por referência ao que consta das acta de julgamento.

            Nessa medida, nada impede a apreciação da impugnação da decisão de facto.

            Os quesitos em causa, o 10.º e o 11.º, conforme referido, estão redigidos do modo seguinte:

            10.º: A autora tem serviço para o camião mas não o pode utilizar?

            11.º: O prejuízo dum camião igual ao da autora é de € 153,94 por cada dia em que esteja parado?

            As respostas foram afirmativas, mas, no entender da ré, mal, por não ser suficiente a prova em que assentaram.

            Esclareça-se, desde já, que a resposta ao artigo 10.º teve por base o depoimento das testemunha E... , mediador de seguros, que teve conhecimento da situação, e, bem assim, o depoimento da testemunha D..., condutor do veículo e empregado da autora, enquanto que a resposta ao quesito 11.º se fundou na ponderação do parecer ínsito na declaração da ANTRAM de folhas 97, analisado segundo as regras de experiência, associadas aos valores genéricos indicados pela testemunha F...., industrial do ramo de camionagem.

            Sustenta a ré, no que tange ao quesito 10.º, ser impossível concluir que a autora tivesse serviço para o camião, porque à testemunha E... nada foi perguntado sobre a matéria e a testemunha D... disse, unicamente, que o camião ficou sem concerto, que a autora se dedica à actividade de transporte de aluguer e que até há três anos, altura em que deixou de trabalhar para ela, a firma tinha muito trabalho. A seu ver, deveria ter sido feita prova documental sobre o volume e tipos de negócio da autora, de modo a apurar-se, nomeadamente, a clientela, o serviço, os preços cobrados e os dias de circulação.

            Quanto ao quesito 11.º, considera não estar o prejuízo devidamente quantificado, porquanto o documento da ANTRAM não passa de uma tabela orientadora, de uma estimativa de lucros, e a testemunha F.... só referiu que o camião não teve recuperação, que o prejuízo diário de uma viatura daquelas deve ser à volta de € 200,00 e que a autora tinha várias viaturas, talvez à volta de quatro ou cinco iguais à sinistrada.

            Que pensar disto?

            É verdade, começando pelo quesito 10.º, que a testemunha E..., mediador de seguros, que efectuou diligências junto da representante da ré em Portugal, com vista à resolução do litígio, se não referiu ao serviço da autora, porque, na realidade, nada lhe foi perguntado, e que a testemunha D..., empregado, ao tempo, da autora, só disse, no que para aqui releva, que a viatura ficou sem conserto, que aquela se dedica à actividade de transportes de aluguer e que até à altura em que saiu da firma, há cerca de três anos, a mesma tinha muito trabalho.

            Mas o que já não se afigura correcto é que daí se deva extrair que a autora não tinha serviço para a viatura. O condutor desta disse claramente que sim, pelo menos até que saiu da firma há três anos. Tratando-se de testemunha particularmente qualificada, pelas funções que desempenhava, e nada se descortinando que possa desacreditar o seu depoimento (não existem, nomeadamente, depoimentos de sinal contrário), há que o aceitar pelo seu valor de aparência. É claro que o depoimento desta testemunha deixa sem suporte os três anos posteriores à sua saída. Mas não será ousado concluir, tendo presentes as regras da experiência, que a situação se manteve inalterada; ilógico seria é que, de um instante para o outro, o serviço desaparecesse, como que por encanto. De resto, a testemunha F...., apesar de o seu depoimento não ser inteiramente explícito, não deixou de, de algum modo, dar corpo à resposta, ao retorquir, à pergunta sobre se havia serviço para o camião, mas a autora não o podia utilizar, que “se ele está irrecuperável, ele tendo serviço para ele, não pode utilizá-lo”. E, como bem diz a autora na sua contra-alegação, traduzindo o que é, afinal, uma regra de ouro da vida empresarial, “se tinha o camião não era para estar parado”.   

O argumento da falta de documentação é falaz, porque não se trata de matéria para a qual a lei exija prova tarifada, mormente de natureza documental. Diga-se, de qualquer modo, que o que poderia ser provado por documento era, apenas, o serviço anterior ao acidente, porque o posterior simplesmente não existia, como é óbvio.

A resposta não merece, pois, censura.

Outro tanto se dirá da resposta ao quesito 11.º. Sendo certo, como escreve a ré, que a tabela acordada entre a ANTRAM e a Sociedade Portuguesa de Seguros não é mais do que uma mera tabela orientadora, não o é menos que a testemunha F...., industrial de transportes e, nessa medida, pessoa com especiais habilitações para responder, apontou para um prejuízo na ordem dos € 200,00 diários, o que excede o valor da dita tabela. Considerando que o seu depoimento não foi contrariado por meio algum e que os valores indicados pela ANTRAM são aqueles que as entidades mais interessadas – associações de transportadores e de seguradoras – entenderam como mais equilibrado, não há razão para o não aceitar, tal como se decidiu em primeira instância.

A resposta não merece, igualmente, reparo.

Mantendo-se os factos fixados em primeira instância, não pode, por esta via, ser revogada a decisão que condenou a ré no pagamento do prejuízo diário de € 153,94, resultante da paralisação do camião.

2) A cessação da mora:

            Para o caso de não proceder a alteração da matéria de facto, suscitou a ré a questão da cessação da mora, que construiu do seguinte modo:

            A sentença recorrida decidiu, com base em factos apurados – ascender a reparação do veículo sem desmontagem a € 15.609,46, ser o seu valor comercial de € 12.000,00 e valerem os salvados € 3.250,00 –, que a reparação era excessivamente onerosa, tendo determinado, em consequência, que a autora fosse ressarcida pela diferença entre o valor venal do veículo e o valor dos salvados, ou seja, € 8.750,00.

            Significa isto que veio dar razão à recorrente, quando, por carta de 23.04.2003, informou a autora de ter concluído pela perda total do camião e de pretender indemnizá-la pelo valor de € 12.000,00, sem os salvados, ou pelo valor de € 8.750,00, com os salvados.

             A autora não aceitou tais valores, pelo que, a partir de então, deixou de ter direito à indemnização pelos lucros cessantes, por ter cessado a mora da recorrente.        

            Rigorosamente, trata-se de uma questão nova, que a ré a não suscitou perante o tribunal recorrido, seja em sede de facto, seja em termos de direito, pelo que, logo por aí, estaria votada ao insucesso, uma vez que as questões novas estão excluídas do âmbito do recurso (vide, por todos, o acórdão do STJ, de 01.10.2002, CJ de Acórdãos do Supremo, Ano X, tomo III, página 65).

            Sempre se dirá, no entanto, que a teoria é interessante, mas não colhe apoio na realidade dos factos. Se a ré tivesse procurado desonerar-se da sua obrigação e a autora recusasse, sem fundamento, a prestação que lhe era oferecida, é claro que cessava a mora daquela e o dever de indemnizar os prejuízos verificados a partir daí e nascia a mora desta (artigos 798.º, 804.º e 813.º do Código Civil).

            O busílis é que a ré/recorrente não ofereceu à autora/recorrida, ao contrário do que afirma, o pagamento do valor da viatura destruída. O que ela fez foi, tão-só, comunicar à autora que tinha concluído pela perda total do veículo, ascendendo o seu valor comercial a € 12.000,00, e que a indemnização final seria a correspondente àquele valor, ficando os salvados para si mesma, ou ao valor de € 8.750,00, ficando os salvados para a autora, mas que não se encontrava habilitada a assumir qualquer responsabilidade do segurado pela produção do sinistro, prometendo voltar ao contacto logo que tal sucedesse (documento de folhas 19, junto com a contestação).

            Não é verdade, assim, que tivesse colocado à disposição da autora o valor comercial da viatura, pelo que a discordância desta em relação aos valores apresentados, que, efectivamente, manifestou por carta de 08.05.2002 (documento de folhas 5, apresentado com a petição inicial), não pode traduzir uma recusa de recebimento da prestação.

            Não se compreende, aliás, que a ré venha invocar a cessação da mora, quando, na própria contestação, continuou a declinar a sua responsabilidade, imputando ao condutor do veículo da autora a culpa pela produção do acidente.

            A questão improcede.

            3) O agravamento dos danos:

            A posição da ré acha-se expressa desta maneira: ficou provado que a autora se dedica à actividade de transportes diversos e tem serviço para o camião, mas não o pode utilizar, o que implica um prejuízo diário de € 153, 94; não é razoável que, após não aceitar a perda total que lhe foi comunicada em 23.04.02, tenha deixado o veículo por reparar durante cerca de nove anos, quando tinha serviço para ele, sendo que, quatro meses volvidos sobre o acidente, o prejuízo emergente da paralisação era já superior ao valor comercial do veículo; esta conduta, passível de censura, agravou de forma desnecessária os danos; deve, assim, o tribunal, atento o disposto no n.º 1 do artigo 570.º do Código Civil, reduzir em 50% o valor dos danos resultantes da paralisação.

            Ora, que dizer?

            Que a ré tem alguma razão, apesar da subversão do princípio de que a reparação compete ao lesante, e não ao lesado, como decorre do estabelecido nos artigos 562.º e 566.º, n.º 1, do Código Civil.

            “Ao lesante incumbe, designadamente, através da reparação do veículo sinistrado, restituir o lesado à situação em que se encontrava antes de ocorrido o acidente. E, como é óbvio, o específico dano da privação do uso do veículo subsiste, com autonomia indemnizatória, até que o lesado veja reconstituída a situação que existiria se não fosse o facto do lesante conducente à paralisação” (acórdão do Supremo, de 29.11.2005, CJ/STJ, Ano XIII, Tomo III, página 151; em sentido exactamente igual, os acórdãos do mesmo Tribunal, de 27.02.2003 e de 05.07.2007, CJ/STJ, Ano XI, Tomo I, página 112, e Ano XV, Tomo II, página 151, respectivamente).

            A verdade é que a ré se limitou a efectuar uma perícia à viatura, que considerou irreparável, e logo excluiu a sua responsabilidade. Nada mais fez, não se prontificando, nomeadamente, a ordenar a reparação, a oferecer um veículo com características idênticas ou a colocar à disposição da autora a importância que entendia ser o valor comercial do bem; desligou-se do assunto, como se nada tivesse a ver com ele, pouco lhe importando que a autora tivesse, ou não, meios para reparar a viatura ou para adquirir uma outra.

            “Relegando para mais tarde a restauração natural, não pode deixar de ser responsável pela paralisação verificada” (referido acórdão de 29.11.2005).

            Não obstante esta verdade incontornável, sempre terá de ser ponderado, como, aliás, se fez no último acórdão citado, que se vai seguir de perto, que a autora, apesar de não estar obrigada a reparar a reparar o veículo, foi pouco diligente na procura de solução para o litígio, já que só propôs a presente acção quase ano e meio depois da ocorrência do acidente (este eclodiu em 13.03.2002 e a acção deu entrada em juízo a 25.08.2003), sabendo, como não podia deixar de ser, que os custos da paralisação se agravariam consideravelmente.

            Nesta perspectiva, se dirá que contribuiu, em medida significativa, para o agravamento dos danos emergentes da paralisação, do que decorre a consideração, adiantada, aliás, pela recorrente, de que a sua conduta se enquadra na previsão do n.º 1 do artigo 570.º do Código Civil e implica a redução do “quantum” indemnizatório.

            Haverá de equacionar-se, também, o acentuado desequilíbrio entre o valor venal da viatura e o montante dos prejuízos (proporção de um para mais de trinta), realçando a circunstância, lógica à luz dos dados da experiência comum, de não ser difícil a uma empresa de transportes que dispunha de várias viaturas e de uma carteira de encomendas bem recheada (não lhe faltava serviço, como resultou provado), adquirir um veículo semelhante ao danificado, tanto mais que o valor deste era pouco mais que irrisório (€ 18.700,00, na versão da autora, mas € 12.000,00, apenas, conforme matéria de facto assente). Não é crível que uma empresa de alguma dimensão, como parece ser o caso da autora, não consiga reunir, por si ou por recurso ao crédito, um montante inferior a duas dezenas de milhares de euros; a ser verdade, só poderia estar condenada à insolvência.

            Não poderá ser esquecido, ainda, que não ficou esclarecido se a actividade da autora se desenrolava todos os dias do ano ou só nos dias úteis. A decisão de facto reporta o prejuízo a cada dia que o camião estivesse parado, mas a decisão de direito não distingue e abrange, pelos seus termos, todos os dias de cada ano. Só que essa não é a normalidade das coisas; tirando os chamados casos de laboração contínua, que se verificam, sobretudo, em algumas indústrias transformadoras e em serviços essenciais (água, electricidade e comunicações, nomeadamente) e os de horário alargado, de que é exemplo o comércio), as empresas laboram, via de regra, só nos dias úteis, com exclusão, por conseguinte, dos fins de semana e dos feriados. A consideração desta circunstância não poderá deixar de pesar no cômputo da indemnização.

            Não será despiciendo, finalmente, trazer à liça o fenómeno global da “crise” que, de forma mais ou menos acentuada, se abateu sobre a economia, reduzindo actividade, postos de trabalho e margens de lucro.

            Tudo ponderado, há que concordar com a ré/recorrente, quando assaca à lesada a adopção de conduta contributiva para o agravamento dos danos, chama a atenção para a enorme desproporção entre o prejuízo resultante do acidente em si e o que, na respectiva sequência, se verificou e clama por um ajustamento dos valores atribuídos na sentença.

            A equidade, entendida como a justiça do caso concreto[2], que, aliás, a nossa lei não dispensa (n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil, por exemplo), tal como a cláusula geral da boa fé, “o ar que circula em toda a vida do contrato” e impõe ao credor “todo um conjunto de deveres de lealdade, de colaboração e de protecção”[3], imanente ao sistema jurídico que nos rege (artigo 762.º, n.º 2 do mesmo diploma), postulam, tal como se decidiu no aresto que se vem seguindo, se encontre “um ponto médio situado entre o período de paralisação que se verificaria se o veículo fosse de imediato reparado e o largo período em que esteve, também com a contribuição do lesado, imobilizado até hoje”.

            Neste enquadramento, afigura-se justa e equitativa a solução proposta pela ré/recorrente de se reduzir em 50% a indemnização arbitrada na sentença, respeitante à paralisação da viatura de que a autora é proprietária.

            IV. Sintetizando:

           

            1) Não é possível à Relação alterar a matéria de facto fixada em 1.ª instância com base em prova documental e testemunhal, quando o recorrente não impugnou os depoimentos em causa e a prova documental não tem força probatória plena;

            2) Ao contrário do que sucedia no regime anterior ao introduzido pelo DL 180/96, de 25 de Setembro, a litigância de má fé pode ter por fundamento, tanto o dolo como a negligência grave;

            3) O simples facto de se ter provado a versão factual contrária à alegada pela parte, não acarreta, só por si, a litigância de má fé;

            4) No âmbito dos acidentes de viação, não cessa a mora do lesante, se o mesmo se limita a comunicar ao lesado qual o valor de indemnização que entende correcto, mas não o coloca à sua disposição.

            5) É ao lesante que cabe restituir o lesado à situação em que se encontrava antes do acidente;

            6) No entanto, o lesado está obrigado a agir com diligência, nomeadamente não dilatando no tempo a propositura de acção de indemnização, sob pena de contribuir para o agravamento dos danos e ver reduzido o montante a atribuir.

            V. Decisão:  

            Em face do exposto, decide-se:

            a) Julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo autor, confirmando, nessa parte, a sentença recorrida;

            b) Julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela ré, nos termos explanados, e, em consequência, revogar a sentença, na parte em que condenou a ré a pagar à autora a quantia diária de € 153,93 desde o dia 13 de Março de 2002 até efectivo pagamento, respeitante ao dano de paralisação da viatura desta, reduzindo o montante indemnizatório para metade, conforme o acima exposto;

            c) Manter, no mais, a sentença apelada;

            d) Condenar a autora nas custas do recurso que interpôs;

            e) Condenar autora e ré nas custas do recurso interposto por esta, na proporção de 40% para a primeira e de 60% para a segunda;

            f) Condenar autora e ré nas custas devidas em 1.ª instância, na mesma proporção.


[1] A disposição, do Código de 1939, não teve correspondência na versão inicial do Código de 1961, mas foi reposta, conquanto com diferente redacção, pelo DL 329-A/95, de 12 de Dezembro (artigo 266.º-A).
[2] Dário Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 2.ª edição, página 104.
[3] Stela Marcos de Almeida Neves Barbas, CJ/STJ, Ano II (1994), Tomo II, página 14.