Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
300/06.6TBGVA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIRECÇÃO EFECTIVA
PROPRIETÁRIO
PRESUNÇÃO
COMISSÃO
ÓNUS DA PROVA
COLISÃO DE VEÍCULOS
RESPONSABILIDADE CIVIL
Data do Acordão: 05/06/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GOUVEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 349.º; 503.º; 506.º; 1305.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. É de presumir que o proprietário do veículo tem a sua direcção efectiva e o utiliza no seu próprio interesse, mesmo que o veículo seja conduzido por outrem.
2. Com efeito, outras pessoas, que não o proprietário, podem ter a direcção efectiva do veículo e utilizá-lo no seu interesse.
3. Provado que o proprietário tem a direcção do veículo e o utiliza no seu interesse, a condução do veículo por outrem não faz presumir judicialmente a existência de uma relação de comissão.
4. A relação de comissão é definida como serviço ou actividade realizados por conta, na dependência e sob a direcção de outrem.
5. Sobre o lesado recai o ónus de provar os factos que tipificam a relação de comissão.
6. Não se apurando a culpa efectiva ou presumida, intervém a responsabilidade pelo risco daquele que tiver a direcção efectiva do veículo e o utilizar no seu interesse.
7. Na colisão entre dois veículos, sendo objectiva a responsabilidade, esta é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos contribuiu para os danos.
8. Tratando-se de dois veículos ligeiros de passageiros é de considerar igual a proporção.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                     I)- RELATÓRIO

A.....intentou, no Tribunal Judicial de Gouveia, acção declarativa, sob a forma de em processo sumário, contra B.....- COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., pedindo a condenação da Ré seguradora ao pagamento da quantia de € 10.490,00, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, desde a citação e ainda ao pagamento da quantia de € 20 por dia decorrido entre 05.09.2006 até à data em que a Ré pague o valor venal do seu veículo.

Para tanto, alegou, em síntese, que é dono e legítimo possuidor do veículo ligeiro de passageiros de matrícula 50-39-SP; que no dia 4 de Abril de 2006, pelas 17 horas e 10 minutos, conduzia esse veículo na variante que liga a freguesia de Vinhó à Ponte Pedrinha, no município de Gouveia, a uma velocidade não superior a 30/40 km/h pela hemifaixa de rodagem direita atento o sentido de marcha que seguia (Vinhó-Ponte Pedrinha); que nesse dia chovia e o piso estava molhado; que antes de chegar a uma curva para a sua esquerda, surgiu o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 66-AJ-80 pertença de C..... e conduzido, na altura, pelo seu filho D.....; que o referido D..... tinha acabado de fazer um favor ao seu pai, tratando-lhe de um assunto pessoal; que o referido veículo transitava a uma velocidade superior a 70 ou 80 km/h; que a estrada tem curvas fechadas e apenas três metros de largura; que o condutor desse veículo circulava ocupando quase totalmente a hemifaixa de rodagem contrária; que ele, Autor, ainda travou e encostou totalmente o seu veículo à berma direita da estrada, mas não conseguiu evitar o embate que ocorreu a menos de um metro da berma direita, atento o seu sentido de marcha; que o proprietário do 66-AS-80 havia transferido para a Ré seguradora a sua responsabilidade através da apólice n.º 3612203; que, em virtude do acidente o seu veículo sofreu danos cuja reparação ultrapassava o valor comercial do mesmo que era de € 7.000,00, facto que levou a própria Ré a considerar técnica e economicamente inviável a reparação; que continua privado do seu veículo para as deslocações diárias que necessita fazer para o seu local de trabalho; que está quase sempre dependente da disponibilidade do carro de um filho e de um amigo e quando estes não estão disponíveis tem que recorrer a táxis, reclamando a quantia diária de € 20,00 a título de indemnização pela privação do uso.

Regularmente citada, a Ré contestou, impugnando os factos articulados pelo Autor e imputando a culpa exclusiva ao Autor, dizendo, em síntese, que o D..... conduzia o veículo, com a  matrícula 66-AS-80, por sua livre iniciativa e sem que o seu pai soubesse que ele o fazia naquele dia; que o D..... conduzia o aludido veículo, pela hemifaixa direita atento o seu sentido de marcha e encostado à berma; que, ao aproximar-se de uma curva à sua direita, surgiu o veículo do Autor que ocupava parcialmente a hemifaixa de rodagem esquerda atento o sentido de marcha deste, ou seja, e como vulgarmente se diz, “cortava a curva”; que o D..... ainda travou e encostou-se à direita, entrando na berma, mas que mesmo assim não conseguiu evitar o embate; que o valor venal do veículo do Autor à data do acidente era de € 6.700,00 e que após o acidente passou a valer € 1.770,00.

Concluiu a Ré pela total improcedência da acção e consequente absolvição do pedido.

Prosseguindo os autos a sua normal tramitação, com prolação do despacho saneador, selecção da factualidade relevante, instrução e audiência de julgamento, foi, por fim, proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente e provada, sendo a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de € 2.500,00, a título de indemnização pela privação do uso do veículo; a quantia de € 450,00 devida pela despesa de desmontagem e aparcamento do veículo; e a indemnização de € 4.930,00 correspondente ao valor venal ou comercial do veículo sinistrado. Mais foi condenada a pagar juros de mora, à taxa legal, sobre essas quantias, desde a citação até integral pagamento.

A Ré não se conformou com tal decisão, dela apelando e extraindo da sua alegação as seguintes conclusões:

1ª-A culpa do condutor do veículo seguro na Ré não se presume, como o Tribunal recorrido assim entende, pois não se provou que aquele conduzisse o veículo por conta e no interesse do seu pai;

2ª-Não incumbia à Ré provar um facto negativo que era o D..... não conduzir por conta e no interesse do proprietário, isto porque, juridicamente provam-se factos pela positiva e não pela negativa;

3ª-Não provando o Autor a culpa do condutor do 66-AS-80 na produção do acidente, e, não se provando que este dirigia o veículo por conta e no interesse do pai, proprietário do veículo, afastada fica a culpa presumida, importando a absolvição da Ré do pedido;

4ª-A culpa não se presume só pelo facto do veículo se conduzido por quem não é o seu proprietário, importando provar que tal condução é feita no interesse deste;

5ª-E o Autor não logrou provar os factos do ponto 4º da base instrutória, ou seja que o condutor do veículo 66-AS-80, naquele momento, tinha acabado de ir fazer um favor ao pai, tratando-lhe de um assunto pessoal;

6ª-Quando muito se o Tribunal entender que releva no caso o facto do Autor também não ter agido com culpa na produção do acidente, poderia apenas socorrer-se da repartição da responsabilidade na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos;

7ª-E não detendo os autos elementos para definir a proporção, na dúvida, considerar-se-ia igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos, bem como a contribuição da culpa de cada um dos condutores;

8ª-Tudo nos termos do art. 506º, n.ºs 1 e 2 do CC;

9ª- O Tribunal recorrido violou, entre outros, o disposto no art. 503º e eventualmente o art. 506º, por omissão, ambos do CC.

Ou seja, a Ré pugna pela absolvição do pedido ou pela repartição da responsabilidade na proporção de metade para cada uma das partes.

O Autor contra-alegou no sentido da manutenção do julgado, ampliando, a título subsidiário, o âmbito do recurso no que tange à decisão de facto por forma a dar-se como provada a factualidade vertida nos n.ºs 7º e 9º da base instrutória, qualificando tais itens a culpa efectiva do condutor do veículo seguro. Ampliação essa a apreciar, caso procedam as questões suscitadas pelo Recorrente ( parte final do n.º2 do art. 684º-A do CPC).

A Ré não respondeu à requerida ampliação do objecto do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

                                            II)- OS FACTOS

Na sentença da 1ª instância foi dada por assente a seguinte factualidade:

1)-O Autor é proprietário do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 50-39-SP – A) da matéria assente;

2)-No dia 4 de Abril de 2006, pelas 17 horas e 10 minutos, conduzia esse veículo na Variante que liga a freguesia de Vinhó à Ponte Pedrinha, neste Concelho – B) da matéria assente;

3)-Nesse dia chovia e o piso estava molhado – C) da matéria assente;

4)-O veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 66-AS-80 pertencia a C..... Almeida e era, na altura, conduzido pelo seu filho D..... Jorge da Silva Almeida – D) da matéria assente;

5)-O proprietário do 66-AS-80 havia transferido a sua responsabilidade para a seguradora Ré através da apólice n.º 3612203 – E) da matéria assente;

6)-Com o embate o veículo do Autor sofreu danos em toda a parte frontal e lateral esquerda – F) da matéria assente;

7)-A reparação dos danos que sofreu atingia ou ultrapassava o referido valor, de acordo com o orçamento de reparação, datado de 11-07-2006 e de desmontagem do veículo e dias de aparcamento, datado de 27-7 – G) da matéria assente;

8)-Tal facto levou a Ré a considerar técnica e economicamente inviável a reparação, facto esse comunicado ao Autor, através de carta datada de 8 de Maio de 2006 e que se encontra inserta a fls. 27, a qual se considera integralmente reproduzida – H) da matéria assente;

9)-O Autor conduzia o veículo 50-39-SP a uma velocidade não concretamente apurada – resposta ao artigo 1º da base instrutória;

10)-O Autor seguia no sentido Vinhó-Ponte Pedrinha – resposta ao artigo 2º da base instrutória;

11)-Antes de chegar a uma curva para a sua esquerda, surge-lhe em sentido oposto o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 66-AS-80 – resposta ao artigo 3º da base instrutória;

12)-O aludido veículo transitava a uma velocidade não concretamente apurada – resposta ao artigo 5º da base instrutória;

13)-A estrada apresenta curvas fechadas e tem uma largura de 3 metros – resposta ao artigo 6º da base instrutória;

14)-Com o embate o veículo do Autor sofreu danos em toda a parte frontal e lateral esquerda – resposta ao artigo 10º da base instrutória;

15)-O valor venal ou comercial do veículo Toyota Yaris, era de, pelo menos, € 7.000,00 – resposta ao artigo 11º da base instrutória;

16)-O Autor vive em Seia e trabalha numa fábrica de Moimenta da Serra – resposta ao artigo 12º da base instrutória;

17)-E percorre todos os dias, pelo menos 35 km, sem contar com as deslocações de lazer e para tratar de assuntos pessoais – resposta ao artigo 13º da base instrutória;

18)-Desde a data do embate até hoje tem usado o carro de um filho e de um amigo quando o podem emprestar – resposta ao artigo 14º da base instrutória;

19)-E quando não podem, o que acontece na maioria dos dias, recorre a boleias e a táxis – resposta ao artigo 15º da base instrutória;

20)-O Autor está quase sempre dependente da vontade e disponibilidade de terceiros – resposta ao artigo 16º da base instrutória;

21)-E tal facto faz com que ande mais tempo a pé – resposta ao artigo 17º da base instrutória;

22)-Esteja mais tempo fora de casa da família – resposta ao artigo 18º da base instrutória;

23)-E tenha de adiar compromissos e viagens de lazer – resposta ao artigo 19º da base instrutória;

24)-Teria de ser pago o montante diário de, pelo menos, € 20,00 se o Autor optasse por ter alugado um veículo idêntico ao seu em empresa do ramo – resposta ao artigo 20º da base instrutória;

25)-O Autor tem de pagar a quantia de € 450,00 a oficina a título de desmontagem e aparcamento do veículo – resposta ao artigo 21º da base instrutória;

26)-O D..... Jorge da Silva Almeida conduzia o veículo 66-AS-80, no sentido Lagarinhos-Vinhó – resposta ao artigo 22º da base instrutória;

27)-O condutor do 66-AS-80 conduzia-o, atento o sentido de marcha – resposta ao artigo 24º da base instrutória;
28)-Ao aproximar-se da curva à sua direita surgiu-lhe em sentido contrário o veículo 50-39-SP – resposta ao artigo 25º da base instrutória;

­29)-O embate ocorreu no veículo conduzido pelo D..... – resposta ao artigo 27º da base instrutória;

30)-A berma do lado direito em terra batida, atento o sentido de marcha do veículo 66-AS-80, tinha 85 centímetros – resposta ao artigo 28º da base instrutória;

31)-E a berma direita em terra batida, atento o sentido de marcha do SP, tinha 1,60 metros – resposta ao artigo 29º da base instrutória;

32)-O valor do aludido veículo passou a ser de, pelo menos € 1.770,00 – resposta ao artigo 31º da base instrutória.

                                      III)- O DIREITO

Tendo em conta as conclusões da alegação a delimitar, em princípio, o objecto do recurso (arts. 690º, n.º1 e 684º, n.º3, ambos do CPC), e o requerimento de ampliação do objecto do recurso por parte do Autor/Recorrido, importa dilucidar as seguintes questões:

1ª-Ónus de prova da relação de comissão que está na base da culpa presumida a que alude o n.º3 do art. 503º do CC.

2ª-Imputação da responsabilidade na produção do acidente.

3ª-A título subsidiário, o reexame da decisão de facto.

III-1)- Vejamos a 1ª questão.

Na sentença impugnada concluiu-se pela culpa presumida do condutor do veículo 66-AJ-80, seguro na Ré, uma vez provado que esse veículo pertencia a C..... Almeida e era, na altura, conduzido pelo seu filho D......  Aí se consignou que “a propriedade do veículo faz presumir a direcção efectiva e o interesse na sua utilização pelo dono, incumbindo ao proprietário o ónus da prova que não tinha a direcção efectiva do veículo e que este não circulava no seu próprio interesse; quando não, funcionará a presunção de culpa do n.º3 do art. 503º do Código Civil, susceptível de prova em contrário  (…) A Ré não logrou provar que o condutor do veículo, o Tiago, conduzia a viatura nela segura sem autorização e contra a vontade do seu proprietário”, conforme alegara na contestação.

A Ré Apelante discorda deste entendimento, porque o Autor, apesar de ter alegado, não logrou provar a existência de uma relação de comissão entre o dono do veículo 66-AJ-80 e condutor, ou seja, no caso em apreço, entre o pai e o filho.  E só provando o lesado a condução no interesse e por conta do proprietário do veículo é que se presume a culpa ao abrigo do n.º3 do art. 503º do CC.

Que dizer?

Prescreve o n.º 3 do art. 503º do CC o seguinte:

“Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do n.º1”. Isto é, nesta última hipótese, o comissário responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que esta não se encontre em circulação.

A condução de veículo automóvel por conta de outrem supõe uma relação de comissão entre o condutor e aquele tiver a direcção efectiva do veículo e o utilizar no seu próprio interesse. E não só o proprietário tem a direcção efectiva do veículo causador do dano, bem podendo dizer-se, a título de exemplo, que o usufrutuário, o adquirente com reserva de propriedade e o locatário de veículo, também têm a direcção efectiva e utilizam o veículo no seu próprio interesse[1].

Sem dúvida que é de presumir naturalmente ter o proprietário a direcção efectiva e utilizar o veículo no seu próprio interesse, mesmo que conduzido por outrem, porque essa direcção e utilização fazem parte do conteúdo do direito de propriedade, como este é definido no art. 1305º do CC[2]. Dai que incida sobre o dono do veículo o ónus de provar não ter a direcção efectiva nem o veículo circular no seu próprio interesse. Mas uma vez provado que o proprietário do veículo tem a direcção efectiva do veículo e o utiliza no seu próprio interesse, a condução do veículo por outrem não faz presumir judicialmente, à luz de juízos correntes de probabilidade, a existência de uma relação de comissão, definida esta como serviço ou actividade realizados por conta e sob a direcção de outrem, podendo esta actividade traduzir-se num acto isolado ou numa função duradoura, ter carácter gratuito ou oneroso, manual ou intelectual ( cfr. Código Civil Anotado, vol. 1º, 4ª edição, p. 507, de Pires de Lima e Antunes Varela). Como se assinala na fundamentação do Assento do STJ, de 30.04.1996,publicado no BMJ n.º 456º, p. 19 a 26, “a alegação e prova dos factos que tipifique a relação de comissão que está na base da responsabilidade por culpa presumida, estabelecida no n.º3, primeira parte, do art. 503º, incumbirá ao lesado, na medida em que será ele a beneficiar da existência dessa relação. Verificado o mesmo, surge uma presunção de culpa do condutor, o que implica uma inversão do ónus da prova (art. 350º, n.º1), uma vez que é ao lesado, de harmonia com os princípios válidos no capítulo do ónus da prova (art. 342º, n.º1), que incumbe provar a culpa do autor da lesão”.

Em suma, se é de presumir que o proprietário tem a direcção efectiva e interessada do veículo, já não é lícito presumir judicialmente, ao abrigo do art.349º do CC, que o terceiro que conduz o veículo é comissário daquele. É elemento integrante, quer da responsabilidade objectiva prevista no n.º1 do art. 503º, quer da responsabilidade fundada na culpa presumida do n.º3 do mesmo artigo, a existência de uma relação de comissão entre o condutor do veículo e aquele que tem a direcção efectiva e interessada do mesmo veículo, relação essa a alegar e provar pelo lesado[3].

Assim sendo, não tendo o Autor logrado provar os factos que tipificam uma relação de dependência ou comissão entre o condutor do veículo seguro e o proprietário deste, ou seja, entre o D.....e o pai, não é aplicável à hipótese ajuizada a disciplina do art. 503º, n.º1, primeira parte, do CC. Como correctamente defende a Ré, a culpa do condutor do veículo seguro na produção do acidente não se presume, daí que não deva ser responsabilizada com fundamento nessa culpa.

III-2)- Examinemos, agora, a 2ª e 3ª questões.

Na tese da Ré seguradora, não se provando a culpa efectiva ou presumida dos condutores na produção do acidente, sempre se impunha a repartição da responsabilidade na proporção em que o risco de cada dos veículos houver contribuído para os danos, ao abrigo do art. 506º do CC.

Todavia, como acima se relatou, o Autor, na respectiva alegação, e a título subsidiário, requereu a ampliação do objecto do recurso, impugnando a decisão de facto, com o fim de imputar a culpa efectiva ao condutor do veículo seguro.  Tendo procedido a 1ª questão suscitada pela Ré, interessa examinar, em primeiro lugar a divergência do Autor, porque a sua solução da mesma pode logicamente prejudicar o conhecimento da 2ª questão colocada pela Ré. Com efeito, a ser reconhecido que deve ser alterada a decisão de facto nos termos pretendidos, apurando-se a culpa efectiva do condutor do veículo seguro, não tem cabimento a aplicação do art. 506º do CC.

Analisando, pois, a ampliação do objecto do recurso requerida pelo Autor/Recorrido, defende este que diversas respostas deveriam ser dadas aos pontos de facto n.ºs 7º e 9º da base instrutória. E como concretos meios probatórios a justificar essa alteração, aponta o auto de participação do acidente de viação elaborado pela GNR, e que foi junto com a petição inicial, bem como os depoimentos do agente da GNR …… e do condutor do veículo seguro, ou seja, o D…. 

Tendo sido gravada a prova produzida na audiência de julgamento, nada obsta a que este Tribunal reexamine a decisão impugnada sobre a matéria de facto (alínea a) do n.º1 do art. 712º do CPC).

Os pontos de facto em causa revestem o seguinte teor:

-O veículo 66-AS-80 circulava, ocupando quase totalmente a hemifaixa de rodagem contrária?—n.º 7.

-O embate ocorreu a menos de um metro da berma direita, atento o sentido de marcha do A.?- n.º 9.

Na resposta ao ponto 7º considerou-se provado o que consta da resposta ao ponto 22º, ou seja, apenas provado que o D..... conduzia o veículo 66-AS-80, no sentido Lagarinhos- Vinho. O ponto n.º 9 obteve resposta de “não provado”.

Analisando a participação do acidente, junta a fls. 19 a 20, consta do “croquis”, que a faixa de rodagem tem 3 metros de largura, tendo os condutores divergido sobre o local provável de embate entre os dois veículos. Assim, o condutor do veículo seguro fixou esse local a 1,30 m. da berma esquerda, atento o seu sentido de marcha, tendo o Autor indicado esse local a 0.90 cm dessa mesma berma. Mas já na parte relativa à descrição do acidente, consigna-se ter o condutor do veículo seguro  afirmado  “que circulava na Variante de Vinho/Ponte Pedrinha, no sentido de marcha Ponte Pedrinha/Vinho, ao chegar ao local do embate, surgiu-lhe um veículo, em sentido oposto do mesmo, que imediatamente encostou junto à berma, e quase que parou o veículo para evitar o embate, mas não o conseguiu, tendo o mesmo embatido”. Já o Autor, condutor do outro veículo, referiu ao Soldado da GNR “que circulava na Variante Vinhó/Ponte Pedrinha, no mesmo sentido de marcha, e que ao chegar ao local do embate, numa curva fechada, apareceu-lhe um veículo em sentido oposto fora de mão em excesso de velocidade, não lhe sendo possível evitar o embate com o outro veículo”. Isto é, ambos os condutores declararam, na altura, à autoridade participante do acidente circular pela sua hemifaixa de rodagem.

A este respeito, diga-se que a participação de acidente de viação, como documento autêntico, tem força probatória plena relativamente aos factos praticados pelo agente da autoridade, assim como dos factos que neles são atestados com base nas suas percepções, nos termos do art. 371º do CC. No caso ajuizado, a participação de acidente apenas prova plenamente que os condutores fizeram aquelas declarações, ou assim descreveram o acidente e indicaram o local provável do embate, mas não prova que essas declarações correspondam à realidade. Enfim, nada prova a participação sobre a dinâmica do acidente, tendo a GNR sido chamada ao local para tomar conta do acidente após a sua verificação. Aliás, a declaração do acidente atribuída ao condutor do veículo seguro entra em contradição com o local provável que indicou para o embate entre os veículos.

Percorrendo ainda o depoimento gravado da testemunha ……, Soldado da GNR que elaborou a participação do acidente, confirma ter consignado o teor das declarações de ambos os condutores sobre a dinâmica do acidente e local provável do embate  e elaborado o “croquis” tendo em conta a posição dos veículos após o acidente e outros dados objectivos que percepcionou no local. Como é óbvio, nada poderia depor sobre a dinâmica do acidente, porque não o presenciou.

A testemunha D……, condutor do veículo seguro, afirmou que o embate entre os veículos ligeiros de passageiros ocorreu dentro da sua mão de trânsito e o seu veículo pisava mesmo a berma ao fazer a curva de fraca visibilidade para o seu lado direito. O veículo do Autor é que vinha a “cortar a curva” por dentro. Mais disse que o “croquis” está errado relativamente ao local provável do embate que, na altura, indicou, tendo mesmo pedido para o corrigir. Sendo certo também que os condutores divergiam quanto a esse ponto, mas o embate foi dentro da sua hemifaixa. Não teve tempo de travar ou reagir e no local não ficaram rastos de travagem. Atenta a largura da faixa de rodagem (3 m.), acrescentou ser impossível o cruzamento de veículos automóveis, mas o veículo do Autor é que “vinha mais para o centro” da estrada alcatroada. 

Face aos meios probatórios indicados pelo Autor, que se deixaram sumariamente escalpelizados, não se vislumbra, salvo o devido respeito pela opinião contrária, incorrecto julgamento dos pontos de facto n.ºs 7 e 9 da base instrutória, contendo matéria alegada pelo Autor e qualificando culpa exclusiva do condutor do veículo seguro na produção do acidente. Este condutor, ou seja, a testemunha D…., manifestamente não se considera culpado, imputando antes a culpa ao Autor na produção do acidente.

Improcede, pois, a tese do Autor vertida na ampliação do objecto do recurso.

Todavia, não se tendo apurado a culpa efectiva ou presumida por parte de qualquer dos condutores, tal não significa que a Ré seguradora, para quem foi transferida a responsabilidade dos danos causados a terceiros com o veículo 66-AS-80, fique liberta da obrigação de indemnizar. Com efeito, nos termos do n.º 1 do art. 503º do CC, aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.  E em conformidade com o n.º1 do art. 506º do CC, “se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos…”.

No caso dos autos, a colisão ocorreu entre dois veículos ligeiros de passageiros, sem culpa apurada de qualquer dos condutores, julgando-se, pois, igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos, medida igualitária sempre a considerar em caso de dúvida (primeira parte do n.º2 do art. 506º do CC). Não se impugnando o montante dos danos patrimoniais causados ao Autor (a quantia de € 2.500,00 resultante da privação do uso do veículo;  a quantia  de € 450,00 devida pela despesa de  desmontagem e aparcamento do seu veículo e a quantia de € 4.930,00 pelo valor comercial do mesmo veículo), é devida ao Autor uma indemnização correspondente a metade do valor desses danos, ou seja, a quantia global de €   3.940,00.  

                      

                                             IV)- DECISÃO

Nos termos e pelos motivos expostos, acorda-se em:

1-Conceder provimento ao recurso.

2-Revogar em parte a sentença impugnada, e, em consequência, condenar a Ré a pagar ao Autor uma indemnização no montante de € 3.940,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação até efectivo e integral pagamento.

3-Condenar o Autor nas custas do recurso, sendo as custas da 1ª instância suportadas por ambas as partes na proporção do decaimento.


[1] Cfr. “Das Obrigações em Geral”, vol. 1º, 9ª edição, p. 680, de Antunes Varela e “Direito das Obrigações”, vol. 1º, p. 329 e 330., de Menezes Leitão. 
[2] Cfr. acórdãos do STJ, publicados no BMJ n.º 311º, p. 449 , na CJ 1997, 1º, p. 15, na CJ 2001º, 1º, p. 130, na CJ 2001, 3º. P. 141, no BMJ n.º 380º, p. 469 e no BMJ n.º 403º, p. 393;  acórdãos da Relação de Lisboa, na CJ 1999, 1º, p. 150, sumariado no BMJ n.º 421º, p. 490; da Relação do Porto, na CJ 1993, 5º, p. 198
[3] A este respeito, cfr. acórdão do STJ, publicado na CJ 1995, 1º, p. 60 e 61; acórdãos desta Relação publicados na CJ 1999, 3º, p. 26, na CJ 1998, 1º, p. 32 e sumariados no BMJ n.º 474º, p. 555 e no BMJ 448º, p. 445; acórdãos da Relação do Porto, publicados na CJ 1995, 1º, p. 225, na CJ 1993, 5º, p. 201, na CJ 1997 e sumariado no BMJ 401º, p. 634 e 472º, p. 559.