Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
15/09.3TBPNC.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: DEPÓSITO BANCÁRIO
CONTA SOLIDÁRIA
TITULARIDADE
PROPRIEDADE
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - FUNDÃO - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 512.º E 516.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I. “O depósito bancário, em sentido próprio, é um depósito em dinheiro, constituído junto de um banqueiro”, tratando-se de operação associada a uma abertura de conta.

II. Nas contas de depósito solidárias qualquer um dos titulares tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral, o mesmo é dizer, o reembolso de toda a quantia depositada, caso em que a prestação assim efectuada liberta o devedor (banco depositário) para com todos eles (cf. art.º 512.º do Código Civil). Dado este particular regime, assenta necessariamente numa relação de confiança entre os contitulares, que não desconhecem a possibilidade de apenas um deles reclamar a totalidade do saldo.

III. Questão diversa é saber qual a quota-parte que cada um dos titulares detém no saldo da conta solidária, impondo-se distinguir entre “titularidade da conta” e “propriedade dos fundos”.

IV. Sendo a inventariada e a interessada reclamante contitulares de conta solidária e tendo sido feita prova de que os fundos nela existentes provinham exclusivamente de poupanças e pensões de reforma da primeira, não há que recorrer à presunção estabelecida no art.º 516.º do CC, que pressupõe um estado de dúvida que no caso não existe.

V. Não obstante ter ficado demonstrado que a dita interessada procedeu ao levantamento, mais de quatro anos antes da morte da inventariada, do saldo da dita conta solidária, que transferiu para conta sua, se não se apurou que tal movimento foi feito sem o conhecimento e consentimento da inventariada, assim correspondendo a uma ilícita apropriação dos dinheiros que a esta pertenciam, factos estes que nem alegados foram, não é possível afirmar a existência de um crédito da herança sobre aquela interessada, cuja prova cumpria ao cabeça de casal, que como tal o relacionou.

Decisão Texto Integral:
I. Relatório

Requereu A..., residente na Rua (...), em Meimão, a instauração de inventário para partilha da herança aberta por óbito de sua tia B..., falecida no dia 24 de Janeiro de 2009, indicando para o exercício do cargo de cabeça de casal C..., irmão da falecida.

Nomeado o indicado, ouvido que foi em declarações, identificou como herdeiros da falecida, por vocação legal e testamentária, seus irmãos germanos C...; D...; E...; F...; E...; H...; e em representação de sua irmã pré-falecida I..., os filhos desta, que da inventariada são sobrinhos: J...; A..., ora requerente; e L....

Apresentada a relação de bens, e para o que aqui importa, relacionou o cabeça de casal como verbas n.ºs 1 e 2 do activo, respectivamente, “a quantia de € 45 785,00, a qual se encontra na posse do cabeça de casal” e “contas bancárias e aplicações financeiras no montante de € 173 800,00 (cento e setenta e três mil e oitocentos euros), reportado à data de 9/7/2004, que se encontrava depositado no Banco Millenium BCP”, quantia que disse encontrar-se na disponibilidade e posse da interessada E....

Citados os interessados, e notificados da relação de bens apresentada, dela reclamaram E... e M... e mulher, acusando, para o que aqui importa, a indevida relacionação da descrita verba n.º 2, por se tratar de bens que não existiam à data do óbito da inventariada, não constituindo bens da herança e, bem assim, a omissão de relacionação dos produtos financeiros de que a inventariada era titular.

Notificado o Cabeça-de-Casal, pronunciou-se pela manutenção da referida verba n.º 2, esclarecendo que o montante aí relacionado proveio do resgate dos Fundos/seguros poupança que a Inventariada detinha no Banco Millennium BCP, correspondendo a dinheiros que lhe pertenciam exclusivamente, não obstante a interessada E... e a sobrinha de ambas, O..., serem co-titulares da conta bancária na qual as quantias em causa foram depositadas. Mais esclareceu que a quantia relacionada em 1. é proveniente do resgate das aplicações/fundos e poupanças que a inventariada detinha no Banco Millenium BCP cuja omissão foi acusada.

Em jeito de resposta à resposta, vieram os interessados reclamantes declarar saber que a inventariada recebia pensões de reforma do estrangeiro cujos montantes não gastava, requerendo fosse oficiado a diversas instituições bancárias tendo em vista apurar a existência de outras contas tituladas pela inventariada nas quais tais quantias pudessem ter sido depositadas.

Instruído o incidente com realização das diligências tidas por pertinentes, incluindo a inquirição das testemunhas oferecidas, foi proferida decisão que, na consideração de que a verba n.º 1 reunia os seguros de poupança e seguro que os próprios inventariados acusavam estar em falta, e que “a massa da herança detém sobre a Interessada G... um crédito correspondente ao valor da transferência de €173.800,00, desde 7/9/2004 até à sua restituição à massa da herança, a que hão-se acrescer os juros legais, uma vez que tal quantia não lhe pertence legalmente”, determinou a manutenção da verba n.º 1 nos seus precisos termos e que “o valor constante da verba n.º 2 continuasse relacionado como um direito de crédito da massa da herança sobre a interessada E... conforme foi relacionado pelo Cabeça-de-casal nos termos do art.º 1345.º do Código do Processo Civil”. Finalmente, atendendo a que fora apurado um saldo credor de €80,59 na conta da CGD de Penamacor, determinou igualmente a relacionação dessa verba, fazendo improceder, quanto ao mais, a reclamação apresentada, no que respeita à matéria de que aqui se cura.
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Prosseguiram os autos com a realização da conferência de interessados e nela, encontrando-se todos eles presentes e/ou representados, acordaram na adjudicação das aludidas verbas n.ºs 2 e 3 a todos os herdeiros, na proporção dos respectivos quinhões.

Foi depois, e na devida oportunidade, proferida sentença homologatória da partilha, com adjudicação dos bens aos interessados nos termos que resultaram do acordo e adjudicações efectuadas na conferência.

Inconformada, apelou a interessada G... da sentença final e, pretendendo impugnar o decidido no âmbito do incidente de reclamação, produziu doutas alegações, que rematou com as seguintes necessárias conclusões:

“1.ª O presente recurso interposto por G... tem como objecto a douta sentença interlocutória da reclamação à relação de bens (…), que decidiu não se pronunciar sobre as diversas reclamações apresentadas;

2.ª Manter o valor constante da verba n.º 2 da relação de bens, relacionado como um direito de crédito da massa da herança sobre a interessada E...;

3.ª Como dispõe o art.º 669.º, n.º 2, als. a) e b) do CPC, consigna-se que o recurso ora interposto abrange o entendimento errado, no parecer da recorrente, de que os autos dispõem de factos que o Tribunal “a quo” ignorou e que, só por si, implicam decisão diversa da proferida e que a recorrente só pode entender ter havido lapso ou erro do Tribunal. Ou a violação ou errada aplicação da lei;

4.ª- Devendo, assim, a sentença ser reformada nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 669.º do CPC; mas caso assim se não entenda, há violação e errada aplicação da lei nos termos do disposto no art.º 668.º, n.º 1, al. d) do CPC, devendo a sentença ser considerada nula nos termos do disposto no art.º 668.º, n.º 1, al. d) do CPC;

5.ª- Da douta sentença, e no que respeita à verba n.º 1, são considerados apenas o montante de € 26 874,56 correspondente a seguros de poupança da inventariada e €14 737,26, totalizando € 41 611,62;

6.ª- Tal montante foi retirado do banco Millenium BCP, e apesar das várias reclamações apresentadas nesse sentido, nunca o cabeça-de-casal esclareceu em que conta é que as mesmas se encontram;

7.ª- Da verba n.º 1 consta a importância de € 45 785,00 depositada numa conta de que a inventariada não era titular;

8.ª- A recorrente sabe que a inventariada recebia mensalmente duas pensões de reforma, mais uma trimestralmente, de montante superior a € 300,00.

9.ª- Apesar de nos requerimentos efectuados ter sido levantada esta questão e se encontrar provado nos extractos bancários juntos aos autos as referidas transferências do estrangeiro, não sabe a agravante nem os restantes interessados, à excepção do cabeça de casal, qual o n.º da conta e a instituição bancária para onde as transferências eram efectuadas;

10.ª- O Tribunal “a quo” decidiu apenas o que estava relacionado e não conheceu do conteúdo das reclamações, no respeitante às transferências do estrangeiro, n.º de conta e banco, como já referido;

11.ª- A inventariada, a recorrente G... e a sobrinha destas, O... não eram co-titulares da conta DO n.º 426410 e DP n.º 2087706654, ambos do Millenium BCP, contrariamente ao referido na sentença;

12.ª- Conforme consta da ficha de abertura de conta do banco junta aos autos, as co-titulares da conta eram a inventariada B... e a recorrente G....

13.ª- Também como consta do documento junto aos autos, a 22 de Setembro de 2004 a recorrente G... procedeu ao resgate da conta a prazo n.º 2087706654, por entender que esse dinheiro lhe pertencia, não se sabendo, uma vez que ambas eram titulares da conta, se o dinheiro lá depositado era só de uma titular (qual delas) ou de ambas;

14.ª- A inventariada B... faleceu em 24/1/2009, nunca pondo em crise o resgate efectuado pela recorrente G...;

15.ª- No processo de inventário importa ter em consideração apenas os bens existentes à data da morte da inventariada;

16.ª- O Tribunal “a quo” decidiu conforme a douta sentença, segundo a sua convicção, baseando-se nos depoimentos das testemunhas, aliás, não transcritos na referida sentença e por presunção judicial;

17.ª- Contudo, é legalmente inadmissível a utilização de depoimentos testemunhais em relação a factos que estiverem plenamente provados por documentos –n.º2 do art.º 393.º do CC e 655.º, n.º 2 do CPC, face aos art.ºs 512.º, n.º 2 e 516.º, ambos do CC;

18.ª- Segundo a douta sentença, a testemunha O... era co-titular da conta; analisada a ficha de abertura de conta, a referida testemunha não era co-titular, mas também a mesma nada sabe dos movimentos das contas em questão, a não ser o que os documentos revelam.

19.ª- Quanto à testemunha P..., o mesmo apenas pode testemunhar o que se encontra escrito nos documentos; quanto às relações patrimoniais existentes entre a inventariada e a recorrente nada sabe, uma vez que, como referido, a transferência ocorreu a 7/9/2004 e a inventariada faleceu em 24/1/2009;

20.ª- As relações patrimoniais existentes entre a inventariada e a recorrente são insusceptíveis de ser provadas pelas testemunhas trazidas pelo cabeça de casal, sendo essa prova nula, por a isso se opor o já mencionado art.º 393.º, n.º 2 do CC;

21.ª- O Tribunal “a quo”, ao manter a verba n.º 2 da relação de bens e não se ter pronunciado quanto às diversas reclamações apresentadas pela recorrente e outros, no referente às importâncias recebidas mensal e trimestralmente pela inventariada de duas pensões de reforma, mais uma social, cuja totalidade é superior a €300,00 (docs. de fls. 101 e seguintes), uma vez que não é sabido para que conta e para que banco as mencionadas transferências do estrangeiro eram efectuadas, violou o disposto nos art.ºs 393.º, n.º 2 e al. d) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC”.

Com os aludidos fundamentos, pretende a alteração da decisão proferida no sentido de ser eliminada a verba n.º 2 da relação de bens e seja emitida pronúncia sobre as reclamações apresentadas no respeitante às transferências do estrangeiro, indicando o cabeça de casal o n.º da conta e o banco para onde as mesmas foram efectuadas.
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Contra alegou o cabeça de casal, pugnando naturalmente pela manutenção do decidido.
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Assente que pelo teor das conclusões se define e delimita o objecto do recurso, são questões submetidas à apreciação deste Tribunal:

i. determinar se a sentença padece da nulidade da omissão de pronúncia, nos termos da al. d) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC em vigor ao tempo (art.º 615.º n.º 1, al. d) do NCPC);

ii. ocorreu erro de julgamento (de facto e de direito) quanto à manutenção da relacionação das verbas n.ºs 1 e 2 nos termos que foram determinados na decisão proferida, designadamente por ter sido considerada prova testemunhal em violação da lei (n.º 2 do art.º 393.º do CC e 655.º, n.º 2 do CPC, face aos art.ºs 512.º, n.º 2 e 516.º, estes do CC).
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i. da nulidade da decisão proferida

A recorrente imputa à decisão proferida o vício extremo da nulidade, por não se ter pronunciado sobre questão submetida ao seu conhecimento.

A nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 668.º (actualmente na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPC) sanciona o incumprimento do preceituado no n.º 2 do art.º 660.º (n.º 2 do art.º 608.º do código vigente), preceito nos termos do qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.

Refira-se, a propósito do assim preceituado, que com as questões de facto e de direito sobre as quais o Tribunal há-de necessariamente pronunciar-se não se confundem os meros argumentos ou razões invocadas pelas partes para convencer da bondade da sua tese, não integrando a nulidade constante da al. d) do preceito a que nos vimos reportando a falta de discussão de algum do argumentário expendido.

No caso que nos ocupa, os reclamantes haviam suscitado a omissão de relacionação de fundos/aplicações/poupanças da inventariada, dizendo-se convictos da existência de montantes não relacionados, também com assento na circunstância, mais tarde invocada -esta precisa questão apenas em sede de inadmissível “resposta” à resposta do cabeça de casal foi suscitada[1], pelo que deveria ter sido processualmente tratada como tardia reclamação, nos termos do disposto no n.º 6 do art.º 1348.º do CPC-, da falecida B... ser beneficiária de pensões de reforma abonadas pela segurança social de país estrangeiro que, no seu conjunto, excederiam os €300,00, quantia que aquela não consumiria na sua totalidade.

Sucede, porém que, tal como se alcança da decisão proferida, efectuadas as diligências requeridas pelos reclamantes, apurou-se tão-somente a existência de um saldo remanescente na conta da CGD n.º 0603013627400, no valor de € 80,59, cuja relacionação foi determinada, afirmando-se expressamente não se ter logrado apurar que “existiam à data da morte da inventariada outros produtos financeiros para além daquela quantia” (com ressalva obviamente do montante relacionado pelo cabeça de casal como verba n.º 1, que disse encontrar-se em seu poder e cuja proveniência esclareceu em termos que foram corroborados pela documentação bancária junta aos autos).

Atento o que se deixa dito, e sublinhando-se que a apelante não questiona esta concreta factualidade, fácil se torna concluir que não se verifica a apontada omissão que é causa de nulidade da sentença. Pode questionar-se o acerto da decisão, mas essa é questão que não contende com a sua validade formal.

Improcede, pelo exposto, a arguida nulidade e, com elas, as conclusões recursivas de 5 a 10.
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II. Fundamentação

De facto

Na decisão proferida foi dada como assente a seguinte factualidade:

1. No Banco Millenium BCP existiam seguros de poupança da Inventariada no montante de € 26.874,56 e um seguro no valor de € 14.737,26, que estão na origem da verba n.º 1 da relação de bens.

2. A Inventariada, a interessada E... e a sobrinha destas, O..., eram co-titulares das contas depósito à ordem n.º 4261410 e depósito a prazo n.º 2087706654, ambas do Millenium BCP.

3. A conta depósito a prazo n.º 2087706654, do Millenium BCP, no valor de €171.050,88, foi constituída em 02/10/2003, em nome de B....

4. O dinheiro depositado em 2. e 3. era proveniente de reformas e poupanças da  inventariada.

5. Em 7/09/2004, por ordem de resgate da interessada G..., saiu da conta da Inventariada n.º 2087706654 o valor de € 173.800,00 e foi transferido para a conta à ordem com o n.º 4253345, por aquela titulada.

6. À data do óbito da inventariada existia na conta com o n.º 0603013627400 da Agência de Penamacor da CGD um saldo de 80,59€.

7. São pertença da Inventariada um prédio rústico, inscrito na respectiva matriz predial da freguesia de Meimão, sob o artigo 221.º, secção “P” e uma parte indivisa de um prédio inscrito na respectiva matriz predial da freguesia de Meimão, sob o artigo 4.º, secção “D”, correspondente a uma palheira com uma pequena parcela de terreno.
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Matéria de facto não provada

a) Pertencem à herança da inventariada: - 1/7 do prédio urbano inscrito na matriz da freguesia do Meimão sob o n.º 34.

b) Existiam à data da morte outros produtos financeiros em nome da inventariada para além do referido em 6.
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i. da impugnação da matéria de facto

A Mm.ª juíza, no que concerne à matéria pertinente para a decisão do recurso, motivou como segue a convicção alcançada:

“O Tribunal formou a sua convicção, da forma como ficou exposta, face aos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento, quer considerados de per se, quer no confronto uns com os outros e com a prova documental junta, tendo todos eles sido analisados criticamente à luz das regras de experiência comum, da forma que seguidamente se expõe.

O facto provado sob o número 1. resultou dos documentos constantes dos autos (informações bancárias de fls. 100 a 118), conjugadas com os esclarecimentos do Cabeça-de-Casal na resposta à reclamação à relação de bens, e respectiva falta de impugnação por parte dos reclamantes desse facto exceptivo, considerando ainda que as informações solicitadas e prestadas pela Caixa Geral de Depósitos a fls. 148 não contrariaram a alegação do cabeça de casal, que ainda foi corroborada com o constante do requerimento de fls. 161 e 162 conjugado com a cópia da caderneta de fls. 35 e 36.

Os factos provados sob os números 2., 3. e 5. resultaram da análise dos documentos constantes dos autos emitidos pelo Banco Millenium BCP, designadamente, fls. 100 a 118 e fls. 163 a 166, conjugadas ainda com os documentos juntos sob o número 1. com o requerimento do cabeça de casal datado de 04.01.2010, levada a cabo não só pelo Tribunal mas também pela testemunha Romeu Bispo, funcionário do Banco Millenium BCP há cerca de 30 anos, tendo passado 10 anos pela Agência do Sabugal, 10 pela Guarda, outros 10 pelo Sabugal e, recentemente, há cerca de um ano novamente na Agência da Guarda.

Ora, pela sua experiência profissional junto desta entidade bancária, bem assim como pelo conhecimento directo que tinha da actividade bancária da Inventariada, pôde explicar ao Tribunal, através da análise, durante a sua inquirição, dos referidos documentos, como retirar os factos que foram considerados como provados, o que fez de modo sereno, escorreito e seguro, sem levantar qualquer dúvida quanto à sua isenção.

Por outro lado tal testemunha pôde ainda contribuir decisivamente para dar como provado o facto constante em 4. Com efeito, tal testemunha, por força das mesmas razões de ciência, relatou ao Tribunal a actividade bancária da inventariada levada a cabo pela própria e a proveniência das quantias aí depositadas, aliás em consonância com o que foi o depoimento da testemunha O..., sobrinha da inventariada, a qual explicou que esta lhe tinha referido que tinha muito dinheiro por morte do seu marido e que era ela mesma que cuidava das suas contas até deixar de poder e delegar tal tarefa no cabeça de casal.

Mais se diga que esta testemunha também logrou convencer o Tribunal, não levantando dúvidas quanto à sua isenção, porquanto manteve um discurso circunstanciado, pormenorizado e seguro, respondendo sem qualquer hesitação a todas as perguntas que lhe foram feitas.

As testemunhas N... e M... não lograram trazer ao Tribunal qualquer conhecimento de factos pertinente para as questões suscitadas.

O facto provado sob o número 6. resultou das informações bancárias prestadas nos autos, designadamente fls. 148, única onde se apurou a existência de saldos bancários à data da morte da inventariada.

(…) Finalmente, em relação à matéria de facto não provada, cumpre consignar que nenhuma prova foi produzida em relação a tais factos segundo o ónus probatório que recaía sobre os interessados reclamantes, considerando ainda os esclarecimentos e documentos juntos sobre estas questões pelo cabeça de casal”.

Discorda a apelante do assim decidido, assinalando que a ficha de abertura das contas identificadas em 2. infirma que também a testemunha O... fosse contitular das mesmas, e que o Tribunal baseou a sua convicção “nos depoimentos das testemunhas não transcritos na sentença e por presunção judicial”, tendo relevado prova testemunhal  em relação a factos que se encontravam plenamente provados por documento, violando o preceituado no n.º 2 do art.º 393.º do Código Civil. Mais alega que, sendo “as relações patrimoniais existentes entre a inventariada e a recorrente insusceptíveis de serem provadas pelas testemunhas indicadas pela cabeça de casal, é nula a prova produzida, por a tanto se opor a citada disposição legal”.

Apreciando:

Nos termos do art.º 640.º do CPC em vigor, querendo impugnar a decisão relativa à matéria de facto, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e, finalmente, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (cf. n.º 1, corpo e suas diversas alíneas).

“Prima facie”, faz-se notar que, tendo sido inquiridas testemunhas no âmbito do incidente da reclamação, não foram os depoimentos produzidos objecto de gravação[2], o que coloca este Tribunal na impossibilidade de sindicar a apreciação e valoração que deles foi feita, isto sem prejuízo, obviamente, de poder modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto no caso de ter ocorrido violação de direito probatório material.

Por outro lado, vistos os termos da alegação e conclusões a final formuladas pela apelante com pertinência para a impugnação da factualidade dada como assente, não vemos que tenha sido dado cabal cumprimento ao antes referido ónus de impugnação. Com efeito, se se exige a identificação dos concretos meios probatórios constantes do processo (é nosso o destaque) e, bem assim, dos pontos da matéria de facto impugnados e sentido em que a decisão que sobre eles incidiu deveria ter sido proferida, tal exigência não se satisfaz com uma genérica menção a factos que, encontrando-se plenamente demonstrados por documentos, teriam sido indevidamente sujeitos a divergente prova testemunhal, ilegalmente atendida e relevada, se não se identificam os factos em causa nem os documentos a que seria de atribuir força probatória plena.

À crítica agora endereçada aos termos da impugnação, encontra-se, todavia, subtraída aquela que incidiu sobre o facto assente em 2., na parte em que dá como demonstrado que a dita testemunha O... era também contitular das contas ali identificadas. Com efeito, e conforme faz notar a apelante, inexiste documentação nos autos que tal comprove, uma vez que na ficha de abertura de conta (ainda no BPA) junta a fls. 223 do PE[3], constam como titulares da mesma apenas a inventariada e a ora reclamante, omitindo-se qualquer referência a eventual posterior aditamento de outro titular ou concessão de autorização a um terceiro para a respectiva movimentação. Todavia, e independentemente de saber se o contrato de abertura de conta é um contrato formal -o que, em nosso entender, não é de todo líquido à luz do aviso do BP 5/2013, publicado a 18/12/2013 e com início de vigência em 16/2/2014[4]-[5], exigindo-se deste modo a junção ou exibição de documento para a prova da identidade dos seus titulares em cada momento, incontornável é, porém, a completa irrelevância do facto impugnado para a decisão. E isto porque, por um lado, não é necessário ser titular de uma conta para se estar a par dos respectivos movimentos; por outro, e decisivamente, porque em parte alguma se imputa à referida O... a -devida ou indevida- movimentação da conta, sendo certo que nenhuma pretensão formulou sobre a titularidade dos fundos nela existentes. E por assim ser, porque o conhecimento da impugnação redundaria na prática de um acto inútil e, nessa medida, vedado por lei (cf. art.º 130.º do NCPC), dela não se conhecerá[6].

Finalmente, dir-se-á que se a apelante pretende fazer valer a tese de que, face à prova de que era contitular das contas bancárias identificadas, dessa circunstância resultaria plenamente provado que seria também a titular dos saldos que em cada momento apresentassem -só nessa medida se compreendendo o alcance da afirmação de que a Mm.ª juíza “a quo” teria considerado prova testemunhal para contrariar factos documentalmente demonstrados-, assim impugnando o facto discriminado em 4., incorre claramente em erro.

Com efeito, conforme vem sendo entendido sem divergência conhecida, o direito de crédito perante o banco depositário, traduzido no direito de movimentar uma conta plural, nada tem a ver com o direito real de propriedade que incide sobre o saldo da mesma conta, que pode pertencer a todos os titulares, a um só deles, ou mesmo a um terceiro, sendo tal facto susceptível de prova por qualquer meio, a apreciar livremente pelo Tribunal nos termos dos art.ºs 341.º do CC, 513.º e n.º 1 do art.º 655.º, estes do CPC em vigor ao tempo da prolação da decisão impugnada.

Atento o que vem de se dizer, não é rigorosa a afirmação de que a testemunha P... só pudesse testemunhar sobre o que se encontrava escrito nos documentos, pois nada impedia que depusesse, caso desse facto tivesse conhecimento, sobre a propriedade dos fundos depositados, outro tanto valendo para o testemunho prestado por O.... Neste contexto, e não sendo possível sindicar as declarações das testemunhas, por não terem sido objecto de gravação, são perfeitamente inócuas as afirmações de que aquela testemunha nada sabia sobre “as relações patrimoniais existentes entre a inventariada e a recorrente”, e de que “a testemunha O... nada sabe dos movimentos das contas em questão, a não ser o que os documentos revelam”.

Por último, cabe referir que a aplicação da presunção legal consagrada no art.º 516.º do CC decorrente da solidariedade do crédito, é uma questão de direito -tal como, de resto, foi tratada na decisão apelada-, não podendo ser invocada para efeitos de fixação da matéria de facto[7].

Em suma, não se verificando a imputada violação do direito probatório material, tendo a Mm.ª juíza “a quo” feito lícito uso dos meios de prova produzidos pelas partes, todos eles legalmente admissíveis, improcede o ataque dirigido à decisão proferida sobre a matéria de facto, que integralmente se mantém.
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ii. Da indevida relacionação das verbas n.ºs 1 e 2.

No que respeita à verba n.º 1, tal como se fez notar na decisão apelada, resultou demonstrado nos autos que a quantia aqui relacionada provém de seguros de poupança da Inventariada no montante de € 26.874,56, e seguro no valor de € 14.737,26 que os próprios interessados afirmavam estar em falta, pelo que tal verba se encontra devidamente relacionada. Aliás, neste contexto não se compreende sequer a oposição dos interessados reclamantes, posto que a relacionação da aludida quantia como bem da herança é facto que inequivocamente favorece os herdeiros.

A propósito ainda, não pode deixar de se assinalar a falta de rigor da afirmação contida na conclusão 6.ª, porquanto, não só o cabeça de casal declarou expressamente que a quantia em causa se encontrava em seu poder, como esclareceu a sua proveniência, em termos que não mereceram impugnação por banda dos demais interessados, tendo ainda resultado corroborados pelos documentos bancários juntos e esclarecimento prestado a fls. 161-162, tudo conforme aliás a M.mª juíza fez constar em sede de motivação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Para além daquela quantia, os reclamantes lograram provar apenas a existência de €80,95 mais, montante que se encontrava depositado na conta com o n.º 0603013627400 da Agência de Penamacor da CGD e cuja relacionação foi ordenada pelo que, também aqui, dada a sua absoluta conformidade à factualidade apurada, e conforme se deixara já intuir, nenhuma censura mereça a decisão apelada, improcedendo as conclusões 5.ª a 10.ª.
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Quanto à verba n.º 2, identificada na relação de bens apresentada como “Contas bancárias e aplicações financeiras no montante de Euros 173.800,00 (cento e setenta e três mil e oitocentos euros), reportado à data de 09/07/2004, que se encontrava depositado no Banco Millenium BCP (…) e que se encontra na disponibilidade e posse de E...”, montante que a Mm.ª juíza determinou permanecesse relacionado mas como crédito da herança sobre a agora apelante, vejamos da valia da argumentação expendida no recurso.

Resultou apurado nos autos que a falecida B... era contitular, junto com a ora apelante, das contas DO com o n.º 4261410 e DP n.º 2087706654, ambas abertas no Millenium BCP, tendo esta última sido constituída inicialmente -em 2/10/2003- com o valor de €171.050,88, sendo sua titular aquela B.... Esta quantia, conforme igualmente se apurou, era inteiramente proveniente de reformas e poupanças da inventariada.

Mais resultou demonstrado que em 7/09/2004, por ordem de resgate da interessada G..., o montante de €173 800,00 saiu daquela conta com o n.º 2087706654, tendo sido transferido para a conta n.º 4253345, agência do Sabugal do Millenium BCP, titulada pela mesma interessada, com instruções por si subscritas para ser aplicado na subscrição das obrigações “rendimento/crescente Setembro 2004/2007”, conforme se alcança do doc. de fls. 87 do PE, não impugnado.

Distinguindo correctamente entre a titularidade do depósito e a propriedade do dinheiro depositado[8], e face à demonstração de que as quantias depositadas na conta co-titulada pela inventariada e pela interessada G..., aqui apelante, perfazendo o mencionado saldo, à primeira pertenciam por inteiro, determinou a Mm.ª juíza, como referido, a sua relacionação como crédito da herança sobre esta última, que procedera à transferência daquele saldo para conta bancária por si titulada.

Atento o que vem de se dizer, e considerando que o que foi determinado foi a relacionação de um crédito, infundamentada a objecção constante da conclusão 15.ª, assente no pressuposto de que estava em causa a quantia em depósito que, efectivamente, já não existia no património da inventariada à data da sua morte e, como tal, não podia ser relacionada.

Argumenta ainda a apelante que, sendo co-titular das contas, “procedeu ao resgate da conta a prazo por entender que esse dinheiro lhe pertencia, não se sabendo, uma vez que ambas eram titulares da conta, se o dinheiro lá depositado era só de uma titular (qual delas) ou de ambas” e que “a inventariada faleceu em 24.01.2009, nunca pondo em crise o resgate efectuado pela recorrente” (cf. conclusões 12.ª. 13.ª e 14.ª).

Quanto ao primeiro argumento, basta atentar na factualidade apurada para concluir pelo seu desvalor, uma vez que dúvida não subsiste nos autos quanto à titularidade do saldo da conta. Vejamos com mais detalhe.

É facto assente que a apelante era, com a inventariada, titular das identificadas contas de depósito, à ordem e a prazo, ambas abertas no Millenium BCP (que integrou o BPA, instituição bancária na qual a falecida procedera à abertura da conta), tratando-se assim de uma conta colectiva.

A abertura de conta é um contrato celebrado entre o banqueiro e o seu cliente, pelo qual ambos assumem deveres recíprocos relativos a diversas práticas bancárias. Correspondendo a um negócio tipicamente bancário, “opera como um acto nuclear, cujo conteúdo constitui, na prática, o tronco comum dos diversos actos bancários subsequentes[9].

Quanto à titularidade, a conta pode ser individual ou colectiva, consoante seja aberta em nome de uma ou de várias pessoas. Neste último caso, pode ainda ser:

 solidária – aquela em que qualquer dos titulares pode movimentar sozinho e livremente a conta, exonerando-se o banqueiro, no limite, pela entrega da totalidade do depósito a um único dos titulares;

conjunta, quando a sua movimentação só pode ser feita por todos os seus titulares, em simultâneo; e

mista – aquela em que alguns dos titulares podem movimentar a conta em conjunto com outros[10].

A abertura de conta prevê desde logo um quadro para a constituição de depósitos, que o banqueiro se obriga a receber.

“O depósito bancário, em sentido próprio, é um depósito em dinheiro, constituído junto de um banqueiro”, tratando-se de operação associada a uma abertura de conta[11]. Numa outra formulação, “é o contrato pelo qual uma pessoa entrega uma quantia pecuniária a um banco, o qual dela poderá livremente dispor, obrigando-se a restitui-la mediante solicitação, e de acordo com as condições estabelecidas[12]. O contrato assim celebrado caracteriza-se por uma dupla disponibilidade: o banco, por um lado, adquire a propriedade dos fundos depositados, deles podendo livremente dispor, sem ter de prestar contas ao depositante; este, por seu turno, conserva a disponibilidade dos mesmos fundos, podendo exigir a sua restituição ou deles dispor livremente em favor de um terceiro.

Vindo a ser discutida a natureza jurídica do depósito bancário, inclinam-se todavia a doutrina e jurisprudência maioritárias para a sua caracterização como contrato de depósito irregular -na medida em que o banco depositário adquire a propriedade das quantias e terá unicamente de restituir coisas da mesma qualidade e quantidade- entendimento do qual não vemos razões fundamentadas para divergir e que, de resto, aqui assume escassa relevância[13].

Nas contas de depósito solidárias, como era aqui o caso, qualquer um dos titulares tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral, o mesmo é dizer, o reembolso de toda a quantia depositada, caso em que a prestação assim efectuada liberta o devedor (banco depositário) para com todos eles (cf. art.º 512.º do Código Civil). Dado este particular regime, assenta necessariamente numa relação de confiança entre os contitulares, que não desconhecem a possibilidade de apenas um deles reclamar a totalidade do saldo.

Questão diversa desta é saber qual a quota-parte que cada um dos titulares detém no saldo da conta solidária -daí que se diga, de forma impressiva, que se impõe distinguir entre “titularidade da conta” e “propriedade dos fundos”[14].

Conforme certeiramente se escreveu na sentença apelada[15] “(…) apesar de qualquer dos depositantes  poder exigir do banco a restituição integral do dinheiro, ficando o banco liberado para com os demais credores, a verdade é que na esfera patrimonial daquele que procede ao levantamento só se inscreve um direito real sobre o numerário se, efectivamente, lhe couber qualquer parte no saldo do depósito e apenas dentro dos limites dessa parte”. E só no caso de nada se apurar a propósito é que deve funcionar a presunção do art.º 516.º do Código Civil[16], nos termos da qual se presume que todos os titulares têm idêntica percentagem sobre o saldo. Tal presunção, todavia, pode ser ilidida nos termos gerais (cf. art.º 350.º, n.º 2 do CC), conforme se verificou no caso que nos ocupa.

Com efeito, e conforme deflui da factualidade apurada, o cabeça de casal logrou provar que o saldo de € 173 800,00 que a apelante fez transferir da identificada conta solidária para uma outra da qual era a única titular, pertencia exclusivamente à inventariada, provindo de reformas e poupanças suas (cfr. facto provado sob o n.º 4). Daí que não haja que recorrer à presunção estabelecida no art.º 516.º, que só funcionaria caso não tivesse sido feita prova da propriedade do saldo[17], o que afasta em absoluto o débil argumento aqui esgrimido pela apelante na transcrita conclusão 13.ª.

Estabelecido que o saldo da aludida conta, “não obstante ter sido transferido em vida da Inventariada pela Interessada G..., na verdade pertencia “in totum” àquela e por sua morte à massa da sua herança”, concluiu a Mm.ª juíza “a quo” que “(…) a massa da herança tem sobre a Interessada G... um crédito correspondente ao valor da transferência de €173.800,00 desde 7/9/2004 até à sua restituição à massa da herança, a que hão-se acrescer os juros legais, uma vez que tal quantia não lhe pertence legalmente. Pelo que, tal valor constante da verba n.º 2 deve continuar relacionado como um direito de crédito da massa da herança sobre a interessada E... (…)”.

Todavia, e a respeito da correcção da premissa, tal conclusão não nos parece ser de sancionar.

Na verdade, e conforme se referiu, não existindo qualquer saldo bancário a relacionar, por inexistente à data da abertura da sucessão -cf. art.ºs 2031.º e 2024.º do Código Civil- a prova da existência do crédito era ónus que recaía sobre o cabeça de casal, que o relacionou. Ora, tal realidade dependia da alegação e demonstração de que o movimento de transferência que se apurou ter sido feito pela apelante o foi sem o conhecimento e consentimento da inventariada, assim correspondendo a uma ilícita apropriação do saldo que a esta pertencia, factos estes que nem alegados foram. É que tal transferência, para a qual a apelante se encontrava legitimada, ocorreu mais de quatro anos antes do decesso da inventariada (ocorrido a 24 de Janeiro de 2009), sem que haja notícia nos autos, a este respeito completamente omissos, de que alguma oposição tenha deduzido a esta actuação da interessada, com a qual partilhava a titularidade da conta debitada. Isto sem embargo, há que reconhecê-lo, de igualmente não ter sido feita prova de que tal movimentação tenha chegado ao seu conhecimento[18].

É certo que se provou ter a aludida quantia sido transferida para uma conta da apelante, que a terá aplicado na aquisição de obrigações, mas tal facto, por si só, não permite concluir que se apoderou ilicitamente da mesma, ónus que, em todo o caso, repete-se, recaía sobre o cabeça de casal e de que aqui se não desincumbiu. Neste mesmo sentido decidiu a Relação de Lisboa, em aresto que se ocupou de situação apresentando semelhanças, concluindo que “É lícito a um dos interessados, co-titular de conta bancária solidária com o de cujus, proceder ao levantamento da totalidade do saldo cerca de cinco meses antes do óbito do de cujus. 2. Não existindo qualquer saldo à data do óbito do de cujus, a quantia que corresponderia à quota-parte do de cujus não tem de ser relacionada no inventário. 3. Apenas existirá um crédito da herança sobre o interessado que procedeu ao levantamento da totalidade do saldo se for alegado e provado que tal levantamento foi feito contra a vontade do de cujus, cabendo o ónus da prova a quem pretenda obter o relacionamento de tal quantia”[19].

Resulta do exposto que a relacionação da verba n.º 2 não se deve manter, o que se decide, sem prejuízo embora do direito às acções competentes, conforme previa o n.º 1 do art.º 1336.º do CPC, diploma pelo qual se regem os presentes autos. Tal solução justifica-se porquanto, tendo em consideração o escopo último do processo de inventário -realização de uma partilha justa- o que pressupõe o apuramento rigoroso do acervo a partilhar, não foi tal desiderato atingido com a instrução do presente incidente[20].

Porque o decidido se repercute nos ulteriores termos do processo, deverá a sua tramitação subsequente à decisão ora parcialmente revogada ser adaptada em conformidade.
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III Decisão

Em face a todo o exposto, e na parcial procedência do recurso interposto pela interessada G..., acordam os juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em determinar a exclusão da relação de bens da verba n.º 2, ressalvado o direito às acções competentes, mantendo-se quanto ao mais a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante e do cabeça-de-casal, na proporção de 1/4 para a primeira e 3/4 para o segundo.

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nuno Ribeiro

Hélder Almeida

[1] Com efeito, e conforme decidido pela ora relatora no processo n.º 824/10.0TBLRA-H.C1 em acórdão de 3/12/2013, acessível em www.dgsi.pt, No incidente da reclamação de bens em processo de inventário não há lugar à apresentação de um articulado de réplica à resposta da cabeça de casal de modo que, sob pena de preclusão, as provas terão que ser oferecidas nos articulados da reclamação e da resposta que pelo cabeça de casal for apresentada.
[2] Sendo certo que nem por isso ficava a Mm.ª juíza “a quo” vinculada à transcrição dos depoimentos, equívoco em que parece incorrer a apelante, como denuncia a menção a tal omissão, feita notar na sua conclusão 16.ª.
[3] Inexplicavelmente, diríamos, não foram impressas no Tribunal “a quo” a reclamação apresentada, a resposta que pelo cabeça de casal lhe foi dada, nem tão pouco a pertinente documentação que pelas partes foi oferecida, o que dificultou desnecessariamente a apreciação do presente recurso.
[4] Este aviso revogou o anterior aviso da mesma entidade n.º 11/2005, que regulava as condições gerais de abertura de contas de depósito bancário e que, por seu turno, revogara a Instrução nº 48/96, publicada no Boletim de Normas e Informações do Banco de Portugal, n.º 1, de 17 de Junho de 1996, nos quais se mencionava que o acto de abertura de conta dava lugar à abertura de uma ficha da qual deveriam constar os elementos elencados no art.º 9.º, atinentes à identidade do cliente, devendo ser recolhida, no caso de celebração presencial, a respectiva assinatura. Sucede, porém, que tal menção a ficha de abertura não consta do aviso actualmente em vigor, tendo sido substituída pela menção à conservação “em arquivo dos elementos que evidenciem inequivocamente que procederam à comprovação da veracidade dos elementos identificativos” (cf. n.º 2 do art.º 10.º) e a “registo interno de suporte”.
[5] Concluindo pela sua natureza convencional -não formal-, o acórdão do STJ de 27/2/2014, processo n.º 244/1999.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[6] Neste mesmo sentido, acórdão desta Relação de 12/6/2012, processo n.º 4541/08.3 TBLRA.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Cf., no preciso sentido do texto, o acórdão desta mesma Relação de 8/4/2014, proferido no processo n.º 171071/12.8YIPRT.C1, acessível em www.dgsi.pt, no qual a ora relatora interveio como 1.ª adjunta.

[8] “São efectivamente distintos o direito de crédito de que é titular cada um dos depositantes solidários – que se traduz num poder de mobilização do saldo – e o direito real que recai sobre o dinheiro, direito que pode pertencer, apenas a algum ou alguns dos titulares da conta ou, até a terceiro.” -  cf. ac. Relação de Lisboa de 1/2/2007, processo 8274/2006-7 disponível em www.dgsi.pt..


[9] Prof. Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3.ª edição, págs. 411-412.
[10] Autor e ob. cit., págs. 441-442.
[11] Prof. Menezes Cordeiro, ob. cit., págs. 470 e seguintes, “maxime” 480 a 482.
[12] Paula Ponches Camanho, “Do contrato de depósito bancário”, 1998, pág. 93.
[13] V., por todos, autora e ob. cits. na nota anterior, págs. 145 e seguintes, embora a autora acabe por optar pela sua caracterização como mútuo. No sentido de que se trata de depósito irregular, Prof. A. Varela, RLJ, ano 101, pág. 369 e na jurisprudência, ac. STJ de 24/3/2004, processo n.º 04 A3101, no citado sítio.
[14] Acusando a incorrecção da formulação, reconhecendo embora tratar-se de fórmula sugestiva, Prof. Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 442.
[15] Citando o acórdão da Relação de Lisboa de 1/2/2007, melhor identificado na nota 8.

[16] Nos termos desta disposição legal “Nas relações entre si, presume-se que os devedores ou credores solidários comparticipam em partes iguais na dívida ou no crédito sempre que da relação jurídica entre eles existentes não resulte que são diferentes as suas partes ou que um só deles deve suportar o encargo da dívida ou obter o benefício do crédito”.

[17] Cf. P. de Lima/A. Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág.532, Acs do STJ de 24/6/2010, processo n.º 224/2002.L1-8 e de 1/7/2010, processo n.º 1315/05.7 TCLRS.L1.S1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt, destacando-se deste último o seguinte ponto do sumário: “1. Regulando-se a conta colectiva pelos princípios que comandam a solidariedade activa no nosso regime civilístico, a presunção de compropriedade da mesma só valerá se não se provar que só um dos co-titulares é o único beneficiário do dinheiro depositado”

[18] Apesar de, segundo as declarações da sobrinha O..., ser a inventariada quem “cuidava das suas contas até deixar de poder e delegar tal tarefa no cabeça de casal”, conforme a Mm.ª juíza fez consignar na decisão proferida sobre a matéria de facto.
[19] Ac. da Relação de Lisboa de 30/4/2009, processo n.º 9615/2008-6, e demais jurisprudência aí citada. Com relevo ainda o acórdão do STJ de 1/7/2010, processo n.º 1315/05.7TCLRS.L1.S1, no qual foi decidido que as quantias levantadas por uma das contitulares da conta eram pertença da herança, face à constatação de que os saldos em depósito eram da exclusiva propriedade do inventariado e os levantamentos haviam sido efectuados sem o conhecimento e a autorização do de cujus.
[20] Adoptando idêntica solução, o aresto citado na nota anterior.