Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2710/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: RUI BARREIROS
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
Data do Acordão: 11/15/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 4º, Nº 5 DO D.L. 164/99 DE 13/5
Sumário: Demandado o Fundo para o pagamento de pensões já anteriormente fixadas e não pagas, ele é obrigado a pagar todo o montante em dívida e não somente o que se vencer a partir da data em que foi proferida a decisão a condená-lo, mais concretamente, desde o «mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal».
Decisão Texto Integral: ...
I – Relatório.
1. Sujeitos processuais.
1.1. Recorrente: Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.
1.2. Recorrida: A, ..., filha de H e de L, solteira e residente na ..., representada por esta e pelo Ministério Público.
2. Objecto do recurso.
O presente recurso de agravo tem por objecto a decisão que condenou o recorrente a pagar alimentos já vencidos que não foram pagos pelo pai da menor.
3. Enquadramento da pretensão da recorrente.
A mãe da menor, em representação desta, deduziu incidente de incumprimento de pagamento de alimentos, nos termos do disposto no artigo 181º da O.T.M., uma vez que o pai da menor, já anteriormente condenado, não cumpriu. Não tendo sido possível encontrar o requerido, foi declarado o incumprimentos da obrigação e demandado o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, gerido pelo recorrente. A decisão que fixou a quantia a prestar pelo Fundo incluiu prestações anteriores, já vencidas e não pagas pelo pai da menor, ou seja, desde 5 de Abril de 2002, data da propositura da acção relativa ao pai da menor.
É desta parte da decisão que vem interposto o recurso.
4. Alegações.
4.1. do recorrente
«1- O Tribunal com esta decisão vincula o Estado-FGADM ao pagamento de prestações vencidas, prestações pelas quais foi judicialmente obrigado a prestar o progenitor do menor, logo, já da responsabilidade do requerido.
2- Não foi intenção do legislador da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, prever o pagamento pelo Estado do débito acumulado pelo obrigado judicialmente a prestar alimentos aos menores.
3- Foi preocupação do Grupo Parlamentar que apresentou o projecto de diploma o evitar o agravamento excessivo da despesa pública, um aumento do peso do Estado na sociedade portuguesa.
4- Também o legislador não teve em vista uma situação que a médio prazo se tornasse insustentável para a despesa pública, face à conjuntura sócio-económica já então perfeitamente delineada.
5- Deve ter-se presente a “Ratio Legis” dos diplomas no âmbito do F.G.A.D.M., que, na sua razão de ser, visa assegurar a prestação de alimentos a menores, um mês após a notificação da decisão do Tribunal, (n.º 5 do art.º 4.º do DL n.º 164/99, de 13 de Maio), e não o pagamento dos débitos acumulados anteriormente pelo progenitor responsável pelo pagamento dessas prestações.
6- Dos diplomas que regem o FGADM, deve fazer-se uma interpretação restritiva, pelo que o elemento gramatical tem de ser dimensionado pelo princípio hermenêutico contido no artigo 9.º do Código Civil.
7- Assim, não se pode considerar objectivamente que esteja aludida nos diplomas, a responsabilidade do Estado-FGADM pelo pagamento de débitos acumulados pelo progenitor relapso.
8- A admitir o contrário e face ao que foi dito quanto à posição do Grupo Parlamentar, e a preocupação de que o legislador se revestiu, estar-se-ia a iludir o espírito da lei, apostada em não fomentar a irresponsabilidade por parte dos progenitores, quanto à obrigação de zelar pelos alimentos aos seus filhos menores.
9- Foi intenção do legislador, expressamente consagrada, ficar a cargo do Estado apenas o pagamento de uma nova prestação de alimentos a fixar pelo tribunal dentro de determinados parâmetros, artigo 3.º n.º 3 e artigo 4.º , n.ºs. 1 e 5, do DL 164/99 de 13/5 e artigo 2.º da Lei 75/98 de 19/11.
10 . Não nos parece curial que o Estado pague os débitos do progenitor relapso. O débito acumulado do devedor relapso, não será assim da responsabilidade do Estado.
11- Fazer impender sobre o Fundo a obrigação de satisfazer o débito acumulado anularia ab initio - subvertendo, efectivamente, o espírito da lei – a verificação de tal pressuposto, porquanto deixariam de subsistir prestações em dívida.
12- A Lei 75/98 e DL 164/99 decorrem, essencialmente, da falta de cumprimento da obrigação de alimentos por parte do devedor e da preocupação do Estado em instituir uma garantia de alimentos aos menores para lhes assegurar os de que carece.
13- Essa garantia traduz-se na fixação de uma prestação em função das condições actuais do menor e do seu agregado familiar, que podem, ser bem diferentes das que determinaram a primitiva prestação.
14- É pois uma prestação autónoma e actual que não visa substituir definitivamente a anterior obrigação de alimentos, mas antes proporcionar ao menor, de forma autónoma e subsidiária a satisfação de uma necessidade actual de alimentos.
15- Não há qualquer semelhança entre a razão de ser da prestação alimentar fixada ao abrigo das disposições do Código Civil e a então fixada no âmbito do Fundo.
16- A primeira consubstancia a forma de concretização de um dos deveres em que se desdobra o exercício do poder paternal, a última visa, assegurar no desenvolvimento da política social do Estado, a necessária protecção à criança, relativamente ao acesso às condições de subsistência mínimas.
17- Não poderá s.d.r. aplicar-se por analogia o regime do artigo nº. 2006.º do Código Civil, dada a diversa natureza das prestações alimentares.
18- A decisão violou assim, o artigo 2.º da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro e o n.º 3 do artigo 3.º e 4.º do Decreto-Lei nº. 164/99, de 13 de Maio.
19- Os diplomas em apreço só se aplicam para o futuro, não tendo eficácia retroactiva, conforme o artigo 12.º do Código Civil.
20- Na verdade, não poderá esquecer-se que a verba a despender pelo Fundo provém de receitas cobradas pelo Estado aos contribuintes, pelo que a sua disponibilização carece de ser racionalizada, equitativa e proporcionalmente, por forma a poder também satisfazer muitos outros casos prementes».
4.2. da mãe do menor
...
4.3. O Ministério Público também defendeu a decisão sob recurso.
5. Correram os vistos. Nada obsta ao conhecimento do recurso.
II – Fundamentação.
6. Os factos.
«1 - A menor A nasceu em 03 de Março de 1998 e é filha de H e de L.
2 - Por sentença judicial de 20 de Junho de 2003, ..., ficou o requerido H, obrigado a contribuir mensalmente, com a quantia de € 75,00, a título de alimentos, para a sua filha menor A, com início no mês de Julho de 2003.
3 – Tal prestação devia ser entregue à requerente, até ao dia oito de cada mês, através de vale postal, cheque ou transferência bancária.
4 – Ficou ainda decidido que o pai pagaria rectroactivos no montante de € 1.125,00, em 30 prestações mensais e consecutivas de igual montante cada uma, até ao dia 8 de cada mês, por cheque, vale postal ou transferência bancária, devidos desde 05 de Abril de 2002 (data da propositura da acção) até à data daquela sentença e com início no mês de Agosto de 2003.
5 - A primeira prestação venceu-se no mês de Julho de 2003.
6 – O requerido nunca pagou a prestação de alimentos a que estava obrigado.
7 – O requerido não procedeu ao pagamento de tais prestações, porquanto se encontra sem emprego e paradeiro conhecidos.
8 – A menor reside com a requerente e com a sua avó materna.
9 – A requerente aufere mensalmente a quantia líquida de € 325,38 e recebe mensalmente € 30,75 a título de prestação familiar da sua filha.
10 – A mãe da requerente trabalha como cozinheira auferindo € 502,61.
11 – O agregado familiar tem como despesas fixas, no que respeita a prestações bancárias com habitação e viatura, transportes, seguros, água, gás, luz e alimentação, o montante médio mensal de € 783,07».
7. O Direito.
O que está em causa neste recurso é saber se está correcta a decisão de impor ao Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores (FGADM) o pagamento das pensões já anteriormente fixadas ao pai da menor e não pagas – tese da recorrida – ou se a condenação do FGADM deve limitar-se ao pagamento do que lhe foi, a si, imposto e desde a data em que foi proferida a respectiva decisão – tese do recorrente –, mais concretamente, desde o «mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal» [1].
Quanto a esta questão, a jurisprudência encontra-se dividida: há posições que abonam a tese do recorrente, outras a do recorrido e um Acórdão desta Relação [2] que defende a posição de que o pagamento por parte do FGADM é devido desde a data em que ele foi demandado, confirmando o que havia sido decidido na primeira instância.
7.1. Afastamos liminarmente as “razões” de natureza não jurídica do recorrente.
A propósito das suas preocupações “economicistas”, já tivemos ocasião de dizer no recurso de agravo nº 1482/04, proferido em 7 de Julho de 2005 [3]: «5.2.5. Finalmente, o recorrente argumenta da seguinte maneira: “saindo o pagamento das prestações de alimentos do Orçamento de Estado, todo o rigor é exigível”. Nesta parte, estamos inteiramente de acordo com o recorrente; quer o dinheiro saia do OGE, quer saia de outro lado qualquer, o “desperdício” (em sentido económico) é uma irracionalidade. A questão está em que, conforme procurámos demonstrar, o percurso implicitamente defendido pelo recorrente, seria, ele próprio, o exemplo acabado da irracionalidade, inclusivamente em termos económicos. Assim, teremos de concluir que a preocupação do recorrente, como a nossa e, certamente, a de toda a gente, não pode confinar-se em termos acanhados, parciais e burocratizados, mas, terá de ver as coisas na sua globalidade. ... . Ora, o que nós pensamos é que estar a fazer contas, por causa do OGE, com uma situações destas, é esquecer que, possivelmente, o OGE vai despender mais dinheiro do que dez euros por mês com os problemas de inadaptação deste jovem, como acontece em muitíssimos casos semelhantes; e se, neste, não acontecer, por qualquer factor de sorte ou de resiliência do jovem, tal não justifica a “poupança” que se pretende fazer. As preocupações com a poupança pública são assaz importantes, sobretudo no momento presente. De forma que vale a pena pensar numa acção coerente com tal preocupação: 1º) na nossa actividade profissional, economizando em procedimentos; 2º) na simplificação de processos. Este caso dá um bom exemplo. O tribunal é chamado a pronunciar-se sobre uma situação de carência económica que atinge um menor (nós dizemos, de manifesta carência económica). Inicia e desenvolve o processo e pede informações ao Instituto de Solidariedade e Segurança Social sobre a situação, pelo que fica a saber que “este agregado (onde o menor se encontra) apresenta uma situação de precariedade económica, sendo as despesas mensais superiores aos rendimentos”. Por tal razão, entende substituir a devedora de alimentos pelo Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menores, gerido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social. Mas, este, agora, nesta fase, entende que não estão reunidas as condições para o accionamento da referida substituição».
Também o Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Setembro de 2004 [4] expendeu o seguinte pensamento: «Antes de mais é objectável que o recorrente, a quem competem atribuições de cariz social do Estado, esgrima argumentos de pendor meramente economicista, obliterando que se trata de prestações sociais que incumbe ao Estado de Direito realizar, não só dentro dos princípios constitucionais da igualdade, como também da protecção dos direitos dos menores – arts. 13º e 69º da Constituição da República. Por isso, e com o devido respeito, brandir tais argumentos é totalmente irrazoável».
Como diz o Ministério Público, nas Alegações: «o que está em causa é a sobrevivência de crianças incapazes de prover, por si só, à sua sobrevivência, esta matéria estará no fim da lista das matérias a ser objecto de restrição, pois não se pode esquecer que os pressupostos de que depende a prestação de alimentos pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores em substituição do obrigado relapso, torna aplicável este regime a crianças cujo agregado familiar se encontre em situações económica-financeiras deficitárias, revelando-se determinante e imprescindíveis à realização, com um nível mínimo, do interesse da criança as prestações efectuadas pelo Fundo» [5].
O que é importante é que este regime legal seja acompanhado de grande eficácia prática, não só para diminuir o seu peso na economia do País, mas também para desencorajar os devedores que fogem a pagamento possível. Ainda há pouco tempo, em 4 de Outubro de 2005, proferimos Acórdão no recurso de agravo nº 1365/05, concedendo provimento a recurso de agravo do Ministério Público que viu indeferida liminarmente uma petição inicial ao demandar os avós do menor – obrigados nos termos da alínea c), do nº 1, do artigo 2009º do CC –, pelo facto do menor estar a receber prestação correspondente por parte do Fundo, pelo que se considerou não ter interesse em agir. Ora, o que é importante é que o sistema procure com eficácia e persistência os obrigados previstos na lei civil, como o fez o Ministério Público, nesse caso. E que o legislador clarifique todas estas pequeninas questões, poupando muito tempo e dinheiro! A notória deficiência do regime legal permite estas situações; e outras, como resulta da variedade de questões que se suscitam nos tribunais de recurso; variedade de questões sobre um assunto tão simples e que tem a ver com necessidade básicas de pessoas carenciadas!
Parece não haver coerência entre os compromissos internacionais do Estado português [6] e do compromisso assumido na Constituição da República e a sua concretização prática, através da actividade legislativa ordinária e administrativa. Por isso já se disse que «recusar ao menor o pagamento de dívidas alimentares vencidas é, pura e simplesmente, recusar-lhe um direito social derivado, com matriz constitucional relacionado com direitos fundamentais» [7], como que a sugerir que o legislador e a administração não escolheram um caminho nem fiel aos compromissos nem correcto do ponto de vista da justiça social [8].
7.2. O Decreto-Lei nº 164/99, de 13 de Maio (DL), que regulamenta a Lei nº 75/98, de 19 de Novembro (Lei), preceitua que «o centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, ..., no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal». É sobre esta norma que os Acórdãos em que se louva o recorrente assentam a sua posição.
E, na verdade, à primeira vista, ela parece significar que o Fundo não é responsável pelas quantias anteriores à referida data, visto que, para que o fosse, seria necessário que a lei o dissesse, como o faz a norma constante do artigo 2006º do Código Civil (CC). Ora, neste caso, nem há norma semelhante e há-a a dizer, parece, o contrário. E, dentro deste raciocínio, o que esta norma diz nem necessitaria de ser dito, pois só é possível iniciar o pagamento das prestações depois de decididas, como, aliás, é regra geral; a não ser que se diga o contrário ..., o que não acontece. Ou seja, o que a lei disse, aparentemente em redundância, só poderia significar uma preocupação em afastar pagamentos anteriores à data escolhida.
E quando a lei quer que o pagamento comece mais cedo e, consequentemente, com um volume maior de prestações, di-lo: «se for considerada justificada e urgente a pretensão do requerente, o juiz, ..., proferirá decisão provisória» [9].
7.3.1. Mas, pensamos que o nº 5, do artigo 4º, do DL não quer dizer que os montantes devidos pelo Fundo sejam só os que se vencerem a partir da referida altura – o mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal –. Também não aceitamos que a lei tivesse em vista evitar que a entidade pagadora protraísse o cumprimento da sua obrigação e usasse o recurso para tal fim.
Quanto a esta ideia, o legislador traça o seu pensamento seguindo os comportamentos normais e, quando receia o contrário, é ele próprio que o previne, não é o aplicador da lei que a interpreta num cenário de patologia [10]. Por outro lado, a tal obstaria o efeito meramente devolutivo do recurso [11], como está patente neste processo, em que o Sr. Juiz já perguntou ao Instituto de Gestão Financeira por que não tinha pago a prestação.
Pretender que a lei diga que as prestações a pagar são só as que se vencessem a partir da decisão, para além de parecer inútil e óbvio, seria criar uma situação injusta por demasiadamente desigual de outras – daquelas em que ainda não houvesse prestações em mora [12] ou em que o atraso fosse pequeno, por o credor ter recorrido rapidamente ao Fundo e o processo administrativo ter sido fácil e célere –; entre parêntesis, diga-se que o credor que fosse mais diligente e persistente na procura do pagamento pelo devedor originário, sairia prejudicado.
Situação injusta e desnecessariamente aleatória, porque direitos fundamentais de sujeitos com necessidades especiais ficariam à mercê do maior ou menor lapso de tempo que fosse decorrendo durante a sua privação alimentar.
7.3.2. Dir-se-á que a obrigação do Fundo é autónoma e diferente da dos parentes do menor, pelo que também pode deferir desta no seu montante – como acontece por força do disposto no artigo 2º da Lei e 3º, nº 3 do DL – e na sua duração – por não ser devida desde a propositura da acção, como está previsto no artigo 2006º do CC –. E, na verdade, o compromisso do Estado português não é o de pagar tudo a que o alimentando tenha direito, mas o de garantir um mínimo de sobrevivência, como é próprio das prestações sociais: «garantir-lhes as condições de subsistência mínimas», com se expressa o Ministério Público, nas suas Alegações [13].
Mas, esta afirmação de autonomia da obrigação do Fundo, sendo correcta, não convive nem deve conviver com situações de flagrante desigualdade, como se referiu. Por outro lado, o legislador, tendo limitado o montante, não limitou o tempo de pagamento e, para o fazer, teria de o dizer com clareza, tanto mais que, na questão dos alimentos, a lei prevê vários momentos de accionamento do direito – o da propositura da acção ou o da mora, a par da fixação de alimentos provisórios [14], mantendo-se os momentos da prolação da decisão e do seu trânsito em julgado –. Assim, é compatível aquela estrutura de autonomia com um pagamento de prestações anteriores à decisão, quer por o legislador ter previsto a situação, quer para não se cair em desigualdades.
As decisões que apoiam a tese do recorrente, partem da limitação quantitativa para chegar à temporal. Mas, salvo o devido respeito, não encontramos, nem na letra nem no espírito da lei fundamento para tal operação.
7.3.3. Mas, então, falta provar que o legislador, ao estabelecer que o pagamento se inicia após a decisão, não restringiu a esse momento as próprias prestações a pagar, evitando, inclusivamente de forma redundante, qualquer interpretação que permitisse pagamentos anteriores.
Ora, tal resulta do facto dessa norma ter como função fixar o momento em que as prestações – agora, independentemente de se saber quais – começam a ser pagas, efectivamente; é uma norma de carácter burocrático que tem a ver com a forma de processamento das prestações sociais na era da computarização; elas não são processadas uma a uma, mas por categorias e em determinado dia de cada mês. Não seria curial que um organismo que já usufrui das vantagens do processamento por computador, tivesse que ir ao processo da recorrida na exacta data da recepção da comunicação para proceder ao pagamento e, depois, todos os meses de cada ano repetisse essa operação individualizada. Na verdade, a Administração processa as prestações por categorias e em determinado dia de cada mês, sem recorrer ao processo individual, quer ao que consta de suporte em papel, quer ao informatizado; estes só são activados para introduzir alterações – mudança de residência, por exemplo – e, anualmente, para anotação e guarda dos documentos instrutórios – prova de rendimentos, de frequência escolar, etc., situações semelhantes à prevista no nº 6, do artigo 5º, nºs. 4 e 6, do artigo 9º do DL –. O legislador fixou a data do início do pagamento das prestações – que não podia ser antes da decisão – com a preocupação de conjugar a decisão judicial com a forma de processamento administrativo. Suponhamos que a decisão era transmitida à Administração antes do dia do respectivo processamento; eventualmente, ainda seria paga nesse mês. Mas, se o fosse posteriormente? Ou a Administração se tornava faltosa, face à comunicação recebida do tribunal, ou era obrigada a um procedimento individualizado e fora da programação utilizada. Ora, assim, o legislador facilitou o processamento já instituído.
Se a razão de ser da norma em análise não fosse a que defendemos, por um lado, ela não era necessária, porque as decisões são para cumprir depois de existirem, podendo até dizer-se que ela era estranha, porque, depois de existirem as decisões, não são para cumprir no mês seguinte ao da notificação pelo tribunal (!).
Por outro lado, uma limitação de tal importância teria de ser enunciada na Lei (e não só no DL), como o foi a limitação quantitativa: «as prestações atribuídas nos termos da presente lei ... não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC». A Lei contém a estrutura do regime, enquanto que o DL é regulamentador daquela; e se esta tem algumas normas que repetem o que já está dito na Lei, tem outras que são materialmente reguladoras, a par de outras de natureza meramente administrativa, para fixar os procedimentos a seguir pela Administração. Mas, o que não é aceitável é que o diploma regulamentador fosse introduzir limitações que o diploma base não conhecia!
Finalmente, seria negação de uma técnica legislativa mesmo que mediana fixar uma limitação temporal com os dizeres do referido nº 5, do artigo 3º, do DL. Não, uma medida com tal importância e consequências teria de ser escrita com clareza, e não com dizeres que, pelo menos, são equívocos, porque se refere o início do pagamento.
Portanto, entendemos que a norma citada pelo recorrente não limita temporalmente o recebimento das prestações, não estabelece um dies a quo.
7.4. Mas, então, desde quando se contam as prestações a pagar pelo Fundo?
Não, esta pergunta não é correcta, não tem lugar no regime em questão. Não se pode perguntar desde quando se contam as prestações, mas unicamente quais são as prestações, o que se paga.
E o que é que o Fundo vai pagar? As prestações previstas na lei: «..., o Estado assegura as prestações previstas na presente lei ...» [15]; «compete ao ... requerer ... que o tribunal fixe o montante que o Estado, em substituição do devedor, deve prestar» [16], devedor que «judicialmente obrigado a prestar ... não satisfizer as quantias em dívida» [17]. Repare-se que o tribunal fixa o montante que o Estado deve prestar, não fixa o momento desde quando deve prestar, pois ele tem de pagar o que está em dívida, o que constitui o direito do menor, já judicialmente definido, tanto que a lei determina que o Fundo fique sub-rogado relativamente a esse direito. Como diz o Ministério Público, « ... o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a menor se obriga a assegurar o pagamento das prestações de alimentos ...» [18].
A única limitação temporal que a lei fixa é a relativa ao fim da responsabilidade do fundo, ou seja, só há um prazo final, um dies ad quem: «o montante fixado pelo tribunal perdura enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação a que o devedor está obrigado» [19].
Outras não há, a não ser a limitação quantitativa prevista no nº1, do artigo 2º, da Lei e no nº 3, do artigo 3º, do DL.; esta é a única.
7.4.1. Poder-se-ia ter estabelecido uma limitação temporal ou limitações quantitativas relativas a períodos de tempo – até certa data e a partir dela – como, aliás, é habitual fazer-se nas regulações do exercício do poder paternal; e como ainda era compatível com os compromissos do Estado, pela natureza e função das prestações sociais e subsidiárias.
Mas, nada há na letra da lei que o sugira, pelo contrário, visto que a obrigação do Fundo é igual ao que estiver por pagar e ao que for o direito do menor, com uma explícita e única limitação - a relativa ao montante de cada prestação a pagar pelo Fundo, a que vimos chamando de quantitativa -.
7.4.2. Então, também não há que recorrer ao regime estabelecido no artigo 2006º do Código Civil: ele delimita temporalmente a obrigação do devedor originário, mas a medida da obrigação do Fundo - a medida temporal - é delimitada por aquela, e não pelo momento em que o Fundo foi demandado.
7.4.3. Por isso, ao mesmo tempo que estamos de acordo com a afirmação de que a obrigação do Estado é nova e diferente da anteriormente fixada, aceitamos que ela seja delimitada por esta: basta que o seu objecto tenha uma conexão suficiente com esta. Não é de surpreender que duas realidades diferentes confluam na mesma solução; tal como entidades iguais ou muito próximas podem ter soluções diferentes com a introdução de uma variável (em que a vida é fértil). A diferença das duas obrigações tem consequências quando sobreleva o que é diferente, por exemplo os respectivos montantes, pelas razões já referidas [20], atenua-se ou desaparece nos aspectos em que não releva a diferença; sobretudo, em relação a obrigações diferentes, mas em que uma tem por objecto parcial a outra. Aspectos em que não releva a diferença ou em que o legislador a não estabeleceu, definindo uma pela medida (temporal) da outra.
Por isso, entendemos que, se «a dívida anterior serve ... de pressuposto legitimador da intervenção, subsidiária, do Estado, para satisfazer uma necessidade actual de alimentos do menor» [21], não é só essa a sua função, não «serve apenas de pressuposto», porque o legislador disse que o conteúdo da uma era a outra, excepto no limite quantitativo. E a actualidade da necessidade está definida no artigo 2006º do CC, para a obrigação originária.
7.4.4. Estamos, assim, com o já citado Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Setembro de 2004 [22]: «Estabelecendo o art. 5º, nº 1, do DL referido, que o Fundo fica sub-rogado em todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas prestações, não só não discrimina o momento em que tal direito nasce, ... . O momento em que opera essa intervenção de garantia deve reportar-se ao momento em que nasce o direito para o seu titular, ... . Agindo o Fundo em substituição do devedor, age, autonomamente, mas tendo por base uma obrigação de garantia, que nasce no momento em que o devedor entra em situação de incumprimento, tornando-se, então responsável pelo pagamento dos débitos acumulados, pois, de outro modo, não cumpriria a sua função de garante, que é, por definição, supletiva, substitutiva. Como vimos, o momento genético da obrigação do FG, nada tem que ver com o momento que a lei estipula como termo inicial do pagamento a seu cargo, que deve iniciar-se, no mês seguinte ao da notificação pelo tribunal – nº5 do art.5º do referido DL».
III – Decisão.
Nestes termos, negam provimento ao agravo.
Sem custas.

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[1] nº 5, do artigo 4º, do Decreto-Lei nº 164/99, de 13 de Maio.
[2] Acórdão de 12 de Abril de 2005, relatado pelo Desemb. Távora Vitor; procº 265/05; www.dgsi.pt.
[3] num processo de regulação do exercício do poder paternal, tendo-se concluído que a requerida não tinha condições económicas para prestar alimentos ao filho, declarou-se tal facto e decidiu-se logo a prestação a pagar pelo Fundo. Desta decisão, recorreu o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social com o fundamento em não estar fixada prestação ao primitivo devedor. Cf. nota nº 13.
[4] relatado pelo Desemb. Fonseca Ramos; procº nº 0453441; www.dgsi.pt.
[5] Alegações, a fls. 149.
[6] exprimimo-nos assim porque não se trata só de um compromisso assumido na Constituição da República, mas também em instrumentos internacionais, como lembrou o Acórdão da Relação do Porto, de 22 de Novembro de 2004: «as Recomendações do Conselho da Europa R(82)2, de 4 de Fevereiro de 1982, relativa à antecipação pelo Estado de prestações de alimentos devidos a menores, R(89)1 de 18 de Janeiro de 1989, relativa às obrigações do Estado, designadamente em matéria de prestação de alimentos a menores em caso de divórcio dos pais; A Convenção Sobre os Direitos da Criança adoptada pela ONU em 1989 e assinada em 26 de Janeiro de 1990, em que se atribui especial relevância à consecução da prestação de alimentos a crianças e jovens até aos 18 anos de idade» (relatado pelo Desemb. Orlando Nascimento; procº 0455508; www.dgsi.pt).
[7] Acórdão referido na nota anterior.
[8] estas críticas deverão ser entendidas com o espírito positivo e de inter-acção que está explícito no artigo 4º do Código Penal espanhol ao estabelecer que o juiz comunique ao Governo determinadas situações que não estão contempladas na lei ou que o estão mal.
[9] artigo 3º, nº 2, da Lei.
[10] como também não se poderia dizer que a lei tivesse em vista evitar que o credor viesse a beneficiar com o demorar a demandar o Fundo no caso da prestação inicial ser superior à que previsivelmente seria fixada para o Fundo.
[11] e não efeito devolutivo, como se exprime o nº 5, do artigo 3º da Lei, porque devolutivo é o efeito de todos os recursos, incluindo os que, além deste, também têm efeito suspensivo.
[12] referimo-nos aos casos em que o tribunal, detectando logo a situação de carência, declara-a e, ao mesmo tempo, fixa a prestação a cargo do Fundo, cf. nota nº 3.
[13] fls. 149.
[14] artigo 2007º do CC e 157º da O.T.M. (DL 314/78, de 27 de Outubro).
[15] artigo 1º da Lei.
[16] artigo 3º, nº 1, da Lei.
[17] artigo 1º, da lei.
[18] Alegações, a fls. 144.
[19] artigo 3º, nº 4, da Lei.
[20] garantia da subsistência mínima.
[21] Acórdão da Relação do Porto, de 4 de Julho de 2002, relatado pelo Desemb. Pinto de Almeida; procº 0230657; www.dgsi.pt.
[22] relatado pelo Desemb. Fonseca Rmos; procº nº 0453441; www.dgsi.pt. Cf. nota nº 4.