Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5/10.3GBMMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: PERDA DE BENS A FAVOR DO ESTADO
Data do Acordão: 10/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 35º A 38º, DO D.L. N.º 15/93, DE 22/01 E 7º, DA LEI N.º 5/2002, DE 11/01
Sumário: O Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, dispõe de regulamentação específica no que concerne à perda dos instrumenta e producta sceleris, bem como às vantagens e direitos retirados do facto, estabelecendo que as vantagens e os direitos dele decorrentes, bem como os eventuais juros, lucros e outros benefícios obtidos através daqueles, são declarados perdidos a favor do Estado - artigos 35º a 38º.
Contudo, nos termos do artigo 7º, da Lei 5/02, de 11 de janeiro (alterada pela Lei n.º 19/08, de 21 de abril), em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.
O legislador, rompendo com a nossa tradição jurídica, introduziu, de motu próprio, uma presunção jurídica juris tantum: se alguém se dedica a certa actividade ilícita, como a do tráfico de estupefacientes, que propicia, como regra, rendimentos avultados, nem sempre fáceis de quantificar, é de presumir que esses benefícios patrimoniais são de proveniência legalmente não permitida.
Tal presunção tem sido considerada consonante com os princípios e normas constitucionais.
Mas para que o referido artigo 7º seja aplicável torna-se indispensável que o Ministério Público proceda, na acusação ou até 30 dias antes do julgamento, à liquidação do montante que deverá, na sua perspectiva, ser declarado perdido para o Estado (artigo 8.º).
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:


I. Relatório:
1. No Círculo Judicial de Pombal, foram submetidos a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, os arguidos:
- A..., residente na Rua … - Soure;
- B..., residente em …
- C..., residente em …
- D..., residente na Rua … - Soure;
- E..., residente na Rua … - Coimbra;
- F..., residente na Rua … - Coimbra;
- G..., com residência … - Coimbra;
- H..., residente … - Soure; e
- J..., residente em … , Montemor-o-Velho,
aos quais foi imputada, na acusação pública de fls. 3701 a 3777 v.º, a prática dos seguintes crimes:
Arguido A..., em autoria material, sob a forma consumada e em concurso real e efectivo, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º , n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma e de um crime de condução de veículo motorizado na via pública sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, n.º 1, do DL n.º 2/98, de 3/01, com referência aos arts. 121.º, n.º 1, e 122.º a 124.º do CE;
Arguida B..., em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, com as agravantes do art. 24.º, als. b) e c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma;
Arguido C..., em autoria material e sob a forma consumada e em concurso real e efectivo, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, com as agravantes do art. 24.º, als. b) e c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma, e de um crime de detenção de munições proibidas, p. e p. pelo art. 2.º, n.º 3, als. p) e d) do n.º 1 do art. 86.° do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, alterado e republicado pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio;
Arguido D..., em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma;
Arguido E..., em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, com as agravantes do art. 24.º, als. b) e c), do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma;
Arguido F..., em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, com as agravantes do art. 24.º al. c) do DL n. 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma;
Arguido G..., em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, com as agravantes do art. 24.º, als. b) e c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma.
Arguido H..., em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma; e
• Arguido J..., em autoria material e sob a forma consumada e em concurso real e efectivo, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º , n.º 1, com as agravantes do art. 24.º, als. b) e c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma, e de um crime de detenção de munições proibidas, p. e p. pelo art. 2.º, n.° 3, als. p) e d) do n.º 1 do art. 86.º do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, alterado e republicado pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio.
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2. Na acusação, o Ministério Público procedeu à liquidação a que se referem os arts. 7.º e 8.º, da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, solicitando a declaração de perda a favor do Estado de todas as quantias monetárias apreendidas aos arguidos no âmbito dos presentes autos.
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3. Por acórdão de 8 de Março de 2012, o tribunal colectivo julgou a acusação parcialmente procedente e, em consequência, proferiu decisão do seguinte teor:
1. Condenou o arguido A... pela prática, em autoria material, sob a forma consumada e em concurso real e efectivo, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma, e de um crime de condução de veículo motorizado na via pública sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º n.º 1 do DL n.º 2/98, de 3/01, com referência aos arts. 21.º, n.º 1, 122.º a 124.º do CE, nas penas parcelares de 18 meses de prisão e 50 dias de multa, à taxa diária de 6€;
2. Condenou a arguida B...., pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referencia às tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma, na pena de 4 anos e 10 meses de prisão;
3. Condenou o arguido C..., pela prática, em autoria material, sob a forma consumada e em concurso real e efectivo, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p pelo art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma, e de um crime de detenção de munições proibidas, p. e p. pelo art. 2.º n.º 3, als. p) e d) do n.º 1 do art. 86.º do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, alterado e republicado pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio, nas penas parcelares de 4 anos e 10 meses de prisão e 120 dias de multa à taxa diária de 6€;
4. Condenou o arguido D..., pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma, na pena de 4 anos e 7 meses de prisão;
5. Condenou o arguido E..., pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.°, n.° 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma, na pena de 5 anos de prisão;
6. Condenou o arguido F..., pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40.º, n.º 2, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma, na pena de 9 meses de prisão;
7. Condenou o arguido G..., pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma, na pena de 4 anos e 10 meses de prisão;
8. Condenou o arguido H..., pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.°, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma, na pena de 18 meses de prisão;
9. Condenou o arguido J..., pela prática, em autoria material, sob a forma consumada e em concurso real e efectivo, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL n.° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C anexas àquele diploma, e de um crime de detenção de munições proibidas, p. e p. pelo art. 2.º, n.º 3, als. p) e d) do n.º 1 do art. 86.º do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, alterado e republicado pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio, nas penas parcelares de 4 anos e 10 meses de prisão e 120 dias de multa, à taxa diária de 10€, respectivamente, e na pena única de 4 anos e 10 meses de prisão e 120 dias de multa à taxa diária de 10€;
10. Suspendeu a execução das penas de prisão aplicadas a todos os arguidos, sendo a do arguido F..., pelo período de tempo de um ano e sem condições e as aplicadas aos demais arguidos por tempo igual ao da sua duração e com regime de prova.
11. Absolveu os arguidos de tudo o que, de mais, haviam sido acusados;
12. Ordenou a devolução às pessoas a quem foram apreendidos, dos telemóveis e veículos e respectiva documentação, bem como as quantias em dinheiro apreendidas aos arguidos C..., B... e F...;
13. Declarou perdidas a favor do estado as drogas e munições apreendidas, bem como os objectos e os bens com aquelas relacionados (colheres, cachimbos, papéis, saquetas, panfletos), bem como as quantias em dinheiro apreendidas aos arguidos A..., H..., E..., G... e J...;
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4. Inconformados, os arguidos G... e J... interpuseram recurso do acórdão, tendo formulado nas respectivas motivações as seguintes (transcritas) conclusões:
I) Arguido G...:
A. Conforme o estipulado no artigo 374.º, n.º 2 do C.P.P., nas sentenças penais, é exigido que, depois da exposição dos factos provados e não provados, se faça uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para criar a convicção do Tribunal.
B. Assim, a argumentação da convicção do juiz no âmbito da análise crítica da prova implica que o Tribunal indique expressamente:
1. quais os factos provados que cada testemunha revelou conhecer;
2. quais os elementos que dos mesmos depoimentos permitem inferir a interpretação e conclusão a que o tribunal chegou;
3. quais as razões que o levam a valorar determinado meio de prova em detrimento de outro ou outros meios de prova com ele contraditório;
4. quais as razões porque não foi dada relevância a determinada prova ou meio de prova;
5. quais as razões porque julgou relevantes, ou irrelevantes, certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória a prova resultante de documentos particulares, ou retirou certas conclusões da inspecção ao local, etc.
C. O exame crítico das provas deve indicar no mínimo, não necessariamente por forma exaustiva, as razões de ciência e demais elementos que tenham, na perspectiva do tribunal sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal.
D. Assim, o Acórdão agora recorrido enferma de nulidade, com clara violação do artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pois a fundamentação daquele - para além de dever conter uma “enumeração dos factos provados e não provados” -, deveria igualmente conter uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
E. Salvo melhor entendimento, deveriam ter sido dados como não provados os seguintes factos, atenta toda a prova produzida, que acima é referida:
1. Que o arguido G... vem adquirindo produto estupefaciente, designadamente haxixe, pelo menos em parte, para revenda a terceiros desde, data exacta não apurada, mas em todo o caso, pelo menos entre Junho de 2010 e Abril de 2011.
2. Que o arguido cedeu ou vendeu aquele tipo de estupefaciente a pessoas cuja identidade não foi possível apurar.
3. Que o arguido tenha vendido estupefacientes a ....
4. Que o arguido G... era, além do mais, o principal fornecedor de haxixe da arguida B..., a quem vendeu aquele tipo de produto, durante o referido período de tempo, embora em quantidades e por preços não exactamente apurados.
5. Que o material apreendido, apesar na posse, fosse da propriedade e para uso do arguido.
6. Que vendia as placas de haxixe a partir de €160,00.
F. As escutas telefónicas, desde que efectuadas de acordo com as exigências legais, são meio legítimo de obtenção de prova, sendo que as respectivas transcrições constituem prova documental, sujeita a livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art. 127.º do C.P.P.
G. Esta operação intelectual, não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis) e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente - aqui relevando, de forma especialíssima, os princípios da oralidade e da imediação - e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio in dubio pro reo - cfr. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, n.º 129, de 02/06/2004, 8544 e ss..
H. A livre apreciação exige a convicção, fundamentada, do julgador, para além da dúvida razoável. E o princípio in dubio pro reo limita a livre convicção quando, após a produção da prova e sua análise à luz das regras da experiência comum, persista uma dúvida razoável.
I. In casu o princípio in dubio pro reo foi claramente violado, senão vejamos;
J. Não se verifica, tal como supra alegado, na fundamentação da matéria de facto, um exame crítico das provas, não se depreendem as razões de ciência e demais elementos que tenham, na perspectiva do tribunal, sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal.
K. Faz apenas e tão só remessa para as transcrições das escutas telefónicas, onde, conforme é dito no próprio Acórdão, é usada uma linguagem comum...
L. Não se percebe onde o Tribunal ad quo se baseou para a condenação; não basta as meras escutas; neste caso até só existe a indicação.... estas têm de ser conglomeradas com outros factores objectivos para o afastamento do princípio do in dubio, o que in casu não sucedeu.
M. Ora, caso assim não se entenda, o que por mero raciocínio se admite, havendo condenação pelo tipo ilícito de tráfico, aquela deveria ter sido pelo crime de tráfico de menor gravidade.
N. A actividade ilícita de tráfico de estupefacientes passou a encontrar-se descrita por diversos tipos de crimes, atendendo aos diversos níveis de ofensividade das condutas em causa, tomando essencialmente por base o desvalor da correspondente conduta e sabido das nefastas consequências dessa actividade na disseminação da droga e no subsequente consumo, gerador de dependências físicas e psíquicas.
O. Como modelos operativos dessa diminuição considerável da ilicitude, a lei aponta, a título exemplificativo, para os meios utilizados (organização e logística demonstradas), a modalidade ou as circunstâncias da acção (grau de perigosidade para a difusão das drogas), a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações dos estupefacientes, Ac. STJ de 1995/Jan./11, BMJ 443/85; 1999/Nov./04, CJ (S) III/197.
P. Mas já ocorrerá um crime de traficante-consumidor da previsão do art. 26.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 15/93, “Quando, pela prática de algum dos factos referidos no art. 21.º, o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal, …”.
Q. Tanto mais assim será, porque o nosso regime jurídico, ao contrário de outros, não comporta um crime específico de uso compartilhado de drogas.
R. No entanto a falta de previsão legal deste privilegiamento do tipo de ilícito penal ou mesmo como infracção contra-ordenacional, pode não ser impeditivo da falta de relevância criminal de um tal tipo de conduta, designadamente quando esteja em causa a compra de estupefacientes para consumo compartido ou apenas quando ocorre um consumo em conjunto.
S. Nesses casos em que não existe propriamente a realização de actos de tráfico ou até mesmo de favorecimento ao consumo de estupefacientes, por se tratar de um consumo de todos e para todos, há quem caminhe no sentido da existência de um “autoconsumo atípico”.
T. Isto naturalmente que implica rodear o consumo de estupefacientes partilhado de certos limites, contendo-o no “autoconsumo em grupo”, como sucede se o mesmo respeitar os seguintes requisitos: for a título gratuito e exclusivamente entre um grupo delimitado de consumidores; corresponder às quantidades legalmente contempladas como sendo para o consumo diário criminalmente atípico; e unicamente para um consumo esporádico e imediato.
U. Verificando-se estes pressupostos, não podemos certamente falar, quando tal ocorrer, na prática de um crime de tráfico de estupefacientes, seja em qualquer dos seus tipos ou modalidades, porquanto não se está a violar, em abstracto, a saúde pública, mas antes e em concreto, a saúde daqueles que se agruparam para consumir.
V. Assim, o arguido G..., tendo em conta a matéria dada como provada, nunca poderia ter sido condenado nos termos do art. 21.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, nem nos termos do art. 25.º, tráfico de menor gravidade, mas sim como consumidor.
W. Tal como supra referido, as quantidades de estupefacientes apreendidas ao arguido G..., apesar de serem superiores às quantidades definidas por lei para consumo, num âmbito de um consumo regular e normal, são perfeitamente normais, ou seja, são quantidades “ridículas” para considerar que se destinavam ao tráfico, pois traduzindo em termos monetários a quantidade apreendida não traduz mais do que o valor monetário de 200,00€.
X. Nos termos da Lei n.º 45/96, de 3 de Setembro, no seu art. 35.º, n.º 1, “São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos”.
Y. Ora, in casu, ficou provado que o arguido G...se dedicava à venda de automóveis.
Z. É sabido que não raras vezes este tipo de negócio é realizado em dinheiro vivo, seja porque é pago assim seja porque a compra é exigida nestes termos...
AA. Certamente que se o arguido se dedicasse ao grande tráfico não teria em seu poder somente aquela quantia...
BB. E ainda que lhe sejam devolvidos os dois computadores e máquina fotográfica que também lhe foram apreendidos, os quais serviam, apenas, para uso pessoal e estudantil.
CC. Pelo todo exposto, foram violadas, no acórdão agora recorrido, as seguintes normas: arts. 374.º, 127.º, ambos do C.P.P., e arts. 21.º, 25.º e 26.º, do Dec.-Lei n.915/93.
Nestes termos o nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência:
1. Declarar-se nulo o Acórdão proferido no Tribunal a quo, por violação do estipulado no art. 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
2. Darem-se como não provados os seguintes factos:
- Que o arguido G... vem adquirindo produto estupefaciente, designadamente haxixe, pelo menos em parte, para revenda a terceiros, desde data exacta não apurada, mas em todo o caso, pelo menos entre Junho de 2010 e Abril de 2011.
- Que o arguido cedeu ou vendeu aquele tipo de estupefaciente a pessoas cuja identidade não foi possível apurar.
- Que o arguido tenha vendido estupefacientes a ....
- Que o arguido G... era, além do mais, o principal fornecedor de haxixe da arguida B..., a quem vendeu aquele tipo de produto, durante o referido período de tempo, embora em quantidades e por preços não exactamente apurados.
- Que o material apreendido, apesar na posse, fosse da propriedade e para uso do arguido.
- Que vendia as placas de haxixe a partir de €160,00.
3. Ser declarado que o Acórdão violou o estipulado nos termos do art. 127.º do C.P.P.
4. Ser o arguido G...absolvido com base no in dubio pro reo.
Caso assim não se entenda:
5. Ser o arguido condenado pela prática de facto que se encontra estipulado no art. 40.º do Decreto-lei 15/93 de 22 de Janeiro;
Caso assim não se entenda:
6. Ser o arguido condenado nos termos do art. 25.º do mesmo diploma.
7. Ser ordenada a devolução ao arguido G...da quantia apreendida no montante de 6.250€ (seis mil duzentos e cinquenta euros).
8. Ser ordenada a devolução ao arguido G...os seus dois computadores e da sua máquina fotográfica igualmente apreendidos neste processo.
Normas Violadas: arts. 374.º, 127.º, ambos do C.P.P. e arts. 21.º, 25.º e 26.º do Dec.-Lei n.º 15/93.
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B) Arguido J...:
1.ª - Foi o recorrente condenado pela prática de um crime de produtos estupefacientes, p. p. pelo art. 21.º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 4 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução.
2.ª - Afigura-se ao aqui recorrente que, face à matéria dada como provada, o mesmo deveria ter sido condenado pela prática do ilícito previsto no art. 25.º, do DL n.º 15/93, de 22.1.
3.ª - É entendimento do recorrente que, face à prova produzida, alguns dos factos dados como provados não o deveriam ter sido, nomeadamente os pontos 13, 158, 159, 160 e 181, pelo que expressamente se impugnam.
4.ª - No que tange a este ultimo ponto, e que se reporta às transacções em que foi interveniente ... (depoimento gravado entre as 11:08:25 e as 11:26:15), pelo mesmo foi afirmado adquirir estupefaciente ao recorrente uma a duas vezes por mês, sendo que o Tribunal deu como provado que tais aquisições ocorreriam uma a duas vezes por semana.
5.ª - No que concerne aos pontos 13, 158 a 160, impugna-se o teor dos mesmos, porquanto em nossa opinião não foi produzida qualquer prova que sustente os factos ali vertidos.
6.ª - Efectivamente, o Tribunal a quo formou a sua convicção, no que a estes factos respeita, única e exclusivamente nas intercepções telefónicas efectuadas em sede de inquérito.
7.ª - Sucede que as mesmas são um meio de obtenção de prova e não um meio de prova, sendo desta forma que são tratadas legalmente.
8.ª - Paralelamente, nenhuma intercepção telefónica foi acompanhada em tempo real, desconhecendo-se em absoluto se o conteúdo de tais conversações - ainda que tenham o sentido que o tribunal lhes conferiu - tiveram ou não qualquer correspondência com o que efectivamente aconteceu.
9.ª - Invoca o Tribunal a quo o depoimento da testemunha ... (sessão de 10.01.2012, ao minuto 0:25 do mesmo), a fim de corroborar tais factos, concretamente no que tange ao fornecimento de estupefacientes por parte do recorrente ao co-arguido A....
10.ª - Sucede porém que tal depoimento se encontra ferido de nulidade, uma vez que não foi dado cabal cumprimento ao disposto no art. 134.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido a testemunha devidamente advertida que poderia recusar-se a depor.
11.ª - Ora, face a todo o exposto, afigura-se-nos suficientemente claro ser de subsumir a conduta do recorrente na hipótese prevista no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/1, ou seja, de tráfico de menor gravidade, punível com pena de prisão de 1 a 5 anos.
12.ª - Atendendo à ausência de prova sobre a concreta actividade levada a cabo pelo arguido e sobre a proveniência dos valores apreendidos, ter-se-á que concluir, no respeito pelo princípio da presunção da inocência, que aqueles lucros seriam diminutos.
13.ª - Por outro lado, quanto à personalidade do arguido, o acórdão deu como provado que o recorrente exercia de forma contínua uma actividade profissional.
14.ª - Nenhuns objectos indiciadores de um tráfico com carácter sistemático e organizado lhe foram apreendidos.
15.ª - As transacções efectuadas terão ocorrido durante cerca de seis meses, tendo sido identificados, como potenciais compradores, cerca de nove indivíduos.
16.ª - O recorrente é consumidor de haxixe desde os dezassete anos de idade.
17.ª - Acresce que, e a não se entender assim, ou seja, que não estamos perante um tráfico de menor gravidade, estar-se-ia a “meter no mesmo saco” os grandes traficantes, cujo principal móbil é o lucro e que transaccionam grandes quantidades de estupefacientes, e os pequenos traficantes.
18.ª - Relativamente às quantias apreendidas ao recorrente, entendeu o Tribunal que as mesmas deverão ser consideradas perdidas a favor do Estado.
19.ª - Ora não se vislumbra qual o processo lógico - mental seguido pelo tribunal para extrair a ilação de que a totalidade das quantias apreendidas eram provenientes da actividade de venda e cedência de produtos estupefacientes, tanto mais que o recorrente exercia uma actividade profissional bem remunerada (como bem salientou a testemunha arrolada pela defesa, Bruno Ferreira).
20.ª - Assim, deveria o Tribunal a quo ter determinado a entrega de tais quantias monetárias.
21.ª - Disposições violadas: artigos 127.º, 132.º n.º 2, do Código Processo Penal, e artigos 21.º e 25.º, do DL 15/93 de 22/1.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, no termos expostos em sede de motivação, devendo o recorrente ser condenado pela prática do ilícito p. p. pelo art. 25.º, do DL 15/93, e ordenando-se a restituição das quantias monetárias apreendidas, assim sendo feita justiça.
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5. O Ministério Público rematou a sua resposta aos recursos nos seguintes termos:
1. Os factos levados à fundamentação e considerados como provados, resultam dos depoimentos das testemunhas produzidos em audiência e da prova documental existente nos autos, de cuja análise, bem como da dos factos não provados vertidos no acórdão recorrido, não se divisa qualquer contradição na sua apreciação e interpretação, antes resultando a sua valoração estar isenta de mácula;
2. Constando do acórdão recorrido uma adequada e cuidada fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
3. Além das referências às declarações das testemunhas e dos arguidos ouvidas (fielmente narradas) são fundamentados os motivos de (des)credibilidade dos depoimentos e dos elementos probatórios objectivos carreados para os autos e uma tal fundamentação satisfaz plenamente a exigência resultante dos artigos 127.º e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
4. Assim sendo, a leitura isolada do douto acórdão recorrido, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não evidencia nenhum dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do Código Penal, que o recorrente assaca.
5. O que os recorrentes verdadeiramente pretendem é impugnar o processo de convicção do tribunal, invocando a formulação das “suas convicções” como aquela que deveria ter prevalecido na formação da convicção do julgador.
6. Devendo também considerar-se isenta de qualquer crítica a posição assumida no douto acórdão relativamente ao valor probatório das escutas, sobretudo nos casos, como o dos autos, quando aquelas são corroboradas por outros elementos de prova, que as reforçam.
7. Pelo que as provas produzidas em sede de audiência de julgamento encontram-se apreciadas pelo Tribunal a quo e conduzem à matéria de facto fixada no acórdão recorrido.
8. Bem como a sua subsunção jurídica, com a imputação aos arguidos da autoria dos crimes pelos quais vieram a ser condenados, se encontra correctamente efectuada.
9. Incólume também se nos deparando a posição vertida no douto acórdão quanto ao destino das quantias e objectos apreendidos nos autos.
10. Termos em que deve manter-se incólume o acórdão recorrido, assim se negando provimento ao recurso.
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6. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em parecer a fls. 5073/5074, manifestou-se, de igual modo, no sentido da improcedência de ambos os recursos.
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7. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, apenas o arguido G... exerceu o direito de resposta, pugnando pela procedência do recurso, nos precisos termos enunciados nas conclusões da motivação, acima descritos.
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8. Colhidos os vistos legais, o processo foi submetido a conferência.
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II. Fundamentação:
1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto dos recursos:
Conforme Jurisprudência constante e pacífica dos nossos tribunais superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respectiva motivação que delimitam e fixam o objecto do recurso.
Globalmente apreciadas as conclusões dos recursos interpostos pelos recorrentes, são estas as questões suscitadas que cumpre apreciar e decidir:
A) Recurso do arguido G...:
- Se o acórdão recorrido padece da nulidade prevista nos artigos 379.º, n.º 1, alínea a) e 474.º, n.º 2, do CPP;
- Alterabilidade da matéria de facto provada;
- Se o acórdão recorrido violou o princípio in dubio pro reo;
- Se o arguido deve ser condenado tão só pela prática do crime de consumo de produtos estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40.º do DL 15/93, de 22 de janeiro;
- A não ser entendido deste modo, se o crime perpetrado pelo arguido é o de tráfico de pequena gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, n.º 1, do diploma legal referido supra;
- Se deve ser ordenada a devolução ao arguido da quantia global, de € 6250, que lhe foi apreendida no âmbito dos presentes autos.

B) Arguido J...:
- Alterabilidade da matéria de facto;
- Se o arguido deve ser condenado pelo crime de crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22 de janeiro;
- Se deve ser ordenada a restituição das quantias monetárias que lhe foram apreendidas.

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2. Factos provados ……………………………………………………………………………………………
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3. Quanto aos factos não provados, está exarado no acórdão:
Não se provou a restante matéria constante da acusação, designadamente que qualquer dos arguidos efectuasse aquisições cedências ou vendas de produtos estupefacientes de outra natureza, a outro título, noutras quantidades, a outras pessoas, circunstâncias ou com outros contornos que não os que se dão como provadas; que todos os contactos enumerados na acusação visassem negócios relacionados com estupefacientes ou que toda a linguagem ali mencionada, para além do que a esse respeito se enunciou como provado, visasse essa específica finalidade.
Igualmente se não provou que o arguido F... alguma vez haja cedido, fosse a que título fosse, estupefacientes a terceiros e que fosse com essa finalidade que detinha o produto que na sua posse foi encontrado e que no dia 25 de Junho de 2010 o arguido A... tivesse sido detectado a vender droga ou que abordado pela autoridade policial se tenha colocado então em fuga.
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4. Relativamente à motivação da decisão de facto, ficou consignado:
A convicção positiva do Tribunal em ordem à consignação dos factos que se consideraram provados assentou nos seguintes elementos probatórios:
Auto de Apreensão de fls. 8; Relatório de Busca/Apreensão e Detenção e Autorização de Busca a fls. 1263 a 1268; suporte fotográfico das buscas a preto a branco (fls. 1276 a 1279); Autos de teste rápido ao produto estupefaciente/pesagem (fls. 1272 a 1275); Exame Pericial ao Estupefaciente (fls. 2938 a 2942); Relatório de Busca/Apreensão e Detenção (fls. 1296 a 1300); Suporte fotográfico das buscas a preto a branco (fls 1307 a 1321); Auto de Apreensão de veículo automóvel 93-50-GB (fls. 1322); Folhas de suporte contendo Certificado de Documento Único do veículo 93-50-GB (fls 1323); Autos de teste rápido ao produto estupefaciente/pesagem (fls 1305 a 1306), Exame Pericial ao Estupefaciente (fls. 2933 e 2934); Relatório de Busca/ Apreensão e Detenção (fls. 1328 a 1334); Suporte fotográfico das buscas a preto a branco (fls. 1346 a 1358); Folhas de suporte contendo Livrete/Título de Registo de Propriedade do veículo 72-40-HV (fls. 1338); Autos de teste rápido ao produto estupefaciente/pesagem (fls. 1339 a 1345); Exame Pericial ao Estupefaciente (fls. 2955 a 2957); Relatório de Busca e Apreensão (fls. 1284 a 1286); Suporte fotográfico das buscas a preto a branco (fls. 1287 a 1289); Relatório de Busca e Apreensão (fls. 2840 a 2842); Suporte fotográfico das buscas a cores (fls. 2843 a 2845); Exame Pericial ao Estupefaciente (fls. 2931); Relatório de Busca/Apreensão e Detenção (fls. 1402 a 1408); Suporte fotográfico das buscas a cores (fls. 1416 a 1425); Autos de teste rápido ao produto estupefaciente/pesagem (fls. 1408 a 1411); Exame Pericial ao Estupefaciente (fls. 2942); Relatório de Busca/Apreensão e Detenção (fls. 1458 a 1463); Suporte fotográfico das buscas a cores (fls. 1471 a 1475); Auto de Apreensão de veículo automóvel 96-17-OI (fls. 1470); Autos de teste rápido ao produto estupefaciente/pesagem (fls. 1464 a 1465); Exame Pericial ao Estupefaciente (fls. 2951 a 2953); Relatório de Busca/Apreensão e Detenção (fls. 1365 a 1370-1394 a 1395); Suporte fotográfico das buscas a cores (fls. 1383 a 1390); Auto de Apreensão de veículo automóvel 24-24-ZN (fls. 1382); Folhas de suporte contendo Certificado de Documento Único do veículo 96-17-OI e documento da Conservatória (fls. 1379 e 1380); Folhas de suporte contendo Certificado de Documento Único do veículo 24-24-ZN (fls 1381); Autos de teste rápido ao produto estupefaciente/pesagem (fls. 1375 a 1378); Exame Pericial ao Estupefaciente (fls. 2948); Relatório de Busca/Apreensão e Detenção (fls. 1430 a 1435); Suporte fotográfico das buscas a preto a branco (fls. 1440 a 1451); Autos de teste rápido ao produto estupefaciente/pesagem (fls. 1436); Exame Pericial ao Estupefaciente (fls. 2927 a 2929); Relatório de Busca/Apreensão e Detenção (fls. 1238 a 1242); Suporte fotográfico das buscas a preto a branco (fls. 1246 a 1254); Folhas de suporte contendo dois Certificados de Documentos Únicos e Livrete/Título de registo de propriedade do veículo 89-20-ON (fls 1255 a 1256, 3144 e 3145); Autos de teste rápido ao produto estupefaciente/pesagem (fls. 1257 a 1260); Exame Pericial ao Estupefaciente (fls. 2945); CRCs dos arguidos a fls. 4342 a 4350; relatórios sociais de fls. 4424 a 4428, 4435 a 4440, 4449 a 4453, 4469 a 4472, 4474 a 4479, 4524 a 4528, 4529 a 4533, 4534 a 4538 e 4557 a 4560; informação do IMTT de fls. 3898; documento de fls. 4699.
A convicção do Tribunal alicerçou-se, ainda, nos depoimentos das testemunhas de acusação …………………………………………., todos indivíduos mencionados na acusação como pessoas a quem os arguidos haviam vendido ou cedido produtos estupefacientes e cujos depoimentos, sem necessidade de maiores especificações, na medida em que os mesmos se encontram integralmente registados e não foram objecto de outras interpretações que não aquelas que infra se descriminarão, foram considerados em ordem a dar como provados ou não provados os factos a eles respeitantes, os quais, na parte que mereceu consignação positiva, com maior ou menor dificuldade (perfeitamente justificada atenta a particularidade dos crimes em causa nos autos), descreveram da forma que se dá como provada.
No que tange aos factos alegados na acusação, referentes a testemunhas ouvidas e que não vieram a considerar-se provados importa referir que foram eles negados pelas mencionadas pessoas e, mesmo nos casos em que existiam transcrições de conversações telefónicas (orais ou através de mensagens) a eles respeitantes, elas não foram consideradas sustentáculo probatório suficiente, para levar à prova dos factos em causa, para além de qualquer dúvida.
Na realidade, tendo em conta a área de criminalidade em que nos movemos e o tipo de situação que se nos depara, em que, comprovadamente, todos os arguidos a quem é imputado o tráfico, são também consumidores de estupefacientes (o que se retira à saciedade da esmagadora maioria, se não até da totalidade da prova testemunhal acabada de mencionar, mas é, também confirmado peremptoriamente pelos próprios relatórios sociais efectuados e já supra mencionados) as regras de experiência comum que têm que ser e foram utilizadas não são apenas as do homem médio, prudente e zeloso, envolvido num trabalho regular e com um salário certo, para quem, a maior parte dos conceitos envolvidos neste processo, pareceriam estranhos, obscuros e de difícil entendimento.
Na verdade, encontramo-nos numa área de actividade (que os julgadores percepcionam por força do exercício das funções que desempenham e cujos conhecimentos, nessa matéria, também utilizaram) e numa concreta situação onde os intervenientes são quase todos bastante jovens, têm uma vida social, diurna e nocturna, extremamente activa, onde o consumo de estupefacientes impera, onde quem vende agora, antes teve que comprar, onde existe solidariedade entre consumidores, por forma que, quem tem agora não tenha qualquer dificuldade em ceder ao que não tem e logo mais aconteça exactamente o contrário, sem que isso seja visto como ilícito ou, sequer, como nocivo, mas onde se procura o recato, o sossego a prudência, de forma a que se mantenha afastado do olhar e da percepção dos outros a convivência com esse tipo de situações.
Isso leva a que, muitas vezes quem é procurado para vender não tenha estupefaciente consigo e embora tente adquiri-lo, não o consiga nas condicionantes que lhe são impostas, leva a fornecimentos prévios sem pagamentos, leva a que quem hoje vende, amanhã tente junto do seu outrora comprador comprar o produto de que carece e leva também e indiscutivelmente a encontros furtivos, em locais estranhos, muitas vezes sem a exacta finalidade de comprar, mas com a exclusiva finalidade de consumir conjuntamente ou ao estabelecimento de laços singelos de convívio e amizade entre pessoas que partilham uma mesma maneira de estar e um consumo furtivo.
Essa proximidade, a mobilidade, o secretismo, o conhecimento e avaliação do risco, essa forma de vida, não obstante de difícil entendimento para a generalidade das pessoas, tem que ser valorizada e entendida na análise de factos como os que estão em causa nos autos.
É verdade que, também por causa de tudo isso, não será invulgar a existência de casos em que aquilo que parece ao bom pai de família também possa de facto acontecer e, de facto, ocorra uma transacção de droga depois do estabelecimento de intensos contactos por sms em que duas pessoas combinam encontrar-se num parque de estacionamento, na casa de um deles, ou no exterior de um bar ou café, porém, tantas são as possibilidades da sua concretização (pode ser de um ou outro ou vice versa, pode ser para cedência gratuita e nesse caso de quem a quem, pode ser para consumo conjunto, pode ser de haxixe, cannabis ou até cocaína) que jamais se poderá concluir pela exacta ocorrência de uma delas, sem que essa conclusão se possa retirar, de forma indiscutível, dos meios de prova ao dispor do julgador (pelo menos com base no princípio in dubio pro reo, pois permanecerá a dúvida sobre tal participação, mesmo que não haja prova real e directa do contrário).
Nesse âmbito, não obstante o que infra se dirá a respeito de algumas situações em particular, não se poderiam entender como indiscutivelmente concludentes no sentido da existência de efectivas vendas ou cedências de estupefacientes por parte dos arguidos a qualquer das testemunhas enunciadas ou a outras pessoas não concretamente apuradas ou que não tenham sido inquiridas em audiência, sem que as mesmas o houvessem confirmado, por haver outras possibilidades que à luz das regras de experiência comum, pelo menos com base no princípio in dubio pro reo, entendido nos termos supra expostos, se não podem descartar.
É que da análise das intercepções telefónicas levadas a cabo e transcritas nos apensos A, B, C, D, D-1, E, F e G (cujo conteúdo foi integralmente analisado e considerado), excepção feita a conversações mantidas entre alguns dos próprios arguidos entre si ou entre eles e outras pessoas, mas referindo-se a “transacções” feitas entre eles e a que infra se fará referência especificada nenhuma prova concreta e concludente de que ocorreram efectivas vendas por parte de qualquer deles a qualquer dos indivíduos mencionados na acusação se pode retirar, embora indiscutivelmente dali se retire que nalguns casos se pretendia aceder a estupefacientes, o que é revelado pelo uso da linguagem codificada que se dá como provada que à luz das regras de experiência comum (entendidas no sentido supra mencionado), indiscutivelmente aponta.
Tal prova concreta e concludente igualmente não ressalta do teor dos autos de inspecção e vigilância constantes dos autos e cujo conteúdo igualmente se analisou e considerou ou dos depoimentos das testemunhas ……………………, todas testemunhas ouvidas que, enquanto agentes policiais ou participaram nas intercepções telefónicas ou em diligências de observação após tais intercepções e na sequência delas, pois também o que eles descreveram em auto ou pessoalmente não nos permite dirimir as fundadas dúvidas a que infra se fez referência, já que não foi descrito qualquer observação que se possa concluir como traduzindo uma inequívoca e indiscutível transacção de estupefacientes (não é a ida de um arguido a casa de outro, o encontro de duas pessoas numa bomba de gasolina por minutos e um acto de toque de mãos que pode, com toda a facilidade, ser interpretado como um cumprimento social).
Do depoimento da testemunha ..., que participou na detenção inicial do arguido A... se retirou a não prova da alegação de o mesmo estar a vender estupefacientes e se colocou em fuga antes da detenção, pois o que a mencionada testemunha disse foi que haviam avistado tal arguido no exercício da condução na estrada, a parar ao lado de um outro indivíduo, a falarem por breves instantes e a fazer inversão de marcha, após o que foram no encalço dele e, efectuada a detenção, uma vez que não tinha documento legal que o habilitasse à condução, com a sua revista, constataram que o mesmo tinha consigo estupefacientes.
E, aqui chegados, importa fazer um apelo mais aprofundado ao valor dado pelo Tribunal Colectivo às transcrições das escutas telefónicas levadas a cabo nos autos, as quais, desde já se refere, não obstante o supra referido, motivaram a convicção positiva desse mesmo Tribunal, no que tange à existência das vendas de estupefacientes dadas como provadas, no que se refere aos arguidos entre si, nos termos que supra se consideraram provados.
É que as mensagens de texto e conversações telefónicas de arguido transcritas em auto - não são declarações de arguido, tal como previstas nos artigos 356.º e 357.º do Código de Processo Penal, antes constituindo meio de prova próprio e autónomo daquelas declarações.
E como prova autónoma da resultante de declarações do arguido, lícita e oportunamente produzida e trazida aos autos, não carece sequer de ser lida em audiência para poder ser considerada na decisão final, como de resto o não foi, pois a ela teve livre e atempado acesso o arguido, assim se lhe assegurando todas as possibilidades de a contraditar, impugnar e refutar, ou seja, com respeito pelas amplas garantias de defesa constitucional e legalmente asseguradas e sem que, de igual modo, tal circunstância interfira ou ponha em causa o seu direito ao silêncio, o qual, dependente de opção sua dentro da estratégia de defesa delineada, não o podendo desfavorecer, também não tem necessariamente que o favorecer.
Neste sentido, Manuel da Costa Andrade “Sobre o regime processual penal das escutas telefónicas”, na Revista Portuguesa Ciência Criminal, Ano l, n.º 3, Julho/Setembro 1991, pp. 369/408, e Carlos Adérito Teixeira, “Depoimento Indirecto e Arguido - Admissibilidade e Livre Valoração versus Proibição de Prova”, Revista do CEJ., 1.º Semestre 2005/número 2, p. 168 e 179., onde se refere que, apesar da epígrafe do artigo 357.º do CPP, o que ali se proíbe não são as declarações, mas o depoimento sobre declarações, e que as transcrições de conversações telefónicas do arguido com terceiros são admissíveis e valoráveis livremente pelo tribunal de julgamento, concluindo que “A não ser assim, o silêncio do arguido tudo apagaria e acabava-se com as escutas”.
Também na jurisprudência é pacífica esta ideia que o auto de transcrição das escutas, uma vez incorporado no processo, constitui prova documental, não sendo essencial a sua leitura, ou exame, em audiência para valer como meio de prova; neste sentido se podendo consultar, entre outros, os seguintes acórdãos do STJ: «...as escutas telefónicas regularmente efectuadas durante o inquérito, uma vez transcritas em auto, passam a constituir prova documental, que o tribunal de julgamento pode valorar de acordo com as regras da experiência; essa prova documental não carece de ser lida em audiência e, no caso de o tribunal dela se socorrer, não é necessário que tal fique a constar da acta» - Ac. STJ de 18 de Maio de 2005, Proc. 4189/02-3.ª, Sumários de Acórdãos do STJ; «...Em matéria de escutas telefónicas, tem acentuado este Tribunal que as escutas telefónicas regularmente efectuadas durante o inquérito, uma vez transcritas em auto, passam a constituir prova documental, que o tribunal de julgamento pode valorar de acordo com as regras da experiência, sendo que essa prova documental não carece de ser lida em audiência e, no caso de o tribunal dela se socorrer, não é necessário que tal fique a constar da acta» - Ac. STJ de 15-2-2007, www.dgsi.pt.; «...As escutas telefónicas, desde que efectuadas de acordo com as exigências legais, são meio legítimo de obtenção de prova. A transcrição das escutas assim realizadas constitui prova documental sujeita a livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art. 127.º do CPP, mesmo que não lida nem examinada em audiência, porquanto se trata de prova contida em acto processual cuja leitura em audiência é permitida - art. 355.º do CPP. E mesmo que as escutas constituam o único meio de prova, o tribunal não está impedido de nelas apoiar a sua convicção. Por outro lado, a não leitura das transcrições das escutas telefónicas em audiência, constando estas dos autos, não impossibilita a realização do contraditório; o arguido sempre pode contraditar, no decurso da audiência, o seu conteúdo e conformidade com os respectivos suportes, se não o faz, sibi imputet» - Ac. STJ de 31 de Maio de 2006, Proc. 06P1412.
Tais transcrições podem, pois, ser valoradas pelo Tribunal do julgamento, segundo os princípios da livre apreciação da prova e da livre convicção do juiz, em conjugação com as regras da experiência comum, uma vez que ninguém contestou a sua válida produção no processo, e terem respeitado, in casu, todas as regras legais impostas em ordem à sua validade e integridade, independentemente da decisão tomada pelos arguidos que com elas são afectados: J..., B..., C..., E... e G..., pois também com base nelas se dá como provada a existência de vendas por eles feitas a outros arguidos (ao H...e ao A..., ao D...)
Mister se torna, porém, nos termos já supra enunciados, que delas apenas ou do seu teor conjugado com outros elementos de prova, se retire, de forma concludente, que as transacções mencionadas ocorreram.
A nosso ver é isso que efectivamente ocorre, ao contrário do que antes se havia considerado relativamente aos indivíduos supra mencionados, mesmo considerando os particulares contornos que neste tipo de casos terão que revestir as regras de experiência comum.
Passaremos, assim, a analisar,, cada uma das situações dos referidos arguidos em separado:
Fornecimento do J... ao A...: a prova da sua ocorrência retira-se da conjugação da análise das sessões 1251, 1252 e 1253 do Apenso C, conjugadas com o depoimento da testemunha ..., que confirma que, efectivamente, a dita placa lhe chegou a ser entregue.
Os fornecimentos do J... ao H...retiram-se da análise das sessões 147 do Apenso C e 282 do apenso F, de onde indiscutivelmente se retira que o arguido J... já havia deixado, em ambos os casos, estupefaciente para o outro, referindo-se a detergentes em cima do frigorífico e “aquilo”, colocado numa gaiola, que o outro procurava, demonstrando já saber que ali estava, embora sem ser sabedor do local exacto.
Se só esse contexto já é, em nosso entender, eloquente à luz das regras de experiência comum, para demonstrar o que se deu como provado, mais o é ainda se conjugado com os depoimentos das testemunhas supra mencionadas, que depuseram quanto ao referido arguido, de onde se retira que, efectivamente, o mesmo vendia estupefacientes, no período de tempo em questão, nesse sentido apontando, ainda, as apreensões que foram feitas na sua posse.
Os fornecimentos feitos pela B... ao D...e ao C...retiram-se da análise das sessões, 46 168, 169, 223, 472, 3552, 5277, 5288 do Apenso D, 1660, 1990, 8380, 8413 do Apenso A, fls. 277 e segs. destes autos, também conjugado com os depoimentos das testemunhas que nessa parte depuseram, de onde se retira uma clara actividade de venda de estupefacientes por parte da arguida B..., aqui se ressaltando o da testemunha Mónica que, em audiência confirmou que, num determinado dia a B... ali deixou um saco com pó branco, que aparentava ser cocaína, para o D...ir buscar, o que efectivamente ocorreu, assim confirmando os contactos entre ambos mantidos nessa matéria e mencionados nalgumas das sessões acabadas de referir.
Nesse mesmíssimo sentido apontam, ainda, as apreensões feitas na posse da arguida em causa.
Os fornecimentos feitos pelo arguido G... à arguida B... retiram-se da análise das sessões constantes de fls. 12, 23 a 27, 49 a 51, 53 a 54, 65 a 73, 79 a 84, 90, 91, 100 a 101, 104 a 105, 107 a 110, 112 a 114, 118 a 123, 126, 131 a 135, 145, 146, 155, 156, 165 a 168, 171 a 173 a 177, 185, 191 a 200, 202, 205, 209, 22G, 237, 239, 246, 253, 255, 259, 270 do Apenso D, conjugada com o teor da folha apreendida ao arguido e que se encontra a fls. 2490, bem como a quantidade de estupefaciente que lhe foi encontrado e apreendido, ao facto de ter na sua posse uma balança de precisão e um moinho manual ambos com resíduos de cannabis são provas claras no sentido de que os factos ocorreram da forma que se dá como provada.
Aqui se ressalta que, embora não em todas, em muitas dessas conversações/comunicações, se fazem referências claras a transacções já havidas -referências à categoria de produtos, como sendo melhor, igual ou inferior a outros, o que presume fornecimentos, insistências ou menções a dívidas, a gastos antecipados, sem pagamentos, que, por tudo isso, foram consideradas provadas.
Não obstante, tendo em conta o raciocínio supra desenvolvido e as particulares cautelas a considerar neste tipo de situações, pelo menos com base no princípio in dubio pro reo, não se poderia considerar, como não se considerou, que todos os contactos mantidos redundaram em efectivas transacções, desde logo porque, por um lado, não se poderiam afastar as demais hipóteses já supra enunciadas e, por outro, mas não menos importantes, da leitura integral das intercepções mantidas resulta com alguma clareza que alguns dos contactos redundaram em tentativas falhadas, seja por desistência, seja por excessiva demora, seja porque aqui e ali, quem ia vender não tinha estupefaciente consigo, aguardava fornecimento de outrem para o poder vender e isso terá resultado frustrado por motivos que se desconhecem.
No que ao arguido G...respeita importa ainda referir que embora a acusação mencionasse que o mesmo vendia à B... também cocaína, isso não mereceu qualquer prova em seu benefício e, por isso não se deu como provado.
É que, das intercepções telefónicas nada se pode indiscutivelmente concluir a esse respeito, antes se constatando que a arguida recorria também a outras pessoas para se fornecer e, por outro lado, aquando das buscas e apreensões, nada foi encontrado na posse do mesmo arguido que indiciasse em conformidade, quanto mais não fosse ao nível de resíduos na balança ou em qualquer objecto que estivesse na sua posse e igualmente não lhe foram encontrados os produtos vulgarmente associados ao corte da referida substância, seja os comprimidos nostan, o bicarbonato de sódio ou qualquer pó branco ou incolor ou sequer os recortes em plástico ou saquetas associadas à revenda daquele tipo de substância.
Os fornecimentos feitos pelo arguido E... ao arguido C... retiram-se da análise das intercepções telefónicas em que ambos, e que constam do apenso E, as quais, embora sem referências concretas a dinheiro ou a transacções anteriores, quando conjugadas com o teor da agenda que foi apreendida àquele, onde há expressa referência a este, com menções de um valor, compatível e adequado ao custo do grama e ao que tudo indica a quantidades em gramas, indicam claramente, no sentido que se veio a dar como provado, embora não mais do que isso.
Nesse mesmo sentido, indicam ainda os produtos e objectos que ao arguido Rui vieram a ser apreendidos, indiscutivelmente associados ao tráfico de cocaína e ao corte de tal tipo de produto, bem como os depoimentos das testemunhas supra mencionadas que sobre este arguido depuseram, tudo apontando no sentido de que o mesmo se dedicava ao tráfico do referido tipo de estupefaciente.
No que tange à não prova de que o arguido F... se dedicasse à venda de produtos estupefacientes, o raciocínio do Tribunal Colectivo alicerçou-se no facto de que o arguido em causa (único que prestou declarações) apresentou uma explicação para tal (é consumidor frequente daquele tipo de produtos e alguém lhe propôs a aquisição das placas de haxixe por um preço muito abaixo do valor do mercado pelo que, conhecedor do risco associado à aquisição daquele tipo de produtos, fez o negócio).
Tal explicação, de difícil entendimento para o comum das pessoas, é plausível para quem consome reiteradamente aquele tipo de produtos e na altura, refira-se, tinha ocupação profissional.
Por outro lado, nenhuma prova se fez que, contra a palavra do arguido, indiciasse que o mesmo destinava o produto estupefaciente que indiscutivelmente detinha a qualquer outra finalidade que não o seu próprio consumo.
De facto, não obstante a quantidade de produto detida, nem uma única intercepção telefónica directa ou indirectamente se referiu a este arguido, o qual surge no processo (conforme foi mencionado por um dos agentes policiais ouvidos como testemunha e supra mencionado), apenas porque a determinada altura, conduzindo o veículo do arguido G..., foi objecto de vigilância; nenhuma das testemunhas ouvidas se referiu a ele como tendo-lhe vendido ou sequer cedido, ainda que gratuitamente, qualquer tipo de produto estupefaciente, embora duas delas assumam ter consumido esporadicamente junto dele.
As regras de experiência comum, entendidas nos termos supra expostos, apontam-nos no sentido de que o tipo de droga em causa, pela sua natureza, características e preço, muitas vezes é adquirida e possuída em maior quantidade que as chamadas drogas duras, as quais são usadas com mais frequência, porque quase sempre associadas a um maior grau de dependência e, pelo seu custo muitíssimo mais elevado, não incentivam grandes investimentos de uma só vez ao contrário do que ocorre com as chamadas drogas leves e alguns consumidores, mais conscientes ou cautelosos, compram maiores quantidades precisamente como forma de diminuírem os riscos que sabem associados à respectiva aquisição.
Como quer que seja, no nosso entender, jamais se poderia, sem mais, partir da análise da quantidade detida para a conclusão de que atento exclusivamente a ela, o arguido a destinava ao tráfico.
Efectivamente, sem querer entrar directamente na discussão do aspecto jurídico da causa, conforme resulta do artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, em vigor desde 1 de Julho de 2001, conjugado com o artigo 28.º do mesmo diploma, foi descriminalizado o consumo de estupefacientes, mercê da expressa revogação dos artigos 40.º (excepto quanto ao cultivo) e 41.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, pelo que o consumo, aquisição e detenção de substâncias previstas nas tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, passaram a ser sindicáveis através do direito contra-ordenacional.
Porém, de acordo com o pressuposto formal enunciado no n.º 2 do preceito acima mencionado, a aquisição e detenção para consumo próprio das substâncias previstas não poderão exceder a quantidade necessária para consumo médio individual durante o período de 10 dias.
No caso vertente, tal limite mostra-se à primeira vista ultrapassado, atento o artigo 9.º da Portaria n.º 93/96 de 26 de Março e o mapa a ela anexo que fixa em 0,5 gramas o limite quantitativo máximo para cada dose média individual diária de canabis (resina), correspondendo assim a 10 doses uma quantidade equivalente a 5 gramas, quando o arguido detinha quantidade superior gramas.
Porém, entendemos o critério quantitativo enunciado com vista a delimitar as situações que caem no âmbito do consumo - por aplicação dos valores previstos na dita tabela - não pode ser sequer de aplicação automática. Com efeito, entendemos que o elemento contido no artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 30/2003, no sentido de que não poderá ser excedida a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias não se traduz num valor-limite mas apenas indiciário e orientador de que a quantidade superior pode destinar-se ao tráfico.
Diga-se, aliás, que a estender-se a interpretação da citada norma ao entendimento de que a mesma contém, em si, já não um indicador, mas uma verdadeira presunção, ainda que elidível, de ocorrência de tráfico, salvo melhor opinião, ocorreria inconstitucionalidade, por utilização de presunção incriminatória.
Como quer que seja, com base na prova produzida e não produzida e supra melhor explicada, o tribunal entendeu tratar-se o produto apreendido ao consumo próprio do arguido, tendo em atenção os dados disponíveis, designadamente as circunstâncias do caso concreto e a natureza dos produtos estupefacientes em questão e a ausência total de qualquer indício do contrário.
Mais se fundou o tribunal no depoimento das testemunhas de defesa, que relataram o comportamento dos arguidos, as suas ocupações profissionais ou falta delas, aqui se ressaltando que a testemunha … referiu que era do seu conhecimento pessoal que o dinheiro apreendido ao arguido C..., seu irmão, lhe havia sido entregue pelos progenitores de ambos, na véspera da apreensão, e destinava-se a pagar uma prestação das propinas escolares do mesmo, o que aparenta ser confirmado pela altura do ano em que ocorreu tal apreensão, que corresponde ao declarado e ao valor apreendido, que também é compatível com tal alegação, que, por isso, se considerou provada.
O depoimento das testemunhas de defesa inquiridas, conjugado com o teor das intercepções telefónicas, com os depoimentos das testemunhas de acusação a que já se fez referência e com os autos de vigilância efectuados nos autos e que deles constam, serviu, ainda, para dar como provado o uso dado pelos arguidos aos seus telefones móveis e veículos.
Todos os meios de prova foram analisados em conjugação entre si e à luz das regras de experiência comum, que igualmente foram consideradas, nos termos supra enunciados, tendo redundado na prova dos factos tal como se consideraram provados, sendo que os alegados e não dados como provados ou não beneficiaram de qualquer prova ou de prova credível bastante para levar à sua consignação.
*
5. Mérito dos recursos:
5.1. Sobre a invocada nulidade do acórdão (recurso do arguido G...):
Por força do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
Em consonância com este imperativo constitucional, estabelece o n.º 2 do artigo 374.º, do Código de Processo Penal, sobre os requisitos da sentença: «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se, assim, com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa dos motivos de facto e de direito que serviram para fundar a decisão sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, também, os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse determinada forma ou diversos meios de prova produzidos em audiência de julgamento.
A referida norma ordinária está intimamente ligada à do art. 127.º do CPP, nos termos do qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
O julgador é, assim, livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja «vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório» Prof. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Vol. I, pág. 211..
No entanto, a livre convicção do juiz não se confunde com a sua convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do princípio do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.
A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento.
Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional Cfr., Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, pág. 202-206..
Vigorando na nossa lei adjectiva penal um sistema de persuasão racional e não de íntimo convencimento, instituiu o legislador mecanismos de motivação e controle da fundamentação da decisão de facto, dando corpo ao princípio da publicidade, em termos tais que o processo - e, portanto, a actividade probatória e demonstrativa -, deva ser conduzido de modo a permitir que qualquer pessoa siga o juízo, e presumivelmente se convença como o julgador Cfr. Prof. Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, pág. 302..
A obrigação de fundamentação respeita à possibilidade de controle da decisão do julgador, a viabilizar a exigível sindicabilidade da decisão e a reforçar a sua compreensibilidade pelos destinatários directos e da comunidade em geral, como elemento de relevo para a sua aceitação e legitimação.
É, pois, na fundamentação da sentença, sua explicitação e exame crítico que se poderá avaliar a consistência, objectividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador. Não é suficiente a mera indicação das provas, sendo necessário revelar o processo racional que conduziu à expressão da convicção.
«Com efeito, só assim o decisor justifica, perante si próprio, a decisão (o momento da exposição do raciocínio permite ao próprio apresentar e conferir o processo lógico e racional pelo qual atingiu o resultado), e garante a respectiva comunicabilidade aos respectivos destinatários e terceiros (dando garantias acrescidas de que a prova juridicamente relevante foi não só correctamente recolhida e produzida, mas também apreciada de acordo com cânones claramente entendíveis por quem quer).
Assim que baste que apenas um dos referidos passos do juízo devido seja omitido, para que se esteja a prejudicar a tutela judicial efectiva que tem de ser garantida como patamar básico da convivência social, impossibilitando ou diminuindo a justificação e compreensibilidade do decidido» Paulo Saragoça da Mata, A livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Organizadas pela Faculdade da Universidade de Lisboa e pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, com a colaboração do Goerthe Institut, Almedina, pág. 261-279. .
Só motivando nos moldes descritos a decisão sobre matéria de facto, mesmo vendo a questão do prisma do decisor, é possível aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da referida convicção, para que seja permitido sindicar se a prova não se apresenta ilógica, arbitrária, contraditória ou violadora das regras da experiência comum.
Antes da vigência da Lei n.º 59/98, de 15 de Agosto, entendia-se que o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, não exigia a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito fundamentos da decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não impondo a lei a menção das inferências indutivas efectuadas pelo tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contraprovas, nem impondo que o julgador expusesse pormenorizadamente o raciocínio lógico que se encontra na base do seu juízo apreciativo, pelo que, somente a ausência total da referência às provas que constituíam a fonte da convicção do tribunal constituía violação do referenciado preceito legal.
A referida Lei n.º 59/98 passou a impor o exame crítico das provas, mantendo a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, essa exigência.
Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, este conceito tem de ser concretizado com recurso a critérios de razoabilidade, sendo fundamental, como já ficou dito, que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-dedutivo que serviu de suporte ao respectivo conteúdo.
A análise crítica da prova não terá, no entanto, de ser exaustiva, mas apenas a suficiente para se poder concluir que a decisão assentou na prova produzida e não é fruto de qualquer discricionariedade ou arbitrariedade.
Assim, o dever de indicação e exame crítico das provas, como elemento da fundamentação da decisão de facto, não exige, naturalmente, uma assentada do depoimento das testemunhas, ou seja, que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética.
Como não impõe uma fundamentação formalmente distinta para cada um dos arguidos ou uma fundamentação autónoma para cada um dos factos.
Em síntese conclusiva, dir-se-á, pois, que a exigência normativa do exame crítico das provas torna insuficiente a referência àquilo em que o tribunal se baseou, tornando-se necessário saber o porquê, a razão de ser da formação da convicção do tribunal.
A inexistência ou insuficiente fundamentação conduz, inexoravelmente, à nulidade da decisão final, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP.
Enunciados estes princípios e analisada a exposição dos motivos probatórios exarada na sentença recorrida, verifica-se que o tribunal a quo expôs satisfatoriamente os motivos de facto que fundamentaram o decidido.
Na parte que importa ter em conta, ou seja, em relação ao arguido/recorrente G..., considerou provado:
- Durante o relacionamento do arguido D...com a arguida B..., o fornecimento de haxixe era, pelo menos em parte, garantido pelo arguido G... e, posteriormente à separação, o primeiro arguido obtinha, também pelo menos em parte, o referido produto junto dos arguidos B... e C... (ponto 91);
- O arguido G... vem adquirindo produto estupefaciente, designadamente haxixe, pelo menos em parte, para revenda a terceiros, desde data exacta não apurada, mas, em todo o caso, pelo menos entre Junho de 2010 e Abril de 2011 (ponto 148);
- Entre outros, cuja identidade não foi possível apurar, adquiriram ou a quem o arguido cedeu aquele tipo de estupefaciente conta-se ..., que conhece o G...por estudarem juntos na Escola Universitária … , o qual consumiu haxixe conjuntamente com ele em várias ocasiões, sendo o produto fornecido “por quem tinha”, sendo que, algumas vezes, foi o G...a disponibilizá-lo (ponto 149);
- O arguido G... era, além do mais, o principal fornecedor de haxixe da arguida B..., a quem vendeu aquele tipo de produto durante o mencionado período de tempo, embora em quantidades e por preços não exactamente apurados (ponto 151);
- Com tal arguida mantinha contactos pessoais e telefónicos frequentes, sendo que, pelo menos alguns dos que se referirão em sede própria, se relacionavam com as mencionadas transacções ou com o seu pagamento, já que, por vezes, o estupefaciente não era pago no acto da aquisição e a mesma arguida tardava no seu pagamento (ponto 152);
- No âmbito das buscas realizadas no dia 12 de Abril de 2011, foram apreendidos, no interior da residência do arguido G..., inter alia, os seguintes produtos: uma balança de precisão, com resíduos de canabis; um telemóvel de marca Nokia; € 6.250, em notas do Banco Central Europeu; 5,692g de canabis (fls./sumid.); 29,315g de canabis (resina); um moinho manual para triturar folhas/cabeças de planta canabis (ponto 153);
- No âmbito das buscas realizadas no dia 12 de Abril de 2011, foram apreendidos, no interior do veículo de matrícula 24-24-ZN, utilizado pelo arguido G..., entre o mais, os seguintes produtos e objectos: 3,432g de canabis (resina); uma folha tipo A4, manuscrita, onde se encontravam nomes associados a valores (ponto 154);
- O arguido desenvolvia a actividade de tráfico de estupefacientes com recurso aos seguintes cartões telefónicos: 917410860 e 910170554 e os telemóveis apreendidos e utilizava os seguintes veículos, para adquirir e vender estupefaciente: 96-17-OI e 24-24-ZN (ponto 155);
- Tais veículos automóveis eram também usados na vida pessoal e profissional do arguido (ponto 157);
- Pelo menos parte do canabis apreendido ao arguido destinava-se à venda a terceiros por preço superior ao da aquisição, tendo ainda em consideração o valor global adquirido. Vendia as placas de haxixe a partir de € 160,00 (ponto 157);
- Quando havia contactos telefónicos dos arguidos entre si ou com alguns dos indivíduos supra mencionados, relacionados com estupefacientes, frequentemente utilizavam expressões equívocas para a eles se referirem, entre elas se contando “tens cenas”, “alugas um quarto”, “placas”, “chapas”, “fumos”, “daquilo”, “electrodomésticos”, “cds”, “mel”, “quilada”, “packs”, “coisas”, “chocolate”, “abelhas”, “amoníaco”, “prenda”, “mjoana”, “base”, “pote”, “isso”, “coisas boas”, “bebidas”, “garrafas de beirão e garrafas de vodka”, “ovos”, “Mercedes”, “Lamborghinis”, “speed”, “bolo”, “canas de pesca”, “relva” (ponto 218).
E, no que concerne ao juízo de convicção sobre a prova, nos segmentos pertinentes, está exarado no acórdão sob recurso:
«A convicção positiva do Tribunal em ordem à consignação dos factos que se consideraram provados assentou nos seguintes elementos probatórios:
(…) Relatório de busca/apreensão e detenção (fls. 1365 a 1370 - 1394 a 1395); suporte fotográfico das buscas a cores (fls. 1383 a 1390); auto de apreensão do veículo automóvel 24-24-ZN (fls. 1382); (…) autos de teste rápido ao produto estupefaciente/pesagem (fls. 1375 a 1378); exame pericial ao estupefaciente (fls. 2948); (…) CRC´s dos arguidos a fls. 4342 a 4350, relatórios sociais de fls. (…).
A convicção do tribunal alicerçou-se, ainda, nos depoimentos das testemunhas (…), todos indivíduos mencionados na acusação como pessoas a quem os arguidos haviam vendido ou cedido produtos estupefacientes e cujos depoimentos, sem necessidade de maiores especificações, na medida em que os mesmos se encontram integralmente registados e não foram objecto de outras interpretações que não aquelas que infra se descriminarão, foram considerados em ordem a dar como provados ou não provados os factos a eles respeitantes, os quais, na parte que mereceu consignação positiva, com maior ou menor dificuldade (perfeitamente justificada, atenta a particularidade dos crimes em causa nos autos), descreveram da forma que se dá como provada.
(…).
E aqui chegados, importa fazer um apelo mais aprofundado ao valor dado pelo Tribunal Colectivo às transcrições das escutas telefónicas levadas a cabo nos autos as quais, desde já se refere, não obstante o supra referido, motivaram a convicção positiva desse mesmo Tribunal, no que tange à existência das vendas de estupefacientes dadas como provadas, no que se refere aos arguidos entre si, nos termos que supra se consideraram provados.
(…).
Tais transcrições podem, pois, ser valoradas pelo Tribunal do julgamento, segundos os princípios da livre apreciação da prova e da livre convicção do juiz, em conjugação com as regras da experiência comum, uma vez que ninguém contestou a sua válida produção no processo, e terem respeitado, in casu, todas as regras legais impostas em ordem à sua validade e integridade, independentemente da decisão tomada pelos arguidos que com elas são afectados: J..., B..., C..., E... e G..., pois também com base nelas se dá como provada a existência de vendas por eles feitas a outros arguidos (ao H...e ao A...,; ao D...e ao C..., no caso da B...; ao C..., no caso do E...; e à B..., no caso do G...).
Mister se torna, porém, nos termos já supra enunciados, que delas apenas ou do seu teor conjugado com outros elementos de prova, se retire, de forma concludente, que as transacções mencionadas ocorreram.
A nosso ver é isso que efectivamente ocorre, ao contrário do que antes se havia considerado relativamente aos indivíduos supra mencionados, mesmo considerando os particulares contornos que neste tipo de casos terão que revestir as regras da experiência comum.
Passaremos, assim, a analisar cada uma das situações dos referidos arguidos em separado:
(…) Os fornecimentos feitos pelo arguido G... à arguida B... retiram-se da análise das sessões constantes de fls. 12, 23 a 27, 49 a 51, 53 e 54, 65 a 73, 79 a 84, 90, 91, 100 e 101, 104 e 105, 107 a 110, 112 a 114, 118 a 123, 126, 131 a 135, 145, 146, 155, 156, 1165 a 168, 171 a 173 a 177, 185, 191 a 200, 202, 205, 209, 226, 237, 239, 246, 253, 255, 259, 270 do apenso D, conjugada com o teor da folha apreendida ao arguido e que se encontra a fls. 2490, bem como a quantidade de estupefaciente que lhe foi encontrado e apreendido, ao facto de ter na sua posse uma balança de precisão e um moinho manual com resíduos de canabis são provas claras no sentido de que os factos ocorreram da forma que se dá como provada.
Aqui se ressalta que, embora não em todas, em muitas dessas conversações/comunicações se fazem referências claras a transacções já havidas - referências à categoria de produtos, como sendo melhor, igual ou inferior a outros, o que presume fornecimentos, insistências ou menções a dívidas, a gastos antecipados, sem pagamentos, que, por tudo isso, foram consideradas provadas.
(…).
No que ao arguido G...respeita, importa ainda referir que, embora a acusação mencionasse que o mesmo vendia à B... também cocaína, isso não mereceu qualquer prova em seu benefício e, por isso, não se deu como provado.
É que, das intercepções telefónicas nada se pode indiscutivelmente concluir a esse respeito, antes se constatando que a arguida recorria também a outras pessoas para se fornecer e, por outro lado, aquando das buscas e apreensões, nada foi encontrado na posse do mesmo arguido que indiciasse em conformidade, quanto mais não fosse ao nível de resíduos na balança ou em qualquer objecto que estivesse na sua posse e igualmente não lhe foram encontrados os produtos vulgarmente associados ao corte da referida substância, seja os comprimidos nostan, o bicarbonato de sódio ou qualquer pó branco ou incolor ou sequer os recortes em plástico ou saquetas associadas à revenda daquele tipo de substância.
(…).
Os depoimentos das testemunhas de defesa inquiridas, conjugados com o teor das intercepções telefónicas, com os depoimentos das testemunhas de acusação a que já se fez referência e com os autos de vigilância efectuados nos autos e que deles constam, serviu, ainda, para dar como provado o uso dado pelos arguidos aos seus telefones móveis e veículos.
Todos os meios de prova foram analisados em conjugação entre si e à luz das regras da experiência comum, que igualmente foram consideradas, nos termos supra enunciados, tendo redundado na prova dos factos tal como se consideraram provados, sendo que os alegados e não dados como provados ou não beneficiaram de qualquer prova ou de prova credível bastante para levar à sua consignação».
Conforme expressa fundamentação, supra reproduzida, o tribunal a quo motivou, suficientemente, as razões que determinaram a formação da sua convicção, não se tendo limitado a uma simples enunciação ou especificação dos meios de prova que considerou relevantes e decisivos, mas procedendo também a uma análise crítica das provas, da qual decorre perfeitamente reconstituído o “iter” que conduziu ao juízo de valoração.
Assim, no que agora importa considerar, o tribunal aferiu criticamente a relevância das escutas telefónicas, interceptadas e registadas, transcritas no apenso D. Segundo está referido, as escutas evidenciam, claramente, o empreendimento prosseguido e as vendas efectuadas pelo arguido G...à arguida B..., estando enunciadas as sessões demonstrativas da aludida actividade de tráfico, sendo expressamente referido que muitas das conversações/comunicações verificadas, correspondentes às aludidas sessões, referenciam transacções de estupefaciente (no caso, haxixe) já ocorridas, e menções a dívidas e a gastos antecipados sem pagamentos.
Mas na lógica interna da decisão, a fundamentação sobre a prova dos factos não se acolheu exclusivamente ao conteúdo das escutas telefónicas. Dela resulta que o tribunal teve também em conta, concertadamente: os dois autos de busca e apreensão individualizados; a folha A4 apreendida ao arguido G..., de fls. 2490 dos autos; a quantidade de produto estupefaciente encontrado na posse do mesmo; a balança de precisão e o moinho manual, ambos com resíduos de canabis; e os depoimentos das testemunhas ... e … , os quais, como é referido expressamente no acórdão recorrido, descreveram, com consignação positiva, os factos da forma como estes estão provados nos pontos de facto n.ºs 149 e 150.
Os julgadores do tribunal de 1.ª instância explicaram, assim, as razões que determinaram a valoração dos elementos de prova elencados. Trata-se, a nosso ver, de puro exercício da função de julgar e não da manifestação de um “auto de fé” filiado num hipotético poder arbitrário.
Pelo exposto, temos como evidente que a fundamentação contida no acórdão é bastante para atingir os objectivos da lei, supra referidos.
Na verdade, a 2.ª parte do n.º 2 do artigo 374.º do CPP exige que a fundamentação seja completa mas, ao mesmo tempo, concisa.
Fundamentação completa não significa fundamentação exaustiva ou excessivamente descritiva.
O objectivo da exigência legal é, como já ficou dito, por um lado, que seja visível ao tribunal de recurso não ter sido utilizado qualquer meio proibido de prova e que o mesmo tribunal possa, ao nível da reapreciação da matéria de facto, seguir o processo lógico e racional prosseguido pelo tribunal a quo na formação da sua convicção, e, por outro, estando a justiça ao serviço da comunidade, que seja possível a todos apreender o raciocínio do julgador ao tomar determinada opção valorativa sobre a prova.
Ora, reitera-se, o acórdão recorrido encontra-se suficientemente fundamentado, pois indica os meios de prova que determinaram a convicção dos julgadores e procede a uma análise crítica desses elementos probatórios, nos termos constantes da citação acima efectuada, para a qual se remete.
Improcede, de forma manifesta, a invocação da nulidade.
*
5.2. Alterabilidade da matéria de facto (recurso dos arguidos G... e J...):
O recorrente G... impugna, de forma manifestamente compreensiva, os pontos de facto provados 148 [«O arguido G... vem adquirindo produto estupefaciente, designadamente haxixe, pelo menos em parte, para revenda a terceiros, desde data exacta não apurada, mas, em todo o caso, pelo menos entre Junho de 2010 e Abril de 2011»], 149 [como refere, que «o arguido cedeu ou vendeu aquele tipo de estupefaciente a pessoas cuja identidade não foi possível apurar»; «que o arguido tenha vendido estupefacientes a ...»]; 151 [«O arguido G... era, além do mais, o principal fornecedor de haxixe da arguida B..., a quem vendeu aquele tipo de produto, durante o referido período de tempo, embora em quantidades e por preços não exactamente apurados»]; 157 [no seguinte segmento: «que o arguido vendia as placas de haxixe a partir de € 160,00»], sendo ainda sua pretensão que seja dado como não provado «que o material apreendido, apesar na posse, fosse propriedade e para uso do arguido».
Na exegese, sobre a prova produzida em audiência, do recorrente G..., a quantidade de estupefaciente que, globalmente, lhe foi apreendida, traduzida, em termos monetários, no valor de €200,00, apesar de ser superior à definida por lei apenas para consumo imediato, é perfeitamente normal, ou seja, é “ridícula” para poder ser integrada na actividade de tráfico.
Deste modo, acrescenta, facilmente se compreende que esse estupefaciente se destinava exclusivamente ao seu consumo.
Por outro lado, se não se sabe a quem era vendido o estupefaciente, muito menos se pode afirmar e dar como provado que as placas de haxixe eram vendidas a partir de €160,00.
Tanto mais, que a testemunha ... foi peremptória a afirmar que o recorrente não vendia estupefacientes.
E o mesmo se retira das escutas efectuadas, nomeadamente das sessões referidas na motivação atinente à fundamentação dos factos provados e não provados constante no acórdão recorrido.
No caso, não existe propriamente a realização de actos de tráfico ou até mesmo de favorecimento à realização de actos de tráfico ou até mesmo de favorecimento ao consumo de estupefacientes, por se verificar tão só um consumo de todos e para todos, existindo, assim, uma situação de “autoconsumo atípico”.

Por seu turno, o arguido J... põe expressamente em causa os pontos de facto, dados como provados, n.ºs 13 [Não obstante isso, em 2 de Março de 2011, A... telefona a J... a quem pede estupefaciente para terceiro e, em Abril de 2011, efectua a transacção mencionada supra quanto ao seu tio ...»]; 158 [«O arguido H... vem adquirindo haxixe e canabis para revenda a terceiros pelo menos desde data exacta não apurada, mas, em todo o caso, pelo menos, entre 2009 e Abril de 2011»], 159 [Pelo menos parte desse produto era pelo mesmo arguido adquirido ao também arguido J..., em quantidades e por preços exactos não apurados]; e 160 [Ambos mantinham contactos pessoais e telefónicos entre si, sendo que, pelo menos parte dos que se mencionarão em sede própria se referiam também às aquisições supra mencionadas] e 181 [em relação à regularidade das aquisições de “haxixe” efectuadas pela testemunha ...], sendo seu desígnio que a matéria de facto contida nos pontos 13., 158., 159 seja transmudada para o acervo factológico tido por não provado, enquanto o ponto 181 deve ser alterado em termos tais que dele fique a constar que as compras de “haxixe” da testemunha ... ao arguido ocorriam uma/duas vezes por mês, no máximo.
Segundo o recorrente, as concretas transcrições das escutas telefónicas em que o tribunal a quo se ancorou para dar como provados os pontos 13, 158 e 159, não evidenciam, com um grau de certeza exigível, que as imputadas vendas-compras de “haxixe” tenham efectivamente acontecido, sendo pacífico a inexistência de outro qualquer meio de prova que corrobore o entendimento perfilhado no acórdão.
Na verdade, em relação à testemunha ..., tio do arguido A..., o seu depoimento está eivado de nulidade, porquanto a mesma não foi informada da faculdade de se recusar a depor, nos termos do disposto no artigo 134.º, n.º 2, do CPP.
No que tange ao ponto 181, a alteração proposta decorre do depoimento da testemunha ....

Importa, então, avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção do tribunal a quo, havendo que apreciar a natureza/conteúdo das provas produzidas e os referidos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção das anotadas conclusões.
Como decorre da motivação da decisão de facto contida no acórdão sob recurso, o Tribunal Colectivo do Tribunal de 1.ª Instância, para dar como provados os factos ora impugnados pelos arguidos G... e J..., ancorou-se, fundamentalmente, nos autos de busca e apreensão de fls. 1365/1370, 1394/1395 (arguido G...) e 1238/1242 (arguido J…), nos depoimentos das testemunhas ..., ……………………….análise conjugada das sessões (transcritas) das intercepções telefónicas n.ºs 1251, 1252 e 1253 do Apenso C, com o depoimento da testemunha ...e conteúdo das sessões 147 do Apenso C e 282 do Apenso F (arguido J…), ponderação conjugada das sessões constantes de fls. 23 a 27, 49 a 51, 53 a 54, 65 a 73, 79 a 84, 90, 91, 100 a 101, 104 a 105, 107 a 110, 112 a 114, 118 a 123, 126, 131 a 135, 145, 146, 155, 156, 165 a 168, 171 a 173 a 177, 185, 191 a 200, 202, 205, 209, 22G, 237, 239, 246, 253, 255, 259, 270 do Apenso D, com o teor da folha A4 de fls. 2490, bem como com a quantidade de estupefaciente apreendida, balança de precisão e moinho encontrados na posse do arguido G....
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As realidades em se configura um suposto de facto legal podem ser decompostas em três tipos: factos externos, factos internos ou psicológicos e conceitos que hão-de ser preenchidos pelo juiz mediante juízos de valor. Os factos externos são acontecimentos que se produzem na realidade sensível, seja com ou sem a intervenção humana. A prova que se produz num procedimento judicial destina-se a justificar, confirmar ou infirmar, um enunciado assertivo que havia sido formulado com base numa produção de prova de “contexto de descobrimento”. Destinando-se a prova a dar surgimento ou a operar uma representação histórica de um facto passado as reproduções que por intermédio dos distintos meios de prova - testemunhais, de percepção directa do julgador, v.g. inspecção judicial, periciais ou outras - se possam operar contêm sempre um vector de subjectivismo ou de apreciação pessoalística inerente às particulares impressões com que o ser humano é capaz de enquadrar um determinado fenómeno natural ou humano.
A operação intelectual para fixação dos enunciados fácticos em que os pressupostos evidenciadores da ocorrência de um determinado acontecimento exterior se baseiam decorre, na maior parte dos juízos apreciativos da prova, da chamada prova indirecta, isto é, daquela prova que não assegura a “certeza” do facto observado. Do que a possibilidade de aquisição do conhecimento judicial tendente à fixação da matéria de facto resultará, a maior parte das vezes, de uma operação lógica indutiva. Nestes casos a prova dos factos supõe que o juiz reconstrua uma hipótese sobre esses factos que seja explicativa das provas obtidas (ou mais exactamente dos enunciados probatórios).
A obtenção do conhecimento da verdade histórica ou processual dos enunciados fácticos a provar é gerada ou induzida, na maior parte das vezes, mediante presunções, as chamadas presunções hominis ou simples.
O processo de formação da convicção não é um processo linear e passível de ser descrito sem intervenção e apelo a soluções exteriores, porque interiormente acumuladas com o saber e a experiência de quem decide, sendo passível de serem encontradas fissuras ou descompensações intelectivas que, contudo não podem abalar a compreensão de quem analisa e textualiza a explicação critica apresentada numa decisão. O processo de formação de um juízo de probabilidade acima de uma dúvida razoável (clear, precise and indubitable evidence ou, no standard da common law, beyond any reasonable doubt) acerca da certeza histórica constitui-se como um proceder entretecido e entramado de pontos essenciais, que congraçados com alguns outros de menor densidade real/material, se concitam num núcleo mental arrimado a uma realidade histórica que se nos prefigura como plausível e adequada ao acontecer histórico normal e comum.
Acrescente-se que, conforme vem sendo sustentado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, a prova necessária para a convicção do julgador, nos termos definidos no art.127.º do CPP, pode ser directa, mas também indirecta, desde que conjugada e interpretada no seu todo, não contendendo tal interpretação com quaisquer princípios constitucionais, nomeadamente, com o da legalidade, o das garantias de defesa, ou o da presunção de inocência, consagrados no art. 32.º da CRP, desde que haja uma fundamentação crítica dos meios de prova e um grau de recurso em matéria de facto para efectivo controlo da decisão. Tem sido essa aliás a interpretação reiterada do Tribunal Constitucional.
Veja-se, aliás, neste mesmo sentido, e só a titulo de exemplo, os Ac. RC de 16.12.2009 e de 04.03.2009, o Ac. STJ de 23.11.2006, todos publicados em www.dgsi.pt, e na doutrina, entre outros, o Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, I vol., 1974, pág. 202 e seguintes e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal, 3.ª edição, II vol., pág. 99 e seguintes).
Para este último autor, a distinção entre um e o outro tipo de prova opera da seguinte forma:
“Enquanto aquela” - a directa - “incide directamente sobre o facto probando, esta” - a indirecta ou indiciária - “incide sobre factos diversos do tema de prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar”.
E acrescenta:
“Sendo certo que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, por forma a que sejam afastadas outras hipóteses, igualmente possíveis”.
Como se defende no citado aresto da Relação de Coimbra de 16.12.2009, “não está excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova indiciária lhe merece valorar preferencialmente a prova indiciária podendo esta só por si conduzir à sua convicção”.
“O indício apresenta-se de grande importância no processo penal, já que nem sempre se tem à disposição provas directas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, com o esforço lógico-juridico intelectual necessário antes que se gere impunidade” Cfr., Prieto Castro y Fernandiz e Gutierrez de Cabiedes, Derecho Penal, II, pág.252..
“Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir a todo o custo, a existência destas provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constituiu a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura” J. M. Asencio Melado, Presuncion de Inocência e Prueba Indiciaria, 1992, autores citados por Euclides Dâmaso Simões, in “Prova Indiciária”, Revista Julgar n.º 2, 2007, pág.205..
Deste modo, o juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a decisão do julgado face à credibilidade que a prova mereça e as circunstâncias do caso, com recurso a prova indiciária, podendo esta por si só conduzir à convicção do julgador.
Assim, relevantes no domínio probatório, para além dos meios de prova directa, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.
O arguido 349.º do Código Civil prescreve que «presunções são ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido», sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351.º do mesmo diploma).
“Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência de vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (ou de uma prova de primeira aparência)” Cfr., v.g., Vaz Serra, Direito Probatório Material, BMJ n.º 112, pág. 190..
As presunções naturais são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz através desta espécie de presunções.
Como está escrito no Ac. do STJ de 07-01-2004 In www.dgsi.pt (proc. n.º 2P3213)., “na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência de vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros.
A ilação derivada de uma presunção natural não pode, pois, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser relevado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de descontinuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência experimental típica determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominadas pelas impressões».
Em suma, nos parâmetros expostos, a apreciação da prova engloba não apenas os factos probandos apresáveis por prova directa, mas também os factos indiciários, factos interlocutórios ou habilitantes, no sentido de factos que, por deduções e induções objectiváveis a partir deles e tendo por base as referidas regras da experiência, conduzem à prova indirecta daqueles outros factos que constituem o tema de prova. Tudo a partir de um processo lógico-racional que envolve, naturalmente, também, elementos subjectivos, inevitáveis no agir e pensar humano, que importa reconhecer, com consistência e maturidade, no sentido de prevenir a arbitrariedade e, ao contrário, permitir que actuem como instrumento de perspicácia e prudência na busca da verdade processualmente possível.
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As escutas telefónicas são definidas, na lei processual penal, como meios de obtenção da prova (cfr. artigos 187.º a 190.º do CPP).
Refere, a propósito, o professor Germano Marques da Silva:
“Os meios de obtenção de prova são instrumentos de que se servem as autoridades judiciárias para investigar e recolher meios de prova; não são instrumentos de demonstração do thema probandi, são instrumentos para recolher no processo esses instrumentos.
Os meios de obtenção de prova distinguem-se dos meios de prova numa dupla perspectiva: lógica e técnico-operativa.
Na perspectiva lógica os meios de prova caracterizam-se pela sua aptidão para serem por si mesmos fonte de convencimento, ao contrário do que sucede com os meios de obtenção da prova que apenas possibilitam a obtenção daqueles meios.
Na perspectiva técnico-operativa os meios de prova caracterizam-se pelo modo e também pelo momento da sua aquisição no processo, em regra nas fases preliminares, sobretudo no inquérito. Normalmente são modos de investigação para obtenção de meios de prova e, por isso, que o modo da sua obtenção seja particularmente relevante (…).
E claro que através dos meios de obtenção de prova se podem obter os meios de prova de diferentes espécies, v.g., documentos, coisas, indicação de testemunhas, mas o que releva de modo particular é que, nalguns casos, o próprio meio de obtenção da prova acaba por ser também um meio de prova. Assim, por exemplo, enquanto a escuta telefónica é um meio de obtenção de prova, as gravações são já um meio de prova.
(…).
Por isso que só tendencialmente os critérios acima referidos para distinguir os meios de obtenção de prova dos meios de prova são válidos, pois pode suceder que a distinção resulte apenas de a lei ter dado particular atenção ao modo de obtenção da prova, como nos parece acontecer, v.g., com as escutas telefónicas” In Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, II, 1999, págs. 189/190..
Acompanhando a posição vertida no Acórdão desta Relação de Coimbra de 09-06-2010 In Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXV, tomo III/2010, pág. 57 e ss., perante a previsão do artigo 188.º do CPP, “parece-nos estar consagrada a ideia de que o legislador estabeleceu as transcrições das escutas como “meio de prova”, ficando o conceito “suportes técnicos referentes a conversações ou comunicações” (as famigeradas “gravações”) num limbo conceptual que apenas parece poder ser classificado como simples registo material de um “meio de obtenção de prova” via transcrição.
(…).
Mas que “meio de prova”? Típico ou atípico?
Defende-se a ideia de que a transcrição das escutas deve ser qualificada como meio de prova típico “prova documental”, como é sustentado pela maioria da jurisprudência e por Ana Raquel Conceição” In Escutas Telefónicas - Regime Processual Penal, pág. 171, Quid Juris, Lisboa, 2009..
Efectivamente, as escutas telefónicas, desde que efectuadas de acordo com as exigências legais, são meio legítimo de obtenção de prova, sendo que, a transcrição das escutas assim realizadas constitui meio de prova documental, mesmo que não lida nem examinada em audiência, porquanto se trata de prova contida em acto processual cuja leitura em audiência é permitida (artigo 355.º do CPP) Cfr. Ac. do STJ de 31-05-2006, proferido no processo n.º 06P1412, publicado, em texto integral, no sítio www.dgsi.pt..
«Tem acentuado este Tribunal que “as escutas telefónicas, regularmente efectuadas durante o inquérito, uma vez transcritas em auto, passam a constituir prova documental, que o tribunal de julgamento pode valorar de acordo com as regras da experiência; essa prova documental não carece de ser lida em audiência e, no caso de o tribunal dela se socorrer, não é necessário ficar a constar da acta” (Acórdãos de 20/11/2002, Proc. n.º 3173/02, da 3.ª Secção, in Sumários de Acórdãos das Secções Criminais, Edição anual de 2002, p. 340 e de 18/05/2005, Proc. n.º 4189/02, da 3.ª Secção, Sumários, n.º 91, p. 130)» Cfr. Ac. do STJ de 15-02-2007, Proc. n.º 06P4092, in www.dgsi.pt..
Contudo, as transcrições efectuadas, reproduzindo documentalmente as conversas entre pessoas através do telefone escutado, constituem meio de prova que não se confunde com os factos que se pretendem provar e que constituem o objecto da prova - a não ser quando o facto típico objecto da prova é produzido através da prova gravada, tal como p. ex., nos crimes de ameaça, injúria, difamação.
O objecto da prova é constituído por “todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e da determinação da medida da pena” - cfr. art. 124.º do CPP.
Ou seja, estando em causa o apuramento de responsabilidade criminal, são, em primeira linha, objecto da prova os actos humanos descritos no tipo de crime em investigação.
Assim, tendo em vista o crime matricial previsto no artigo 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, imputado aos arguidos/recorrentes no domínio destes autos, o objecto da prova é constituído por actos concretos de compra/venda/cedência a qualquer título de produtos estupefacientes ou mera detenção que não seja destinada ao consumo dos próprios.
Porém, «se é certo que a transcrição da escuta, enquanto meio de prova, permite asseverar, a “existência e o conteúdo da própria conversação” - a existência da declaração ou declarações - não podemos delas retirar, sem mais, que o dito é acontecido, se este pressupuser um facere para além do dito.
Isto é, se a consumação do ilícito pressupõe a prática de actos materiais para além do mero cogitum, da simples declaração ou da prática de actos preparatórios não puníveis, o meio de prova “transcrição de escuta” tem que ser complementado por outros elementos probatórios que comprovem a acção ou omissão criminosas» Cfr. o já citado Ac. da Relação de Coimbra de 09-06-2010..
Ou, como é dito, ainda com maior rigor, no referido Ac. do STJ de 07-01-2004: “mesmo considerando que a escuta se transforma em meio de prova (documental) através da documentação em suporte fonográfico ou em transcrição (cfr. Germano Marques da Silva, idem, pág. 190), tal afirmação tem de ser tomada pelo seu valor facial e nos seus precisos termos, sem extrapolações de regime probatório material, já que a documentação da escuta não será mais do que a cristalização em suporte do simples conteúdo da documentação escutada ou interceptada; nada lhe acrescentando, permite a prova directa - mas só - de que uma comunicação existiu, a certa hora, entre determinados sujeitos e com determinado conteúdo.
A aquisição processual que a escuta assim permite - que pode ser muito prestável em termos técnicos e estratégicos de investigação sobre factos penais e na aquisição dos correspondentes meios de prova, em casos de criminalidade grave, organizada e de difícil investigação - não poderá, enquanto tal, na dimensão valorativa da prova penal em audiência, ser considerada mais do que princípio de indicação ou de interacção com outros factos, permitindo, então, deduções ou interpretações conjugadas no plano autorizado pelas regras da experiência para afirmação da prova de um determinado facto. Os dados recolhidos na escuta, apenas por si mesmos, não podem constituir, nesta dimensão probatória, mais do que elementos da construção e intervenção das regras das presunções naturais como instrumentos metodológicos de aquisição da prova de um facto».
Assim, sobre as comunicações transcritas podem/devem operar as já aludidas presunções naturais ou hominis.
Expostos estes princípios gerais, importa analisar se, perante eles, os factos dados como provados e ora impugnados pelos recorrentes estão assertivamente valorados.
Falar sobre estupefacientes não prova, sem mais, como já ficou dito, a efectivação de um acto de tráfico tipificado no artigo 21.º do DL 15/93. Mormente no contexto da linguagem “cifrada” que costuma ser usada naquela tipo de actividade ilícita.
Verificadas as transcrições, ganham evidência os contactos/conversações estabelecidos entre a arguida B... e “…”, via telefone móvel, “Alvo 45676M”, correspondente ao n.º 916433415, nos dias 10 e 30 de Janeiro de 2011, cujas transcrições, designadas por sessões 305 e 1833 do Apenso D, têm, como passagens mais relevantes da referida arguida as que ora se reproduzem: “Ó G...que lhe roubaram os quinze quilos, os cinco quilos”; “…Que o G...acordou-me logo hoje, como é que é o meu dinheiro caralho e não sei quê, fogo, pronto já fiquei dezemanada outra vez, vá mas fez-me lá um descontito de vinte euros”.
Também os contactos mantidos entre a arguida B... e G..., pela mesma via, em linguagem, senão codificada, pelo menos subtil, mas, ainda assim, perfeitamente compreensível, dão a perceber, sem equívocos, que os mesmos têm como objectivo encomendas de produto de estupefacientes pela primeira ao segundo, dando também a saber a existência de dívidas daquela a este.
Concretizando, é o que se extrai do Apenso D, em relação ao referido “Alvo 45676M”, maxime, da conjugação das seguintes sessões:
- 377, 378, 379, 380 e 381, 411, 425, 426, 433, 434, 435, 436, 437 e 438, reportadas ao dia 11 de Janeiro de 2011 (fls. 51/54);
- 442, relativa ao mesmo dia, consubstanciadora de um SMS enviado por B... a G..., o qual, pela sua impressividade, se reproduz: “Se me trouxeres, ainda hj t entregava mais guito!! N consegues d maneira nenhuma?” (fls. 56);
- 492, 493, 494, 510, 511, 512, 513, 514, 520, 521, 523, 525, 526, 527, 528, 531 [SMS de G... para B...: “Eu preciso dinheiro pa ir buscar”], 535, 553, 556, 557, 558, 559, 560 [SMS de B... para G...: “S vieres ter em 5min ao fórum dou os 150”]; 565, 566, 568 570 [SMS´s de G... para B...: “Ta bem mas preciso d mais”; “Arranja-me 200”], 573, 574, 575, 576 [SMS de G... para B...: “Consegues-me dar td?”], 579, 580, 581, 605 [SMS de G... para B...: “Ainda nao veio amanha falams”], 607 [SMS de B... para G...: “Fodax..fico tao na merda. Arranja algo k ele paga lg. Ate eu tinha bue encomendas pra hj…”], 606 [resposta de G...: “Foda.s eu já pso por ti”], referentes ao dia 12 de Janeiro de 2011 (fls. 65/75);
- 676 [SMS´s de G... para B...: “E bem tras já 80 mais 800”, relativa ao dia 13 de Janeiro de 2011 (fls. 81);
- 832 [SMS de B... para G...: “já tens dakilo??jocas”], alusiva ao dia 14 de Janeiro de 2011 (fls. 89);
- 1408 [SMS de B... para G..., enviado no dia 21 de Janeiro de 2011: “Oi. Precisava d merda para a hora de jantar. Pode ser? E tb falar ctg! Jocas”] - fls. 107;
- 1423 [SMS de B... para G..., remetido no mesmo dia 21: [“Placa?”] - fls. 108;
- 1436 [SMS de B... para G..., ainda do mesmo dia: “Oi. N fikou disponível…arranjas e dout-t td 2ª? Pod ser? Please…” - fls. 109;
- 1611 [No decurso de conversa telefónica do dia 27 de Janeiro de 2011, B... responde ao arguido G...nos seguintes termos: “Eu agora tou aqui em Celas, mas também não tenho aqui isso, tenho em casa, eu olha não vendi nada vá pronto, mas a gente depois fala tá bem eu tenho algum para te dar, já guardei já pus de lado tá lá em casa”] - fls. 112;
- 2006 e 2007 [SMS´s de B... para G..., no dia 1 de fevereiro de 2011: “Tou mm na merda! Vou partir a tromba toda ao gajo!! K vou em comer? Dei-lhe ate amanha! Se calhar vens la cmg? Dou-t lg metade para abater! So preciso de cem para me aguentar ate ao fds! A meia vou tratar disso tb so amanha…”] - fls. 135;
- 2246 [SMS de G... para B..., no dia 5 de fevereiro de 2011: “Cm queres fazer? Vais ficar a dver.me mais do k me dvias?”] - fls. 145;
- 2255 [SMS de B... para G..., no mesmo dia: “Tens razão…mas n sei k s passou, n tenho tido encomendas nenhumas, tou parada ha mais d 15 dias…”] - fls. 147;
- 2497 [SMS de B... para G..., no dia 14 de fevereiro de 2011: “Ja vou ficar segura ate ao final da semana. Mas na 4ª vou a minha terrinha, percebes? Então dava mt jeito tar ctg ainda hj!! Mas responde, ok?? Jocas”] - fls. 154;
- 4540 [durante a conversa telefónica do dia 14 de Março de 2011, B... dirige-se a G... nestes moldes: “Passo aí? E tens outra coisa daquelas para mim?”] - fls. 246;
- 4560 [no mesmo dia, G... refere, dirigindo-se a B...: “Depois bem podias passar por mim pra me dar aquilo” - fls. 247.

Em nova incursão às escutas telefónicas, e no que concerne ao arguido J..., não obstante a semântica evasiva utilizada, é concludente a densidade descritiva das transcrições relativas aos “Alvos” 45569M, correspondente ao n.º 935277250, e 46263M, alusivo ao n.º 922155436, quanto aos contactos mantidos entre o arguido J... e terceiros, tendo em vista a obtenção por estes àquele de produtos estupefacientes.
É o que decorre da simples leitura, conjugada, das sessões:
- “Alvo 45569M”: 14 (dia 24 de dezembro de 2010), 27 (dia 25 de dezembro de 2010), 146 e 147 (dia 1 de janeiro de 2011), 275 (dia 9 de janeiro de 2011), 306, 311 e 326 (dia 10 de janeiro de 2011), 642 (dia 1 de fevereiro de 2011), 1252/1253 (dia 2 de março de 2011), - fls. 2, 4, 6, 7, 13, 14, 15, 16, 17, 18 19 20, 39 e 54 do Apenso C;
- “Alvo 46263M”: 282 (dia 13 de março de 2011) - fls. 25 do Apenso F.
Destacamos, nas sessões individualizadas, os seguintes aspectos:
- 14: Desconhecido comunica ao J..., referindo este: “Ah! E então?”; e respondendo aquele: “Tá fixe esta merda”;
- 146 e 147: J... conversa telefonicamente com desconhecido, a quem diz: “Vai lá ver os pássaros que eu acho que aquilo já puseram ovos”; Em seguida, o desconhecido em causa contacta o arguido, estabelecendo-se diálogo entre ambos, que finda com a seguinte referência do segundo: “Ok, já recebi”;
- 275, tendo como interlocutores J... e Desconhecido, estabelecendo-se entre os dois conversa deste teor: D: “E então, há coisa boa?”; L: “Eh pá, mais ou menos, vê lá”; D: “Tens quê?”; L: “Oh pá, mais ou menos a mesma quantidade de outra vez, igual à que levaste”; D: “Oh, isso é bom. Se for igual a esse é bom”;
- 306 e 311: Desconhecido (D): “Ai é? Atão para ai! Como é que te hei-de explicar isto? É que tas a ver, ontem eu já vi tás a ver, mas só que ainda não o, ainda não comi. Ainda vou comer um bocadinho do bolo”; “Yah!”; D: “Pa ver se é guloso”; D: “Isto aqui tá-se mesmo guloso meu, em termos de qualidade”;
- 326: D: “Atão olha lá e aquelas ditas cem gramas, quanto é que fazes?”; L: “Oh pá, isso havia-se falar…”; D: “A metade, tem que ser hoje, tem que ser hoje”; L: “Oh pá, passa depois aí logo à noite. Era mais ou menos o que tínhamos falado.”; D: “Então vá. Logo, logo quando eu chegar ao estaleiro mandou-te um toque”;
- 1252/1253: Arguido A... para J...: “Olha o meu tio diz que tinha falado contigo de duas canas da pesca…Ele já so precisa de uma…Quando podes trazer isso? Ele agora ta em casa e ia fazendo uma pescaria”;
- 282: J...: “Tu, tu, ainda não viste nada?”; Arguido H...: “Não, não, não”; L: “Tás onde, tás na cozinha?; F: “Não, não”; L: “Eh pá deixei-te lá os detergentes em cima do frigorífico”;

Contudo, conforme já foi afirmado, para fundamentar a condenação por tráfico de drogas com base em prova indiciária que as conversações telefónicas, no circunstancialismo acima descrito e nos casos em análise, constituem, se exige que as mesmas sejas apoiadas em vários indícios convergentes, designadamente apreensões efectivas de droga e doutros objectos com ela intimamente relacionados, v.g. o resultado de vigilância à residência em que foi identificada (e reconhecida em audiência) a frequência de toxicómanos, declarações prestadas em audiência Neste sentido, Carlos Clement Durán, La prueba Penal, Ed. Tirant Blanch, p. 683/685, fazendo eco de várias decisões quer do Tribunal Constitucional quer do Supremo Tribunal do Reino de Espanha. .
E é precisamente isso que, inequivocamente, sucede nos dois casos em apreciação.
Efectivamente, quer em relação ao arguido G..., quer em relação ao arguido J..., a prova documental constituída pelas escutas transcritas é fortemente corroborada por outros elementos que permitiram fundamentar a decisão do tribunal recorrido, no sentido de dar como provados os factos ora impugnados por ambos os recorrentes, com as excepções que, em sede própria, se registarão.
No caso do arguido G..., acrescem as buscas a que se reportam fls. 1365 e ss., no decurso das quais foram apreendidos: (i) na residência daquele, uma balança de precisão, €6.250,00 assim distribuídos: 1 nota de €100,00, 9 notas de €50,00; 231 notas de €20,00, 106 notas de €10,00 e 4 notas de € 5,00; 14,5g de cabeças da planta canabis; 23,5g (3 bolotas) de “haxixe”; um moinho manual para triturar folhas/cabeças da planta canabis; (ii) no veículo automóvel de matrícula 24-24-ZN: 5,7g (uma bolota) de “haxixe” e uma folha A4, manuscrita, que se encontrava na pala, contendo nomes associados a valores.
Na relação entre os contactos verificados, o rol de pessoas que só podem ser tidos como adquirentes o/eu fornecedores de produtos estupefacientes e a prova de detenção para venda a terceiros de substâncias dessa natureza, não intercedem largos espaços de descontinuidade lógica ou de longínqua distância, permitindo fazer decorrer dos factos conhecidos (as encomendas registadas através das escutas e os contactos posteriores), que as entregas foram da droga em causa, com a consequente detenção e o destino que lhe estava reservado.
Enfim, todos os elementos considerados, aferidos, como se impõe, numa perspectiva crítica globalizante - e não num quadro de apreciação individualizada, como se caracteriza a tese argumentativa da recorrente -, são fortemente persuasivos da prática, pelo arguido G..., dos factos contidos nos pontos impugnados 148, 149 [primeira parte: “Entre outros, cuja identidade não foi possível apurar…”], 151 e 157 [primeiro parágrafo: “Pelo menos parte do canabis apreendido ao arguido destinava-se à venda a terceiros por preço superior ao da aquisição, tendo ainda em consideração o valor global adquirido”], directamente correlacionados com a imputada actividade de tráfico de estupefacientes.
A prova do inciso final do ponto 158 [“Vendia as placas de haxixe a partir de €160,00”] decorre das declarações do arguido F... e do depoimento da testemunha .... Não obstante, tais declarações/depoimento não tenham qualquer elo de ligação com o arguido G..., são plenamente demonstrativos de que o preço de mercado de cada placa de 100g de “haxixe” custava aproximadamente €150, mas podiam ser €160 €170, ou até €200 (testemunha ...).
Assim, o ponto de facto em causa é demonstrado pelos meios de prova ora concretizados.
Mas tem fundamento bastante a impugnação do ponto provado 149.
Auscultado o depoimento da testemunha ..., dele apenas se retira que o arguido G... apenas lhe cedeu “haxixe”, na forma descrita no ponto de facto em causa.
Em suma, pelas razões expostas, o recurso do arguido G..., circunscrito à impugnação da matéria de facto apenas procede nesta parte, havendo que, reformular, em momento oportuno, nessa justa medida, o acervo factológico dado como provado.

Em relação ao arguido J..., temos ainda a considerar:
as buscas efectuadas: - ao veículo … , que originou a apreensão da quantia global de €1.330,00 (75 notas de 20€ e 3 notas de €10, que se encontravam na consola daquela viatura); - a uma casa onde o mesmo habita, que determinou a apreensão de 7 pedaços de canabis (resina), com o peso global de 481,1g; €16.900,00, em diversas notas do BCE; dois pedaços de fita adesiva e um fragmento de papel celofane; - noutra residência, onde o arguido pernoita frequentemente: €1545,00, em variadas notas do BCE; 1 saco de plástico com canabis (fls./sumid.), com o peso líquido de 5,403g;
A venda de “haxixe”, por parte do mesmo às pessoas individualizadas nos pontos de facto provados n.ºs ………..
Se estes consumidores contactavam o arguido, via telefone, tendo em vista a aquisição de canabis, as regras da experiência comum de vida - sendo estas orientadas no domínio do ensinamento empírico que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtêm mediante a generalização no sentido de que diversos casos concretos semelhantes tendem a repetir-se -, garante-nos, com um elevado grau de probabilidade, superando a dúvida razoável, que o contacto telefónico mantido pelo recorrente com o arguido A... conduziu à venda, pelo primeiro, ao tio do segundo, ..., de substância estupefaciente, e ainda que os contactos da mesma natureza com o arguido H... determinaram as aquisições/vendas descritas nos pontos 158, 159 e 160, tanto mais que H..., tal como se colhe dos pontos provados 161 a 166 e 169, adquiria/revendia produtos estupefacientes.
No enquadramento impugnatário, invoca o recorrente a nulidade do depoimento prestado por ..., por ser tio do arguido A... e não ter sido advertido como dispõe o artigo 134.º, n.º 2, do CPP.
Mas é evidente que à testemunha em causa não assistia a faculdade de recusar o depoimento.
Senão vejamos:
Dispõe o n.º 1 daquela norma:
«Podem recusar-se a depor como testemunhas:
a) Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 2.º grau, os adoptantes e o cônjuge do arguido;
b) Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação».
As linhas de parentesco podem ser recta e colateral.
Diz-se linha recta quando um dos parentes descende do outro; diz-se colateral quando nenhum dos parentes descende do outro, mas ambos procedem de um progenitor comum. A linha recta é descendente ou ascendente: descendente, quando se considera como partindo do ascendente para o que dele procede; ascendente, quando se considera como partindo deste para o progenitor - art. 1580.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil.
Na linha recta há tantos graus quantas as pessoas que formam a linha de parentesco, excluindo o progenitor - art. 1581.º, n.º 1, do CC.
Na linha colateral os graus contam-se pela mesma forma, subindo por um dos ramos e descendo pelo outro, mas sem contar com o progenitor comum (artigo 1581.º, n.º 2). Dito por outras palavras, tratando-se de colaterais, conta-se de igual modo o número das pessoas que integram a linha angular do parentesco, subindo por um dos ramos até ao vértice do ângulo (progenitor comum), descendo em seguida pelo outro, e excluindo também o dito progenitor.
Desta simples enunciação de princípios legais, básicos, logo se alcança que a testemunha ...e o arguido A..., como tio e sobrinho, são parentes (colaterais) em 3.º grau.
Passando ao ponto provado n.º 181, são assertivas as críticas dirigidas pelo arguido J... ao juízo de convicção íntimo revelado no acórdão recorrido.
Ouvido o registo de gravação audio do depoimento de ..., dele retiramos que esta testemunha adquiriu ao ora recorrente “haxixe”, não uma ou duas vezes por semana, como consta da decisão final, mas uma ou duas vezes por mês.
Em relação às quantias pagas pela aquisição do produto, de modo espontâneo, a testemunha foi elucidativa, ao referir o preço médio de € 30,00.
Posto isto, importa reformular o ponto de facto em questão, fazendo nele constar a dita regularidade na compra da substância estupefaciente.
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5.3. Da alegada violação do princípio in dubio pro reo (recurso do arguido G...):
Colocado o Tribunal de julgamento perante dúvida insanável em matéria de prova, deve aplicar o princípio in dubio pro reo, corolário do princípio constitucional da presunção de inocência.
Porém, na parte alusiva ao tráfico de estupefacientes, da leitura da fundamentação da decisão recorrida resulta que o tribunal a quo não teve dúvidas sobre os factos que deu como assentes, dúvidas que este tribunal ad quem também não teve, ou seja, não evidencia a decisão recorrida qualquer ponto de dúvida na apreciação e valoração da prova produzida em julgamento que tenha sido solucionado em desfavor dos arguidos.
O que se verifica, isso sim, são os aludidos erros de julgamento, a corrigir de imediato.
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5.4. Procedendo à assinalada modificação da matéria de facto [cfr. art. 431.º, al. b) do Código de Processo Penal], apenas são alterados os pontos 149 (este fica desdobrado em ponto 149 e ponto 149-A) e 181, os quais passam a ter a seguinte redacção:
149. O arguido G... vendeu “haxixe” a pessoas cuja identidade não foi possível apurar.
149. O mesmo arguido cedeu aquele tipo de estupefaciente a … , que conhece o G...por estudarem juntos na Escola Universitária … , consumiu haxixe conjuntamente com ele em número exacto de ocasiões não apurado, mas sempre serão várias. O produto era fornecido “por quem tinha”, sendo que algumas vezes foi o G...a disponibilizá-lo.
181. ..., durante cerca de 6 meses, em período não apurado, mas em todo o caso situado dentro do supra mencionado, comprou-lhe haxixe uma ou duas vezes por mês, gastando cerca de 30€ de cada vez, embora uma vez tenha chegado a comprar-lhe uma placa de tal substância por 200€.
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À modificação da matéria de facto foram determinantes os motivos de convicção que, oportunamente, ficaram expostos.
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5.5. Qualificação jurídica dos factos (recurso dos dois arguidos):
O artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, define o crime de tráfico e outras actividades ilícitas sobre substâncias estupefacientes, descrevendo de forma manifestamente compreensiva a respectiva factualidade típica: «Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver [...], plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas Tabelas I a IV, é punido com a pena de prisão de 4 a 12 anos».
O citado artigo contém, pois, o tipo fundamental, relativamente à previsão normativa das actividades de tráfico de estupefacientes, construindo um tipo de crime que assume, na dogmática das qualificações penais, a natureza de crime de perigo. A lei, nas condutas que descreve, basta-se com a aptidão que revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores (a vida, a saúde, a tranquilidade pública), considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou efectivamente determine; a lei faz recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.
Dito isto, não resta qualquer dúvida de que o arguido G... cometeu um crime de tráfico de estupefacientes e não um crime de detenção para consumo, p. e p. pelo artigo 40.º do mesmo diploma legal, porquanto revelam os factos provados (pontos 91, 148 a 157) condutas tipicamente previstas na referida norma (“vender”; “comprar”; “ceder ou por qualquer título receber”), evidenciando-se também o tipo subjectivo do aludido crime, traduzido no “conhecer” e “querer” praticar aquelas condutas.
De igual modo, os factos provados relativos ao arguido J... (13, 159, 171 a 196) consubstanciam actividade de tráfico, sob a forma típica de “aquisição”; “transporte” e “venda” de “haxixe”.
Cumpre agora apreciar se as condutas dos arguidos são subsumíveis ao tipo matricial de tráfico do artigo 21.º, n.º 1, do DL acima indicado, ou tão só, como preconizam os recorrentes, ao tipo privilegiado do artigo 25.º, n.º 1, alínea a), do mesmo compêndio legislativo.
Como é sabido, o crime de tráfico de menor gravidade p. e p. no art. 25.º do DL 15/93, de 22/01, é uma forma privilegiada dos crimes dos arts. 21.º (tráfico e outras actividades ilícitas) e 22.º (precursores) do mesmo diploma, crime que tem como pressuposto específico, a existência uma considerável diminuição da ilicitude do acto, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade as plantas, substâncias ou preparações.
Haverá pois que aferir, se no caso, a «imagem global do facto» que se extrai da matéria dada como provada encontra na moldura penal do art. 21.º uma resposta justa ou proporcional, ou se, pelo contrário, circunstâncias existem, designadamente por referência aos citados elementos normativos já apontados (os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade e quantidade das plantas...), susceptíveis de revelarem uma intensidade da ilicitude muito menor à pressuposta por aquela norma, e como tal, a justificar uma punição que logicamente lhe fique aquém.
A referência à «valorização global do facto» ou «valorização global do episódio» encontramo-la feita, pela primeira vez, na obra do Sr. Conselheiro Lourenço Martins Droga e Direito - Aequitas - Editorial Notícias – 1994., por reporte à Jurisprudência Italiana firmada sobre a respectiva Lei (que tudo indica, terá inspirado a nossa), mais concretamente no seguinte passo (cfr. pag.151):
«(...) considera-se necessário para que a mesma se verifique (hipótese atenuada de tráfico) que resulte de uma «valorização global do facto» «valorização global do episódio» diz-se em outro aresto - não se mostrando suficientemente que um dos factores interdependentes indicados na lei (meios, modalidade, circunstâncias da acção, qualidade e quantidade da substância) seja idóneo em abstracto para qualificar o facto como leve (T. Cas. Penal, Sec IV, Sent. de 17.06.91) (...)».
Este modo de perspectivar o juízo de considerável diminuição da ilicitude mereceu o aplauso imediato daquele distinto Autor, que imediatamente refere:
O Juiz deve valorar complexivamente todas as circunstâncias indicadas nesse dispositivo (...)”
Porém, mais à frente, não deixa aquele Insigne Conselheiro de enfrentar, na sua essência, a questão que aqui é colocada:
É ou não necessária a verificação cumulativa das circunstâncias enunciadas no preceito?
Diferentemente do que sucede com a lei italiana, aquela enumeração não é taxativa, como se disse, o que significará que outras circunstâncias podem ser atendidas em ordem a considerar o tráfico de gravidade diminuída. Aquelas, porém, não devem deixar de ser ponderadas, e tal como a jurisprudência italiana, numa apreciação complexiva, diríamos, finalística, isto é, dirigida à obtenção de um resultado final, qual seja o de saber se objectivamente a ilicitude da acção é de menor relevo que a tipificada para os dois artigos anteriores” Idem, pág. 153..
Ultrapassada que foi a previsão do anterior art. 24.º do DL 430/83, em que o “privilegiamento” do tráfico se operava exclusivamente com base na quantidade, cumpre evidenciar que os parâmetros em que se move o actual art. 25.º aspiram a horizontes mais amplos.
Resulta assim com inteira clareza, que só a referida visão global, atenta a especificidade e por vezes a complexidade do acto delitivo de tráfico, poderá potenciar e concretizar uma utilização racional, ponderada e justa do que se mostra estatuído no art. 25.º do DL 15/93.
O que importa apurar, na falada análise, é se de todo o conjunto da actividade do arguido emergem itens inculcadores de reiteração, de habitualidade, intensidade, disseminação alargada ou sintomaticamente expressiva, ligações mais ou menos marcadas ao mundo dos estupefacientes ou ao seu mercado, carácter dos actos praticados e sua dimensão.
A Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem caminhado unanimemente neste sentido, como se pode ver pela consulta de inúmeros arestos, de que destacamos, pela sua expressividade dogmática, o acórdão de 28-05-2008, Proc. 08P1147, no qual ficou escrito:
«O crime de tráfico de menor gravidade contempla, como a própria denominação indica, situações em que o tráfico de estupefacientes, tal como se encontra definido no tipo base (art. 21.º do DL 15/93, de 22-01), se processa de forma a ter-se por consideravelmente diminuída a ilicitude. A título exemplificativo, indicam-se no preceito como índices, critérios, exemplos padrão, ou factos relevantes de graduação da ilicitude, circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações objecto do tráfico.
Os exemplos padrão enumerados no preceito, a par de outros, são atinentes, uns, à própria acção típica (meios utilizados, modalidade, circunstâncias da acção), outras ao objecto da acção típica (qualidade ou quantidade do estupefaciente), ou seja, pertinam todos ao desvalor da conduta, à execução do facto, fazendo parte do tipo de ilícito, não entrando em acção qualquer consideração relativa ao desvalor da atitude interna do agente, à sua personalidade, ao juízo sobre a culpa e à necessidade da pena, presentes no artigo 72.º do CP.
Por outro lado, haverá que proceder à valorização global do episódio, não se mostrando suficiente que um dos factores independentes indicados na lei seja idóneo em abstracto para qualificar o facto como menos grave ou leve, devendo valorar-se complexivamente todas as circunstâncias.
O critério a seguir será a avaliação do conjunto da acção tendo em conta o grau de lesividade ou perigo de lesão (…) do bem jurídico protegido (saúde pública)» Para citar só os arestos mais recentes, vejam-se ainda os Acs. do mesmo Tribunal, de 30-04-2008, 08P1416 e 07P4723; 24-04-2008, 07P3855; e 27-11-2008, 08P2964..
O tipo privilegiado não é necessariamente um crime de gravidade diminuta. Exige, como se disse, que, da globalidade do circunstancialismo apurado, apreciada a partir dos índices exemplificativos indicados ou outros significativos, resulte uma ilicitude consideravelmente diminuída face à pressuposta pela incriminação do artigo 21.º, que é muito elevada, como o traduz a respectiva moldura penal abstracta.
E não é o facto de se indiciar a detenção para venda de uma determinada qualidade de droga, nomeadamente uma das ditas “leves”, que deve conduzir o tribunal à verificação da «considerável diminuição da ilicitude», para efeitos de enquadramento da conduta no tipo privilegiado. Como não é a circunstância de estar em causa uma certa quantidade pressupostamente pouco significativa, ou uma determinada modalidade de acção, que é determinante para tal efeito. É necessário, reitera-se, a análise da conduta globalmente considerada, na interligação das várias vicissitudes relevantes e no seu significado unitário em termos de ilicitude Neste sentido, v. g., Acórdãos do STJ de 29-03-2006, proc. n.º 06P365; de 13-12-2007, proc. n.º 07P3300; e de 20-12-2007, proc. n.º 07P3168, todos publicados in www.dgsi.pt..
Sobre tudo isto, revela-nos, nas partes mais significativas, a matéria de facto provada:
A) Em relação ao recorrente G...:
- O arguido vem adquirindo produto estupefaciente, designadamente haxixe, pelo menos em parte, para revenda a terceiros, desde data não apurada, mas, em todo o caso, pelo menos entre Junho de 2010 e Abril de 2011 (ponto provado 148);
- O arguido vendeu “haxixe” a pessoas cuja identidade não foi possível apurar (ponto provado 149);
- O arguido G... era, além do mais, o principal fornecedor de haxixe da arguida B..., a quem vendeu aquele tipo de produto, durante o referido período de tempo, embora em quantidades e por preços não exactamente apurados (ponto provado 151);
- Com tal arguida mantinha contactos pessoais e telefónicos frequentes, sendo que pelo menos alguns dos que se referirão em sede própria, se relacionavam com as mencionadas transacções ou com o seu pagamento, já que, por vezes, o estupefaciente não era pago no acto da aquisição e a mesma arguida tardava no seu pagamento (ponto provado 152).
- No âmbito das buscas realizadas no dia 12 de Abril de 2011, foram apreendidos, no interior da residência do arguido G..., os seguintes objectos, dinheiro e produtos: uma balança de precisão da marca “Diamond”, modelo 500, com resíduos de canabis; 1 nota de € 100,00, 9 notas de 50,00€, 231 notas de 20,00€; 106 notas de 10,00€ e 4 notas de 5,00€, num total de 6.250,00€; 4,174g de canabis (fls./sumid) tabela I-C; 1,518g gramas de canabis (fls./sumid) tabela I-C; 29,315g (3 bolotas), de canabis (resina); um moinho manual para triturar folhas/cabeças da planta canabis, com resíduos desta substância (ponto provado 153);
154. No âmbito das buscas realizadas no dia 12 de Abril de 2011, foi apreendido, no interior do veículo de matrícula 24-24-ZN, utilizado pelo arguido G..., o seguinte produto: 3,432g de canabis (resina);
155. O arguido desenvolvia a actividade de tráfico de estupefacientes com recurso aos seguintes cartões telefónicos: 917 410 860 e 910 170 554 e os telemóveis apreendidos e utilizava dos seguintes veículos: … , que utilizava para adquirir e vender estupefaciente;
156. Tais veículos e automóveis eram também usados na vida pessoal e profissional do arguido;
157. Pelo menos parte do canabis apreendido ao arguido destinava-se à venda a terceiros por preço superior ao da aquisição, tendo ainda em consideração o valor global adquirido. Vendia as placas de haxixe a partir de €160,00.
Perante estes elementos, pese embora a droga concretizada seja canabis [na forma de “folhas e sumidades” e “resina”] e tenham sido apreendidas na posse do arguido pequenas quantidades das referidas substâncias [5,692g de “folhas e sumidades” e 32,747g de “canabis resina”], não podemos olvidar que a actuação ilícita de aquisição e venda, pelo arguido, de canabis, perdurou por 10 meses, acrescendo a circunstância de G... assumir já a dimensão de intermediário na actividade de tráfico da dita substância. Não obstante não estar apurado o número de actos de compra/venda a terceiros, ainda assim, a matéria de facto provada permite-nos saber que: o ora recorrente, como intermediário, era o principal fornecedor de “haxixe” da arguida B..., a qual também se dedicava à venda deste produto a terceiros consumidores, no preciso circunstancialismo configurado nos factos provados 16 a 38; o arguido vendia as placas de “haxixe” a partir de €160,00; na residência do arguido foi detectado e apreendido o montante global de €6.250,00, em diversas notas do BCE, que, com elevado grau de probabilidade, proveio da compra/venda de produtos estupefacientes.
Afigura-se-nos, assim, que a modalidade e circunstâncias da acção atingiram o patamar superior da previsão legal do artigo 21.º, porquanto já estamos perante uma estrutura organizativa minimamente elaborada, com alguma sofisticação de meios (venda de placas de “haxixe”, balança de precisão para a dosagem do produto estupefaciente e utilização de veículo automóvel na actividade de tráfico da mesma substância), muito acima do incipiente “comércio” designado de “rua”.
Todo este quadro não é de molde a que possamos ter da conduta do arguido uma imagem global de ilicitude “consideravelmente diminuída”, como exige o artigo 25.º, integrando-se a mesma no crime matricial de tráfico do artigo 21.º, n.º 1.

B) Arguido J...:
- Pelo menos entre Agosto de 2010 e 12 de Abril de 2011, J... dedicou-se à aquisição e distribuição de produtos estupefacientes, designadamente haxixe e canabis, pelo menos em parte para posterior revenda a terceiros (ponto 171);
- Assim, nesse período, J... vendeu tal tipo de produtos aos arguidos A... e H... em quantidade e por preços que não foi possível apurar (ponto 172);
- Pelo menos parte do produto (“haxixe”) vendido a terceiros pelo arguido H... era adquirido ao arguido J..., em quantidades e por preços exactos não apurados (ponto 159);
- - No âmbito das buscas realizadas no dia 12 de Abril de 2011, foram-lhe apreendidos: no interior do veículo automóvel, marca “Toyota”, modelo “Corola”, matricula … : € 1.330,00 (mil trezentos e trinta euros) em dinheiro (65 x €20,00 + 3 x €10,00) - ponto 191;
- No âmbito das buscas realizadas no dia 12 de Abril de 2011, foram apreendidos, no interior da residência do arguido J...: € 16.900,00 em dinheiro; cinco pedaços de canabis (resina), com o peso total líquido de 288,020g; um pedaço de canabis (resina), com o peso líquido de 84,134g; um pedaço de canabis (resina), com o peso líquido de 96,428g (ponto 192);
- No âmbito das buscas realizadas no dia 12 de Abril de 2011, foram apreendidos no interior da residência onde o arguido J... pernoita frequentemente, sita em Rua … , Coimbra: €1.545,00 em numerário; um saco de plástico com canabis (fls./sumid.), com o peso líquido de 5,403g (ponto 193);
- O estupefaciente que lhe foi apreendido era, pelo menos em parte, para revenda a terceiros pelos preços referidos (ponto 194);
- O arguido desenvolvia a actividade de tráfico de estupefacientes com recurso aos seguintes cartões telefónicos: 935 277 250 e 913 039 992 e aos telefones apreendidos, usando-os para contactar e combinar com fregueses e fornecedores, mas também para a sua vida pessoal e social (ponto 195);
- O arguido fazia uso do veículo de matrícula … para comprar e distribuir produto estupefaciente, mas também para as suas deslocações pessoais e sociais (ponto 196).
Acentuam-se aqui, com maior intensidade, os fundamentos que determinaram a integração do conduta no arguido G... no tipo de crime do artigo 21.º.
Efectivamente, a par das considerações já feitas quanto à logística e forma organizativa utilizadas na prática da actividade de tráfico, sobressai ainda a quantidade de canabis (resina) na posse do arguido (total de 468,582g), que está longe de poder ser tida como diminuta; antes se situa já num limite considerável, adequado à preparação e venda de aproximadamente 936 doses individuais, e a quantia (global) que lhe foi apreendida, de € 19.775,00, a qual, pelo elevado valor e modo de repartição, suporta, com elevado grau de segurança, a presunção de ter sido obtida no domínio do comércio ilícito de substâncias estupefacientes.
No que concerne ao móbil da actuação, destinando-se os produtos estupefacientes a re(venda), como intermediário, o arguido necessariamente tinha em mente a obtenção de lucro.
Sem necessidade de maiores considerações, a ponderação destes elementos objectivos impõem também a conclusão de que, nas circunstâncias do caso, a ilicitude não pode ser consideravelmente diminuída, razão por que os factos provados integram, de igual modo, o crime previsto e punido no artigo 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
*
5.6. Sobre a declaração de perdimento a favor do Estado das quantias monetárias apreendidas aos arguidos:
O Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, dispõe de regulamentação específica no que concerne à perda dos instrumenta e producta sceleris, bem como às vantagens e direitos retirados do facto, estabelecendo que as vantagens e os direitos dele decorrentes, bem como os eventuais juros, lucros e outros benefícios obtidos através daqueles, são declarados perdidos a favor do Estado - artigos 35.º a 38.º.
Contudo, nos termos do artigo 7.º da Lei 5/02, de 11 de janeiro (alterada pela Lei n.º 19/08, de 21 de abril), em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.
O legislador, rompendo com a nossa tradição jurídica, introduziu, de motu próprio, uma presunção jurídica juris tantum: se alguém se dedica a certa actividade ilícita, como a do tráfico de estupefacientes, que propicia, como regra, rendimentos avultados, nem sempre fáceis de quantificar, é de presumir que esses benefícios patrimoniais são de proveniência legalmente não permitida.
Tal presunção tem sido considerada consonante com os princípios e normas constitucionais Cfr. o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 294/08, proferido no Proc. n.º 11/08 - 3.ª Secção..
Mas para que a referido artigo 7.º seja aplicável torna-se indispensável que o Ministério Público proceda, na acusação ou até 30 dias antes do julgamento, à liquidação do montante que deverá, na sua perspectiva, ser declarado perdido para o Estado (artigo 8.º).
Nos autos, essa liquidação foi feita, na acusação pública, como se pode ver de fls. 3777/3778 dos autos.
Posto isto, também neste particular não se pode deixar de reconhecer o acerto jurídico da decisão sob recurso:
Ao arguido G... e J... foram apreendidas as quantias monetárias globais de, respectivamente, €6.250,00 e €19.775,00, em notas diversas do BCE.
Ora, do elenco dos factos provados não resulta que qualquer um dos arguidos auferisse rendimentos de trabalho ou de outra actividade consentâneos com a posse lícita de tão elevadas quantias monetárias.
Efectivamente, no que ora releva, o arguido G... frequentava o curso de arquitectura na Escola Superior … , onde cumpria o 3.º ano à data da sua detenção no âmbito do presente processo. Esporadicamente vendia algumas viaturas, em condições exactas não apuradas.
Por seu turno, o arguido J... trabalhou cerca de 6 anos na construção civil local, depois numa empresa de gruas e mais recentemente, sendo possuidor de licença de condução de pesados, passou a efectuar transportes de longo curso, para uma empresa de transportes internacionais.
Estes escassos factos não permitem inferir que ambos os arguidos auferissem rendimentos de qualquer actividade lícita, nomeadamente de trabalho, consentâneos com a detenção, também lícita, das descritas quantias monetárias.
Deste modo, não tendo os arguidos ilidido a mencionada presunção do artigo 7.º, da Lei 5/2002, outra solução não restaria senão declarar perdidas a favor do Estado as ditos valores monetários.
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Os dois computadores portáteis e a máquina fotográfica descritos no ponto de facto provado n.º 153, porque não foram declarados perdidos a favor do Estado, devem ser entregues ao arguido G....
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III. Dispositivo:
Posto o que precede, acordam na 5.ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento aos recursos dos arguidos G... e J..., mantendo-se, na íntegra, o acórdão recorrido.
Determina-se a entrega ao arguido G... dos dois computadores e da máquina fotográfica, descritos no ponto 153. do acerto factológico dado como provado.
Custas pelos recorrentes: solidariamente, os encargos; individualmente, a taxa de justiça, de 5 UC, para cada um dos recorrentes [artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPP; artigo 8.º, n.º 5, e tabela anexa, do Regulamento das Custas Processuais (DL n.º 34/2008, de 26-02)].
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(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)
Coimbra, 3 de Outubro de 2012

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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)