Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
647/04.6TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CECÍLIA AGANTE
Descritores: DEPÓSITO BANCÁRIO
CONTA BANCÁRIA
MÁ FÉ
PROCESSO
Data do Acordão: 10/13/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COVILHÃ – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1205º E 1206º DO C. CIV.
Sumário: I – A doutrina e a jurisprudência dominantes qualificam o depósito bancário de dinheiro ou valores equivalentes como depósito irregular, sujeito às regras de depósito mercantil.

II – O artº 1206º C. Civ. estatui que ao depósito irregular se aplicam as normas relativas ao contrato de mútuo.

III – Porém, o contrato de depósito bancário supõe um outro que o antecede, o de abertura de conta, que postula elementos próprios de conta corrente, com a emissão contínua de extractos de conta e correspectivo saldo, por forma a que o cliente possa ser informado da contabilização.

IV – O contrato de abertura de conta (bancária) é tido como o negócio bancário nuclear, definido como um contrato outorgado entre o banqueiro e o cliente, mediante o qual ambos assumem deveres recíprocos no que concerne a diversas práticas bancárias, que decorrentemente podem desenvolver-se da sua celebração, sujeitando o banqueiro e o cliente a deveres de conduta decorrentes da boa f.

V – Tendo o banco, por erro informático, inserido no respectivo sistema bancário um depósito de € 124.000,00 na conta dos RR, assiste ao banco o direito de anular esse movimento, por meio de estorno.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

O A... , com sede em ...., demanda, na presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, B... e esposa, C... , residentes na ..., pedindo a sua condenação a pagar-lhe a importância de 119.000,80 euros (cento e dezanove mil euros e oitenta cêntimos), acrescida dos juros de mora, contabilizados em 9.471,16 euros até 31 de Março de 2004, e os vincendos até integral pagamento.

Alega que, por erro informático, foi depositada na conta bancária de que os réus são titulares, na agência da ...., ...., no dia 19.10.2001, a quantia de 124.000,00 euros, que estes utilizaram em proveito próprio e que nunca pagaram, apesar de interpelados para o efeito.

Na contestação defendem-se os réus com a alegação de que tal quantia resultou da transferência de 20.000.000$00 para a sua conta, correspondente ao quinhão hereditário do réu por óbito de seu pai.

Pedem reciprocamente a condenação como litigantes de má-fé.


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Elaborado o despacho saneador, exarados os factos assentes e organizada a base instrutória, sem reclamações, e realizada a audiência de discussão e julgamento, o tribunal responde à matéria de facto controvertida, sem reclamações.

Proferida sentença, são os réus condenados a pagar ao autor a quantia de 119.000,80 euros (cento e dezanove mil euros e oitenta cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados a partir da citação, e, como litigantes de má fé, em oito UC.

Sentença de que recorrem os réus, formulando as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que condenou os réus a pagar ao autor a quantia de 119.000,80 euros e, como litigantes de má-fé, em multa no valor de oito unidades de conta.

               2. Do probatório da sentença recorrida resulta evidenciado que, por mero engano e lapso, a conta bancária dos réus (conta ordenado) foi creditada num valor significativamente superior ao descoberto em conta acordado, negociado e, portanto, autorizado.

              3. Sendo a causa da transferência um lapso, um engano, o ressarcimento do A.....só poderá ocorrer pela via do enriquecimento sem causa e não, como foi peticionado, com fundamento no contrato da conta bancária.

         4. O objectivo de alcançar decisões de mérito pode legitimar o julgador a afastar questões formais, mas tal não pode ser feito em violação do estruturante princípio do dispositivo e dos ónus que incumbem às partes, designadamente o de explicar a causa de pedir e o pedido ou alterá-los de acordo com o decurso da instância. 

         5. A condenação dos réus como litigantes de má-fé (má-fé material) não pode basear-se apenas no facto de estes não terem conseguido provar na totalidade o que constava do ponto 5º da base instrutória. 

         6. O comportamento e conduta dos réus na lide não é de molde a permitir tal condenação, que se afigura desproporcionada e injusta.

         7. A sentença recorrida violou por deficiente interpretação os artigos 264º e 457º do CPC e o artigo 473º e ss do Código Civil.

         Assim defende a procedência do recurso, substituindo-se a sentença recorrida por outra que julgue a acção improcedente, com as devidas e legais consequências.


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Contra-alega o autor com a adução de que a tardia invocação dos réus do inadequado fundamento jurídico apresentado para a sua pretensão constitui uma questão nova, que não pode ser conhecida por via recursiva.

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Delimitado o objecto de recurso em função do normativizado nos artigos 684º e 690º do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 303/07, de 24 de Agosto, cumpre aferir da causa de pedir da acção e do fundamento jurídico ajustado para a formulada pretensão jurisdicional do autor de reaver a quantia pecuniária que,  por lapso informático, depositou na conta bancária de que os réus são titulares, quantia que estes levantaram e se recusam a dar-lhe pagamento, bem como da litigância de má fé dos demandados.

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II. Fundamentação de Facto

1. Os réus são titulares da conta nº 210/32042/000.0, da agência do A .... da .... – .....

2. Tal conta veio a ser movimentada pelos réus, através de lançamentos a crédito e a débito.

3. Em 9.11.2001 foi creditado na conta dos réus a quantia de 104.477,94 euros, quantia esta já gasta por estes.

4. No dia 28.05.2000 faleceu o pai do réu marido, Sr. D... .

5. Em 19 de Setembro de 2002, a referida conta bancária apresentou um saldo devedor ou negativo de 119.000,80 euros.

8. O réu marido foi contactado no sentido de os réus procederem ao pagamento de tal débito.

9. A referida conta bancária foi aberta para nela ser depositado o ordenado do réu marido que auferia, e aufere, na qualidade de funcionário da E... no hipermercado F... da .... e actual centro comercial G..., em virtude de a agência do A .... .... - .... ser próxima do seu local de trabalho.

10. Os réus vivem exclusivamente dos seus rendimentos de trabalho; o réu marido auferiu no ano civil de 2001 um vencimento mensal líquido de 559,13 euros (quinhentos e cinquenta nove euros e treze cêntimos), e a ré mulher um vencimento mensal de cerca de 350,00 euros (trezentos e cinquenta euros).

11. Existiram divergências familiares quanto à partilha da herança do falecido pai do réu marido.

12. Os réus utilizaram por várias vezes e com autorização do autor a conta aludida em 1. a descoberto, o que o réu marido podia fazer até ao plafond de  618,51 euros.

13. No dia 19.10.2001 um funcionário do balcão do A .... da .... ao introduzir em TELE o montante de 124.000$00 (618,51 euros), por manifesto lapso e inadvertidamente, fê-lo em escudos quando a conta já estava reconvertida em euros.

14. O sistema assumiu os 124.000$00 como sendo 124.000,00 euros.

15. Tal lapso apenas foi detectado em data em que os réus já tinham utilizado toda a quantia referida em 3., tendo logo os responsáveis do balcão da .... do autor contactado o réu marido.


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III. Fundamentação de Direito

Fixada a matéria de facto, que as partes não questionam, constatamos que entre o autor e os réus foi celebrado um contrato de depósito bancário à ordem.

A doutrina e a jurisprudência dominantes qualificam o depósito bancário de dinheiro ou valores equivalentes como depósito irregular, sujeito às regras do depósito mercantil[1]. Aliás, o artigo 1205º do Código Civil qualifica de depósito irregular o depósito que tem por objecto coisas fungíveis, em que a restituição é feita, não in natura, mas em género,  qualidade  e quantidade[2]. Depósito irregular que tem como característica a transmissão do domínio da coisa para o depositário e a obrigação deste de restituir o valor equivalente, convertendo-se a obrigação de restituição de específica em genérica[3].

         Contrato de depósito bancário que corresponde a um negócio jurídico bilateral, com a natureza quoad constitutionem, que exige a entrega de dinheiro. É, pois, um contrato real, cuja perfeição só se alcança através da prática material da entrega de dinheiro (artigos 1185.º, 1205.º e 1206.º do Código Civil).

         Discute-se a fisionomia jurídica do depósito irregular, diversificando-se por uma subespécie de depósito, um mútuo ou um contrato sui generis. Independentemente da sua natureza e do debate sobre a matéria, o artigo 1206º do Código Civil estatui que se lhe aplicam as normas relativas ao contrato de mútuo. Mas o contrato de depósito bancário supõe um outro que o antecede, o de abertura de conta, que postula elementos próprios de conta corrente, com a emissão contínua de extractos de conta e correspectivo saldo, por forma a que o cliente possa ser informado da contabilização[4]. Abertura de conta que é tida como o negócio bancário nuclear, definido como um contrato outorgado entre o banqueiro e o cliente, mediante o qual ambos assumem deveres recíprocos no que concerne a diversas práticas bancárias, que decorrentemente podem desenvolver-se da sua celebração[5].

Quando numa conta-corrente subjacente a uma abertura de conta existe um saldo a favor do banqueiro e negativo para o cliente, estamos perante o que comummente se designa por descoberto em conta. No fundo, é uma operação bancária através da qual o A.....permite que o cliente saque para além dos fundos que ali tem disponíveis, até certo limite, por determinado período de tempo, sem depender de prévio e expresso acordo. Acordo que existe independentemente de qualquer vinculação escrita, sendo que o A.....pode exigir o seu reembolso a qualquer momento, salvo se foi acordado prazo para tal, situação que é sujeita ao regime do mútuo oneroso. Por regra, o descoberto em conta não é formalmente negociado entre as partes, antes corresponde a uma situação fáctica em que o cliente vai ordenando ao A.....a disponibilização de quantias superiores ao seu saldo e o banco, sem a tal estar obrigado, satisfaz as ordens do cliente, porque confia na sua solvabilidade. Operação também designada por “facilidades de caixa” e que tem em vista obviar a dificuldades de tesouraria do cliente[6].

         A factualidade provada demonstra que, no dia 19.10.2001, um funcionário do balcão do A .... da ...., ao introduzir em TELE o montante de 124.000$00 (618,51 euros), por manifesto lapso e inadvertidamente, fê-lo em escudos, quando a conta estava já reconvertida em euros, o que deu azo à inserção no sistema do montante de 124.000 euros. Lapso que apenas foi detectado numa data em que os réus já tinham utilizado toda a quantia creditada, de modo a que a sua referenciada conta bancária apresentava, em 19 de Setembro de 2002, um saldo devedor de 119.000,80 euros.

         Esta situação factual não enquadra com exactidão a figura jurídica do descoberto em conta. Não obstante ser usual os réus utilizarem, por várias vezes e com autorização do BANCO A... AUTOR, a conta a descoberto, sendo que o plafond acordado era somente de 618,51 euros, o valor em causa foi mesmo depositado na conta dos réus, só que por lapso daquele. Vale dizer que os titulares da conta não procederam a levantamento  de  quantias  pecuniárias  sem a  sua  conta  estar  provisionada  com  os

fundos correspondentes e com adesão do A..... BANCO AUTOR. Ao invés, o banco, por erro informático, inadvertidamente, inseriu no sistema um depósito de 124.000 euros quando pretendia apenas efectuar um movimento a crédito de 618,51 euros (124.000$00). Donde nos pareça que o fundamento jurídico da sentença recorrida (o descoberto em conta) não quadra com os factos provados.

         É verdade que o lapso verificado não constitui título bastante para fazer consolidar na conta dos recorrentes a importância em causa. Do mesmo modo, os levantamentos efectuados pelos réus, ao excederam o saldo efectivamente disponível, também não corresponderam à concessão de um mútuo de igual montante àquele que indevidamente levantaram. Trata-se de quantia de que não eram credores e de que não podiam dispor e, não tendo ocorrido uma situação de depósito irregular ou qualquer outra subsumível a outra forma contratual, nomeadamente a mútuo, tendo havido, pelo contrário, um simples lapso, assiste ao A.....o direito de anular o movimento efectuado. Só que, apesar de ter lançado aquela quantia a crédito na conta dos réus, ao atentar no lapso, já a conta não dispunha de fundos susceptíveis de garantir o correspondente estorno. Por isso, ficou o A..... BANCO AUTOR impedido de repor a verdade dos lançamentos efectuados na conta bancária de que os réus eram titulares. Estamos em crer que o A.....estornou uma parte do valor creditado, dado que apenas pede a devolução de 119.000,80 euros, sem explicitar o modo como alcançou este valor.

         A actuação do A.....não pode deixar de ser vista à luz do modelo contratual próprio das operações de abertura de conta e de depósito bancário. Contratos que se densificam ao longo do tempo, que se desenvolvem continuamente numa série de distintas operações bancárias, que podem traduzir diversos negócios, todos eles unitariamente subjugados ao contrato inicial de abertura de conta. No fundo, trata-se de reconduzir a uma única fonte, que costuma apelidar-se de giro bancário, toda uma pluralidade de operações que a prática e a dinâmica bancárias colocam à disposição do cliente, tendo sempre como referência a inicial abertura de conta[7]. Respaldados nestes princípios, podemos afirmar que se estabeleceu entre o A..... BANCO AUTOR e os réus uma relação contratual duradoura, desenvolvida a partir do acordo inicial e que os sujeita a ambos, banqueiro e cliente, a deveres de conduta decorrentes da boa fé, articulados com os usos e os acordos parcelares que eventualmente tenham celebrado. Desenvolvimento de relação bancária que está sob a égide da tutela da confiança e que impõe às partes deveres de lealdade. Assim se desenvolve uma relação obrigacional complexa, de confiança mútua e dominada pelo intuitus personae.

         É neste quadro de relacionamento contratual duradouro que, sob a unidade da abertura de conta e do depósito bancário, o A..... BANCO AUTOR credita a conta bancária dos réus naquele montante de 124.000 euros. Não obstante ter sido determinado por mero lapso, consubstanciado na declaração de um crédito de 124.000 euros quando pretendia inscrever 124.000$00, o acto não pode ser dissociado da relação contratual estabelecida entre ambos. Não fora essa relação contratual duradoura, aquele crédito não teria ocorrido e o A.....não se veria prejudicado no montante peticionado. Donde nos pareça que estamos perante um caso de responsabilidade civil contratual, à luz da qual o A..... BANCO AUTOR tem de ser indemnizado do prejuízo que a conduta dos demandados lhe causou.

         Defendem os réus nas suas alegações que o “engano” não está coberto pela relação jurídica que constitui o contrato bancário, mas olvidam a apelidada relação de clientela, definida como “uma relação obrigacional complexa e duradoura, iniciada nas negociações de um primeiro contrato e desenvolvida continuamente por subsequentes e  repetidas ou  renovadas  operações  de  negócios  firmadas  pelas partes, muitas das quais originarão  novos  contratos,  em que,  a  par  de  prestações  primárias  (ou  secundárias), farão surgir obrigações acessórias de cuidado ou deveres de protecção cominados por acordo dos contraentes, pela lei ou boa fé, para satisfação do interesse do credor. Deste modo, a relação de clientela não é um (único) contrato geral, mas uma relação contínua e duradoura de negócios assentes em ligação especial de confiança e lealdade mútua das partes, cuja violação, na negociação, conclusão, execução ou pós-extinção de uma operação financeira, acarreta responsabilidade contratual perante o credor”[8].

De todo o modo, são os próprios réus que colocam o enfoque da situação descrita na relação contratual que desenvolvem com o banco autor, ao alegarem que o crédito em causa resultou de uma transferência bancária efectuada pela mãe do réu marido para acerto de contas da quota parte que lhe coube na herança aberta por óbito de seu pai. Tal matéria, indagada sob o item 5º da base instrutória, não obteve prova; item que mereceu resposta restritiva de que existiram divergências familiares quanto à partilha da herança do falecido pai do réu marido.

Considerações que afastam os argumentos apresentados pelos apelados para o engano dever ser ressarcido à luz do instituto do enriquecimento sem causa. É certo que aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem, é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou, mas não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído (artigo 473º do Código Civil). Logo, a existência de uma relação contratual, que esteve na base da deslocação patrimonial em causa, não corresponde à carência de outro meio jurídico de o empobrecido ser indemnizado ou restituído. Com efeito, a falta de causa justificativa do enriquecimento acontece quando não existe uma relação ou um facto que, à luz do direito, da correcta ordenação jurídica dos bens ou dos princípios aceites pelo ordenamento jurídico, legitime tal enriquecimento, por dever pertencer a outra pessoa, por se tratar de uma vantagem que estava reservada ao titular do direito. O princípio da subsidiariedade, agora em questão, significa que o empobrecido só poderá recorrer à acção de enriquecimento, à custa de outrem, quando a lei não lhe faculte outro meio para cobrir os seus prejuízos[9]. Sempre que exista uma acção específica para desfazer a deslocação patrimonial, não há locupletamento injustificado. Tudo para dizer que, existindo no caso justificação para fundar a pretensão do banco autor, falece razão aos apelantes nas reflexões jurídicas aportadas aos fundamentos aduzidos na sentença recorrida para a procedência da acção.

Volvidos à responsabilidade contratual dos réus, ela não dispensa a verificação dos requisitos da responsabilidade civil, a saber: o facto voluntário e ilícito do agente, a culpa, o dano e o nexo causal entre o dano e o facto. Facto voluntário e ilícito que os réus assumiram ao integrarem no seu património dinheiro que não lhes pertencia e que se recusam a devolver ao autor. Atitude culposa, por lhes ser eticamente censurável, culpa que, aliás, se presume (artigo 799º do Código Civil). E dano consubstanciado no valor com que se locupletaram à custa do autor, dano que resulta directa e necessariamente da conduta dos demandados. O prejuízo a ressarcir corresponde à extensão do prejuízo do banco autor, traduzido no valor que, por lapso, creditou na conta do autor e relativamente ao qual não obteve estorno, no montante de 119.000,80 euros.

Ainda que tenhamos alguma hesitação sobre a construção jurídica efectuada, os factos provados sempre poderão reconduzir-se ao instituto da responsabilidade civil por facto ilícito. Consabido que a maior parte da doutrina se inclina para considerar a responsabilidade civil extracontratual como residual relativamente à contratual e que os defensores da sua não cumulação se atêm, primariamente, ao princípio lex specialis derogat generalis[10], julgamos sustentável que a conduta dos réus possa corresponder à infracção de deveres alheios ao contrato. E convocados os respectivos pressupostos, aquele que acresce aos da responsabilidade contratual, a culpa, porque se não presume, emerge da realidade factual dada por demonstrada.

         Culpa que se traduz numa determinada posição ou situação psicológica do agente para com o facto, nas modalidades de dolo ou negligência, correspondendo àquele a representação do resultado danoso e intenção do agente em produzi-lo ou aceitando reflexamente esse efeito ou correndo o risco de que se produza, e a esta o simples desleixo, inaptidão ou imprudência[11].

         Que os réus violaram o direito de propriedade do banco autor, integrando no seu património o dinheiro que lhes não pertencia (ilicitude) é indiscutível. Em circunstâncias que inculcam que o fizeram dolosamente, mas os factos apurados não facultam essa asserção. É, no entanto, inquestionável que qualquer cliente de um banco, medianamente diligente (artigo 487º, 2, do Código Civil), confrontado com um crédito na sua conta bancária de 124.000 euros averiguaria a sua origem, mesmo que suspeitasse que ele poderia corresponder ao acerto da herança aberta por óbito do pai do réu marido (facto que se não provou). Ao invés, os réus, pessoas de parcos rendimentos, ao tomarem conhecimento de um depósito daquele valor, remetem-se ao silêncio, aproveitam a desatenção do banco e consomem-no em proveito próprio. Em suma, agem com despudorada leviandade e imprudência, a permitir qualificar a sua conduta como culposa e a suportar a sua responsabilidade extracontratual.   

Dos aduzidos considerandos, embora por diversos fundamentos jurídicos, concluímos pelo acerto da condenação dos réus no pagamento da quantia correspondente ao negativo saldo da conta bancária de que são titulares, no montante de 119.000,80 euros.


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Impugnam ainda os demandados a sua condenação como litigantes de má fé, porque a circunstância de não terem provado o facto ínsito ao item 5º não pode redundar na qualificação do seu comportamento processual como de má fé, quando até assumiram correcta conduta processual.

É litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa, tiver praticado omissão grave do dever de cooperação, tiver feito do processo ou dos  meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (artigo 456º, 2, do Código de Processo Civil).

Com a reforma de 1995 (Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro) alargou-se a litigância de má-fé à hipótese de negligência grave, equiparada, para o efeito, ao dolo. Dolo esse que supõe o conhecimento da falta de fundamento da pretensão ou oposição deduzida - dolo substancial directo - ou a consciente alteração da verdade dos factos ou omissão de um elemento essencial - dolo substancial indirecto, podendo ainda traduzir-se no uso manifestamente reprovável dos meios e poderes processuais[12].

Os factos elencados não dão por demonstrado que os réus sabiam que o crédito da sua conta bancária de 124.000 euros não correspondia à sua quota parte na herança aberta por óbito do pai do réu marido. Eles alegam que aquele valor correspondia a uma transferência bancária efectuada pela mãe do réu marido para acerto de contas da quota parte da herança aberta por óbito de seu pai. Contudo, tal matéria, indagada sob o item 5º da base instrutória, não obteve prova. Tal item mereceu resposta restritiva, ficando apurado tão-somente que existiram divergências familiares quanto à partilha da herança do falecido pai do réu marido. Não demonstraram aquele facto, mas está comprovado que aquele crédito foi efectuado por lapso informático do banco autor. Trata-se de um montante significativo, que não passa despercebido a qualquer cliente bancário e, ainda menos, a clientes com rendimentos mensais que rondam os 900 euros. Quantia pecuniária que os réus gastaram em proveito próprio e que, em juízo, ao contestarem a acção, negaram dever o montante peticionado pelo banco. Facto pessoal, por si negado, em circunstâncias tais que impunham, ao menos, alguma averiguação prévia, designadamente junto de sua mãe, para contestar com verdade e probidade a imputação que lhe era feita pelo banco autor. Há aqui uma má fé objectiva, derivada da violação dos padrões de comportamento exigíveis a um são e honesto proceder. Pelo menos, patenteia-se uma imprudência grosseira, exibida na irrazoabilidade da adução dos réus, que não se preocuparam sequer em cooperar com o tribunal na descoberta da verdade. E não podendo afirmar que os réus alteraram conscientemente a verdade dos factos, podemos afirmar que omitiram os mais elementares deveres de cuidado na indagação dos factos relevantes essenciais para a apreciação da sua versão. Tão irrazoável que, como aduz a sentença recorrida, sabendo que a sua alegação poderia ser documentalmente comprovada, não juntaram qualquer documento nesse sentido. Antes juntaram documentos que confirmam a versão do autor e que os réus, obstinadamente, interpretam no sentido da sua versão.

Litigaram os demandados com má fé, julgando proporcionada a multa aplicada, cujo montante nem sequer vem questionado.


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         Por terem sucumbido no recurso suportam os apelantes as custas do processo (artigo 446º do Código de Processo Civil).

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IV. Decisão

Atento o exposto, acordam os Juízes da 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar a apelação improcedente e, embora por diversos fundamentos, confirmar a sentença recorrida.

Custas a cargo dos apelantes.


[1] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., II, 3ª ed., pág. 783; Ac. STJ 2.06.93, CJ-on line, ref. 995/1993; Ac. R. P. 9.10.2001, in CJ, tomo IV, pág. 201.  
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., II, 3ª ed., pág. 782.
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, Cod. Civil anotado, II, 3ª ed., pág. 783.
[4] Menezes Cordeiro, “Manual de Direito Bancário”, 2ª ed., pág. 447; Paula Camacho, “Do Contrato de Depósito Bancário”, pág. 98.
[5] Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 500; Ac. R.L. 30.10.2007, in CJ, tomo V, pág. 71.
[6] José Maria Pires, “Direito Bancário”, II, pág.242; Menezes Cordeiro, ob. cit. pág. 541; Ac. R. C. 12.02.08, CJon-line, ref. 7198/2008.
[7] Ac. STJ 18.12.2008, in CJSTJ, tomo III, pág. 190.
[8] Calvão da Silva, “Direito Bancário”, ed. 2001, pág. 335.
[9] Almeida Costa, “Direito das  Obrigações”, 4ª ed., pág. 326 e 327.
[10] Cavanillas Múgica e Tapia Fernandez, “La Concurrencia de Responsabilidad Contractual Y Extracontractual”, pág. 132.
[11] Almeida Costa, ob. cit., pág. 382.

[12] Menezes Cordeiro, “Litigância de Má-fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa”, ed. 2006, pág. 26.