Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2872/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. JORGE ARCANJO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO - DANOS CAUSADOS POR ANIMAIS
Data do Acordão: 01/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Legislação Nacional: ART.S 483.º, 493.º N.º 1, 502.º DO CÓDIGO CIVIL, ART.º 97 N.º 4 DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário:
I – Ocorrendo, numa via pública, um acidente de viação entre um motociclo um animal de raça bovina, conduzido pela respectiva proprietária, não é aplicável o regime especifico da responsabilidade civil por danos causados por animais (art.º 493º n.º 1 e 502.º do C. C.), mas antes a regra geral do art.º 483.º do C. C., se o animal apenas interveio passivamente no processo causal.
II – A obrigatoriedade de sinalização luminosa prevista no art.º 97 n.º 4 do C. E. (lanterna de luz branca, bem visível, em ambos os sentidos, desde o anoitecer ao amanhecer) imposta ao condutor de animal, desde o anoitecer ao amanhecer, visa acautelar a circulação rodoviária, tal como a imposição da regra geral do art.º 59 do C. E., pelo que não se inscreve no dever de guarda ou vigilância, para efeitos do disposto no art.º 493 n.º 1 do C. C.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de COIMBRA

I – RELATÓRIO

O Autor – RUI – instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca da Figueira da Foz, a presente acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus – CECÍLIA e marido MANUEL.
Alegou, em resumo:
No dia 3 de Janeiro de 1998, pelas 18,45 horas, já de noite, ao circular com o motociclo de matrícula 55-10-IR, no lugar de Quinta dos Vigários, no sentido Ribas/Quinta dos Vigários, pela faixa de rodagem do lado direito e em velocidade moderada, foi embater num dos animais de raça bovina que a Ré conduzia na mesma faixa de rodagem.
O acidente deveu-se a culpa exclusiva da Ré, por não levar sinalização luminosa, violando o art.93 nº1, 3 e 4 do CE.
Em consequência da colisão, sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais, cuja responsabilidade se comunica ao Réu marido.
Pediu a condenação dos Réus apagar-lhes da quantia de 6.467.464$00, acrescida dos juros de mora, desde a citação.

Contestaram os Réus, defendendo-se por impugnação, ao imputarem a culpa exclusiva do acidente ao Autor.
Requereram a intervenção principal provocada da Companhia de Seguros O Trabalho, e em reconvenção, alegando prejuízos patrimoniais, pediram a condenação do Autor e da Seguradora, no pagamento da quantia de 2.585.000$00, acrescida de juros legais.
Replicou o Autor, mantendo a posição inicial.
A chamada Seguradora contestou o pedido reconvencional, arguindo a sua ilegitimidade por não haver seguro válido e eficaz na data em que ocorreu o acidente.
Chamado Fundo de Garantia Automóvel invocou a excepção peremptória da prescrição, alegando ter decorrido já o prazo prescricional de três anos.
No saneador decidiu-se absolver da instância a Companhia de Seguros O Trabalho e absolver do pedido o Fundo de Garantia Automóvel, com fundamento na prescrição do direito exercitados pelos Réus/reconvintes.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que absolveu os Réus do pedido.

O Autor interpôs recurso de apelação, em cuja motivação concluiu, em resumo:
1º) – A pretensão do Autor situa-se no âmbito da responsabilidade civil extra-contratual, prevista no artigo 493 do CC., impendendo sobre os Réus uma presunção legal ( “ juris tantum “ ) de culpa, pelo que só estariam exonerados da obrigação de indemnizar os prejuízos por si sofridos, caso provassem que o acidente tinha ocorrido sem qualquer culpa sua.

2º) – Estando provado que a Ré mulher circulava com os animais sem qualquer sinalização luminosa, os Réus, para ilidirem a presunção, teriam que fazer prova inequívoca de que o acidente ocorrera sem culpa sua, ou seja, mesmo que os animais circulassem com iluminação, sempre o acidente teria ocorrido.

) - Os Réus não lograram fazer tal prova, tanto mais que, assentando a sua defesa no excesso de velocidade por parte do recorrente, não provaram tal matéria, por o quesito referente à mesma haver sido dado como não provado.

4º) - Nos termos da presunção que onerava os Réus, era a estes que incumbia provar que nenhuma culpa tinham tido na ocorrência do acidente e não ao A. provar o contrário.

5º) - O facto de na sentença recorrida se ter dado por provado que existiam dois postes de iluminação próximos do local do acidente, um a 16 metros e outro a 25 metros, não era bastante para se considerar que os Réus tinham ilidido a presunção de culpa.

) - Por um lado não se provou, e nem sequer se quesitou, que tais postes estivessem activos, isto é em funcionamento no momento do acidente. Por outro, que, sendo isso verdade, fosse suficiente parar o recorrente avistar os animais a tempo de evitar o acidente, ignorando-se ainda que a existência de dois focos de luz próximos um do outro, sobretudo com tempo húmido cria dificuldades acrescidas quando se sai do local iluminado para o escuro.

7º) - Ficou também por provar, porque também não foi quesitado, se mesmo atendendo à existência dos postes de iluminação e se os mesmos estivessem ligados, que era possível ao recorrente avistar os animais a tempo de evitar o acidente e mesmo sem os mesmos estarem acompanhados de qualquer sinal luminoso, questão de primordial importância.

8º) – Os Réus não lograram ilidir a presunção de culpa que os onerava, mantendo-se a obrigação de indemnizar os prejuízos causados ao recorrente.

9º) - Em qualquer caso, e ao contrário do que se afirma na sentença recorrida, sempre seria de aplicar o disposto no artigo 502 do Código Civil, dado que, tratando-se de animais de raça bovina e leiteira, a sua utilização deverá ser feita predominantemente em estábulo e no campo, comportando a circulação dos mesmos na via pública um risco acrescido, com uma especial perigosidade, e daí que os Réus teriam que ser responsabilizados pelo risco.

10º) – A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 97, 1 e 4 do C. Estrada, 493 e 502, ambos do C. Civil.

11º) – A não se entender assim, a sentença é nula, nos termos do artigo 668 n° 1, alíneas b) c) e d) do CPC, por não fundamentar de facto e de direito, por a decisão estar em oposição com a matéria dada por provada, e a sentença não se pronunciou quanto à aplicação do artigo 502 do C. Civil.

Os apelados não apresentaram contra-alegações.

II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes ( arts.684 nº3 e 690 nº1 do CPC ), impondo-se decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, exceptuando-se aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras ( art.660 nº2 do CPC ).

Considerando as conclusões formuladas pelo apelante, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:

a) - A culpa na produção do acidente;

b) - Se os Réus ilidiram a presunção de culpa estabelecida no art.493 nº1 do CC;

c)- A responsabilidade nos termos do art.502 do CC.

d) - A nulidade a sentença recorrida.

2.2. – Os factos Provados:

1) - No dia 3 de Janeiro de 1998, pelas 18 horas e 45 minutos, o Autor conduzia o motociclo de matrícula 55-10-IR, propriedade do seu irmão Paulo Jorge Rodrigues Eulálio, na EM —593 atravessando a localidade de Quinta dos Vigários, no sentido Ribas/Quinta dos Vigários e pela metade direita da faixa de rodagem atenta essa direcção de marcha.
2) - A Ré CECÍLIA, seguia também no sentido Ribas/Quinta dos Vigários, conduzindo dois animais de raça bovina.
3) - A Ré transitava à frente dos animais que seguiam lado a lado.
4) - E sem trazer consigo qualquer dispositivo de sinalização luminosa para assinalar a presença dos animais a quem circulasse nessa estrada em ambos os sentidos de trânsito.
5) - Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1, já anoitecera e o tempo estava húmido;
6) - A estrada onde transitava o motociclo de matrícula 55 – 10 - IR, a Ré Cecília Cunha e os Bovinos que esta conduzia tinha a largura de 5,50 metros.
7) - O motociclo de matricula 55 - 10 - IR embateu no animal de raça bovina que circulava mais à esquerda, considerando o sentido de marcha Ribas/Quinta dos Vigários.
8) - O embate ocorreu a uma distância de 0,80 metros da berma do lado direito atento o apontado sentido de marcha.
9) - Após a colisão, o motociclo de matrícula 55 – 10-IR foi imobilizar-se a uma distância de 11,30 metros do local do embate, sobre a metade direita da faixa de rodagem, considerando a direcção de marcha referida.
10) - Ficando o Autor, inanimado, sobre a metade esquerda da faixa de rodagem, considerando a mesma direcção de marcha, e a cerca de 6,20 metros do local do embate.
11) - Em virtude da colisão morreu o animal referido em 7.
12) - Os dois animais de raça bovina pertenciam aos Réus Cecília Cunha e MANUEL.
13) - Os quais se dedicavam à venda do leite produzido por esses animais, assim como à venda das sua crias.
14) - Os animais de raça bovina conduzidos pela Ré Cecília ocupavam, na quase totalidade, a metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha Ribas/Quinta dos Vigários (resposta ao quesito 1º).
15) - No local onde ocorreu a colisão referida em 7, existia um poste de iluminação pública situado a cerca de 16 metros para nascente, considerando o sentido de marcha Ribas/Quinta dos Vigários e um outro poste que desse local se situava a cerca de 25 metros para poente, atenta a mesma direcção de marcha (resposta aos quesitos 8º e 9º).
16) - Em virtude do embate referido em 7, o Autor sofreu: fractura dos ossos do antebraço direito; traumatismo craniano sem perda de conhecimento e fractura exposta da órbita direita (resposta ao quesito 18º).
17) - Tendo ficado internado durante nove (9) dias no Hospital Distrital da Figueira da Foz para onde foi transportado após o embate (resposta ao quesito 19º).
18) - Durante o período de internamento acima referido foi o Autor submetido a uma intervenção cirúrgica (osteossintese) do rádio e cúbito (resposta ao quesito 20º).
19) - E a uma outra intervenção (osteossíntese) à órbita malar direita (resposta ao quesito 21º);
20) - Tendo tido alta hospitalar em 16 de Janeiro de 1998 (resposta ao quesito 22º);
21) - Frequentando depois até 9 de Junho de 1998 as consultas externas do CHC para recuperação das lesões sofridas (resposta ao quesito 23º);
22) - Em virtude das lesões sofridas no acidente em causa, o Autor ficou possuído de uma IPP de 5% (resposta aos quesitos 24º e 25);
23) - À data da colisão referida em 7, o Autor auferia o salário mensal de 85.000$00, despendeu a quantia de 117.000$00 em exames clínicos e taxas moderadoras pelas consultas no Hospital Distrital da Figueira da Foz efectuados em consequência das lesões mencionadas supra, tendo gasto em medicamentos a importância de 23.064$00, em consequência do embate o motociclo de matrícula 55 - 10 - IR sofreu danos cuja reparação ascendeu a 327.400$00, quantia essa que o Autor pagou em 2 de Julho de 1998 (resposta aos quesitos 26º, 27º, 28º, 29º e 30º);
24) - O animal que morreu em virtude do embate referido em 7, era uma vaca adulta, da espécie leiteira e em plena produção leiteira, valendo, à data do sinistro, a quantia de 200.000$00, a vaca morta encontrava-se prenhe à data do embate, prevendo-se o nascimento da cria para dali a um mês, essa cria uma vez desleitada seria vendida pelos Réus pela importância de 45.000$00, cada uma das referidas vacas morta produzia uma média diária de trinta litros de leite (resposta aos quesitos 31º, 32º, 33º, 34º e 35º).
25) - O litro de leite custava 47.000$00 o litro (resposta ao quesito 36º).
26) - A outra vaca, que seguia mais à direita, foi atingida pelo motociclo tripulado pelo Autor no quarto traseiro (resposta ao quesito 37º).

2.3. – Delimitação das normas legais aplicáveis:

A pretensão indemnizatória do Autor situa-se no âmbito da responsabilidade civil extra-contratual e a sentença recorrida enquadrou-a na responsabilidade por danos causados por animais, em sede do art.493 nº1 do CC, fundamentando a absolvição na prova liberatória, por os Réus haverem ilidido a presunção legal de culpa.
Como é por demais evidente, a sentença não enferma das nulidades cominadas nas alíneas b) e c) do nº1 do art.668 do CPC, já que menciona os fundamentos de facto e de direito e nem os fundamentos estão em oposição com a decisão, pelo que nem se compreende que responsavelmente se possa arguir tais vícios, sem a indispensável concretização, o que nada têm a ver com a bondade da decisão.
A responsabilidade civil por danos causados por animais, contem duas normas específicas ( arts.493 nº1 e 502 do CC ), com distintas previsões, uma baseada na culpa ( art.493 nº1 CC ) e a outra no risco ( art.502 CC ).
O art.493 nº1 contempla apenas os casos em que o dano resulta da não observância do dever de guarda, estabelecendo uma presunção de culpa do efectivo detentor, ou seja, de quem, sendo proprietário ou não, visto assumir o encargo de vigilância de seres por natureza irracionais.
Por seu turno, o art.502 postula a responsabilidade objectiva do proprietário, independentemente da sua efectiva detenção, desde que o dano esteja em conexão adequada com o binómio utilização/perigo especial do animal utilizado, justificada pelo princípio “ “ubi commoda, ibi incommoda “.
Neste sentido escreve VAZ SERRA – “ como princípio de ordem geral, afigura-se aceitável a orientação, referida no direito alemão: a responsabilidade especial dos danos causados por animais depende de resultarem esses danos do perigo especial que os animais implicam. É este perigo que justifica essa responsabilidade “ ( BMJ 86, pág.43 ).
E o “ perigo especial” que a utilização de animais acarreta não é apenas o próprio de determinada espécie, mas o risco geral do aproveitamento de animais, dada a sua natureza de seres vivos que actuam por impulso próprio.
Delimitados os campos de actuação de cada uma das normas, para se aquilatar da pretensão recursal, dirigida fundamentalmente à prova liberatória, ou seja, se os Réus postergaram a presunção legal de culpa, impõe-se, antes de mais, saber se a situação de facto é reconduzível à previsão do art.493 nº1 do CC, tal como a qualificou a sentença recorrida, sem contestação do recorrente, mas que não vincula o tribunal de recurso ( art.664 do CPC ), ou mesmo se a responsabilidade se baseia no risco ( art.502 CC ), como reclama o apelante. .
Como regra geral, incumbe ao lesado a prova da culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa (art.487 nº1 C.C.).
O nº1 do art.493 C.C. estabelece uma presunção legal de culpa ( presunção "juris tantum" ) por parte de quem tiver assumido a vigilância de animais – “ (…) Quem tiver assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que (…) os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua “.
Abrindo uma excepção à regra do nº1 do art.487 C.C., não se altera, contudo, o princípio do art.483 C.C. de que a responsabilidade depende de culpa, pelo que se configura ainda uma situação de responsabilidade delitual.
Havendo uma presunção legal, provar o facto que serve de base à presunção equivale a provar o facto presumido ( art.344 nº1 e 350 nº1 C.C.), pelo que, neste contexto, desde que o lesado alegue e prove que os danos foram causados pela não observância do dever de guarda dos animais, a lei presume, a partir desse facto ( base da presunção ), que o sinistro foi devido a culpa do agente ( cf. ANTUNES VARELA, R.L.J. ano 122, pág.217).
Porém, o nº1 do art.493 do CC prevê uma situação típica de culpa in vigilando, em que o dano resulta da omissão do dever de guarda dos animais, cuja presunção de culpa radica na perigosidade inerente, devido à imprevisibilidade do comportamento dos animais que justifica especiais cuidados que o detentor deve ter por causa da irracionalidade e inesperados movimentos dos mesmos.
Com efeito, segundo a norma positivada no art.486 do Código Civil, as simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente de outros requisitos legais, haja por força da lei ou de negócio jurídico o dever de praticar o acto omitido.
Nesta situação típica da responsabilidade pela omissão, exige-se a comprovação de dois requisitos específicos: (1) a existência do dever jurídico de praticar o acto omitido, (2) e que o acto omitido tivesse seguramente ou com maior probabilidade, obstado ao dano ( cf. VAZ SERRA, BMJ 84, pág.108; ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 3ª ed., pág.369 ).
Postula-se, assim, a causalidade da omissão, pois que o art.486 do CC não dispensa o nexo de causalidade, genericamente exigido pelo art.483, sendo a finalidade daquele preceito apenas a de esclarecer que as omissões podem juridicamente ser havidas como causa de um facto danoso, sem dispensar a prova de que o acto omitido teria obstado ao dano, com certeza ou com a maior probabilidade.
Aliás, fora dos casos tipicizados no art.486 do Código Civil, o nosso direito aceita ainda o princípio geral do dever de prevenção do perigo.
Este princípio foi, há muito, objecto de especial atenção pela jurisprudência e doutrina alemãs ao admitirem vários deveres de tráfego baseados “ na ideia de abrir uma fonte de perigos funda o dever jurídico de adoptar as precauções para o evitar “, como informa VAZ SERRA ( BMJ 84, pág.109 e segs. ).
O dever geral de prevenção do perigo encontra a sua base de sustentação em razões de natureza ética, no princípio geral do “ neminem laedere “.
Mais recentemente, também ANTUNES VARELA veio enfatizar no plano dogmático este princípio geral do direito civil, o qual, embora não expressamente plasmado em preceito legal, decorre de várias normas do Código Civil, no sentido de que “ a pessoa que cria ou mantém uma situação especial de perigo tem o dever jurídico de agir, tomando as providências necessárias para prevenir os danos com ela relacionados “.
Por conseguinte, a norma do art.493 nº1 do CC contempla uma situação específica de responsabilidade pela omissão, assentando na ideia de que não foram tomadas as necessárias precauções para evitar o dano, por omissão do dever de vigilância.
Daí que compita ao autor ( art.342 nº1 CC ) a prova do nexo de causalidade entre essa omissão e o dano, já que a presunção de culpa não abrange também a presunção de causalidade, contrariamente ao defendido por MARIA CLARA SOTTOMAYOR ( BFDUC vol.LXXI, pág.411 ), a propósito do art.491 do CC ( responsabilidade dos pais pelos factos ilícitos praticados pelos filhos menores ).
A circulação de animais na via pública está sujeita a regras específicas do Código da Estrada, exigindo-se que tenha um condutor ( art.11 nº1 ), devendo conduzi-los de modo a manter sempre o domínio sobre a sua marcha e a evitar impedimento e perigo para o trânsito ( art.97 nº1 ), pretendendo-se com tais injunções obstar a que os animais vagueiem na via pública.
Por seu turno, impõe o art.97 nº4 do CE a obrigatoriedade de sinalização luminosa ( lanterna de luz branca, bem visível em ambos os sentidos ), desde o anoitecer ao amanhecer.
Comprovando-se que, quando se deu a colisão, a Ré mulher transitava à frente de dois animais de raça bovina, que seguiam lado a lado, sem que trouxesse qualquer sinalização luminosa, violou o art.97 nº4 do CE.
Coloca-se, porém, a questão de saber, se a obrigação de sinalização luminosa se inscreve ainda no chamado “ dever de vigilância “ dos animais, para, desse modo, funcionar a presunção do art.493 nº1 do CC.
Ora, a norma do art.97 nº4 do CE visa acautelar a circulação rodoviária, tal como a imposição da regra geral do art.59 do CE, para qualquer veículo, não se dirigindo especificamente ao dever de guarda, pois nada tem a ver com a relação entre o comportamento humano e o animal.
Por outro lado, os elementos factuais disponíveis afastam até a aplicação das normas da responsabilidade especial pelos danos causados pelos animais.
Com efeito, refere VAZ SERRA:
“ Parece que a circunstância de o animal ser conduzido pelo homem deve ser irrelevante para o efeito da responsabilidade: trata-se sempre de dano causado pelo animal, cuja noscividade não é menor pelo facto de ser conduzido pelo homem. Mas, se o animal segue exclusivamente a vontade de quem o conduz, é como um instrumento qualquer nas mãos deste, não se tratando, portanto, de perigo especial do animal e não devendo, por isso, aplicar-se a responsabilidade especial pelos danos causados por animais “ ( BMJ 86, pág.41 ).
No mesmo sentido, refere LARENZ, citado por VAZ SERRA ( loc.cit., pág.42, nota 37 ) que “ A danificação dá-se “ mediante um animal “ quando a conduta do animal é causal para o dano, conduta que por seu lado é uma expressão da “ natureza do animal “, não calculável nas suas manifestações(…). O tenedor do animal não responde quando o animal (…) constitui só um obstáculo actuando mecanicamente e, desse modo, causou um acidente”.
De igual modo, e sobre dos danos causados por coisas, que segue o mesmo regime ( art.493 nº1 CC ), contrapondo-o às regras gerais da responsabilidade civil ( art.483 CC ), elucida SINDE MONTEIRO – “ Esta situações distinguem-se daquelas em que a coisa intervém passivamente no processo danoso enquanto simples meio ou instrumento, que não apresenta qualquer particularidade susceptível de afastar a aplicação da regra geral” (…) acrescentando – “ Para delimitar os campos de aplicação dos arts.483 nº1 e 493 nº1, nas hipóteses em que haja uma participação material de coisas na produção do resultado, deve pois ter-se em consideração a relação que intercede entre o comportamento do homem e a coisa ( RLJ ano 131, pág.107 ).
Por conseguinte, no caso sub judice, não tem aplicação o regime específico da responsabilidade por danos causados por animais, pelo que a impostação do problema situa-se na regra geral da responsabilidade civil ( art.483 nº1 do CC ), em matéria de acidente de viação, pois a Ré, na medida em que transitava com os dois animais de raça bovina, cujo domínio efectivo se encontrava a seu exclusivo encargo, não pode deixar de ser havida como condutora, para efeitos do art.5º do CE, havendo violado a norma do art.97 nº 4 do mesmo diploma.
Nesta perspectiva, recai sobre o Autor o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito ( art.342 nº1 CC ), incluindo naturalmente a culpa da Ré, que não se presume ( art.487 nº1 do CC ).
E conforme doutrina MANUEL DE ANDRADE, cabendo ao autor, como regra geral, a prova da culpa nas acções de indemnização por facto ilícito, a sua posição será " frequentemente aliviada por intervir aqui, facilitando-lhe a tarefa, a chamada prova da primeira aparência " ( Noções Elementares de Processo Civil, pág.189 ).

2.4. – O problema da culpa:

O facto de existir iluminação no local, através de um poste de iluminação situado a cerca de 16 metros para nascente, considerando o sentido de marcha Ribas/Quinta dos Vigários ( ou seja o sentido de em que seguia o Autor e os animais ) e um outro a cerca de 25 metros para poente, atenta a mesma direcção de marcha, não exonerava a Ré do dever de sinalização luminosa dos animais.
Com efeito, desconhece-se o grau de intensidade da iluminação, tanto mais que o tempo estava húmido, bem como a concreta configuração da estrada, nem foi alegada a distância a que o Autor se apercebeu ou podia aperceber-se da presença dos animais.
Deste modo, emerge um problema de causalidade na omissão, e daí que a questão fundamental não consiste em averiguar se determinas circunstâncias se dão, mas estabelecer os critérios da imputação, ou seja, depende dos critérios de avaliação a que são submetidos os dados empíricos, passando-se, assim, do plano ontológico para o normativo.
A doutrina tem avançado várias teorias, como por exemplo, a " teoria da interferência "( BINDING ) ou a " teoria da acção esperada " ( MEZGER ).
Parece, no entanto, que as mais relevantes, para o efeito, são as que se reportam ao " princípio da adequação" e ao " princípio do incremento do risco ".
Segundo a teoria da adequação ( causalidade adequada ) nem todas as condições são relevantes, mas tão somente aquelas que previsivelmente são idóneas a produzir o resultado, e daí que a adequação se afira segundo um juízo de prognose póstuma, reportado ao momento do sinistro.
Noutra perspectiva, e a propósito da imputação, CLAUS ROXIN refere que quando o legislador permite, à semelhança do que sucede em outras manifestações da vida moderna, se ocorra um risco até certo limite, apenas poderá haver imputação se a conduta do autor significa um aumento do risco permitido ( Problemas Fundamentais de Direito Penal, pág.152 ).
A questão fundamental é a seguinte: como é que se pode reconhecer se uma violação do dever de cuidado à qual se segue uma morte ou umas ofensas fundamenta ou não um homicídio ou um crime de ofensas corporais por negligência?
Como método de resposta, ROXIN propõe o seguinte procedimento:
" Examine-se qual a conduta que não se poderia imputar ao agente como violação do dever de acordo com os princípios do risco permitido; faça-se uma comparação entre ela e a forma de actuar do arguido, e comprove-se então se, na configuração dos factos submetidos a julgamento, a conduta incorrecta do autor fez aumentar a probabilidade de produção do resultado em comparação do risco permitido. Se assim for, existe uma violação do dever que integra a tipicidade e dever-se-á punir a título de negligência. Se não houver aumento do risco, o agente não poderá ser responsabilizado pelo resultado e, consequentemente, deve ser absolvido " ( loc.cit., pág.257 e 258 ).
Por isso, tanto pela teoria do nexo, como do princípio do incremento do risco, pode asseverar-se que o resultado foi também causado pela conduta omissiva da Ré, já que fez aumentar a probabilidade de produção do resultado em comparação do risco permitido ( " princípio do incremento do risco “ ).
Contudo, também o Autor concorreu culposamente para o acidente, como resulta ostensivamente da matéria de facto e se encontra correctamente demonstrado na sentença recorrida, ao circular com velocidade excessiva e sem o cuidado necessário, com flagrante violação do disposto nos arts.24 e 25 do CE.
E, conforme orientação jurisprudencial uniforme, face às regras da experiência poderá presumir-se judicialmente a negligência ao autor do facto transgressivo. É que o acto de conduzir, como acto voluntário, sendo a forma de condução normalmente o resultado directo e indirecto da vontade do condutor, pelo que o facto de conduzir acarreta a ilação de que o que se passa na condução do veículo, designadamente, as infracções às regras legais de trânsito ou de mera prudência, derivam de uma acção ou omissão dependentes daquela vontade.
Deste modo, quando o resultado deriva de infracção a regulamento que se propõe preveni-lo costuma falar-se em negligência presumida, que nada tem a ver com a presunção legal de culpa, a qual dispensa a previsibilidade do evento pelo agente.
Concorrendo a conduta culposa do lesado para a eclosão do sinistro, impõe-se ponderar a medida da responsabilidade de cada um dos intervenientes para efeitos do cálculo indemnizatório, segundo o critério do nº1 do art.570 do CC.
Ao prever a total concessão, redução ou mesmo exclusão, o preceito está a considerar o valor total dos danos produzidos, e, em caso de redução, que aqui se evidencia adequada, deve ser feita em função do grau de responsabilidade de cada um dos intervenientes ( agente e lesado ).
Porém, a respectiva fixação não tem apenas por base a “ gravidade das culpas “, mas também as consequências que dela resultaram “, ou seja, é necessário determinar em que medida é que as culpas efectivas contribuíram para a gravidade, maior ou menor dos danos produzidos ( cf., por ex., Ac do STJ de 21/1/83 e de 9/1/86, BMJ 323, pág.385 e 353, pág.411 ).
Considerando a dinâmica do acidente, é patente que o grau de culpa do Autor é muito superior à da Ré, não só por conduzir com velocidade excessiva, dentro de uma localidade e sem atender às condições atmosféricas, sem o dever de cuidado a que estava adstrito, como, aliás, ressalta da violência do embate, tanto assim que causou a morte de um dos animais, mas também porque a colisão se deu a 80 cm da berma direita, numa estrada 5,50 metros de largura, a que acresce o facto de existir iluminação no local, muito embora se desconheça a sua intensidade, bem como a configuração da estrada.
Por outro lado, também a culpa do Autor contribui seguramente para a maior gravidade dos danos, em comparação com a conduta negligente da Ré, visto que, segundo as regras da experiência, a marcha dos animais é lenta, ao contrário da actuação daquele, comprovadamente excessiva.
Num juízo de ponderação, estima-se a medida das responsabilidades na proporção de 80% para o Autor e 20% para a Ré.

2.5. - A responsabilidade do Réu marido:

Em princípio, as dívidas provenientes de indemnização devida por factos imputáveis a cada um dos cônjuges são da responsabilidade exclusiva do cônjuge a que respeitam ( regra da incomunicabilidade, prevista no art.1692 b) do CC ).
Ressalva-se, porém, a hipótese desses factos implicando responsabilidade meramente civil estarem abrangidos nos nº1 e 2 do art.1691 do CC.
Pressupondo comunicabilidade da dívida, desde logo, a comprovação do casamento e naturalmente do regime de bens, aqui a cargo do Autor, já se vê não poder vingar a preconizada responsabilização do Réu marido, por não ter feito essa prova.
Por outro lado, não se provando a conjunta detenção dos animais, aquando do acidente, e muito menos qualquer relação de comissão entre os cônjuges, os factos determinantes do acidente de viação nunca podem concorrer para o proveito comum do casal, tal como preconizou o Autor na petição inicial.
Refira-se, com ANTUNES VARELA, Direito da Família, pág.334, que a ressalva da parte final da línea b) do art.1692 do CC visa principalmente as dívidas provenientes, não da culpa, mas do risco.
Alicerçando-se a responsabilidade da Ré mulher na culpa, tanto basta para se postergar a comunicabilidade da dívida ao marido, o que implica a sua absolvição do pedido.

2.6. - Os danos ressarcíveis:

2.6.1. - Danos patrimoniais:
Como danos emergentes, os danos no motociclo ( 327.400$00 ), as despesas com medicamentos ( 23.064$00 ) e com exames médicos ( 117.000$00 ), num total de 467.464$00, sendo a Ré responsável por 93.492$00, ou seja, por arredondamento, em € 466,00.
Como dano patrimonial futuro, indemnização pela perda da capacidade aquisitiva, em função do grau de incapacidade, devendo ser calculada em atenção ao tempo provável de vida activa da vítima e esperança média de vida, de forma a representar um capital produtor de rendimento que cubra a diferença entre a situação anterior e a actual até final desse período.
E, mesmos nos casos em que o lesado exerce uma actividade profissional remunerada, sem que haja perda de salário ou de rendimento, tanto a doutrina como a jurisprudência é hoje unânime no sentido da ressarcibilidade do dano ( neste sentido, VAZ, RLJ ano 102, pág.296; ANTUNES VARELA, Obrigações, vol.I, pág.910; Ac STJ de 5/2/87, BMJ 364, pág.819, Ac STJ de 17/5/94, C.J. ano II, tomo II, pág.101, Ac RC de 4/4/95, C.J. ano XX, tomo II, pág.20 ).
Para a quantificação do dano, serão convocadas as normas dos arts.564 e 563 nº3 do Código Civil, onde se extrai a legitimação do recurso à equidade ( art.4 do Código Civil ) e a desvinculação relativamente a puros critérios de legalidade estrita.
Nesta medida, o direito equitativo não se compadece com uma construção apriorística, emergindo, porém, do “ facto concreto ”, como elemento da própria compreensão do direito, rectius, um direito de resultado, em que releva a força criativa da jurisprudência, verdadeira law in action, com o imprescindível recurso ao “ pensamento tópico” que irá presidir à solução dos concretos problemas da vida ( CLAUS CANARIS , O Pensamento Sistemático e o Conceito de Sistema na Ciência do Direito. ).
Reportado especificamente à quantificação da indemnização através de juízos de equidade, LARENZ afirma que se exige do juiz a formulação de “ juízos de valor “, devendo orientar-se “ em primeiro lugar por casos singulares e sua apreciação na jurisprudência, mas seguindo para além disso, a sua própria intuição axiológica ( Metodologia da Ciência do Direito, pág.335 ).
A equidade, nas judiciosas considerações feitas no Ac STJ de 10/2/98, C.J. ano VI, tomo I, pág.65, “ é a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei “, devendo o julgador “ ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida “.
Têm sido vários os critérios utilizados para o cálculo da indemnização, desde o recurso a fórmulas usadas para as pensões por acidentes de trabalho ou no cálculo do capital de remissão; regras técnicas do direito do trabalho; recurso a tabelas financeiras; fórmula de cálculo aplicável ao usufruto; fórmula matemática adoptada nos acórdãos do S.T.J. de 4/3/93 ano I, tomo I, pág.128, de 5/5/94, C.J. ano II, tomo II, pág.86, Ac RC de 4/4/95, C.J. ano XX, tomo II, pág.23.
Porém, quaisquer tabelas financeiras para o cálculo indemnizatório não são vinculativas, apenas servindo como critério geral de orientação para a determinação equitativa do dano (art.566 nº3 Código Civil) ( cf., por ex., Ac do STJ de 8/3/79, com anotação favorável de VAZ SERRA na RLJ ano 112, pág.263, de 4/2/93, C.J. ano I, tomo I, pág.129, de 8/6/93, C.J. ano I, tomo II, de 5/5/94, C.J. ano II, tomo II, pág. 86, de 28/5/95, C.J. ano III, tomo III, pág. 36 e de 15/12/98, C.J. ano VI, tomo III, pág. 155 ).
Por isso, é de repudiar a utilização pura e simples de critérios mais positivistas, assentes em equações de complexidade variável, como determinadas fórmulas matemáticas utilizadas em alguns arestos ( cf., por ex., Ac do STJ de 4/2/93, C.J. ano I, tomo I, pág.129, e de 6/7/2000, C.J. ano X, tomo II, pág.144 ), encontrando-se criticamente comentadas no estudo do Cons. SOUSA DINIS, “ Dano Corporal em Acidente de Viação “, publicado na C.J. do STJ ano V, tomo II, pág.11, e mais recentemente na C.J. ano IX, tomo I, pág.6 e segs.
Sem embargo da utilização de critérios pautados por um maior grau de objectividade, a solução baseada na equidade postula uma razoável ponderação dos elementos estruturais que emergem do quadro fáctico, sendo que o uso paralelo da aritmética apenas pode servir como factor adjuvante e auxiliar do percurso decisório.
Note-se que, ao contrário de alguns países, não se instituiu ainda em Portugal um sistema semelhante à “ baremación “, vigente em Espanha com a Ley nº30/1995 de 8/11, vinculativo para os tribunais, e, ainda que sem pendor vinculativo, semelhante modelo assente em “ barèmes “ foi também implantado em França, integrado numa Convenção destinada a regularizar os sinistros de circulação rodoviária, adoptada depois da publicação da “ Loi nº85-677 “ de 5/7/1985, apelidada de “ Loi Badinter “.
Neste contexto, tendo por base os princípios gerais exposto, para a determinação equitativa do dano patrimonial futuro do lesado, relevam, designadamente, os seguintes tópicos:
O período provável da vida activa, bem como a esperança média de vida, que, segundo as estatísticas, no nosso país se situa em 71,40 anos para os homens e 78,65 anos para as mulheres.
Como tem vindo a salientar a jurisprudência do STJ, finda a vida activa do lesado por incapacidade permanente, não é razoável ficcionar que a vida física desaparece nesse momento ou com elas todas as necessidades, é que atingida a idade da reforma, isso não significa que a pessoa não continue a trabalhar ou simplesmente a viver ainda por muitos anos, como, aliás, é das regras da experiência comum ( cf. Ac do STJ de 28/11/91, BMJ 411, pág.471, de 28/9/95, C.J. ano III, tomo III, pág.36, de 16/3/99, C.J. ano VII, tomo I, pág.167, de 25/7/2002, C.J. ano X, tomo II, pág.128 e Ac da RC de 5/3/2002 e de 22/5/2002, www dgsi.pt/jtrc ).
O que está em causa é não só o maior esforço despendido na actividade laboral, enquanto trabalhador, mas também a actividade do lesado como pessoa, afectado por uma incapacidade fisiológica significativa, ou seja, a sua incapacidade funcional.
Muito embora as regras gerais do processo indemnizatório, designadamente a “ teoria da diferença “, se ajustem mais facilmente, à diminuição da capacidade de ganho, o certo é que a incapacidade funcional ou “ dano fisiológico”, numa perspectiva sistémica da teoria geral da indemnização, implica a ressarcibilidade, enquanto dano patrimonial futuro ( cf. ÁLVARO DIAS, Dano Corporal - Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, Coimbra - Almedina - 2001, págs. 255 a 265 ).
Por conseguinte, mantendo-se este dano fisiológico para além da vida activa, é razoável que, no juízo de equidade sobre o dano patrimonial futuro, se apele à esperança média de vida.
A evolução profissional e os reflexos a nível remuneratório, quer se trabalhe por conta própria ou de outrem, ou até as duas actividades em simultâneo.
A taxa de inflação nas próximas décadas e a taxa de rentabilidade do capital, baseadas num juízo de previsibilidade.
Quanto às taxas de capitalização, devem corresponder à previsível remuneração do dinheiro no período a considerar, tendo a jurisprudência oscilado desde 9% a 3% ( cf. Ac do STJ de 4/2/93, C.J. ano I, tomo I, pág.128, de 5/5/94, C.J. ano II, tomo II tomo II, pág.86, de 16/3/99, C.J. ano IX, tomo I, pág.167 , parecendo actualmente mais curial trabalhar-se com uma taxa à volta dos 3% a 4%, tendo em conta as praticadas no mercado financeiro ( taxas de remuneração dos depósitos a prazo ou as dos certificados de aforro ).
A percentagem de IPP, que pode traduzir-se em incapacidade total no ofício, sem possibilidade de reconversão ou ser possível com ou sem diminuição salarial, ou corresponder sensivelmente igual percentagem na capacidade de ganho.
Considerando que o Autor tinha 26 anos, à data do acidente, pois nasceu em 27/10/1971 ( certidão de fls.209 ), a esperança média de vida se prolonga até ao 71 anos, o que para o lesado se traduz em 45 anos; o rendimento anual é de 1.020.000$00 ( 85.000$00 x 12 ), a sua IPP é de 5%, reflectiva no seu trabalho em idêntica percentagem, conclui-se que a respectiva perda de rendimento anual importa em 153.000$00, o que permite alcançar ao fim dos 45 anos de esperança média de vida a o montante de 6.885.000$00.
Porém, esta importância, não vinculativa, sempre teria de sofrer um ajustamento, já que o lesado vai receber de uma só vez, aquilo, que em princípio deveria receber em fracções anuais, para se evitar uma situação de injustificado enriquecimento à custa alheia.
Acrescem outros factores que, sendo projectados no futuro, não é possível quantificar, como, por exemplo, a evolução profissional, a inflação e variabilidade das taxas de capitalização.
Considerando a medida da responsabilidade da Ré ( 20% ), num juízo de ponderação global, estima-se o dano patrimonial futuro do Autor em 1.300.000$00, convertendo-se, por arredondamento, em € 6.484,00.

2.6.2. - Danos não patrimoniais:
A indemnização pelos danos não patrimoniais não visa reconstituir a situação que existiria se não ocorresse o evento, mas sim compensar o lesado, tendo também uma função sancionatória sobre o lesante.
Como critério de determinação equitativa para o equivalente económico do dano não patrimonial ( arts.496 nº3 e 494 do Código Civil ), há que atender à natureza e intensidade do dano, ao grau de culpa, à situação económica do lesado e do responsável, bem como ao valor actual da moeda e aos padrões jurisprudenciais.
Pois bem, segundo os elementos factuais disponíveis, ressalta, desde logo, a concorrência de culpas, sendo a da Ré na proporção de 20%, a natureza das lesões sofridas ( fractura dos ossos do antebraço direito; traumatismo craniano sem perda de conhecimento e fractura exposta da órbitra direita ), o internamento hospitalar durante nove dias, com uma intervenção cirúrgica, bem como o grau de incapacidade, desconhecendo-se em concreto as condições económicas do Autor e da Ré.
Em juízo de equidade, fixa-se a indemnização, actualizada nesta data, em € 1.500,00.
O valor global dos danos ascende a € 8.450,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, sobre o montante de € 6.950,00 ( danos patrimoniais ), e desde a prolação deste acórdão, sobre a quantia de € 1.500,00 ( danos não patrimoniais), tendo em conta a doutrina estabelecida no Assento do STJ nº4/2002 de 9/5/2002, publicado no DR I-A série de 27/6/2002 ao fixar a seguinte jurisprudência:
“ Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº2 do art.566 do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805 nº3 ( interpretado restritivamente ), e 806 nº1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida.
2)
Condenar a Ré, CECÍLIA, a pagar ao Autor a quantia de € 8.450,00 ( oito mil quatrocentos e cinquenta euros ) e os juros de mora, à taxa legal, desde a citação sobre a importância de € 6.950,00 ( seis mil novecentos e cinquenta euros) ( danos patrimoniais ), e desde a data do presente acórdão, sobre a importância de € 1.500,00 ( mil e quinhentos euros ) ( danos não patrimoniais ).
3)
Absolver o Réu, MANUEL, do pedido.

4)
Condenar Autor e Ré nas custas, na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
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COIMBRA, 13 de Janeiro de 2004 ( processado por computador e revisto ).