Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
237/03.0TMCBR-K.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: COSTA FERNANDES
Descritores: INVENTÁRIO
DÍVIDA DE CÔNJUGES
RELAÇÃO DE BENS
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
Data do Acordão: 11/20/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Legislação Nacional: ARTIGOS 1688.º;1697.º, N.º 1; 1724.º, A); 1789.º, 1 E 2 DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGOS 1326.º, N.º; 11404.º, N.º 1 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. As dívidas dos cônjuges entre si entram na liquidação do passivo, sendo que nelas se incluem as que resultam, em regra, de terem sido pagas com bens próprios de um dos cônjuges dívidas da responsabilidade de ambos, em que o primeiro se torna credor do outro.
2. Devem ser relacionados pelo cabeça-de-casal os bens que integrem o património conjugal a liquidar, os créditos de terceiros cujo pagamento este último tenha de garantir, e, se for caso disso, os direitos de crédito de um dos cônjuges contra o outro, bem como o crédito do património comum resultante do facto de haver suportado o pagamento de dívidas incomunicáveis da responsabilidade de qualquer dos cônjuges – arts. 1345º, 1 e 2, do Cód. Proc. Civil, 1689º e 1697º do Cód. Civil.
Não é considerado, no âmbito do inventário para partilha de meações, o crédito global resultante do facto de um dos cônjuges ter pago a totalidade de despesas, quando só é responsável por metade. Nesse caso o cônjuge que pagou tem direito a exigir do outro o que lhe é devido, através dos meios processuais comuns
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:
A..., contribuinte fiscal nº 131 880 101, resi- dente na Rua dos Leitões, nº 28, Carvalhais, 3000 Coimbra, co-interessada no inven- tário subsequente a divórcio a que se reporta o Proc. nº 237/03.0TMCBR-H do 1º Juí- zo do Tribunal de Família e Menores de Coimbra, em que também é interessado e cabeça-e-casal B..., domiciliado na Rua António Sousa Frei- tas, nº 22, 2º Esqº, Buarcos, 3080 Figueira da Foz, reclamou contra a relação de bens apresentada por este último, alegando falta de relacionação bens móveis, saldos de contas bancárias e aplicações financeiras, pretendendo a exclusão de outros bens re- lacionados que, em seu entender, não integram o acervo a partilhar ou não existem, questionando o valor atribuído a alguns, sustentando que tem créditos sobre o cabe- ça-de-casal, que devem ser incluídos, e indicando incorrecções na aludida relação.
Produzida a prova apresentada ou requerida, foi proferida decisão sobre a reclamação, julgando-a procedente, em parte, remetendo os interessados para os meios processuais comuns quanto a determinados bens e consignando que os crédi- tos que a reclamante sustentou ter sobre o reclamado não constituem matéria a deci- dir no inventário, mas sim em sede de prestação de contas.
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Inconformada com tal decisão, a reclamante interpôs dela recurso de agravo
tendo retirado as seguintes conclusões úteis:
1ª O Mrtº Juiz deu como assente que existem no património do ex-casal um conjunto de bens, tais como: um serviço da Vista Alegre completo, para 12 pessoas; um talher de prata para 12 pessoas; um jogo de 6 copos de «whisky»; um «farpier», em cristal, e um serviço de chá e café da Vista Alegre (verba 37 da relação de bens), quando os depoimentos das testemunhas indicam o contrário e não foi junto qualquer documento que prove a aquisição desses bens;
2ª O Mrtº Juiz deu como assente que existem no património do ex-casal um
auto-rádio da marca Alpine e seus acessórios (verba 50), quando foi junta aos autos uma certidão judicial que demonstra que tal bem foi furtado;
3ª Face à prova produzida, o Tribunal «a quo» devia ter mandado eliminar da relação de bens os referidos nas conclusões anteriores. Não o tendo feito, violou as disposições dos arts. 342º, 1724º e 1370º do Código Civil;
4ª Deverão, em consonância com a prova produzida, ser eliminadas as ver- bas nºs 37 e 50 da relação de bens;
5ª Indicou nos nos 209 a 226 da reclamação um conjunto de créditos resul- tantes de despesas pagas por si e que eram da responsabilidade comum, que o recorrido não reconheceu, mas de cuja existência o Tribunal devia ter conhecido, em face da prova produzida, mormente os documentos que não foram impugnados;
6ª O Mrtº Juiz «a quo» devia ter considerado que existem tais créditos e que os mesmos devem ser relacionados pelo cabeça-de-casal, por o processo de inventá- rio subsequente a divórcio ser o meio adequado para decidir o valor da dívida de um dos cônjuges ao outro;
7ª No caso da existência de dívidas de um cônjuge ao outro, tais débitos devem ser pagos pela respectiva meação no património comum, isto é, o credor deve ser compensado de tudo quanto pagou além do que lhe competia – art. 1689º, 3, do Cód. Civil;
8ª Contrariamente ao que foi determinado na decisão recorrida, o processo especial de prestação de contas não se aplica ao caso dos autos;
9ª Além disso, o inventário para separação de meações tem uma fisionomia própria, pois além de ter como finalidade a divisão dos bens do casal, visa ainda liquidar as responsabilidades mútuas e as dívidas daquele;
10ª Dada a natureza e a especificidade do presente inventário e uma vez que os créditos da recorrente, enquanto créditos de compensação, devem ser considera- dos no momento da partilha, para nela serem pagos, impõe-se a sua relacionação, nos termos do disposto no artº 1697º, 1, do Cod. Civil, em conjugação com o estatuído nos arts. 1345º, 2, e 1346º, 3, a), do Cód. Proc. Civil;
11ª Ao decidir em contrário, o Tribunal «a quo» violou, por erro de interpre- tação, as citadas disposições legais .
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O recorrido não contra-alegou.
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O recurso foi admitido como agravo, com efeito devolutivo, com subida imedia-ta, em separado.
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Foi proferido despacho de sustentação meramente tabelar.
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Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II. Questões a equacionar:
Uma vez que o âmbito dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 690º, 1, 684º, 3, do Código de Processo Civil), importa apre- ciar as questões que delas fluem. Assim, «in casu», há que equacionar as seguintes:
a) A pretendida exclusão das verbas nºs 37 e 50 da relação de bens:
b) A inclusão na relação de bens dos créditos referidos pela agravante, nos nºs 211º a 226º da reclamação.
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III. Fundamentação:
a) A pretendida exclusão das verbas nºs 37 e 50 da relação de bens:
Quanto aos bens que integram a verba nº 37, a prova testemunhal produzida patenteia-se muito frágil – como, aliás, acontece, frequentemente, nesta matéria. Na verdade, a testemunha Paulo Carlos Alves de Carvalho referiu estar convencido de que existia o serviço da marca «Vista Alegre», que terá sido utilizado na altura do baptizado do filho mais novo do, então, casal, mas acabou por afirmar não virava a louça para ver a marca e não deu qualquer outra indicação de que soubesse identificá-lo. No demais nada disse de relevante. Por sua vez, a testemunha José Vas-concelos afirmou que, sendo visita do casal, costumava ser servido em louça da marca «Coimbra», pensando que terá sido usado um serviço «Vista Alegre», aquando da comunhão solene do filho mais velho, mas também nada adiantou que permita concluir que sabe identificar esse tipo de porcelanas. Afirmou, ainda, sem dar porme- nores, que existiam copos de «whisky», em cristal. Por último, a testemunha Blandina Oliveira (mãe do cabeça-de-casal) afirmou, sem grande convicção aparente, que havia louça «Vista Alegre» que os interessados terão comprado quando casaram.
Não foram juntos aos autos quaisquer documentos respeitantes à aquisição dos indicados bens.
Sendo certo que, nesta matéria, a prova é, em regra, muito difícil (raras serão as pessoas que vão guardando facturas e recibos a pensar num ulterior divórcio), a verdade é que os elementos probatórios recolhidos deixam muitas dúvidas no que respeita ao serviço da marca «Vistal Alegre» e ainda mais quanto aos copos em cristal, sendo de todo omissos, no que respeita ao demais bens. Assim, considerando as disposições conjugadas dos arts. 342º, 1, do Cód. Civil, e 516º do Cód. Proc. Civil, impõe-se concluir no sentido de não estar provado que existam os bens que integram a verba nº 37 da relação de bens.
No que tange ao auto-rádio da marca Alpine e seus acessórios (que intregam a verba nº 50 da relação de bens), a prova produzida é inequívoca de que fizeram parte do património comum do ex-casal, estando instalados no veículo da marca BMW, matrícula 92-33-CX. Porém, existe, a fls. 297, um auto de notícia, elaborado a 06-06-
-2003, na 1ª Esquadra da PSP/Coimbra, que se reporta à participação do furto desse equipamento feita pelo, ora, cabeça-de-casal, o qual foi enviado ao Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Coimbra, em 13-06-2003. E, não foi sequer re-ferido que o mesmo tenha aparecido. Também a testemunha Bruno Miguel Pires Pinto acabou por admitir que o indicado equipamento foi furtado.
Nesta conformidade, impõe-se excluir da relação de bens as verbas nºs 37 e 50, procedendo, nesta parte, o agravo.
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b) Inclusão na relação de bens dos créditos referidos pela agravante, nos nºs 211º a 226º da reclamação:
A agravante referiu nos nºs 209º e 210º da reclamação contra a relação de bens (fls. 64 deste apenso) que, a partir de Junho de 2002, o cabeça-de-casal «deixou de ter qualquer contacto físico» consigo e com os filhos, tendo «passado a viver em quartos separados», e que, desde Julho de 2002, passou a suportar sozinha as despesas e encargos que eram da responsabilidade de ambos.
Nos nºs 221º a 226º da indicada reclamação, elencou as despesas comuns que terá pago, reportando-se a mais antiga a Dezembro de 2001, havendo várias anterio- res e posteriores a Julho de 2002, e sendo a mais recente de Janeiro de 2006.
Também segundo consta das alegações da agravante, o inventário foi requeri- do em 27-05-2005.
Não consta dos autos a data do divórcio, mas resulta do número do processo que é do ano de 2003.
Não consta dos autos se os efeitos do divórcio se retrotraíram ou não a Junho de 2002 ou a outra data posterior.
Seja como for, há despesas, que a recorrente terá pago, que respeitam a um tempo em que ainda era casada com o recorrido (algumas, até a um período em que ainda não havia rotura conjugal) e outras que são posteriores ao divórcio.
Sucede que, segundo alegou, a agravante era casada com o agravado no regi- me de comunhão de adquiridos. Assim, em face do disposto no art. 1724º, a), do Código Civil, a retribuição do trabalho da recorrente integrava a comunhão conjugal, pelo que não pode reclamar o reembolso (ainda que por metade) dos montantes atinentes a despesas que haja pago, até à cessação das relações patrimoniais, com dinheiro proveniente da sua actividade laboral.
Só haveria lugar à compensação prevista no art. 1697º, 1, do Cód. Civil, se o pagamento dessas dívidas tivesse sido feito, «verbis gratia», com rendimentos prove- nientes de bens próprios ou com o produto da alienação deles.
Sendo certo que a agravante, nos nºs 170º a 179º da reclamação, se reportou a pagamentos que fez com dinheiro exclusivamente seu, porque proveniente da aliena- ção de um imóvel que adquirira em solteira, já nos nºs 209º a 226º, aqui em causa, tal não sucede, limitando-se a referir que, a partir de Julho de 2002, passou a suportar sozinha despesas e encargos comuns que eram da responsabilidade de ambos. Donde, há que presumir (arts. 349º e 351º do Cód. Civil) que esses pagamentos foram sendo feitos com dinheiro proveniente do seu trabalho. É que, se assim não fosse, a agravante tê-lo-ia alegado, como fez em relação àqueles outros.
Portanto, no que concerne às despesas comuns (comunicáveis) que pagou, com dinheiros proveniente do seu trabalho, enquanto se mantiveram as relações patrimoniais decorrentes do casamento, não tem direito a qualquer reembolso, por muito injusto que, em concreto, isso possa ser – são as contingências da sociedade conjugal. Vinca-se, a propósito, que, a fundamentação do acórdão desta Relação, de 15-02-2005, Proc. nº 4018/04, «in» www.dgsi.pt., que a agravante citou, vai claramen- te no sentido do que ficou dito, quando refere: «Na liquidação do passivo entram ainda as dívidas dos cônjuges entre si ... . Estas dívidas são as que resultam, em regra, de terem sido pagas com bens próprios de um dos cônjuges dívidas da responsabilidade de ambos, em que o primeiro se torna credor do outro» - sublinhado feito pelo, ora, relator.
No que respeita aos pagamentos que fez, após a cessação das relações patri- moniais decorrentes do casamento, de dívidas, contraídas na constância do mesmo, que vinculavam ambos os cônjuges, ou que resultaram de despesas atinentes a bens que integram o património conjugal a partilhar, mas pagas depois do termo de tais relações, é evidente que a agravante tem direito a ser reembolsada de metade do seu montante global.
Todavia, em face das disposições conjugadas dos arts. 1404º, 1, e 1326º, 1, do Cód. Proc. Civil, destinando-se o inventário subsequente ao divórcio a pôr termo à comunhão de bens resultante do casamento, a relacionar os bens que integram o património conjugal e a servir de base à liquidação deste, o mesmo deve reportar-se à data em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges (art. 1688º e 1789º, 1 e 2, do Cód. Civil), embora abarcando, obviamente, tanto os créditos como as dívidas existentes nessa altura, embora ainda não vencidos. Assim, devem ser relacio- nados pelo cabeça-de-casal os bens que integrem o património conjugal a liquidar, os créditos de terceiros cujo pagamento este último tenha de garantir, e, se for caso disso, os direitos de crédito de um dos cônjuges contra o outro, bem como o crédito do património comum resultante do facto de haver suportado o pagamento de dívidas in- comunicáveis da responsabilidade de qualquer dos cônjuges – arts. 1345º, 1 e 2, do Cód. Proc. Civil, 1689º e 1697º do Cód. Civil.
Na verdade, exceptuado o regime da separação, são comuns os bens existen- tes no património conjugal (salvo os que, por força da lei, não integrem a comunhão), à data em que a sentença que haja decretado o divórcio fixar o termo das relações patrimoniais entre os cônjuges, devendo aquele responder pelo pagamento das dívidas que o onerem, nessa altura, mesmo que ainda não exigíveis. Tanto os bens adquiridos, como as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges ou ex-cônjuges (conforme haja ou não retroacção), depois dessa data, nada têm a ver com a liquida- ção e partilha do património conjugal.
As despesas geradas por quaisquer bens que integrem aquele património, após a indicada data, que sejam pagas por algum dos cônjuges ou ex-cônjuges, podem levantar algumas dúvidas no que tange à sua inclusão ou não no inventário, quando este ocorra em tempo posterior.Todavia, estamos em crer, que, embora tais despe- sas possam dar origem a um crédito de um dos cônjuges ou ex-cônjuges em relação ao outro, tal crédito não terá de ser relacionado – cfr., neste sentido, o Ac. da RL, de 21-02-2002, «in» CJ, Ano XXVII, t. I, p. 109 a 111, e também o acórdão desta Relação de Coimbra, acima referido.
Tais despesas, no caso dos autos, têm a ver com a administração de bens do casal ou ex-casal (consoante tenha havido ou não retroacção dos efeitos do divórcio, no que tange à cessão das relações patrimoniais e /ou a data em que foram pagas), levada a cabo pela agravante, sendo subsumíveis à previsão do art. 1678º, 3, do Cód. Civil. Ora, não sendo considerado, no âmbito do inventário, o crédito global que resulta
do facto de ter pago a totalidade, quando só é responsável por metade dessas despe-sas, a agravante tem, obviamente, direito a exigir do ex-marido o que lhe é devido, através dos meios processuais comuns.
É claro que há razões de economia processual e de pacificação das relações entre os ex-cônjuges que aconselhariam a que esse acerto de contas se fizesse, em sede da conferência de interessados, nenhum prejuízo advindo para qualquer deles, nem sendo isso causador de embaraço da tramitação do processo. Todavia, «de jure condito», não se pode defender que seja obrigatório considerar esses valores no in-ventário.
Em face do que fica dito, improcede o agravo, neste segmento.
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IV. Decisão:
Pelo exposto decide-se:
a) Julgar procedente o agravo, no que concerne à pretendida exclusão das ver-bas nºs 37 e 50 da relação de bens, revogando-se, nesta parte, o despacho recorrido;
b) Julgar improcedente o agravo, no que respeita à requerida inclusão na rela- ção de bens dos créditos referidos pela agravante, nos nºs 211º a 226º da reclama- ção, confirmando-se o despacho recorrido, neste segmento, com a consequente remessa dos interessados para os meios processuais comuns.
Custas pela agravante e pelo agravado, na proporção do decaimento, fixando-se a taxa de justiça em montante equivalente a três unidades de conta processual (UC) – arts. 446º, 1 e 2, do Cód. Proc. Civil, e 16º, 1, do Cód. das Custas Judiciais.
Coimbra, 2007/11/20