Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
70/09.6TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: SENTENÇA ARBITRAL ESTRANGEIRA
TRIBUNAL COMPETENTE
Data do Acordão: 01/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DE COIMBRA – 1ª SECÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS III, 2ª PARTE, DA CONVENÇÃO SOBRE O RECONHECIMENTO E A EXECUÇÃO DE SENTENÇAS ARBITRAIS ESTRANGEIRAS; 24º, Nº 2, 26º, Nº 2, E 30º DA LEI Nº 31/86, DE 29/08.
Sumário: Nos termos da 2ª parte do artigo III da Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, concluída em 10/06/1958, em Nova Iorque, e dos artºs 24º, nº 2, 26º, nº 2, e 30º da Lei nº 31/86, de 29/08, a competência para o reconhecimento de sentença arbitral estrangeira recai sobre o tribunal de 1ª instância (de competência genérica ou, onde tenham sido criadas varas ou juízos de competência específica, a pertinente vara ou juízo) e não sobre o Tribunal da Relação.
Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         A...., sociedade comercial com sede ..., Grécia, requereu, em 16/01/2009, na Vara de competência mista de Coimbra, contra B..., sociedade comercial com sede na ... Coimbra, o reconhecimento da sentença arbitral proferida em 10 de Janeiro de 2008, em Londres e segundo a lei inglesa, por tribunal arbitral constituído nos termos previstos no contrato de fretamento de navios de que emana o litígio, celebrado, em Junho de 2000, entre requerente e requerida.

         A requerida deduziu oposição excepcionando, a título principal, a incompetência do tribunal de 1ª instância em razão da hierarquia, por ser competente o Tribunal da Relação e, a título subsidiário, a incompetência dos tribunais comuns, por serem competentes os tribunais marítimos (no caso, o Tribunal Marítimo de Lisboa).

         Foi proferida a decisão de fls. 92 a 97 julgando improcedente a oposição e declarando executória a sentença cujo reconhecimento foi pedido.

         Inconformada, a requerida B... interpôs recurso e na alegação apresentada formulou as conclusões seguintes:

[…………………………………………………………………………….]

         A recorrida não respondeu.

         Nada obstando a tal, cumpre apreciar e decidir.


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         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão da competência do tribunal recorrido seja em razão da hierarquia, seja em razão da matéria.


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         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         A factualidade e incidências de carácter processual relevantes para a decisão do recurso são as que decorrem do antecedente relatório que aqui se dá por integralmente reproduzido.


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         2.2. De direito

         Tendo em consideração o disposto nos artºs 8º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa e 1094º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, bem como a vigência em Portugal, desde 16/01/1995, da Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, concluída em 10/06/1958, em Nova Iorque[1]e[2], não restam dúvidas de que ao reconhecimento da sentença arbitral que constitui o objecto do presente processo se aplica aquela Convenção.

         Tal aplicação é, de resto, consensual nos autos, aceitando-a a recorrente expressamente.

         Ora, de acordo com o artº III da dita Convenção, “cada um dos Estados Contratantes reconhecerá a autoridade de uma sentença arbitral e concederá a execução da mesma nos termos das regras de processo adoptadas no território em que a sentença for invocada, nas condições estabelecidas nos artigos seguintes. Para o reconhecimento ou execução das sentenças arbitrais às quais se aplica a presente Convenção, não serão aplicadas quaisquer condições sensivelmente mais rigorosas, nem custas sensivelmente mais elevadas, do que aquelas que são aplicadas para o reconhecimento ou a execução das sentenças arbitrais nacionais”.

         Entre nós vigora, no que concerne à arbitragem voluntária, a Lei nº 31/86, de 29 de Agosto, sendo que, após notificação às partes, o original da decisão proferida pelo tribunal arbitral é depositado na secretaria do tribunal judicial do lugar da arbitragem (artº 24º, nºs um e 2, 1ª parte), tendo essa decisão a mesma força executiva que a sentença do tribunal judicial de 1ª instância (artº 26º, nº 2) e correndo a execução da mesma no tribunal de 1ª instância, nos termos da lei de processo civil (artº 30º).

         Portanto, sendo o tribunal judicial de 1ª instância o competente para “reconhecer” e executar as sentenças dos tribunais arbitrais constituídos em território nacional, deve ser também esse, de acordo com o artº III da Convenção de Nova Iorque, o tribunal competente para o reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, desta forma se garantindo que não se lhes aplicam quaisquer condições sensivelmente mais rigorosas ou custas sensivelmente mais elevadas.

         Assim tem decidido maioritariamente a jurisprudência, indicando-se, a título de exemplo, o Ac. do Sup. Trib. de Justiça de 22/04/2004[3], cujo sumário se transcreve:

         “O que releva para decidir sobre qual o tribunal absolutamente competente para rever e reconhecer uma sentença estrangeira é a qualidade da entidade donde ela emana:

         - se de um tribunal estadual, isto é, se se trata de uma sentença judicial, cabe tal competência ao tribunal da Relação, conforme prescrevem a alínea f) do nº 1 do artº 58º da LOFTJ e o artigo 1095º do Código de Processo Civil;

         - se de árbitros ou de órgãos de arbitragem permanente, isto é, se se trata de uma sentença arbitral, será competente o tribunal da 1ª instância, nos termos das disposições conjugadas da 2ª parte do artigo III da Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais estrangeiras (…)”[4].

         O artº 1097º do Cód. Proc. Civil, ao preceituar que o disposto no artigo anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser, não abona a tese da recorrente, da competência do Tribunal da Relação, já que, por um lado, o artº 1096º não se refere à competência e, por outro, sempre estaria ressalvada, com a expressão «na parte em que o puder ser», a interpretação atrás feita do artº III da Convenção.

         O mesmo se diga do artº 71º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, conjugado com o artº 56º, nº 1, al. f) da LOFTJ, porquanto nesta última disposição atribui-se às secções da Relação, segundo a sua especialização, o julgamento dos processos de revisão e confirmação de sentença estrangeira, mas acrescenta-se «sem prejuízo da competência legalmente atribuída a outros tribunais».

         A competência do tribunal judicial de 1ª instância para o reconhecimento e execução das sentenças arbitrais estrangeiras decorre, como se disse, da aplicação do artº III da Convenção de Nova Iorque e do regime previsto na Lei nº 31/86 para as sentenças arbitrais nacionais. O afastamento da competência dos Tribunais da Relação nem é, sequer, caso único, porquanto o mesmo sucede com o reconhecimento e execução de decisões (não arbitrais) em matéria cível e comercial[5] e em matéria matrimonial e de responsabilidade parental[6] proferidas em Estados membros da Comunidade Europeia.

         Não colhe, pois, o argumento de que a (eventual) menor credibilidade jurídica das sentenças arbitrais relativamente às sentenças judiciais estrangeiras justificaria o reconhecimento daquelas, à semelhança da revisão e confirmação destas, pelo Tribunal da Relação [cfr. conclusão L)].

Tal como igualmente não colhe o argumento esgrimido na conclusão M), de que o reconhecimento pelo tribunal judicial de 1ª instância permite mais um grau de recurso, sendo, por isso, contra o preceituado no artº III da Convenção de Nova Iorque, mais rigoroso com as sentenças arbitrais estrangeiras. É que a comparação tem de ser feita com as sentenças arbitrais nacionais e é precisamente por ser esse o regime delas que se aplica às sentenças arbitrais estrangeiras.

Assente, ao menos para nós, que a competência, em termos hierárquicos, recai não sobre os tribunais da Relação, mas sobre os tribunais judiciais de 1ª instância e sabido que estes se dividem em tribunais de competência genérica, tribunais de competência especializada e tribunais de competência específica (artºs 64º, 77º, 78º e 96º da LOFTJ), importa determinar qual o tribunal de 1ª instância competente para o reconhecimento da concreta sentença arbitral estrangeira em causa nos autos.

A recorrente sustenta que, a serem competentes os tribunais judiciais de 1ª instância, então os eleitos, de entre estes, serão os Tribunais Marítimos, nos termos do artº 90º, al. e) da LOFTJ, já que o contrato que está na base da prolação da sentença a reconhecer é um contrato de fretamento de navios.

É certo que, de acordo com a indicada disposição legal, compete aos tribunais marítimos conhecer das questões relativas a … contratos de utilização marítima de navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, designadamente os de fretamento e os de locação financeira.

Contudo, por um lado, a competência do tribunal determina-se face ao pedido formulado pelo autor e aos fundamentos em que se apoia[7] e, por outro, como muito bem se frisou na decisão sob recurso, entre nós o reconhecimento das sentenças estrangeiras dá-se por via do exequatur, controlo ou revisão, o qual não é de mérito – caso em que haveria um controlo da aplicação do direito ou até uma reapreciação da matéria de facto – mas simplesmente formal. Ora, o pedido formulado pela requerente foi tão só o de que seja reconhecida a sentença arbitral indicada na petição, conferindo-se-lhe o exequatur; e, sendo o controlo a exercer meramente formal, a circunstância de à dita sentença estar subjacente um contrato de fretamento de navios é irrelevante.

Os tribunais de competência especializada conhecem de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável (artº 64º, nº 2, 1ª parte, da LOFTJ), sendo que lhes não compete reconhecer, rever, confirmar ou executar sentenças arbitrais que tenham subjacentes tais matérias. Por isso, o tribunal judicial de 1ª instância a que aludem os artºs 24º, nº 2, 26º, nº 2 e 30º da Lei nº 31/86, mesmo quando a sentença arbitral a reconhecer e/ou executar verse essas matérias, não pode ser um tribunal de competência especializada, nomeadamente o tribunal marítimo, antes sendo o tribunal de competência genérica ou, onde tenham sido criadas varas e juízos de competência específica, a pertinente vara ou juízo [artºs 64º, nº 2, 2ª parte, 77º, nº 1, al. a) e 96º da LOFTJ].

Soçobram, pois, todas as conclusões da alegação da recorrente, o que conduz à improcedência da apelação e à manutenção da decisão recorrida.

Cumprindo o disposto no artº 713º, nº 7 do Cód. Proc. Civil, elabora-se o seguinte sumário:

Nos termos da 2ª parte do artigo III da Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, concluída em 10/06/1958, em Nova Iorque e dos artºs 24º, nº 2, 26º, nº 2 e 30º da Lei nº 31/86, de 29 de Agosto, a competência para o reconhecimento de sentença arbitral estrangeira recai sobre o tribunal de 1ª instância (de competência genérica ou, onde tenham sido criadas varas e juízos de competência específica, a pertinente vara ou juízo) e não sobre o tribunal da Relação.


***

         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.

         As custas são a cargo da recorrente.


[1] Portugal formulou a sua adesão através do depósito do respectivo instrumento, em 18/10/1994, no seguimento da aprovação para ratificação efectuada através da Resolução da Assembleia da República nº 37/94, de 10/03 e da ratificação operada pelo Decreto do Presidente da República nº 52/94, publicados no D.R., I-A, nº 156, de 08/07/1994.
[2] Adiante designada, por facilidade, Convenção de Nova Iorque.
[3] Processo nº 04B705, relatado pelo Cons. Ferreira Girão, consultável em www.dgsi.pt.
[4] Ver também, em www.dgsi.pt, os Acórdãos:
   - da Rel. de Lisboa de 20/02/97 (Proc. 0013692, relatado pelo Des. Campos Oliveira);
   - da Rel. de Évora de 31/01/2008 (Proc. 1141/06-2, relatado pelo Des. Tavares de Paiva);
   - da Rel. do Porto de 22/10/98 (Proc. 9730232, relatado pelo Des. Sousa Leite), de 02/10/2001 (Proc. 0120965, relatado pelo Des. Emídio Costa), de 24/10/2002 (Proc. 0230958, relatado pelo Des. Coelho da Rocha), de 26/10/2004 (Proc. 0325170, relatado pelo Des. Marques Castilho) e de 21/06/2005 (Proc. 0427126, também relatado pelo Des. Marques Castilho).
[5] Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22/12/2000, alterado pelo Regulamento (CE) da Comissão, nº 1937/2004.
[6] Regulamento (CE) nº 2201 do Conselho, de 27/11/2003 (que revogou o Regulamento (CE) nº 1347/2000).
[7] Ac. STJ de 12/01/1994 (Proc. 084285, relatado pelo Cons. Pereira Cardigos) e da Rel. de Coimbra de 14/03/2006 (Proc. 314/06, relatado pelo então Des. Garcia calejo), ambos em www.dgsi.pt.