Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3974/06-4TBVIS-C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
SANÇÃO
SUSPENSÃO
Data do Acordão: 11/21/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 141º E 147º DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário: 1. O regime de suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir previsto no artigo 141.º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, apenas é aplicável às contra-ordenações graves,
2. Não se reconhece no dispositivo do art. 141.º, n.º 1, qualquer omissão ou lacuna legislativa quanto à suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir cominada a agente de infracção contra-ordenacional rodoviária muito grave.
3. Não padece o referido normativo do vício de inconstitucionalidade
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, os Juizes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:
A..., devidamente identificado nos autos, impugnou judicialmente a decisão do Governo Civil do Distrito de Viseu, proferida em 11 de Maio de 2006, que lhe impôs a sanção acessória de inibição de conduzir, pelo período de 120 dias, pela prática da contra-ordenação p. e p. no artigo 27.º, n.ºs 1 e 2, 138.º e 146.º, alínea b), do Código da Estrada.
Por sentença de 11 de Abril de 2007 (cfr. fls. 45/47), o 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu julgou o recurso de impugnação totalmente improcedente e, em consequência, manteve, nos seus precisos termos, a decisão administrativa recorrida.

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Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
«1.ª - O regime da execução da sanção acessória de inibição de conduzir é o definido no artigo 139.º do Código da Estrada.
2.ª - Podendo ser suspensa a sua execução, qualquer que seja o tipo de contra-ordenação em causa, grave ou muito grave, desde que reunidos os pressupostos de que a lei penal faz depender tal suspensão.
3.ª - O actual art. 141.º/1 do C.E. é uma norma especial que apenas respeita às contra-ordenações graves.
4.ª - Nada autoriza a sua interpretação “a contrário”, no sentido de que com ele se quis excluir a possibilidade de suspensão da pena acessória nos processos de contra-ordenação, quando esteja em causa o cometimento de contra-ordenação muito grave.
5.ª - Interpretado nesse sentido o art. 141.º/1 do CE é inconstitucional por violação do artigo 165.º/1-d) da CRP e na medida em que na Lei de autorização legislativa (L. 53/04, de 04.11) não foi prevista a eliminação da suspensão mas apenas o seu condicionamento.
6.ª - Incorreu o Tribunal recorrido na nulidade cominada no art. 379.º/1-c) do CPP quando não se pronunciou sobre a matéria alegada no recurso ante si interposto e atinente às condições de vida do recorrente, maxime, o facto de dependerem de si a mulher e os netos. Matéria com reflexo quer quanto à suspensão quer quanto à medida concreta da sanção acessória.
7.ª - Provado que o arguido tem como profissão a actividade de chofer, que é tido como um condutor zeloso e cumpridor, fazendo em média 150.000 Km ano e que a inibição causará a perda do seu salário, deveria a medida da inibição, em concreto, ter sido fixada no mínimo legal de dois meses.
Deve o presente recurso ser julgado provado por procedente, proferindo-se acórdão que acolha as conclusões formuladas, suspendendo-se a sanção de inibição, ou, se assim não for entendido, fixando-a no mínimo legal».
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O Magistrado do Ministério Público manifestou-se no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
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Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto, louvando-se na resposta do M.º Público em 1.ª Instância, emitiu douto parecer no sentido da total improcedência do recurso.
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Cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal, o recorrente não apresentou resposta.
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Efectuado o exame preliminar, colhidos os vistos legais e realizada a audiência de julgamento, cumpre agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:
1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
A interposição e regime de recurso, para o Tribunal de Relação, de decisões proferidas em 1.ª Instância, em processo de contra-ordenação, deve observar as regras específicas referidas nos arts. 73.º a 75.º do DL 433/82, de 27-10, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 244/95, de 14-09 e pela Lei n.º 109/2001, de 24-12 (Regime Jurídico das Contra-Ordenações), seguindo, em tudo o mais, a tramitação do recurso em processo penal (art. 74.º, n.º 4), em função do princípio da subsidiariedade genericamente enunciada no art. 41.º, n.º 1 do citado diploma.

Em recursos interpostos de decisões do Tribunal de 1.ª Instância, no âmbito de processos de contra-ordenação, o Tribunal da Relação apenas conhece, em regra, da matéria de direito, sem prejuízo de poder “alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação temática aos termos e ao sentido da decisão recorrida”, “anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido” (cfr. art. 75.º, n.ºs 1 e 2, ainda do mesmo corpo normativo).
Por outro lado, conforme jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
No caso dos autos, as questões que estão submetidas à apreciação do Tribunal da Relação consistem em saber se:

- O regime de suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir previsto no artigo 141.º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, apenas é aplicável às contra-ordenações graves, estando as contra-ordenações muito graves sujeitas, no referido contexto, aos pressupostos da lei substantiva penal;

- O citado artigo 141.º do Código da Estrada, padece de inconstitucionalidade (orgânica), ao estabelecer, no âmbito da suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir, uma diferenciação de tratamento entre as contra-ordenações graves e as contra-ordenações muito graves que extrapola a competência legislativa que ao Governo foi atribuída pela Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro;

- A decisão recorrida é nula, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal.


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2. Na decisão recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:
1. No dia 02.09.2005, pelas 17:39 horas, no local A 24, Almargem-Viseu, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros matrícula 41-67-UN, circulava à velocidade de 198,30 Km/h, correspondente à velocidade de 209,30 registada, deduzido o valor de erro máximo admissível, sendo a permitida no local de 120 Km/h.
2. Nesse dia empreendia uma viagem entre Viseu e Peso da Régua fazendo-se acompanhar de duas pessoas.
3. O recorrente pagou a coima voluntariamente.
4. Tem como profissão a actividade de chofer de ligeiro de passageiros, auferindo mensalmente a quantia de € 628, e fazendo em média 150.000 Km por ano;
5. É tido como um condutor zeloso e cumpridor das regras de trânsito por todos aqueles que com ele viajam;
6. A inibição de conduzir pelo período de 120 dias implicará a perda de salário.
7. Tem averbado no seu registo de condutor a prática de uma contra-ordenação grave nos últimos cinco anos.
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3. O tribunal a quo procedeu à subsunção legal da materialidade fáctica supra exposta do seguinte modo:
«Resulta dos factos provados que o arguido praticou uma contra-ordenação muito grave (art. 27.º, n.º 1, 138.º e 146.º, al. b), do C.E.).
A única questão a resolver é a de saber se é possível suspender a execução da sanção acessória de inibição que lhe foi aplicada.
“Ao contrário do que sucedia anteriormente apenas nas contra-ordenações graves é que se mostra legalmente admissível a figura da suspensão da execução da sanção acessória”.
Na verdade o actual C.E. no seu art. 141.º apenas admite a suspensão quando se trate de contra-ordenações graves.
Deste modo, é de manter a decisão recorrida».
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3. Do mérito do recurso:
3.1. Como expressamente foi consignado pelo legislador no preâmbulo do citado DL n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro - no uso da autorização legislativa conferida pela Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro [concedida com o sentido privilegiado de “… proporcionar elevados índices de segurança rodoviária para os utentes” (cfr., maxime, respectivo art. 2.º)] –, a segurança rodoviária e a prevenção dos acidentes constituem, na actualidade, prioridades essenciais, no contexto nacional e europeu –, mobilizadoras de toda a sociedade (como aí também se diz) –, para cuja realização foi considerada necessária – a par de várias outras medidas em diversos planos (como a educação do utente e a criação de um ambiente rodoviário seguro) – a adopção e consagração de um mais rigoroso e eficaz quadro legal, com aptidão sensibilizadora dos utentes viários à responsável modificação comportamental, designadamente pelo cumprimento da legislação adequada.
Nesta conformidade, apresenta-se como axiomática a vontade e opção legislativa de geral agravamento sancionatório dos comportamentos contra-ordenacionais rodoviários de risco, particularmente os qualificados de graves e muito graves (normativamente tipificados sob os arts. 145.º e 146.º, do Código da Estrada), e, naturalmente, de expressa alteração do regime anterior de suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir, até então aplicável aos operadores de infracções contra-ordenacionais graves e/ou muito graves (vide art. 142.º do Código da Estrada aprovado pelo DL n.º 114/94, de 03/05, republicado pelos Decretos-Lei n.ºs 2/98, de 03/01, e 265-A/2001, de 28/09, e alterado pela Lei n.º 20/2002, de 21/08), restringindo-o apenas aos agentes de infracção rodoviárias graves, e desde que seja voluntariamente paga a referente coima e se verifiquem os demais pressupostos legais (cfr. o citado art. 141.º, n.ºs 1,2 e 3, do actual CE).
Destarte, não se reconhece no dispositivo do art. 141.º, n.º 1, do vigente Código da Estrada, qualquer omissão ou lacuna legislativa quanto à suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir cominada a agente de infracção contra-ordenacional rodoviária muito grave.
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3.2. Segundo o recorrente, não existe na lei de autorização legislativa - a Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro -, da qual emanou o Decreto-Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro -, qualquer referência que permita ao Governo afastar a aplicação da suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir às contra-ordenações muito graves”, pelo que, fazendo tal matéria parte da competência relativa da Assembleia da República, o art. 141.º do Código da Estrada (actual redacção) é organicamente inconstitucional.
Vejamos se lhe assiste razão.
É do seguinte teor o texto em vigor dos artigos 141.º e 147.º do Código da Estrada:
Artigo 141.º (“suspensão da execução da sanção acessória”):
«1 - Pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada a contra-ordenações graves no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, desde que se encontre paga a coima, nas condições previstas nos números seguintes.
2 - Se o infractor não tiver sido condenado, nos últimos cinco anos, pela prática de crime rodoviário ou de qualquer contra-ordenação grave ou muito grave, a suspensão pode ser determinada pelo período de seis meses a um ano.
3 - A suspensão pode ainda ser determinada, pelo período de um a dois anos, se o infractor, nos últimos cinco anos, tiver praticado apenas uma contra-ordenação grave, devendo, neste caso, ser condicionada, singular ou cumulativamente:
a) À prestação de caução de boa conduta;
b) Ao cumprimento do dever de frequência de acções de formação, quando se trate de sanção acessória de inibição de conduzir;
c) Ao cumprimento de deveres específicos previstos noutros diplomas legais.
(...)».
Art. 147.º (“inibição de conduzir”):
«1 - A sanção acessória aplicável aos condutores pela prática de contra-ordenações graves ou muito graves previstas no Código da Estrada e legislação complementar consiste na inibição de conduzir.
(...)».
No domínio do Decreto-Lei n.º 265-A/2001 - diploma que alterou os Decretos-Leis n.ºs 114/94, de 3 de Maio, e 2/98, de 3 de Janeiro, e revogou os Decretos-Leis n.ºs 162/2001, de 22 de Maio e 178-A/2001, de 12 de Junho -, sob a epígrafe “suspensão da execução da sanção, caução de boa conduta e deveres”, estatuía o artigo 142.º:
«1- Pode ser suspensa a execução da sanção de inibição de conduzir no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas» (o número citado corresponde, com alterações de mínimo pormenor à redacção originária do Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio).
2 - A suspensão da execução da sanção de inibição de conduzir pode ser condicionada, singular ou cumulativamente, ao cumprimento dos seguintes deveres:
a) Prestação de caução de boa conduta;
b) Frequência de acções de formação;
c) Cooperação em campanhas de prevenção rodoviária.
3. O período de suspensão é fixado entre seis meses e dois anos.
(...)».
Com a autorização legislativa da Lei 63/93, de 21 de Agosto, ficou o Governo habilitado a contemplar, inter alia, «a consagração da faculdade de suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir, entre seis meses e dois anos, verificando-se os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas criminais» [artigo 2.º, alínea j)].
Por sua vez, a Assembleia da República concedeu ao Governo, pela Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro, autorização para «proceder à revisão do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.ºs 2/98, de 3 de Setembro, e pela Lei n.º 20/2002, de 21 de Agosto (...)», «para permitir a criação de um regime jurídico em matéria rodoviária em conformidade com os objectivos definidos no Plano Nacional de Prevenção Rodoviária, com as normas constantes de instrumentos internacionais a que Portugal se encontra vinculado e com as recomendações das organizações internacionais especializadas com vista a proporcionar índices elevados de segurança rodoviária para os utentes» (artigos 1.º e 2.º).
Concretamente, e no segmento que importa ter em conta, dispôs o artigo 3.º, da predita Lei n.º 53/2004:
«A autorização referida no artigo 1.º contempla:
g) A qualificação como contra-ordenações de todas as infracções rodoviárias e a aplicação do regime contra-ordenacional previsto no Código da Estrada a todas elas;
j) A determinação da medida e regime de execução das sanções tendo em conta os antecedentes do infractor relativamente ao diploma legal infringido ou seus regulamentos;
m) A previsão de atenuação especial e de suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir condicionadas ao prévio pagamento da coima e ao facto de o infractor não ter praticado outras infracções no período fixado;
n) A consagração do princípio de que a suspensão da execução da sanção acessória possa ser condicionada, além da prestação de caução de boa conduta, à frequência de acções de formação ou ao cumprimento de deveres específicos previstos em legislação própria;
o) A alteração dos limites mínimo e máximo da caução de boa conduta para, respectivamente, € 500 e € 5000».
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Cotejados os diplomas e as específicas normas destes que se evidenciam relevantes para o conhecimento do objecto do recurso, urge, antes de mais, determinar se a norma questionada (art. 141.º do Código da Estrada, na redacção do Decreto-lei 4/2005, de 23 de Fevereiro) se enquadra no âmbito da competência legislativa reservada à Assembleia da República.
O artigo. 165.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, da Constituição, dispõe como segue:
«1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização do Governo:
d) Regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo.
2. As leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada».
Nestes termos, é da competência reservada da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, a elaboração de legislação sobre o regime geral (o comum) de punição dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo.
Gomes Canotilho e Vital Moreira acentuam que, quanto aos direitos sancionatórios diversos do direito penal, a reserva legislativa relativa da Assembleia da República só abrange o regime geral: «cabe assim à AR definir a natureza do ilícito e os tipos de sanções, bem como os seus limites, além das regras gerais do respectivo processo, mas não a definição de cada infracção concreta e a cominação da respectiva pena» In Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.º vol., 2.ª ed., Coimbra, 1985, pág. 200..
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem caminhado no mesmo sentido.
Foi referido no Ac. n.º 309/95, de 17 de Outubro de 2000:
«Ao Governo compete, concorrentemente com a Assembleia da República, definir, alterar e eliminar contra-ordenações e, bem assim, modificar a sua punição, enquanto constitui matéria reservada do Parlamento, integrando o regime geral do ilícito de mera ordenação, a definição da natureza do ilícito contra-ordenacional, a definição do tipo de sanções aplicáveis às contra-ordenações e a fixação dos respectivos limites e das linhas gerais da tramitação do processo a seguir para a aplicação concreta de tais sanções» A consultar em http://www.tribunalconstitucional.pt. .
Por sua vez, ficou escrito no Ac. n.º 447/91, de 28 de Novembro de 1991:
«Em matéria de ilícito de mera ordenação social é, assim, da competência reservada da Assembleia, salvo autorização do Governo, a elaboração de legislação sobre a definição da natureza do ilícito, a definição do tipo de sanções aplicáveis às contra-ordenações e a fixação dos respectivos limites a as linhas gerais do processo por que se há-de reger a aplicação de tais sanções.
Ao Governo caberá a elaboração da legislação pela qual se proceda à desgraduação de contravenções não puníveis com pena privativa de liberdade em contra-ordenações e a definição, punição e modificação de concretas infracções contra-ordenacionais, devendo, porém, o Governo, nestes aspectos, respeitar os limites que estiverem definidos pelo regime geral regulador desse tipo de ilícito». Para consulta em http://www.tribunalconstitucional.pt. Vejam-se ainda os Acs. n.ºs 69/90, de 15/03/1990, 88/90, de 28/03/1990, 414/89, de 07/06/1989, e 585/84, de 12/06/1984.
O regime geral do ilícito de mera ordenação social constante do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14-09 e pela Lei n.º 109/2001, de 24-12), não contém qualquer referência sobre a suspensão da execução da sanção acessória aplicada a contra-ordenações e, por outro lado, afigura-se-nos de todo em todo descabida a aplicação subsidiária às contra-ordenações do regime de suspensão da execução da pena constante do Código Penal, por força do estatuído pelo art. 32.º do diploma indicado em primeiro lugar.
Como anotam os Srs. Conselheiros Simas Santos e Lopes de Sousa, «a aplicação subsidiária, (...) só se justifica perante a existência de um caso omisso, pelo que só se deverá recorrer a ela quando se possa concluir que, para além de se tratar de um ponto não regulado no R.G.C.O. nem em lei especial, se está perante um caso que, em coerência, deveria ser regulamentado» In Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 3.ª edição, 2006, pág. 278/279..
Considerada a estrutura normativa global que o legislador ordinário conferiu ao regime geral do ilícito de mera ordenação social, donde sobressai a regulação de um plano ordenador do sistema jurídico contra-ordenacional tendencialmente aplicável a todas as contra-ordenações especialmente previstas, é apodíctico que a inexistência de regulamentação na área em causa foi determinada por razões político-jurídicas e correspondem a uma opção do legislador, a uma inexistência planeada.
Além do mais, o Código Penal apenas prevê a suspensão da execução da pena quando em causa estão penas de prisão aplicadas em medida não superior a três anos (actualmente cinco anos) - cfr. art. 50.º, n.º 1.
Assim, temos como certo que, no domínio do regime geral das contra-ordenações, não está previsto, mesmo que subsidiariamente, a possibilidade de suspensão da execução das penas acessórias de inibição de conduzir. Dito de outro modo: a suspensão da execução das penas acessórias não integra o regime geral contra-ordenacional.
Sendo assim, tendo em conta o campo de previsão da al. d) do art. 165.º da Constituição, tal como ele é considerado na doutrina e jurisprudência, cabe «na competência concorrente da Assembleia da República e do Governo a previsão de existência de sanções acessórias, dentre as dos tipos previstos no n.º 1 do artigo 21.º do regime geral das contra-ordenações, bem como a possibilidade de suspensão da sua execução. E se assim for quanto à opção legislativa do estabelecimento da possibilidade de aplicação de sanções acessórias e da suspensão da sua execução, não poderia deixar de ser diferente quando a opção legislativa seja de eliminação, modificação ou estabelecimento de condições de execução, desde que se quedassem dentro do regime geral.
Teríamos, portanto, de concluir que o legislador do Decreto-Lei n.º 44/2005, ao excluir, através da alteração introduzida ao artigo 141.º, n.º 1, do CE, da possibilidade de suspensão da execução as sanções acessórias de inibição de conduzir aplicadas pela prática de infracções muito graves, não estaria a invadir a reserva de competência da Assembleia da República, mas no exercício de uma competência concorrente» Cfr., Ac. do Tribunal Constitucional n.º 629/2006 (proc. n.º 515/2006), de 16 de Novembro de 2006, publicado no DR, 2.ª série, de 3 de Janeiro de 2007..
Com fundamentos, no essencial, convergentes, ficou dito no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 604/2006, de 14 de Novembro de 2006 Publicado no DR, 2.ª série, n.º 249, de 29 de Dezembro de 2006., «estabelecida que estava relativamente ao específico regime especial das contra-ordenações estradais - quer pela Lei n.º 6/93 que pela Lei n.º 53/2004 - um “desvio” relativamente ao regime geral das contra-ordenações no que se prende com a consagração da possibilidade de suspensão da execução da sanção acessória, podia o Governo definir, alterar, eliminar ou modificar a punição e as condições de execução das infracções contra-ordenacionais estradais. É que, de um lado, aquelas definição, eliminação, modificação e estabelecimento de condições de execução, desde que não ofensivas de um regime geral, cabem na competência legislativa concorrente do Governo, como, sem discrepâncias, tem sido realçado por este Tribunal (cfr., a título meramente exemplificativo, os Acórdãos n.ºs 56/84, in Diário da República, 1.ª série, de 9 de Agosto de 1984, 79/95, idem, 2.ª série, de 12 de Junho de 1995, 69/90, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15.º vol. pp. 253 a 265, 436/2000, in Diário da República, 2.ª série, de 17 de Novembro de 2000, 461/2000, idem, idem, de 29 de Novembro de 2000, e 236/2003, idem idem, de 24 de Junho de 2003)».
Outras razões existem, contudo, que levam à rejeição da tese evidenciada pelo recorrente.
Continuando a seguir as esclarecedoras passagens contidas no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 629/2006, neste se diz a dado passo:
«Não desconhecia o legislador parlamentar, ao definir, pelo modo descrito, o sentido e a extensão da autorização legislativa, que a inibição de conduzir estava prevista no regime então vigente do novo CE saído da alteração feita pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, à versão originária (...), como sanção acessória de que eram passíveis as contra-ordenações graves e muito graves (artigo 139.º), e que esse mesmo regime previa a possibilidade de «ser suspensa a execução da sanção de inibição de conduzir (...).
Não obstante isso, o legislador parlamentar autorizou o Governo a proceder à revisão do CE, nos termos amplos acima transcritos, sem o subordinar, na definição do âmbito da extensão da autorização, concernente à matéria em causa, à observância de outros limites que não sejam os, nele, expressamente contemplados.
Dispondo o legislador parlamentar que a autorização concedida, (...), contempla, maxime, «a determinação da medida e regime de execução das sanções tendo em conta os antecedentes do infractor relativamente ao diploma legal infringido ou seus regulamentos» (al. j) do art. 3.º da Lei 53/2004), «sem recortar quaisquer limitações pelo estabelecido anteriormente, há que concluir que a autorização possibilita a determinação, como se fora originariamente, das sanções principais e acessórias e do regime da sua execução, neste se tendo de incluir a possibilidade de suspensão ou de não suspensão da inibição de conduzir prevista como sanção acessória para as contra-ordenações graves e muito graves (artigo 138.º do CE), tanto mais que a opção legislativa tomada, pelo legislador autorizado, se afigura adequada» ao sentido de autorização definido no art. art. 2.º, parte final, da Lei 53/2004, ou seja, o de proporcionar índices elevados de segurança rodoviária para os utentes.
«Na verdade, independentemente de a suspensão de execução de uma pena poder ser vista, não como uma forma funcionalizada à sua execução, mas antes como uma pena de substituição em sentido próprio (...), o efeito jurídico-prático que a suspensão da inibição de conduzir importa é a possibilidade de não cumprimento da sanção aplicada e isso tem que ver com a definição do “regime da sua execução”.
Ora, o legislador da norma questionada estava autorizado a definir esse regime sem respeito ou subordinação pelas regras vindas do passado».
Deste modo, e pela dupla ordem de razões apontadas - radicando a primeira na competência concorrente do Governo e da Assembleia para a edição da norma em causa e, a outra, na constatação de que, em qualquer caso, o Governo legislou a coberto de autorização legislativa concedida na Lei n.º 53/2004 -, não padece o art. 141.º do Código da Estrada, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, do vício de inconstucionalidade orgânica que o recorrente lhe aponta.
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3.3. Relativamente à invocada nulidade de que padece a decisão recorrida, prevista no art. 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, é apodíctico que ela não se verifica.
Os factos que o recorrente aponta como não apurados pelo tribunal a quo são manifestamente inócuos para a decisão de direito, rectius, para a suspensão e medida concreta da sanção acessória.
No que tange à suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir, não é a mesma legalmente admissível, como ficou já suficientemente explicitado.
Quanto à medida concreta da sanção acessória, o quantum fixado pela autoridade administrativa, confirmado pelo tribunal de 1.ª instância (120 dias de inibição de conduzir), corresponde ao mínimo previsto na lei (cfr., artigos 138.º, n.º 1, 143.º, n.ºs 1 e 3, 146.º, al. i), e 147.º, n.º 2, todos do Código da Estrada).
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3.4. Em face da improcedência do recurso, cumpre condenar o arguido em custas, nos termos do disposto nos arts. 513.º e 514.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, sendo a taxa de justiça fixada de acordo com o disposto nos arts. 82.º, n.º 1 e 87.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, estes do Código das Custas Judiciais.

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III. Dispositivo:
Posto o que precede, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Condena-se o arguido/recorrente nas custas, com taxa de justiça que se fixa em 4 UC.
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Coimbra, 21 de Novembro de 2007
(Processado e revisto pelo relator, o primeiro signatário)

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(Alberto Mira)