Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2886/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: SERAFIM ALEXANDRE
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO PELO ASSISTENTE
CONVITE PARA SUA CORRECÇÃO
Data do Acordão: 11/24/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 283º, 286º, 287º E 309º, DO C. P. PENAL
Sumário: I- Sempre que, apesar das deficiências do requerimento para abertura da instrução, pelo assistente, o juiz de instrução conheça claramente o que está em causa (que factos se pretende ver apreciados e quem poderão ser os seus autores) a instrução deverá realizar-se.
II- O juiz de instrução, nomeadamente pela natureza da sua actividade, imparcialidade perante as partes, dada a natureza acusatória do processo, não deve convidar à correcção de tal requerimento.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal da relação de Coimbra:

Na comarca de Figueiró dos Vinhos correm termos os autos de Inquérito n.º 421/03 em que A..., entretanto admitida como assistente, se queixou de que B..., C... e D... lhe haviam subtraído, entre o dia 7-7-2003 e o dia 11-7-2003, diverso material de construção.
Após o Inquérito, o M.º Público determinou o arquivamento dos autos por não se Ter logrado obter indícios suficientes do cometimento dos crimes indiciados.
A assistente veio requerer a abertura da instrução.
Pelo despacho de fols. 98 a 101, foi rejeitado o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução.
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É deste despacho que recorre a assistente, concluindo:
1- A assistente vem recorrer da sentença que rejeitou o requerimento de abertura de instrução por si deduzido, nos termos do n.º 3 do artigo 287º do CPP.
2- O Tribunal entendeu que não havia acusação, o que conduziria à nulidade da decisão Instrutória nos termos do n.º 1 do artigo 309º do CPP, existindo assim a prática de actos inúteis e inconsequentes.
3- Considera o Tribunal que o requerimento em apreço, não contém a descrição dos factos que permitem preencher os elementos do crime, faltando à instrução o próprio objecto, tornando a instrução inexequível, e assim, a defesa do próprio arguido.
4- Refere ainda que, a existir despacho de pronúncia, este sob pena de nulidade, nunca poderia considerar outros factos que eventualmente resultassem da instrução e que não tivessem sido alegados no requerimento para abertura de instrução.
5- Com o devido respeito, não será isso necessário, decorre do requerimento os factos sobre os quais, a assistente pretende ver imputados aos arguidos.
6- De forma sintética, talvez insuficiente, é dado a conhecer aos arguidos os factos pelos quais poderão ser acusados.
7- É certo que acusação e discordância pelos factos da não acusação se misturam, mas claramente se faz a tipificação dos crimes bem como a sua qualificação.
8- Assim a assistente imputa aos arguidos a prática de um crime de furto de potes, alegando que os arguidas terão dito à assistente, primeiro que os “arrumaram” num garagem e que os devolveriam no final da obra e num segundo momento quando os arguidos referem que nada sabem dos referem que nada sabem dos referidos potes.
9- Quanto aos dois crimes de abuso de confiança imputados aos arguidos, a assistente alega no seu requerimento inicial que os arguidos encomendaram 10 sacos de cimento para uma obra sua que à data da referida encomenda efectuada pelos arguidos já estava terminada. Refere datas concretas em que os factos aconteceram e imputa-os aos arguidos.
10- Também no que respeita ao segundo crime de abuso de confiança a assistente alega factos e datas concretas sobre os mesmos imputando-os aos arguidos;
11- Nestes termos deve a douta sentença recorrida violou o normativo constante do artigos 287, n.º 3 do CPP, uma vez que o requerimento de abertura de instrução ao contrário da interpretação dada no despacho recorrido, não viola tal dispositivo, pela que deve ser concedido provimento ao recurso, ordenando-se o prosseguimento dos autos, com a realização da requerida instrução, alcançando-se assim JUSTIÇAI
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Respondeu o M.º Público entendendo que deve ser negado provimento ao recurso.
Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emite douto parecer concluindo:
Pelas razões expostas...somos de parecer que o recurso da assistente é merecedor de provimento, devendo revogar-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que, ou convide a Assistente recorrente, nos termos dos art.ºs 123º n.º 2 do C.P.P., a harmonizar o seu requerimento de acordo com as exigências do art.º 287º n.º 2 do mesmo Diploma, ou mesmo, se assim o entender possível e conveniente, declarar desde logo aberta a instrução, designando data para o Debate Instrutório, relegando para esse momento o suprimento das questões deixadas em aberto pelas insuficiências do referido requerimento
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
Vejamos, em resumo, o que se passa:
I- Do auto de queixa consta, nomeadamente:
- que a Laurinda se queixou contra
B...; C... e D..., todos residentes em Campelos, Vila Facaia - 3270-204 Pedrogão Grande;
- por entre o dia 07-07-03 e o dia 11-07-03, em lugar de Salaborda Nova, Vila Facaia - Pedrogão Grande, terem furtado vário material de construção, tais como: Duas (2) páletes de blocos, no total de 140 unidades, no valor total de 75 euros e quatro (4) potes em barro, um de 3 alqueires, e dois (2) de 2 alqueires e o outro de 1 alqueire, todos com mais de 200 anos, no valor total de 4.000 euros.
- no dia 4-8-03, o arguido C..., por abuso de confiança, foi à Firma Marcobolim, comprou 10 sacos de cimento, deixando em nome da denunciante, dizendo que era para a obra que andava a construir e levou o cimento para ele, no valor de 38,08 euros, que se junta uma fotocópia da factura, que o cimento não deu entrada na obra e a denunciante pagou-o.
- que os dois arguidos foram contratados para construir uma obra à denunciante, e como acima mencionado, furtaram os artigos, porque a denunciante não estava presente e os mesmos aproveitaram-se da sua ausência. Pagou 25 dias de trabalho ao arguido D... e este não trabalhou na obra e a mãe sempre colaborou com os mesmos nestas situações.
- que a denunciante teve vários prejuízos com esta situação e ainda se encontra a obra por acabar, que posteriormente pode apresentar todas as despesas e um pedido de indemnização.
Indicou testemunhas.
II- Após Inquérito, o M.º Público , depois de resumir as várias diligências efectuadas e considerar os elementos necessários dos crimes em causa, termina:
“...não se recolheram indícios suficientes de que os arguidos tenham praticado qualquer ilícito penal, de forma a sustentar uma eventual acusação, pelo que, ao abrigo do disposto no art. 277º, n.º 2, do Código de Processo Penal, determino o arquivamento dos autos por não se ter logrado obter indícios suficientes do cometimento dos crimes indiciados”.
III- Contra este despacho reagiu a assistente:
“...vem requerer, nos termos do art. 287º, n.º 1 e 6 do C.P.P., ABERTURA DA INSTRUÇÃO, porquanto:
1º- Entende a assistente que os factos apurados em sede de inquérito são de molde a imputar aos arguidos os crimes apresentados em sede de queixa;
QUANTO AOS POTES DE BARRO:
2º- O arguido C... nas suas declarações confirma terem desaparecido os potes em barro;
3º- E alegando que desconhece quem foi, assume que efectuou o pagamento dos mesmos à
queixosa;
4º- Ninguém assume o pagamento de algo que não fez, ao que acresce que ao contrário do que alega o arguido, não efectuou qualquer pagamento relativo aos potes;
5º- Acontece é que o arguido tem a consciência pesada e por isso afirmou que já tinha pago;
6º- Acresce que a arguida B... também reconhece que os potes desapareceram;
7º- Esta mesma arguida contou diferentes versões à assistente do destino que couberam aos referidos potes: primeiro alegou que os mesmos foram “arrumados” numa garagem, que os mesmos eram muito pesados e que foram lá postos pelo seu filho, o arguido C..., pelo que logo que a obra estivesse terminada devolveria os mesmos; mais tarde veio a afirmar que nada sabia dos potes;
8º- É assim manifesto que os arguidos bem sabem o que fizeram aos potes, pelo que as suspeitas da assistente sobre tais actos encontram-se mais que sustentadas: Que motivo teria a arguida para primeiro dizer que tinha guardado os potes e mais tarde dizer o contrário; Que motivo tinha o arguido C.... para dizer que não foi ele furtou os potes, mas que já os tinha pago;
9º- Devem assim os arguidos serem pronunciados pelo furto dos referidos potes;
QUANTO AOS SACOS DE CIMENTO
10º- Os arguidos confessam que encomendaram os referidos 10 sacos de cimento, alegando que os mesmos foram gastos na obra da assistente. Vejamos:
11º- A obra ficou concluída em 24 de Julho de 2003.
12º- Os sacos de cimento foram encomendados em 4 de Agosto e facturados a 14 de Agosto de 2003 – cfr. doc. 1 e 2.
13º- Como é possível considerar que tais sacos de cimento foram gastos numa obra que foi
dada por concluída 11 dias antes de se encomendar o cimento;
14º- Em momento algum o dito cimento foi gasto na obra da assistente;
15º- A arguida ao encomendar em nome da assistente os 10 sacos de cimento e ao apresentá-los a esta para pagamento bem sabia que os mesmos não foram gastos na obra da assistente, praticando assim um crime de abuso de confiança, p. p. no art.º 205º do Código Penal;
APROPRIAÇÃO DE DUAS PALETES DE BLOCOS
16º- Em sede de inquérito foi apurado que os arguidos encomendaram duma só vez 5 paletes que foram facturadas numa mesma factura paga pela queixosa. Não obstante apenas 3 dessas paletes se destinarem à sua obra, sendo as restantes sido entregues em caso do arguido C... que as fez suas;
17º- Considera o MP que mais tarde o arguido C... pagou tais paletes, pelo que não teve o mesmo qualquer intenção de as fazer suas à custa da queixosa Vejamos:
18º- A factura em questão é de 15 de Julho de 2003 (Cfr. doc.3), o pagamento por parte dos arguidos deu-se em setembro desse mesmo ano.
19º- Mais, sempre os arguidos negaram que não tivessem sido gastas na obra cinco paletes de blocos e só o facto de as paredes não terem sido rebocadas e ser possível contar os blocos gastos na obra, levou a que os arguidos confessassem o crime;
20º- Mais. Após o pagamento da factura, a queixosa efectuou vários outros pagamentos referentes à mão-de-obra dos arguidos na dita obra. Pergunta-se se os mesmos estavam de boa fé porque razão não houve o encontro de contas em tais datas, mas apenas em Setembro?
21º- Mas não é só. Logo que confrontados com a impossibilidade física de os blocos terem sido gastos na obra, os arguidos ainda alegaram que se tratou de um erro e que mais tarde trocaram as ditas duas paletes de blocos por areia;
22º- Confrontado o dono da Macobolim, Lda, o mesmo veio a negar que tivesse havido qualquer troca de materiais.
23º- Só nessa altura é que os arguidos confessaram que as paletes se destinavam a eles próprios, tendo mais tarde pago o respectivo valor;
24º- Também aqui devem os arguidos ser pronunciados pelo crime de abuso de confiança;”
Indica, depois prova quer testemunhal quer documental
IV- No despacho recorrido, citando-se as disposições legais aplicáveis (artigos 286º, 287º, 283º e 309º, do CPP) reconhece-se que a assistente vem contrariar os argumentos e conclusões plasmados no despacho de arquivamento, sustentando diferente apreciação de prova na fase de inquérito...que discorda dos fundamentos que levaram ao arquivamento, entendendo que os indícios não foram correctamente valorados, sendo requerida a realização de diligências instrutórias, mas considera que existe a nulidade consignada no art.º 283º, n.º 3, al. b) e c), ex vi art.º 287º, n.º 2, porque a assistente não alega factos passíveis de preencher cabalmente os tipos objectivos e subjectivos de um crime...não identificando de forma clara contra quem e em que termos é dirigida a acusação ou as necessárias circunstâncias de tempo e lugar, não indicando ainda todas as disposições legais eventualmente aplicáveis.
Considera também que o vício não é passível de ser sanado por convite ao aperfeiçoamento, uma vez que tal exorbitaria a comprovação judicial que a instrução visa realizar, contrariando o princípio da estrutura acusatória do processo penal ...não podendo o juiz de instrução intrometer-se na delimitação do objecto da acusação no sentido de alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente requerente da abertura da instrução.
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Tem sido patente na jurisprudência e na doutrina a divergência que se tem gerado acerca das interpretações das normas legais aplicáveis. E estas são:
- art.º 286º, n.º 1: a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento;
- art.º 287º, n.º 2: o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas......sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283º, n.º 3, alíneas b) e c);
- art.º 283º, n.º 3: a acusação contém, sob pena de nulidade:
- b): a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
- c): a indicação das disposições legais aplicáveis.
- art.º 287º, n.º 3: o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
- Art.º 309º, n.º 1: A decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução (sublinhado nosso).
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Lembremos, por exemplo:
1- Ac. da Relação de Évora de 1997.12.16, B. M J .,472, pág. 585:
”II- Não podendo o requerimento deficiente ser indeferido, por não se verificar qualquer das causas de rejeição elencadas no n2 do artigo 287 do Código de Processo Penal, deverá o mesmo ser objecto de um despacho de aperfeiçoamento – artigo 123º n. 2, do Código de Processo Penal.;
2- Ac. da Relação de Lisboa de 21 de Março de 2001 in Colectânea de Jurisprudência ANO XIXVI-200 1, TOMO II, pág. 131:
Quando tal requerimento não contenha, ainda que sumariamente uma descrição dos factos que não possibilite a prolacção de um despacho de pronúncia, ou de não pronúncia, deverá notificar-se o requerente para, no prazo que lhe seja fixado, o aperfeiçoar.
3- Ac. da Relação do Porto in Colectânea de Jurisprudência, de 2l Nov de 2001, Ano 26, Tomo V, pág. 225:
Há fundamento para rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, se tal requerimento, mesmo após o convite feito pelo juiz para o aperfeiçoar, não descreve os factos, nem indica as disposições legais incriminadoras por forma a que cada arguido possa saber concretamente o que lhe é imputado. Num tal caso, existe falta de acusação, e não apenas acusação deficiente, o que torna a instrução legalmente inadmissível.”;
4- Da anotação ao Código de Processo Penal, Anotado 1996 7ª Edição Revista e Actualizada de Manuel Lopes Maia Gonçalves, página 455 em Anotação n.º 3 ao artigo 287 do CPP lê-se que:
“....A rejeição par inadmissibilidade legal de instrução inclui os casos em que aos factos não corresponde infracção criminal (falta de tipicidade), de haver obstáculo que impede o procedimento criminal e de haver obstáculo à abertura de instrução. (v.g. ilegitimidade do requerente (caso do MP) ou inadmissibilidade legal de instrução (v.g. casos dos crimes particulares e dos processos especiais,).
5- Ac. de 3 de Maio de 2000 do STJ7, in CJ, T. II, pág. 180:
A insuficiência do inquérito (ou da instrução) a que se refere a alínea d) do n.º 2 do artigo 120º do CPP, não significa o mesmo que ausência de indícios suficientes para acusar ou para pronunciar ou ausência de actos de inquérito ou de instrução tendentes às finalidades que eles prosseguem. A insuficiência do inquérito, como nulidade, só pode respeitar à omissão de actos que a lei prescreva como obrigatórios, se para essa omissão a lei não dispuser de forma diversa, o mesmo acontecendo, aliás, com os actos de instrução;
6- Código de Processo Penal Anotado, anotação número 5. ao artigo 287º do CPP, onde se lê:
Como explícita o n.º 3, o requerimento para abertura de instrução, seja do arguido seja do assistente, não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter os elementos ai indicados. A lei não estabelece, porém, qualquer sanção para a omissão destes elementos. Na realidade, como pondera Souto de Moura, jornadas de Direito Processual Penal, 120-121, se o assistente requerer a abertura de instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será inexequível, ficando o juiz sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver provados. O mesmo se poderá dizer, mutatis mutandis, no que concerne à instrução requerida pelo arguido. Cremos que nestes casos o juiz deverá proceder do seguinte modo: Quanto ao assistente notificá-lo-á para que complete o requerimento com os elementos que omitiu e que não devia ter omitido (art.º 287º n.º 3) Se o assistente não completar o requerimento, o juiz não procederá à instrução... Quanto ao arguido, procederá do mesmo modo; no entanto o facto de o arguido não completar o requerimento pode não ser caso de o juiz não proceder à instrução, sempre que se deduza que o único intuito do arguido e requerente é contrariar os factos constantes da acusação e tiver indicado os actos de instrução que para o efeito deseja que sejam levados a cabo. Neste último caso o juiz dispõe apesar de todas as deficiências do requerimento, de um campo delimitado de factos (os da acusação), que o arguido se propõe contrariar na instrução.
7- Germano Marques da Silva ( Curso de Processo Penal, III, pg. 147 e segs.):
“a definição do «thema decidendum» pela acusação é uma consequência da estrutura acusatória do processo. Se o tribunal pudesse considerar outros factores substancialmente diversos dos da acusação, por maiores que fossem as possibilidades concedidas ao arguido para deles se defender, sempre seria posta em causa a função especificamente judicial”.
“ A instrução é uma actividade materialmente judicial e não de investigação”.
“ Ao admitir-se a alteração da acusação por iniciativa do juiz de instrução frustrar-se-ia a própria finalidade da instrução, tal como foi concebida pelo legislador do Cód. Proc. Penal 87: controlo negativo da acusação e não complemento da investigação prévia á fase do julgamento.”
8- No Ac. do TC. n.º 27/01, de 30/01 (DR. – 2 ª Série, de 23/3/01 ) escreveu-se que:
“nos casos... em que o Ministério Público se decidiu pelo arquivamento do inquérito, o direito de requerer a instrução que é reconhecido ao assistente - e que deve revestir a forma de uma verdadeira acusação - não pode deixar de contender com o direito de defesa do eventual acusado ou arguido tio caso daquele não respeitar o prazo fixado na lei para a sua apresentação.
O estabelecimento de um prazo peremptório para requerer a abertura de instrução - prazo esse que, uma vez decorrido, impossibilita a prática do acto - insere-se ainda no âmbito da efectivação plena do direito de defesa do arguido. E a possibilidade de, após a apresentação de um requerimento de abertura de instrução, que veio a ser julgado nulo, se poder ainda repetir, de novo, um tal requerimento para além do prazo legalmente fixado é, sem dúvida, violador das garantias de defesa do eventual arguido ou acusado. Com efeito, a admissibilidade de renovação do requerimento não permitiria que transitasse o despacho de não pronúncia, assim desaparecendo a garantia do arguido de que, por aqueles/actos não seria de novo acusado.
Se se focar, agora, a perspectiva do direito da assistente de deduzir a acusação através do requerimento de abertura de instrução, a não admissibilidade de renovação do requerimento por decurso do prazo não constitui uma limitação desproporcionada do respectivo direito, na medida em que tal facto lhe é exclusivamente imputável, para além de constituir - na sua possível concretização - uma considerável afectação das garantias de defesa do arguido.
Dir-se-á, por último, que do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efectivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos de poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito.”
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Como se nota, para uns o requerimento de abertura de instrução deve obedecer a rigoroso formalismo, para outros, esse formalismo não deve ser exigido. Para uns pode convidar-se ao aperfeiçoamento de tal requerimento, para outros isso está vedado.
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A favor da tese de menor formalismo do requerimento de abertura de instrução, podemos dizer:
a)- Há, desde logo, uma observação que se deve fazer: a norma do art.º 287º, n.º 3 tem caracter especial em relação às outras. É ela que prevê o caso da rejeição do requerimento para abertura da instrução. Esta natureza conduz a que se lhe deve dar prevalência.
b)- O conteúdo da verdadeira acusação consta do art.º 283º, n.º 3;
c)- O art.º 287º, n.º 2 não exige o seu cumprimento integral. Se é certo que diz que é ainda aplicável o que consta nas suas alíneas b) e c), também diz que não está sujeito a formalidades especiais e especifica o que, em súmula, deve constar em tal requerimento.
d)- Dada a natureza do Inquérito, este poderá ser sempre discutido. A instrução tem um conteúdo abrangente. Ele não está restrito ao que é alegado pelo requerente. Basta ver o que diz o art.º 289º: a instrução é formada pelo conjunto dos actos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo e, obrigatoriamente, por um debate instrutório...
A favor da tese contrária, isto é, do maior rigor na formulação do requerimento de abertura de instrução, dir-se-á:
a)- Merece maior tutela o direito de defesa do eventual arguido do que o direito do assistente em acusar quem o M. Público entendeu não o dever ser.
b)- O requerimento deve conter o que refere o art.º 283º, n.º 3, alíneas b) e c): factos, lugar, tempo, motivação, grau de participação do agente, todas as circunstâncias relevantes e indicar as disposições legais aplicáveis;
c)- O juiz não pode acrescentar nada de essencial ao requerimento;
d)- Se o faz, o art.º 309º, n.º 1, não deixa dúvidas: a pronúncia é nula.
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Que posição aceitar?
Entendemos que a solução não deve ser radical quer para uma quer para outra das soluções.
Tudo se resumirá ao seguinte: sempre que, apesar das deficiências, o juiz de instrução conheça claramente o que está em causa, que factos se pretende ver apreciados, a instrução deverá realizar-se.
O apelo ao formalismo de tal requerimento, não deve ser definitivo. O que delimita a instrução é ou a acusação (e essa, sim, nos termos exigidos pelo art.º 283º) ou, como é o caso, o requerimento do assistente. Mas, neste caso, essa delimitação não se pode confundir com as rigorosas exigências da acusação. Se assim fosse, não faria sentido o que consta na primeira parte do n.º 2, do art.º 287º. Uma acusação não pode conter tais coisas (razões de facto e de direito de discordância). Uma acusação afirma, imputa, dá como suficientemente indiciados factos. Nesse caso a instrução comprova-os ou não.. Mas o requerimento de abertura de instrução, quando o M.º Público se absteve de acusar, tem natureza algo diferente. Pede-se ao juiz que comprove não aqueles factos mas que comprove se há ou não factos que devem levar à pronúncia ou à confirmação do arquivamento. Neste caso não se pode exigir uma directa imputação de factos, uma afirmação de prática de factos, bastando que se refutem os fundamentos que levaram à não acusação de certos factos.
Se é certo que o juiz está substancial e formalmente limitado pelos factos contidos na acusação (quer pública quer privada) também o está pelos factos descritos no requerimento de abertura de instrução como sendo factos que deveriam ter ser objecto da acusação e não o foram. Uma coisa é acusar outra bem diferente é requerer que se investigue para se saber se haveria ou não lugar à acusação e, consequentemente, se pronuncie.
O que importa é que o juiz, pelo requerimento, saiba claramente que factos estão em causa, quem são os seus agentes e as razões porque o assistente entende que deve haver acusação.
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Será o que se verifica no caso vertente?
- a assistente tinha-se queixado dos arguidos:
- do furto de potes de barro;
- de abuso de confiança relativamente a sacos de cimento;
- do furto de paletes de blocos;
- o M.º Público não acusou por entender não haver indícios suficientes para tal;
- no requerimento vem dizer:
- devem os arguidos ser pronunciados pelo crime de furto dos potes, pelas razões que indica de 1º a 9º;
- devem ser pronunciados pelo abuso de confiança relativamente aos sacos de cimento, pelas razões que invoca de 10º a 15º;
- devem ser pronunciados pelo furto dos blocos pelas razões que refere de 16º a 24º.
Mas:
1)- Quem é que deve ser pronunciado? Não o diz. Não refere quem são os eventuais arguidos;
2)- E porque factos? Também não os indica. Refere-se apenas aos crimes;
3)- Onde, e quando e porque foram praticados? Nada diz.
4)- que grau de participação tiveram os eventuais vários arguidos? Nada refere;
5)- que disposições legais violaram ? Também não o diz.
Nem sequer o faz por remissão para qualquer outra peça processual, como, por exemplo, a queixa.
Isto é, para o juiz de instrução, são desconhecidos os arguidos, são desconhecidos os factos, são desconhecidas todas as demais circunstâncias.
Não pode o juiz substituir-se à assistente na procura de tudo isso.
Em tais circunstâncias, não se pode admitir qualquer investigação por não identificação de forma clara contra quem e em que termos possa ser dirigida uma pronúncia. Esta, a existir, seria nula.
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Quanto à possibilidade de mandar corrigir o requerimento:
Não será de perfilhar esta possibilidade, como também se entendeu no Ac. da RL de Lisboa, de 11-4-2202 (C. J., Ano 2002, Tomo II, pág. 147) e como defendeu o M.º Público, junto desta Relação, no Rec. n.º 2145/03, em parecer que aí emitiu.
Primeiro, pela natureza do prazo peremptório, como é o prazo para requerer a abertura de instrução. Permitir tal convite, é superar tal natureza. O prazo para requerer a abertura da instrução é um prazo peremptório que não pode nem deve ser alterado por decisão judicial ( Cfr. Ac. de fixação de jurisprudência n.º 2/96, de 6/12,95, DR.- I.S.-A de 10/1/96 e Ac. RC. de 99/6/9, BMJ. 488/419).
Depois, porque a lei não o prevê nem o permite em relação à acusação do M.º Público.
Finalmente e sobretudo, pela natureza da actividade do juiz de instrução, decorrente da natureza acusatória do processo. A sua imparcialidade perante as partes não se coaduna com tal convite. Lembramos o que acima se citou do acórdão do TC.
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Em resumo: não sendo de convidar a assistente a corrigir o seu requerimento e não contendo este, no mínimo, as exigências legais para fundamentar uma investigação, deve improceder o recurso.
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Nestes termos, julgando o recurso por não provido, se confirma o despacho recorrido.
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Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs.
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Coimbra: