Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
648/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. RUI BARREIROS
Descritores: USUCAPIÃO DE BENS DO DOMÍNIO PRIVADO DE AUTARQUI LOCAL
Data do Acordão: 12/16/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Legislação Nacional: ART.º 712 C.P.C, 1251 E SS DO C.C.
Sumário:
I - O prazo para a usucapião de bens pertencentes ao património privado de Autarquia Local, previsto na Lei nº 54, de 16 de Julho de 1913, é aplicável quer para a aquisição do direito de propriedade, quer para a aquisição de direito real menor, como uma servidão de passagem.
Decisão Texto Integral:
Acordam, na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, no recurso de apelação nº 648/03, ...:
I – Relatório.
1. Autora: RRS, solteira, maior, reformada, residente ... .
2. Réus: FDF e mulher, MAPMDF, residentes... .
3. Pedido: declaração de que a autora é proprietária de prédio identificado no artigo 1º da petição inicial e condenação dos réus a reconhecerem-lhe esse direito e que o prédio dos réus, identificado no artigo 16º da petição inicial, está onerado a favor do seu com uma servidão de pé e carro e a não impedirem o exercício do respectivo direito.
Causa de pedir: aquisição por parte da autora do prédio de que se afirma proprietária, o qual confronta com o dos réus, que muraram o seu prédio, com o que taparam o acesso da autora à via pública, do qual ela sempre dispôs e adquiriu por usucapião.
4.1. Os réus reconheceram a propriedade da autora sobre o referido prédio, mas negam a existência de uma servidão a favor dele sobre o deles. Afirmam que têm o direito de murar a sua propriedade e que a autora mantém o acesso a terrenos camarários que dão para a via pública, estando projectada uma nova via camarária com a qual o prédio da autora dará directamente, sem necessidade de o deles ficar onerado com uma servidão.
Pediram a intervenção do Município da ... .
4.2. Este contestou em termos idênticos ao dos anteriores réus e reconveio, acto que não foi admitido despacho de fls. 71..
4.3. O Município recorreu deste despacho, o qual foi recebido como de agravo, tendo, depois, ficado deserto.
5. Foi proferido despacho saneador e organizados os factos assentes e a base instrutória. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença a reconhecer a autora proprietária de uma casa de habitação e a condenar os réus a reconhecerem que o seu prédio está onerado a favor do da autora com uma servidão de pé e de carro e a não impedirem o respectivo direito da autora; por outro lado, a absolver os réus do pagamento de uma indemnização.
6. É desta sentença que os réus e o interveniente recorreram.
6.1. Concluem as suas alegações da seguinte forma:
A) Está provado nos autos que à data da venda da parcela E) esta integrava o Domínio Privado do Município ..., ora interveniente.
B) Esta venda ocorreu em 15/10/1997, sendo logo de seguida construído pelos réus um muro à volta de toda a parcela, que impedia o seu acesso.
C) Portanto, tendo sido construído um muro à volta de toda a parcela E) e apesar da resposta restritiva ao quesito 18.°, é óbvio que por esse terreno não circulavam quaisquer pessoas ou veículos.
...
J) Por outro lado, quando assim se não entender e decorrente da alegação constante da alínea A e B, deverá igualmente a Douta Sentença ser revogada, pois por força da Lei 54 de 16 de Julho de 1913, a usucapião sobre os bens ou direitos reais sobre imóveis do Estado e das Autarquias Locais, só opera, decorrido o prazo normal acrescido de metade, ou seja, 30 anos.
...
6.2. A autora defende ..., a prova directa do animus da posse e que o prazo a aplicar para o Estado quanto à usucapião é restrito à aquisição da propriedade, não se estendendo aos direitos reais menores.
7. Mantém-se a validade e regularidade formal da instância, nada obstando ao conhecimento de mérito.
II – Fundamentação.
8. Factos provados.
A) Na Conservatória do Registo Predial da ..., encontra-se descrito sob o nº ... e com inscrição de propriedade de 1977.06.14 a favor da A., o seguinte prédio urbano: - Casa de habitação composta de ...
...
C) Por escritura pública de ..., AJB, ..., declarou vender à ora A., pelo preço de ..., e esta declarou comprar, o prédio referido em B) - (al. C) dos factos assentes).
D) O logradouro do prédio referido em A) confronta, no seu topo Sul, não só com os RR., mas também com uma parcela de terreno que pertenceu ao património privado da interveniente (al. D) dos factos assentes).
E) Por escritura pública de 15 de Outubro de 1997, o interveniente Município ... declarou vender e o R. declarou comprar, pelo preço ..., uma parcela de terreno, sita ... .
F) Logo após o facto referido em E), os RR. construíram um muro à volta de toda a parcela (al. F) dos factos assentes).
G) A A. nasceu no dia 22 de Outubro de 1921 ... (al. G) dos factos assentes).
H) Já antes de 1978, o acesso pelo lado Sul/Poente do prédio da A. à rua que liga à Praceta ... e Rua ... era feito, quer a pé, quer de carro, pela parcela referida em E) (resposta ao art. 1° da base instrutória).
I) Atravessando em toda a sua largura, no topo Norte, a parcela referida em E) a qual, nesse espaço, tinha sido alcatroada junto à entrada do prédio da A. (art. 2° da base instrutória).
J) Já antes de 1978 a A. servia-se da parcela para entrar e sair do seu prédio para a via pública, tanto a pé como de carro (resposta ao art. 4° da base instrutória).
K) Inicialmente o leito do acesso era feito sobre terra batida e calcada, por força do trânsito que sobre ela se processava (art. 5° da base instrutória).
L) Encontrando-se os sulcos, por via disso, a um nível inferior das margens circundantes (art.° 6° da base instrutória).
M) Sendo tais sulcos despidos de qualquer vegetação (art. 7° da base instrutória).
N) Em data indeterminada da primeira metade da década de 80 a A. decidiu melhorar o leito do caminho, procedendo ao seu empedramento (resposta ao art. 8° da base instrutória).
O) O caminho tem o seu início no lado Nascente da casa da A., contornando-a para Norte, para depois flectir para Poente, até encontrar a parcela referida em E) e a atravessar (resposta ao art. 9° da base instrutória).
P) A fim de suavizar a entrada para carros a A. diminuiu a inclinação do acesso (resposta ao art.° 10° da base instrutória).
Q) Já antes da existência do empedrado e do alcatroado, o leito do caminho era visível dado o trânsito de pessoas e carros que nele se processava (art. 11º da base instrutória).
R) E na continuação do caminho referido em 9°), também na parcela referida em E), o leito daquele era de terra batida e calcada e hoje (1998.04.28) de alcatrão, até ser destruído pelos RR. (art. 12° da base instrutória).
S) Nele sempre inexistiu qualquer cultura ou vegetação espontânea (art. 13° da base instrutória).
T) Na parcela referida em E) a largura do caminho era idêntica à que existe no prédio da A. - 3,30 m (resposta ao art.° 14° da base instrutória).
U) A A., há mais de 20 anos, de forma a nele passar de pé e carro, sempre utilizou o caminho - quer na parte em que o mesmo se situa no seu prédio, quer na fracção referida em E) - à vista de toda a gente (resposta ao art. 15° da base instrutória).
V) E sem oposição de ninguém e convencidos de que exerciam um direito (art.° 16° da base instrutória).
W) Sendo essa utilização ininterrupta (art.° 17° da base instrutória).
X) Em face do referido em F), o caminho foi cortado, não podendo agora passar carros (resposta ao art.° 18° da base instrutória).
Y) O prédio da A. é constituído por quatro unidades habitacionais e outra autónoma nas traseiras (art.° 19° da base instrutória).
Z) Algumas dessas unidades são objecto de arrendamento na época balnear (art. 20° da base instrutória).
AA) A A. vive com uma irmã no prédio referido em A) (art.° 21° da base instrutória).
BB) Ambas são doentes e necessitam de um carro para se fazerem transportar (art. 22º da base instrutória).
CC) A A. e a irmã arrendaram uma garagem, pelo menos desde Março de 1998, ... (resposta ao art.° 24° da base instrutória).
DD) Pagando a esse título uma renda mensal de ... (art. 25° da base instrutória).
EE) Tendo de percorrer até à mesma cerca de 2 Km (art. 26° da base instrutória).
FF) Fazendo-o com sacrifício em virtude da doença de que padecem (art. 27º da base instrutória).
GG) A actuação dos RR. causaram na A. desgosto e revolta, abalando a sua saúde (art. 29° da base instrutória).
HH) Do lado da fracção referida em E), o prédio referido em A) confina com terrenos camarários que, por sua vez, confinam com a via pública (art. 30° da base instrutória).
II) Distando esta, por aqueles terrenos, cerca de 3/4 m do prédio da A. (art. 31° da base instrutória).
JJ) Por estes terrenos camarários está projectada uma rua que vai ligar à Rua D. Afonso IV, que se estenderá ao longo do prédio da A. (art. 32° da base instrutória).
KK) A licença de utilização foi emitida em Agosto de 1978 na sequência do fim das obras (resposta ao art. 38° da base instrutória).
LL) A A. só passou a pernoitar na casa após a emissão da licença de utilização (resposta ao art. 39° da base instrutória).
MM) Existe um acesso ao prédio da A. pela 2ª Tv. ... (resposta ao art. 41° da base instrutória).
NN) O acesso pela 2ª Tv. da Rua ... permite a passagem quer de carro, quer a pé (resposta ao art. 42° da base instrutória).
OO) E por aqui tendo a A. acesso à garagem (art. 44° da base instrutória).
PP) Depois da construção do muro, a A. nunca deixou de utilizar a rampa, o que faz a pé, bem como as pessoas que vivem no prédio desta (art. 45° da base instrutória).
QQ) A 2ª Tv. da Rua ... existe asfaltada (resposta ao art. 50º da base instrutória).
RR) Na época balnear a artéria referida em 50°) é dificilmente transitável dado o excesso de carros estacionados que, com frequência, impedem a passagem das outras viaturas (art. 51° da base instrutória).
9. O Direito.
...
9.3. A última questão colocada é a de não ter decorrido o prazo exigido para a usucapião de bens pertencentes ao património privado da Autarquia, pelo que a sentença, reconhecendo a aquisição do respectivo direito sem respeitar esse prazo, deve ser revogada (alínea I) das conclusões das alegações.
9.3.1. Os recorrentes afirmam que, sendo o prazo normal da usucapião de vinte anos, neste caso, a aquisição só se daria após o decurso do prazo de 30 anos: 20 + ½ de 20 = 30. Fundamentam a afirmação na vigência da Lei nº 54, de 16 de Julho de 1913: «as prescrições contra a Fazenda Nacional só se completam desde que, alêm dos prazos actualmente em vigor, tenha decorrido mais metade dos mesmos prazos» artigo 1º da Lei, cujo conteúdo é o seguinte: «Em nome da Nação, o Congresso da República decreta, e eu promulgo, a lei seguinte: Artigo 1º. … . § único. A disposição dêste artigo não abrange os bens que à data da promulgação desta lei estejam prescritos nos termos legais, nem as prescrições de dívidas ao Estado por contribuições. Artigo 2º. Continua em vigor o decreto de 1 de Setembro de 1899 e fica revogada a legislação em contrário».. Vigência esta que decorre do disposto no artigo 3º do Decreto-Lei nº 47.344, de 25 de Novembro de 1966 «desde que principie a vigorar o novo Código Civil, fica revogada toda a legislação civil relativa às matérias que esse diploma abrange, com ressalva da legislação especial a que se faça expressa referência»., e no artigo 1304º do Código Civil «o domínio das coisas pertencentes ao Estado ou a quaisquer outras pessoas colectivas públicas está igualmente sujeito às disposições deste código em tudo o que não for especialmente regulado e não contrarie a natureza própria daquele domínio». «por ter natureza administrativa» fls. 312, último §..
9.3.2. Sobre esta questão, não é posta em causa a vigência da referida Lei, nem pela recorrida nem pela doutrina Professores Manuel Rodrigues e Oliveira Ascensão, A Posse, Almedina, 1981, pág. 288, e Direito Civil - Reais, 4ª edição, Coimbra Editora, 1983, pág. 291, nota (2), respectivamente. nem pela jurisprudência «a Lei nº 54, de 16 de Julho de 1913, que criou um regime especial de prescrição (usucapião) relativamente aos bens do domínio privado do Estado, não está abrangida pela acção revogatória da lei de introdução ao Código Civil - Decreto-lei nº 47.344 (artigo 3º) - quer porque tem natureza administrativa e não civil, quer porque se encontra expressamente ressalvada pelo artigo 1304º do Código Civil» (ponto III do sumário do Acórdão do STJ, de 11 de Março de 1976, in BMJ 257º, 159). No mesmo sentido, os Acórdãos do STJ, de 6 de Dezembro de 1984, in BMJ 342º, 375, de 23 de Outubro de 1986, in BMJ 360º, 609; Acórdãos da Relação de Lisboa, de 8 de Fevereiro de 1978, in CJ III, 1, 94, 2ª col., e de 3 de Fevereiro de 1987, in CJ XII, 1, 115; da Relação de Évora, de 30 de Abril de 1998, in CJ XXIII, 2, 291, 1ª col... E, sendo assim, dos factos dados como provados não resulta que a recorrida tenha tido a posse da servidão sobre o terreno - que é hoje dos recorrentes mas que lhes foi vendido pelo Município da ... - por um período de, pelo menos, trinta anos: «já antes de 1978, o acesso … do prédio da A. à rua que … era feito, …, pela parcela referida em E). Já antes de 1978 a A. servia-se da parcela para entrar e sair do seu prédio. A A., há mais de 20 anos, …, sempre utilizou o caminho» factos provados sob as alíneas H) -resposta ao art. 1° da base instrutória-, J) -resposta ao art. 4° da base instrutória- e U) -resposta ao art. 15° da base instrutória-.. Nem por um período de, pelo menos, vinte e dois anos e seis meses, aquele que seria o exigido pela referida Lei caso a posse da recorrida se pudesse qualificar de de boa-fé, pelo que, independentemente de não ter sido ilidida a presunção prevista no artigo 1260º, nº 2 a posse não titulada presume-se de má-fé., não é necessário optarmos por um ou pelo outro prazo. Em qualquer das circunstâncias, à luz da referida Lei, tendo em conta que a recorrida não tem título registado artigo 1294. nem registo da mera posse artigo 1295º., esta não atingiu o prazo mínimo necessário para a aquisição por usucapião artigo 1296º..
Dois pequenos apontamentos sobre esta afirmação: a) a autora tem título para a propriedade que comprou, mas não está em questão que o caminho fosse objecto mediato do respectivo negócio jurídico; b) se se aceita que a posse da recorrida tenha mais de vinte anos, com um marco especialmente colocado numa data indeterminada anterior a 1978, já não se pode concluir que ela tenha durado pelo menos vinte e dois anos e seis meses, prazo este que não pode ser deduzido da expressão há mais de vinte anos.
9.3.3. Mas a recorrida alega, por sua vez, que o referido prazo especial só é aplicável à aquisição da propriedade, já não à de outro direito real. E fundamenta a afirmação na inserção sistemática do referido artigo 1304º: no Título I, do Livro III, do Código Civil; ora, os outros direitos reais limitados encontram-se regulamentados dentro do Livro III, mas em títulos diferentes, a seguir àquele Título; concretamente, as servidões prediais, figura invocada pela recorrida, têm a sua sede no Título VI.
Em abono da tese da recorrida, poder-se-ia ainda dizer que o legislador, consciente da autonomização dos direitos reais menores da propriedade, operada pelo novo Código, teve o cuidado de estender àqueles alguma disciplina desta; na verdade, o artigo 1315º manda aplicar «à defesa de todo o direito real» os meios de defesa da propriedade «as disposições precedentes são aplicáveis, com as necessárias correcções à defesa de todo o direito real»; cf. Professores Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 1972, vol. II, pág. 105, anotação ao artigo 1315º..
E também se poderia pensar que um regime que foge à regra geral só se justifica relativamente à perda pelo Estado da propriedade de um bem, mas já não a meras limitações a essa propriedade, que, embora lhe diminuam o valor, não prejudicam a sua raiz. Tanto mais que o princípio da elasticidade possibilita a recuperação da plenitude do direito; recuperação esta que é mais fácil para o Estado, já que pode usar de poderes que os particulares não têm. Em conclusão: um regime especial teria de ter um âmbito restringido ao essencial para os interesses especiais do Estado.
9.3.4. Pensamos que esta argumentação não é suficiente para obstar à aplicação de um prazo especial para toda e qualquer aquisição de bens do Estado, por usucapião; falaremos do Estado em sentido amplo, ficando abrangidas as Autarquias Locais.
A natureza especial da pessoa Estado, o interesse supra-individual que ele prossegue, a referência ampla que a Lei de 1913 faz às «prescrições contra a Fazenda Nacional», obrigam a desvalorizar o argumento sistemático e a ligar o regime especial a toda e qualquer aquisição de direito por particular sobre um bem do Estado, através da usucapião o já citado Acórdão da Relação de Lisboa, de 3 de Fevereiro de 1987, aplicou o prazo da Lei de 1913 numa situação em que se pretendia adquirir o direito de superfície por usucapião (CJ XII, 1, 115). Contudo, a questão, tal como foi posta pela recorrida, não foi aí discutida..
9.3.4.1. Entende-se que a referida Lei se mantém em vigor, apesar da entrada em vigor do Código de 1967, porque este teve a intencional preocupação de não tratar de matéria relativa aos bens do Estado. O Senhor Professor Marcelo Caetano defende a vigência da Lei com o fundamento em que a respectiva matéria, de natureza administrativa, não podia ser afastada pela lei civil « … uma lei derrogatória do disposto no direito privado, que coloca o Estado numa situação privilegiada em relação aos particulares por razões de interesse público, é uma lei administrativa» (Manual de Direito Administrativo, II volume, parágrafo nº 367).. Outros Autores defendem a mesma posição sem recurso a este argumento, mas por aplicação do artigo 1304º, que tem a preocupação expressa de salvaguardar o que em leis avulsas se estipular para os bens do Estado: «em tudo o que não for especialmente regulado» no Código Civil, o que é precisamente o caso da aquisição por prescrição aquisitiva, designação que o Código de 1867 dava à usucapião.
E a Lei não faz distinções entre os direitos que podem ser adquiridos por usucapião, pois, refere-se às prescrições, no plural, contra a Fazenda Nacional.
9.3.4.2. Por outro lado, a usucapião (prescrição aquisitiva), dentro dos direitos reais, é um instituto transversal, pois, através dela, tanto se pode adquirir a propriedade como outros direitos reais de gozo. Ora, não deve o intérprete distinguir o que não está distinguido na lei.
9.3.4.3. O artigo 1304º, que mantém a disciplina especial em vigor, insere-se na parte da propriedade, é certo. Mas, esta também é a matriz dos direitos reais cf. Professor Oliveira Ascensão, obra citada, página 382: «emanação deste sentido é a tendência para referir à propriedade todos os princípios gerais dos direitos reais»; esta afirmação vem a propósito da ambiguidade da palavra propriedade: «a palavra propriedade foi e é usada pelo legislador em cinco acepções diversas, pelo menos: …». Na página anterior, o Autor afirma: «mesmo a relacionação da propriedade com cada direito menor é mais produtivamente estudada a propósito de cada um destes»., pelo que, tendo de inserir-se a salvaguarda desta Lei -como de outras-, no actual Código Civil, o melhor local parece ser do que trata da propriedade, porque ela trata da propriedade dos bens do Estado: «o domínio das coisas pertencentes ao Estado …» artigo 1304.. O que está em causa é mesmo a propriedade, na sua forma plena ou limitada. Sem prejuízo da boa opção do legislador em autonomizar os outros direitos reais, do ponto de vista funcional e económico, quando se fala destes está-se a falar da propriedade, com menor ou maior extensão por força da existência ou não destes.
O Livro III do Código Civil não tem uma parte introdutória de carácter geral, o que não significa que não haja matérias comuns à propriedade e aos outros direitos reais. Se essa parte existisse, lá estariam os meios de defesa dos direitos reais e, na nossa perspectiva, a norma do artigo 1304º.
9.3.4.4. E se a norma está inserida no direito de propriedade, em disposições gerais, ela remete para uma Lei que se refere à usucapião e não à propriedade nem à aquisição desta.
9.3.4.5. A necessidade de extensão dos meios de defesa da propriedade aos outros direitos reais artigo 1315º., nasce da autonomização destes e da harmonização da lei civil, sendo comuns os meios de defesa dos vários direitos reais, mas cada um deles com a sua regulamentação no título respectivo; às vezes diminuindo ou prejudicando a disciplina prevista para os meios de defesa da propriedade, como o caso da imprescritibilidade da acção de reivindicação Professores Pires de Lima e Antunes Varela, obra, volume e local citados..
Mas, o caso da remissão para a Lei é diferente: a introdução na lei civil de uma norma relativa aos bens do Estado, para os proteger da aquisição através das prescrições.
9.3.4.6. Relativamente à salvaguarda do que é essencial - a raiz da propriedade -, deixando-se de fora as meras limitações a esse direito, além de ser uma distinção que a lei não faz, também a protecção acabaria por ser fraca, visto que o valor da propriedade diminui com a existência de outros direitos sobre a mesma coisa. A diferença material que permite criar uma disciplina legal especial diz tanto respeito à propriedade como a uma servidão de passagem e, de certa forma, pode até justificar-se mais quanto a esta, pela menor extensão dos actos materiais caracterizadores do corpus.
9.3.4.7. O dizer-se que o Estado, através do seu jus imperii e de uma larga aplicação de poderes discricionários, tem mais facilidade em pôr fim a limitações à propriedade dos seus bens, não passa de uma mera possibilidade, pois, num determinado caso concreto, tal pode não ser possível.
9.3.4.8. O Estado, enquanto pessoa colectiva e, dentro destas, com uma fisionomia ainda especial, tem mais dificuldade em defender a sua propriedade do que uma pessoa singular e, mesmo, do que outra pessoa colectiva, pois nenhuma tem a extensão e complexidade organizativa daquela. Esta afirmação não tem a ver com aquela que se costuma fazer no campo da política - falta de vocação do Estado para ser dono e gestor -, mas sim com o carácter de uma pessoa colectiva pública e a sua ligação com as coisas que lhe pertencem, ou seja, é uma afirmação do campo sócio-psicológico.
O proprietário ou os proprietários e, mesmo, os sócios, os cooperantes, etc., têm uma ligação às coisas do seu património de grande proximidade; o mesmo não acontece com o Estado. O círculo de pessoas que tem uma função fiscalizadora, ou a assume, é restrito; com o Estado, neste aspecto, há uma “diluição de observadores”; à parte situações em que haja funcionários com funções específicas para esse fim, cada “olheiro” potencial não tem o domínio, ou tem-no deficientemente, da relação dominial, ignorando se o transeunte tem autorização de um seu superior e a natureza e extensão dos actos daquele. A utilização de bens privados ganha nítida visibilidade e é facilmente perceptível; com os bens do Estado, muitas vezes ao serviço das pessoas em geral, directa ou indirectamente, a equivocidade das situações pode ser flagrante.
Se articularmos estes vários aspectos entre si, eles potenciam-se.
Daqui, resulta a necessidade de um regime especial a favor do Estado.
Só assim não seria se circunstâncias específicas tornassem exigível ao Estado uma atenção especial sobre um bem que considerasse seu, por exemplo, tornando-se conhecida a pretensão de outrem sobre um determinado bem ou de dúvidas sobre a sua propriedade ou sobre a sua litigiosidade.
9.3.4.9. A aquisição de bens de uma pessoa por outra, através da usucapião, é uma questão entre particulares, com uma incidência económica individualizada, mas sem repercussões na economia de uma região ou de um País; o mesmo, com bens do Estado ou de Autarquias Locais, lesa sempre um interesse colectivo em favor de um indivíduo.
Também este aspecto justifica a especialidade.
9.3.4.10. Especialidade de regime que tem a sua razão de ser quer para a defesa da propriedade, quer da sua integridade, pelo que seria artificial e incompleto proteger o Estado quando alguém adquirisse um bem seu e já o não o fazer quando alguém constituísse uma servidão sobre um bem seu, desvalorizando-o, eventualmente com significado relevante, restringindo as suas utilidades, com prejuízo, colectivo, impedindo transacções, etc..
9.3.4.11. Por estas razões, não colocamos a hipótese de inconstitucionalidade do regime legal por ofensa do princípio da igualdade. Este não obriga que determinado regime seja igual para toda a gente, que todos sejam tratados por forma análoga, em quaisquer circunstâncias, mas antes em dar-se tratamento semelhante aos que se acham em condições semelhantes cf. o Acórdão da Relação de Coimbra, de 5 de Maio de 1992, in CJ XVII, 3, 97, 2ª col..; ora, o Estado, na relação com os seus bens tem uma situação mais difícil do que cada um dos proprietários em geral cf. Professor Manuel Rodrigues, obra e local citados..
A questão já poderia ser vista de forma diferente se a justificação assentasse numa posição de natureza político-ideológica, já atrás referida, que atribui ao Estado falta de vocação para ser proprietário.
9.4. Assim, temos de dar razão aos recorrentes, uma vez que a utilização do caminho em terreno pertencente aos recorrentes não completou o prazo de vinte e dois anos e seis meses que, no mínimo, era exigível para aquisição por usucapião - prescrição - do direito de passar por uma faixa de terreno dos recorrentes, comprado ao Município da ..., e a que aqueles se opuseram na sequência da compra que fizeram, ou seja, tendo os actos de apossamento ocorrido enquanto a propriedade pertencia a um ente público.
III – Decisão.
Nestes termos, julgam procedente a apelação e, consequentemente, improcedente o pedido da recorrida, dele absolvendo os recorrentes.
Custas na primeira instância e neste tribunal pela recorrida.
16 de Dezembro de 2003.