Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2415/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACTOS DE GESTÃO PÚBLICA
Data do Acordão: 09/30/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DO BAIRRO
Texto Integral: S
Meio Processual: REC. AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Legislação Nacional: ART. 64.º , N.º 2 AL. F) DA LEI N.º 169/99
Sumário:
I- A responsabilidade civil extracontratual, emergente de acidente de viação, originada pela conduta omissiva de uma câmara municipal - conduta que se insere nas atribuições dessa mesma câmara, como órgão executivo do respectivo município, previstas no art. 64°, n° 2, al. f), da Lei n° 169/99 - resulta da prática de um acto de gestão pública.
II- Por isso, são competentes para o conhecimento da questão suscitada pelo autor os tribunais administrativos, sendo absolutamente incompetente para o julgamento da causa, em razão da matéria, o tribunal comum onde a acção foi intentada.
III- Tal competência estende-se à seguradora da empresa executora da obra, uma vez que a responsabilidade desta, em princípio, está limitada pela responsabilidade da câmara municipal, que ordenou a sua execução.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
Bruno ... propôs, em 11/09/2002, no tribunal da comarca de Oliveira do Bairro, acção ordinária, emergente de acidente de viação, contra Câmara Municipal de Oliveira do Bairro e A.., Companhia de Seguros, S.A., com os seguintes fundamentos, em síntese:
Com vista à construção da “Rede de Drenagem de Águas residuais do Extremo Norte e do Extremo Sul da E.N. 335 e Construção da Adutora da Zona Industrial de Palhaça”, designadamente montagem e desmontagem de estaleiro, instalação de rede de drenagem de águas residuais, construção de adutora/distribuidora e reposição de pavimentos rodoviários, a ré Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, após efectuar o estudo de tais obras e instruir os competentes processos administrativos, adjudicou-as à empresa Henriques, Fernandes & Neto, Ldª, que, por sua vez, havia transferido a responsabilidade civil decorrente de acidentes em obras ou por causa de obras por si realizadas para a 2ª ré através da apólice nº 988.082.
No exercício daquela actividade e com o referido fim, a empresa Henriques, Fernandes & Neto, Ldª, sob as instruções e fiscalização da 1ª ré, procedeu, ao km 19 da E.N. 335, à abertura de uma vala com 0,50 m de largura e cerca de 40 cm de profundidade, sensivelmente ao centro daquela estrada e colocou, a anteceder a vala, um monte de areia, de cerca de 2 m de altura, que não sinalizou por qualquer forma, nem colocou nenhum resguardo à volta quer do monte de areia quer da vala.
No dai 12/12/2001, pelas 18h40m, quando o autor circulava pela referida E.N. 335, ao km 19, na freguesia da Mamarrosa, concelho de Oliveira do Bairro, conduzindo o seu veículo ligeiro de passageiros de matrícula 14-45-FO, a velocidade moderada, não superior a 40 km/h, com as luzes acesas nos médios, ao concluir a ultrapassagem de um veículo que seguia à sua frente e se aprestava para guinar o veículo para a sua direita, deparou-se-lhe, subitamente, à sua frente, a menos de 2 metros, o aludido monte de areia, que estava no meio da hemifaixa de rodagem esquerda, atento o sentido em que o autor circulava, tendo embatido frontalmente com o seu veículo no dito monte de areia.
Em consequência do embate, o autor perdeu o controle do 14-45-FO, tendo este capotado, sofrendo o autor danos patrimoniais e não patrimoniais, pelos quais são responsáveis a ré Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, que mantinha fiscalização regular ao andamento das obras, e a empresa Henriques, Fernandes & Neto, Ldª, que ali trazia diariamente homens, veículos e máquinas a trabalhar, e que não curaram de tomar as medidas necessárias para avisar dos perigos emergentes de tais obras que vinham levando a efeito, sendo que pela responsabilidade da firma Henriques, Fernandes & Neto, Ldª, responde a ré seguradora AXA, S.A.
Termina, pedindo que, na procedência da acção,.seja as rés solidariamente condenadas a pagarem-lhe: a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, a quantia de 142.176,77 €; nos termos do artº 565º do C.Civil, a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, em função da incapacidade parcial permanente que lhe for fixada, tratamentos, deslocações e consequências definitivas; e os juros à taxa legal desde a citação.
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O Município de Oliveira do Bairro contestou, por excepção, invocando a incompetência material do tribunal, em virtude de a omissão dos deveres que, segundo o autor, impendem sobre o réu, incumbirem a este no exercício da actividade de gestão pública, tendo a sua responsabilização de ser apurada no Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra.
Por impugnação defendeu a improcedência da acção, em virtude de o acidente se ter ficado a dever à imprevidência do autor que circulava em via interdita ao trânsito automóvel.
Requereu a intervenção acessória da firma Henriques, Fernandes & Neto, Ldª, a quem foi adjudicada obra, e contra a qual o réu tem acção de regresso caso a versão do autor obtenha vencimento.
A ré AXA também contestou, pugnando pela improcedência da acção, por o acidente se ter ficado a dever a culpa exclusiva do autor.
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O autor replicou, pronunciando-se pela improcedência da excepção da incompetência material do Tribunal, em virtude de não resultar a p.i. que os factos que constituem a causa de pedir tivessem sido efectuados no âmbito de qualquer actividade de gestão pública camarária.
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No despacho saneador foi a excepção julgada procedente e absolvidas as rés da instância, por se entender que cabe aos tribunais administrativos a competência em razão da matéria para apreciar a questão suscitada através da presente acção, nos termos do artº 51º, nº 1, al. h), do DL 129/84, de 27 de Abril.
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Inconformado interpôs o autor recurso de agravo, rematando a alegação com as seguintes conclusões:
1ª- Segundo Antunes Varela in Das Obrigações em Geral, vol. I, 7ª ed., pág. 643 e 644 que “os actos de gestão privada são, de um modo geral, aqueles que, embora praticados pelos órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares. São actos em que o Estado ou a pessoa colectiva pública intervém como um simples particular, despido do seu poder de soberania ou do seu ius auctorictatis”.
2ª- Ensina-nos Marcelo Caetano in Manual de Direito Administrativo, Vol. II, 9ª ed., pág. 1198 que “pode dizer-se que reveste a natureza de gestão pública toda a actividade da administração que seja regulada por uma lei que confira poderes de autoridade para o prosseguimento do interesse público, discipline o seu exercício ou organize os meios necessários para esse efeito”.
3ª- Da petição inicial tal como o A. a apresenta, não resulta que os factos que constituem a causa de pedir, representada por actos da Câmara Municipal, tivessem sido efectuados no âmbito de qualquer actividade de gestão pública camarária; Pelo contrário, tudo aponta para que se trate de actos da mesma, enquanto pessoa colectiva de direito público, surge despida de qualquer poder público, numa situação de completa paridade e, portanto, sujeita às regras do direito privado.
4ª- Pelo que deveria ter improcedido, a suscitada excepção de incompetência material do Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro, até porque para determinar o Tribunal competente, em razão da matéria há que analisar a petição inicial, quer nos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela jurídica) quer nos seus elementos subjectivos (identificação das partes) – Cfr. Ac. deste Tribunal, no âmbito do processo 252/2000, cuja decisão foi proferida em 03 de Outubro do mesmo ano.
5ª- Admitido que seja o chamamento de Henriques, Fernandes & Neto, Ldª, teremos a par da ré “Câmara Municipal”, mais duas rés, que, não são, definitivamente, entidades públicas nem entidades privadas a praticar actos de gestão pública, de onde que mesmo que se considere que o Tribunal de 1ª Instância tenha agido bem em relação ao Município de Oliveira do Bairro, temos que nunca poderia ter absolvido os demais réus da Instância, por, pelo menos quanto a eles, ser ele próprio o Tribunal competente.
6ª- Ao decidir nos termos constantes do douto despacho em recurso o Tribunal “A quo” violou o disposto no artº 66º do Cód. Proc. Civil e artº 51º, al. h) do ETAF, dos quais fez uma errada interpretação e aplicação.
Nestes termos, deve esse Venerando Tribunal, revogar o despacho em recurso e proferir outra decisão em sua substituição que:
-considere o Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro totalmente competente em razão da matéria para apreciar o caso dos autos, ou - considere o Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro competente para apreciar o caso dos autos em relação às rés AXA Portugal, Companhia de Seguros, S.A., e Henriques, Fernandes & Neto, Ldª, sempre ordenando o prosseguimento dos autos quanto a elas.
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Apenas o Município de Oliveira do Bairro contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
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O Sr. Juiz a quo sustentou, tabularmente, o despacho recorrido.
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Corridos os legais vistos, cumpre apreciar e decidir.
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Como é sabido, é com base no pedido formulado pelo autor, ou seja, é a partir da providência jurisdicional por ele requerida para a satisfação do seu alegado direito, que se afere a propriedade da forma do processo por si utilizada, sendo, pois, através daquilo que o autor alega e pede que se aferirá a correspondência da forma do processo por si utilizado com os critérios legais, ou seja, com os critérios abstractamente definidos na lei (cfr., entre outros, Acs. do S.T.J. de 12/01/1994, CJ, T1-38, e de 09/05/1995, CJ, T2-68, da R.C. de 17/06/1997, CJ, T3-220, e da R.L. de 01/07/1993, CJ, T3-44).
Sobre a forma de processo, determina o artº 460º do Código de Processo Civil que o mesmo pode ser comum ou especial, aplicando-se este aos casos expressamente designados na lei e aquele a todos os casos a que não corresponda processo especial.
Estipula, a propósito, o artº 211º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, estabelecendo, por sua vez, o artº 212º, nº 3, que compete aos tribunais administrativos o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
Preceitua, por sua vez, o artº 51º, al. h), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro – aqui aplicável, visto que o novo ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, só entra em vigor em 01/01/2004 – que compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer das acções da responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública.
E o artº 3º do mesmo diploma dispõe que “incumbe aos tribunais administrativos e fiscais na administração da justiça. assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Como observam os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 38ª ed., pág. 815), as relações jurídicas administrativas caracterizam-se por um duplo requisito:
“As acções e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de poder público; as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo.
Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza privada ou jurídico-civil.
Em termos positivos, um litígio emergente das relações jurídico-administrativas será uma controvérsia sobre relações disciplinadas pelo direito administrativo”.
Tem sido entendimento da doutrina e da jurisprudência que a distinção entre a jurisdição comum e a jurisdição administrativa está na diferença entre actos de gestão pública e actos de gestão privada.
Entende-se por actos de gestão pública os que se compreendem no exercício de um poder público, integrando a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não, eles mesmos, o exercício de meios de coerção e, independentemente ainda, das regras técnicas ou de outra natureza que, na prática dos actos, devam ser observadas.
E por actos de gestão privada aqueles que envolvem uma actividade em que a pessoa colectiva, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a quem os actos respeitam e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas de direito privado – cfr. Acs. do Tribunal de Conflitos de 05/11/1981, BMJ 311-202, e de 20/10/1983, BMJ 331-587.
Para o Prof. Vaz Serra (RLJ ano 110º, pág. 315), os actos de gestão pública serão os praticados no exercício de uma função pública para os fins de direito público da pessoa colectiva, isto é, os regidos pelo direito público e, consequentemente, por normas que atribuem à pessoa colectiva pública poderes de autoridade (ius imperii) para tal fim.
Segundo o Prof. Marcelo Caetano (Manual de Direito Administrativo, Vol. II, pág. 1222), deve entender-se por gestão pública a actividade da Administração regulada pelo Direito Público e por gestão privada a actividade da Administração que decorra sob a égide do Direito Privado, podendo dizer-se que reveste a natureza de gestão pública toda a actividade da Administração que seja regulada por uma lei que confira poderes de autoridade para prosseguimento do interesse público, discipline o seu exercício ou organize os meios necessários para esse efeito.
O Prof. Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Vol. I, 1991, pág. 643) considera actos de gestão pública aqueles que, visando a satisfação de interesses colectivos, realizam fins específicos do Estado ou outro ente público e assentam sobre o jus auctoritatis da entidade que os pratica, enquanto que de gestão privada serão os actos que, embora praticados pelos órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares.
Ora, e além do mais, compete à câmara municipal, como órgão executivo do município, criar, construir e gerir instalações, equipamentos, serviços, redes de circulação, de transportes, de energia, de distribuição de bens e recursos físicos integrados no património municipal ou colocados por lei sob administração municipal – cfr., designadamente, artº 64º, nº 2, al. f), da lei nº 169/99, de 18 de Setembro.
Assim, a abertura da vala ao Km 19 da E.N. nº 335 e colocação do monte de areia de cerca de 2 m de altura, a anteceder tal vala – que a empresa executante não sinalizou por qualquer forma, nem colocou nenhum resguardo à volta -, que, segundo o autor, terá originado o acidente de que foi vítima, do qual terão resultado os danos cujo ressarcimento pretende obter, embora executada pela empresa Henriques, Fernandes & Neto, Ldª, integrar-se-á, como vimos, no âmbito das competências administrativas que estão atribuídas às câmaras municipais, revestindo tal actuação, de acordo com o atrás exposto, a natureza de gestão pública.
A responsabilidade civil extracontratual em apreço é originada pela alegada conduta omissiva da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, conduta essa que se insere nas atribuições dessa mesma Câmara, como órgão executivo do respectivo Município, previstas no aludido artº 64º, nº 2, al. f), da Lei nº 169/99, constituindo, assim, actos de gestão pública.
Por isso, são competentes para o conhecimento da questão suscitada pelo autor os tribunais administrativos de círculo, sendo absolutamente incompetente para o julgamento da causa, em razão da matéria, o Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro.
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Mas há que ver que a acção foi também intentada contra Axa Portugal, Companhia de Seguros, S.A., enquanto seguradora da empresa executora da obra Henriques, Fernandes & Neto, Ldª
A responsabilidade desta empresa, como mera executora da obra (mediante contrato de empreitada, segundo supomos, já que o autor o não refere), em princípio, está limitada pela responsabilidade da Câmara Municipal, que ordenou a sua execução – como, aliás, é referido pelo próprio autor na petição inicial, ao dizer que tal empresa procedeu à abertura da vala e à colocação do monte de areia sob as instruções e fiscalização da 1ª ré -, estando, por isso, também, sujeita à competência dos tribunais administrativos.
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No que diz respeito ao pedido do recorrente de que seja também ordenado o prosseguimento dos autos quanto à empresa Henriques, Fernandes & Neto, Ldª,, não pode tal pretensão deixar de improceder, visto que, tendo sido requerida a sua intervenção acessória pelo Município de Oliveira do Bairro, o certo é que não foi proferida decisão sobre o requerido, nem houve reclamação de tal omissão, estando, assim, vedado a este Tribunal pronunciar-se sobre essa questão no presente recurso.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar provimento ao recurso, mantendo o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente.