Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4080/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: EXECUÇÃO DE COIMA - TAXA DE JUSTIÇA INICIAL
ISENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Data do Acordão: 01/12/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALBERGARIA-A-VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 89º, N.ºS 2 E 3, DO DL 433/82 E 23º, N.º 2, DO C. C. JUDICIAIS
Sumário: O Ministério Público está isento do pagamento de taxa de justiça inicial ao promover execução de coima aplicada por qualquer autoridade administrativa, posto que age (litiga) em nome próprio, na defesa e prossecução de um interesse público que lhe está confiado por lei.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.
No Tribunal Judicial de Albergaria-a-Velha, promoveu o Ministério Público, nos termos do artigo 89º, n.º 2, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (DL 433/82, de 27 de Outubro), execução de coima, contra A..., com os sinais dos autos, sanção aplicada por decisão do Delegado de Viação de Aveiro, no montante de € 180, por violação do artigo 82º, n.º1, do Código da Estrada.
O requerimento inicial foi objecto de recusa nos termos do artigo 474º, alínea f), do Código de Processo Civil, com o fundamento de que o procedimento executivo está sujeito ao pagamento de taxa de justiça inicial, face ao preceituado nos artigos 2º, n.º 1, alínea a) e 23º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais, tendo em vista o facto de o Ministério Público não agir em nome próprio, mas em representação do Estado – Direcção Geral de Viação.
Do acto de recusa reclamou o Ministério o Público, reclamação que foi julgada improcedente.
Desta decisão interpôs recurso o Ministério Público, sendo do seguinte teor a parte conclusiva da respectiva motivação:
1. Quando promove, por força da lei, a execução das decisões das autoridades administrativas que sancionam a violação do direito de mera ordenação social, o Ministério Público actua em defesa da legalidade democrática e em representação do Estado-Colectividade;
2. Consequentemente, actua em nome próprio, encontrando-se, por isso, isento de custas, nos termos do artigo 2º, n.º1, alínea a), do Código das Custas Judiciais;
3. Assim, ao interpretar a norma em causa no sentido de que o Ministério Público actua em representação do Estado enquanto pessoa jurídica, a decisão recorrida violou-a.
Com tais fundamentos, no provimento do recurso, pretende o recorrente seja revogado o despacho recorrido e substituído por outro que receba o requerimento executivo.
O recurso foi admitido.
Igual posição assumiu o Exm.º Procurador-Geral Adjunto no circunstanciado, fundamentado e douto parecer que emitiu.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
***
Única questão submetida à nossa apreciação e julgamento é a de saber se em execução para o pagamento de coima, resultante de condenação proferida pela autoridade administrativa, o Ministério Público está ou não isento do pagamento de custas, concretamente do pagamento da taxa de justiça inicial.
Decidindo, dir-se-á.
Estabelece o artigo 2º, n.º1, alínea a), do Código das Custas Judiciais (redacção dada pelo DL 324/03, de 27 de Dezembro), que:
«1. Sem prejuízo do disposto em lei especial, são unicamente isentos de custas:
a) O Ministério Público, nas acções, procedimentos e recursos em que age em nome próprio, na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei;».
O texto deste preceito corresponde, com alteração meramente esclarecedora, ao que consignava a alínea b), do n.º1 da primitiva versão do Código.
Aqui se estabelece um dos casos de isenção subjectiva de custas, contemplando-se o Ministério Público nas acções, procedimentos e recursos em que age em nome próprio, na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei, isenção motivada pelo excepcional relevo das funções do Ministério Público nos tribunais, como resulta, além do mais, do estatuído no artigo 219º, n.º1, da Constituição da República e 1º, n.º1, alíneas e), g), l) e o), 5º, n.º1, alíneas e) e f) e 6º, n.º1, do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro.
Como refere Salvador da Costa ( - Código das Custas Judiciais Anotado e Comentado (7ª edição-2004), 74.), esta isenção não se reporta, obviamente, à actividade que o Ministério Público desenvolve no âmbito da representação do Estado, ou de outras pessoas colectivas de direito público ou de particulares a quem o Estado-Colectividade deva protecção, mas às acções ou procedimentos para os quais dispõe de legitimidade própria, como é ou caso, entre outras, das acções oficiosas de investigação de maternidade ou de paternidade, de interdição, de anulação de contratos de sociedades ou de cooperativas e de casamentos.
Na óptica da Mm.ª Juíza a quo, sendo a aplicação do Direito de mera ordenação social, por excelência, da competência das autoridades administrativas, cabendo a estas fiscalizar, processar e aplicar a sanção (coima), intervindo as autoridades judiciais, somente, no caso de não conformação do particular com a decisão da entidade administrativa, o papel do Ministério Público nas execuções por coimas cinge-se, por isso, ao de representante da entidade estadual que aplicou a coima, pelo que não age em nome próprio, mas em nome de um órgão da Administração, ou seja, em nome do Estado-Admnistração.
Primeira observação a fazer é a de que a aplicação do Direito de mera ordenação social nem sempre compete às autoridades administrativas. Tenha-se em vista os casos em que ocorre concurso de crime e de contra-ordenação, ou quando, pelo mesmo facto, alguém deva responder a título de crime e outra a título de contra-ordenação, situações em que a lei impõe o processamento da contra-ordenação seja feito pelas autoridades competentes para o processo criminal – artigo 38º, n.º1, do RGCC –, sendo ao juiz competente para o julgamento do crime que cabe aplicar a coima e, sendo caso disso, a sanção acessória – artigo 39º, do RGCC.
Segunda observação a fazer é a de que nos casos em que há recurso de impugnação judicial, certo é que a decisão final é proferida pelo tribunal, podendo sê-lo até pelo Tribunal da Relação.
Terceira observação a fazer é a de que a autoridade administrativa enquanto entidade competente e responsável pelo processamento das contra-ordenações e a cominação das coimas e sanções acessórias, apresenta-se como entidade representativa do Estado-Colectividade.
Paralelamente, há que ter presente que o Direito de mera ordenação social visa proteger, tal como o Direito penal, bens ou interesses jurídicos, obviamente de natureza não totalmente coincidente, posto que ao Direito penal cumpre a tutela de valores eticamente fundamentáveis, cabendo ao Direito de mera ordenação social a tutela de interesses sociais que se situam em patamar inferior ao mínimo ético essencial à vida em sociedade de que falava JellineK ( - Vide Eduardo Correia, “Direito penal e direito de mera ordenação social”, Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, I, 3/18.), para além de que a coima traduz uma censura da “comunidade organizada”, censura de natureza social, cuja imputação se dirige à responsabilidade social do autor da contra-ordenação por não haver respeitado o dever que decorre das imposições legais, justificando-se a partir da necessidade de conservação e reforço da norma violada ( - Cf. o trabalho do relator em parceria com Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (2ª edição – 2004), 61.).
E, assim sendo, o seu cumprimento (pagamento) é um imperativo, tal como sucede com as sanções criminais, pelo que o procedimento tendente à sua execução (coerciva) constitui uma competência e uma obrigação (próprias) do Ministério Público enquanto entidade a quem cabe, além do mais, a defesa da legalidade democrática – artigo 219º, n.º1, da Constituição da República –, como decorre do artigo 89º, n.º 2, do RGCC, que estatui:
«A execução é promovida pelo representante do Ministério Público junto do tribunal competente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Penal sobre a execução da multa».
Nesta conformidade, dúvidas não restam de que o Ministério Público ao promover, nos termos do transcrito preceito, a execução de uma coima aplicada por qualquer autoridade administrativa ou tribunal, age em nome próprio, na defesa e prossecução de um interesse público, que lhe está confiado por lei, razão pela qual está isento de custas e, por isso, do pagamento de taxa de justiça inicial.
***
Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, que será substituído por outro que receba o requerimento executivo.
Sem tributação.
***