Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4090/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. SERRA BAPTISTA
Descritores: PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
Data do Acordão: 03/09/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FERREIRA DO ZÊZERE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ART. 1451º E SS DO CPC
Sumário:

1. A herança jacente tem personalidade judiciária e como tal pode propor acções em juízo e nele ser demandada.
2. Tendo, porém, que estar devidamente representada, em princípio, pelos seus administradores.
3. E, mesmo que se entenda que a sua representação por um curador é também normal, podendo ter lugar, não apenas para evitar a perda ou a deterioração dos bens da herança, mas também, v.g., no interesse dos seus credores, para permitir o exercício dos seus direitos, sempre tal nomeação terá que ser prévia à acção a intentar, decalcada que é da curadoria provisória dos bens do ausente, devendo, assim, ser requerida nos termos dos arts 1451º e ss do CPC.
4. Não se podendo, contudo, exigir que o A. intente - ou que aguarde que alguém o faça - processo próprio mediante o qual se reconheça (ou não) a existência de outros herdeiros e, neste caso, que se declare vaga a herança a favor do Estado.
5. Não se devendo, para este efeito, na acção em que o A. pretende a condenação da herança jacente, suspender a instância até que esteja determinado o seu respectivo titular.
Decisão Texto Integral:
Agravo nº 4090/03

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


AA, advogado, veio intentar acção com processo sumário contra HERANÇA JACENTE DE BB, para cuja representação requer a nomeação de um curador especial, pedindo a sua condenação na quantia de 4.200 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação.
Alega, para tanto, e em suma:
No exercício da sua actividade profissional de advogado,
foi mandatado por BB, então viúvo, para obter e cobrar determinado crédito, que melhor especifica, com intervenção em diversos processos, incidentes e recursos, sendo-lhe devidos honorários que também melhor quantifica na sua petição.
O BB faleceu, sem ascendentes nem ascendentes conhecidos, não tendo até ao momento ninguém praticado qualquer acto de aceitação da herança, sendo certo também ninguém se ter voluntariamente apresentado a declarar o óbito e a apresentar a relação de bens para efeitos de instauração do imposto sucessório.
O senhor Juiz do processo, por seu despacho de fls 22 a 24, invocando o disposto no art. 279º do CPC, suspendeu a instância por, em seu entender, tendo toda a herança de ter um titular, na falta de outros herdeiros sê-lo-á o Estado, cumprindo, assim, ao requerente intentar prévia acção na qual se reconheça ou não a inexistência de outros herdeiros, declarando-se neste ultimo caso a herança vaga para o Estado.
Notificado de tal despacho, veio o A., alem do mais, pedir esclarecimento sobre a omissão do estabelecimento de um prazo para a suspensão, dizendo com esta se conformar desde que seja temporária e desde que alguém, que não ele, venha intentar a curto prazo um processo de liquidação ou equivalente, no qual possa reclamar o seu crédito. Caso assim não seja entendido, desde logo interpõe recurso de agravo do aludido despacho por com ele se não conformar.
O senhor Juiz, por despacho de fls 29, diz não haver qualquer omissão na sua anterior decisão, admitindo o recurso interposto, como de agravo.
Tendo o recorrente, na sua alegação, formulado as seguintes conclusões:
1ª - A questão colocada neste recurso é simples e, no entender do recorrente, poderá ser decidida liminarmente, nos termos do art. 705º do CPC, no sentido de que a herança jacente pode ser desde logo demandada por um credor sem ter de aguardar que se defina se aquela irá ser titulada por sucessores ou se será declarada vaga a favor do Estado;
2ª - A decisão recorrida contém uma contradição nos seus próprios termos, pois por um lado reconhece a personalidade judiciária da Ré enquanto património autónomo cujo titular ainda não está determinado e, por outro, exige que se determine previamente a existência ou inexistência de herdeiros e, se for caso disso, se declare a herança vaga a favor do Estado para só então ser retomada a marcha do processo;
3ª - Assim esta acção só poderia ter seguimento depois de acabar o estado de jacência da Ré, ou seja, ela nunca poderia ter seguimento nos termos em que foi proposta e em que, reconhecidamente, podia ser proposta, face ao disposto no art. 6º do CPC;
4ª - Prevendo a lei expressamente a possibilidade de serem propostas e terem seguimento acções declarativas contra a herança jacente independentemente de ter sido instaurado o processo de liquidação previsto nos arts 1132º e ss do CPC, que o despacho recorrido considera questão prévia em relação a esta acção, não havia fundamento legal para que o senhor Juiz declarasse suspensa a presente instância;
5ª - A decisão recorrida invoca infundadamente o disposto no art. 279º do CPC, que prevê a suspensão da instância quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra acção já proposta e determina que, no caso de a suspensão não ter por fundamento a pendência de causa prejudicial, seja fixado o prazo durante o qual estará suspensa a instância;
6ª - Ora o caso sub judice não se enquadra em qualquer das referidas hipóteses, pois nem existe qualquer causa prejudicial já proposta nem foi fixado o prazo da suspensão;
7ª - Sendo impertinente neste caso a aplicação da norma processual invocada (art. 279º) daí resulta, por outro lado, a violação do disposto no art. 6º do CPC, tudo se passando como se a herança existente não tivesse personalidade judiciária e como se fosse necessário determinar previamente quem é seu titular;
8ª - A jurisprudência vem reconhecendo que a propositura de acções por parte dos credores contra a própria herança será a regra geral e que a herança jacente pode estar em Juízo activa ou passivamente, sendo representada por curador especial.
O senhor Juiz a quo sustentou tabularmente o seu despacho recorrido.
Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

São estas as questões a decidir:
Pode a herança jacente ser desde logo demandada por um credor, que, na própria acção, pede a representação da mesma por um curador especial a nomear nos termos do art. 2048º do CC?
Ou terá que se propor prévia acção na qual se reconheça (ou não) a inexistência de outros herdeiros e, neste caso, se declare a herança vaga para o Estado?

*

Dúvidas não restam - nem o senhor Juiz a quo tal põe em causa - que a herança jacente, não tendo personalidade jurídica, tem, porém, personalidade judiciária.
Sendo-lhe esse pressuposto processual expressamente reconhecido pelo art. 6º, al. a) do CPC, sendo dele todas as disposições a seguir citadas sem referência expressa.
E, assim, dúvidas também não restarão que a herança jacente - definida no art. 2046º do CC - pode ser parte na acção, quer do lado activo, quer do lado passivo - A. Varela e outros, Manual do Processo Civil, p. 104 e seg.
Podendo, pois, ser a entidade em cujo nome se pede uma actuação da lei ou contra quem esse pedido se faz - Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. I, p. 54, citando Chiovenda.
Sendo ela a verdadeira parte e não quem aja em nome dela.
Logo, se um credor hereditário, no período de jacência da herança, pretender realizar o seu crédito - como in casu sucede - poderá propor uma acção contra a respectiva herança, sem necessidade de determinação prévia dos seus herdeiros e da aceitação destes ou da sua vacatura para o Estado.
Nada impondo que fique parado à espera da determinação definitiva sobre quem é ou deixa de ser herdeiro do espólio - Ac. da RE de 17/2/94, CJ Ano XIX, T. 1, p. 283.
Podendo, se assim o pretender, propor a acção contra a herança jacente - em vez de demandar os interessados incertos - desde que alguém esteja na administração efectiva do património hereditário - A. Castro, Lições de Processo Civil, vol. II, p. 548, considerando, na prática letra morta a norma do citado art. 6º, ao permitir que a acção seja intentada contra a própria herança jacente.
Sendo certo que, in casu, a herança jacente - e ela continuará a sê-lo e a ter personalidade judiciária enquanto se mantiver em tal situação, ou seja, enquanto os seus herdeiros não forem determinados e não a aceitem ou enquanto não for declarada vaga para o Estado (citado art. 2046º) - não tem administrador, pelo menos conhecido.

Pois - e tal não se poderá esquecer - tendo a herança jacente personalidade judiciária, tem, contudo, a mesma pessoa judiciária que estar devidamente representada em Juízo.
Na verdade, independentemente da posição processual da herança jacente, como autora ou como ré - podendo, como vimos, as acções serem movidas por si ou contra si - tem sempre de ser assegurada a sua representação judiciária - Ac. da RP de 30/10/2003, http://www.dgsi.pt/jtrp, citando A. Geraldes, Personalidade Judiciária, p. 6 e ss, ed. CEJ.
Resolvendo a própria lei processual, no art. 22º, o problema da sua representação em juízo.
Sendo a herança jacente representada pelos seus adminis-
tradores - Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil,p. 147, Oliveira Ascensão, Sucessões, p. 409, Elias da Costa, CPC Anotado e Comentado, vol. I, p. 166, Lebre de Feitas, CPC Anotado, vol. I., p. 44 e A. Varela, ob. cit., p. 114.
Ou, caso não existam aqueles, mas se tal se tornar necessário "para evitar a perda ou a deterioração dos bens, por não haver quem legalmente os administre" poderá o tribunal ordinário, nomear um curador especial à herança, que a repre-
sente, desde que tal seja requerido pelo MP ou por qualquer interessado (v.g. por um credor da herança) - art. 2048º, nº 1 do CC e Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, II, p. 9 e 10.
Pois, durante o período da vacância, a lei institui um regime tendente a assegurar apenas a tomada das medidas necessárias à conservação dos bens que constituem a herança, em vista dos interesses dos sucessíveis, incluindo o Estado e os credores da herança.
Sendo o regime da curadoria da herança jacente, no que respeita ao conteúdo dos poderes, direitos e deveres do seu curador, decalcado, com as devidas adaptações, do da curadoria provisória dos bens do ausente - arts 89º a 97º do CC e 1450º e ss - ibidem, p. 7,8 e 10.
Só tendo lugar a nomeação de um curador especial na hipótese particular do art. 2048º - Pereira Coelho, Direito das Sucessões, p. 134.
Só tendo lugar tal nomeação quando haja necessidade de evitar a perda ou a deterioração dos bens da herança - P. Lima e A. Varela, CCAnotado, vol. VI, p. 74.
Sendo certo que a curadoria provisória dos bens do ausente
constitui um mecanismo de administração de bens, funcionando fundamentalmente em benefício do ausente e com o objectivo de proporcionar que os seus bens frutifiquem e não se deteriorem nem sejam dissipados, só reflexamente se protegendo os interesses particulares de outros interessados, como sejam os credores - Rabindranath Capelo de Sousa, Lições do Direito das Sucessões, vol. I, p. 186.

E, de qualquer modo, mesmo que se entenda que a herança jacente é representada normalmente por um curador - Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. I, p. 70 ou que a nomeação do mesmo pode ter lugar precisamente para permitir o exercício de direitos de terceiro, v.g. de um credor que pretende demandar a herança jacente para realizar o seu direito, cessando a curadoria quando tal necessidade se extinguir face ao prescrito no nº 3 do citado art. 2048º (Oliveira Ascensão, Sucessões, p. 409) - a verdade é que o pedido de tal nomeação e esta mesma devem ser prévios à acção a intentar contra a herança jacente, propondo-se, assim, esta depois. Representando o curador em Juízo a herança, activa ou passivamente, enquanto ela se conservar jacente - A. Reis, CPC Anotado, vol. I, p. 64 e Elias da Costa, ibidem, p. 167.

Não se podendo, de qualquer modo, tal como entendeu fazer o senhor Juiz a quo, exigir que o ora A. intente prévio processo próprio mediante o qual se reconheça (ou não) a inexistência de outros herdeiros e, nesse caso, que se declare a herança vaga para o Estado.
Não se podendo, também de qualquer modo, suspender a instância para esse fim, por, desde logo, não se verificarem os pressupostos da aplicação de tal instituto processual - cfr. art. 279º.
Pois, in casu, não está esta causa dependente do julgamento de outra já proposta, nem se vislumbra a ocorrência de outro motivo justificado que permita ao Juiz, por sua iniciativa, determinar a suspensão.

Tendo que se ter em conta que o objecto do recurso é a decisão recorrida e não a questão sobre que recaiu a decisão impugnada - Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, p. 175, Castro Mendes, Recursos, p. 24 e Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. III, p. 265.
E, sendo certo que neste agravo está em causa o despacho do senhor Juiz a quo que entendeu haver necessidade de acção prévia para determinação dos herdeiros ou, na falta destes, para declaração da herança vaga para o Estado, suspendendo, para esse efeito a instância, nada mais haverá a decidir, sob pena deste Tribunal se substituir ao de 1ª instância em matéria que não está autorizado a fazê-lo - cfr. art. 715º a contrario.

Chegada a altura de elaborar algumas conclusões, poder-se-
-á, então, dizer:
A herança jacente tem personalidade judiciária e como tal pode propor acções em juízo ou nelas ser demandada.
Tendo que estar devidamente representada, em princípio pe-
los seus administradores.
E, mesmo que se entenda que a sua representação por um curador é também normal, podendo ter lugar, não apenas para evitar a perda ou a deterioração dos bens da herança (art. 2048º já citado), mas também, v.g., no interesse dos seus credores, para permitir o exercício dos seus direitos, sempre a nomeação em causa terá de ser prévia à acção intentada - decalcada que é da curadoria provisória dos bens do ausente - devendo ser requerida nos termos dos arts 1451º e ss do CPC.
Faltando, assim, in casu, a representação judiciária da Ré.
Não podendo, em consequência, a acção prosseguir como pretende o agravante.
Não se podendo, contudo, exigir ao ora A., que intente - ou que aguarde que alguém o faça - processo próprio mediante o qual se reconheça (ou não) a existência de outros herdeiros e, neste caso, que se declare vaga a herança a favor do Estado.
Nada impondo, como já dito, que o A. fique à espera da determinação definitiva sobre quem é ou deixa de ser herdeiro do espólio ou da vacatura da herança para o Estado.
Não se podendo, in casu, e para os efeitos previstos pelo senhor Juiz a quo suspender a instância.

*
Face a todo o exposto, acorda-se nesta Relação em, concedendo-se parcial provimento ao agravo - o agravante venceu na questão da indevida suspensão da instância mas não na do imediato prosseguimento da mesma com a nomeação de curador e citação da Ré para os termos da causa - revogar-se o despacho recorrido que suspendeu a instância, devendo o senhor Juiz a quo proferir despacho em conformidade com a posição ora aqui tomada e atrás melhor explanada.
Custas pelo agravante na proporção de 2/3, entendida como ajustada ao seu decaimento.