Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
216/22.9T8ACNF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: PROCESSO DE EXPROPRIAÇÃO
CAUSA PREJUDICIAL
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
EFICÁCIA DA DECLARAÇÃO DE UTILIDADE PÚBLICA
PROCEDÊNCIA DA IMPUGNAÇÃO EM TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CINFÃES DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 272.º, N.ºS 1 E 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 50.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Sumário: I – A suspensão da instância no processo judicial de expropriação tem efeitos meramente intraprocessuais, ou seja, nada mais suspende para além dos termos do próprio processo onde a mesma é decretada, não assumindo quaisquer efeitos fora do processo judicial.

II – A suspensão da instância decretada no processo judicial de expropriação, em nada belisca a eficácia da Declaração de Utilidade Pública que está na sua origem, não suspendendo a execução desta, podendo a entidade expropriante prosseguir com os trabalhos necessários à execução do projeto de obras aprovado relativamente à parcela expropriada.

III – Sendo a declaração de utilidade pública o ato constitutivo do procedimento expropriativo, a procedência da ação de impugnação pendente no tribunal administrativo, com a declaração de nulidade da Declaração de Utilidade Pública que está na génese dos presentes autos, acarretando a destruição retroativa de todos os seus efeitos (n.º 1 do artigo 50.º do CPTA), constituiu causa prejudicial na presente ação, podendo constituir motivo para o decretamento da suspensão da instância até decisão final a proferir na ação administrativa.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo nº 216/22.9T8ACNF.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Paulo Correia

2º Adjunto: Helena Melo

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de expropriação por utilidade pública em que é expropriante o Município ..., e expropriados AA e BB, declarada a utilidade pública, com carácter de urgência, da expropriação das parcelas de terreno necessárias à execução da obra de Infraestruturas de Desporto, Recreio e Lazer de ..., entre elas a parcela a que corresponde o artigo matricial rústico nº ...35, pertencente aos aqui expropriados,

e proferido Acórdão Arbitral,

dele vieram recorrer a entidade expropriante,

bem como os Expropriados, em cujas alegações de recurso formulam a seguinte pretensão:

alegando terem instaurado uma ação administrativa contra a entidade expropriante, com vista à declaração de nulidade e anulação da Declaração de Utilidade Publica da expropriação que está na génese dos autos (proferida por despacho do Secretário de Estado da Descentralização e da Administração Local, de 17 de Dezembro de 2021, publicado a no Diário da República, 2.ª série, n.º 6, de 10 de Janeiro de 2022), e que essa ação administrativa constitui causa prejudicial em relação à presente ação, uma vez que a decisão sobre a indemnização depende da validade da DUP, em discussão naquele outro processo,

requerem a suspensão da instância até ao trânsito em julgado da decisão a prolatar na jurisdição administrativa.

 A Câmara Municipal ... veio-se opor ao pedido de suspensão, alegando, em síntese:

a impugnação do ato administrativo não suspende a sua eficácia, podendo prosseguir com a sua execução, dando seguimento ao competente procedimento administrativo de expropriação, agora aqui em juízo para decidir da justa indemnização;

o Município só ficaria impedido de dar seguimento ao processo de expropriação decorrente da DUP se os expropriados tivessem lançado mão de uma providencia cautelar de suspensão de eficácia do ato administrativo, ao abrigo do art. 112º, nº2, al. a), do CPTA;

de qualquer modo, como se expôs na contestação apresentada pelo Município no âmbito da referida ação, ainda que se considerasse existir alguma insuficiência ou irregularidade no ato de declaração de utilidade publica, quer quanto à identificação dos proprietários, quer quanto à identificação dos prédios, o certo é que as consequências jurídicas da nulidade ou da anulabilidade nunca seriam as pretendidas pelos ali AA.;

este não é o tribunal competente para decretar a suspensão pretendida pelos expropriados ou para se pronunciar sobre o objeto da expropriação contido na DUP.

Pelo juiz a quo foi proferido despacho, de que agora se recorre, determinando a suspensão da ação até ser proferida decisão transitada em julgado no processo n.º 220/22...., a correr termos no Tribunal Administrativo e Fiscal ....


*

Inconformado com tal decisão, o Município dela interpôs recurso de Apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

I. A declaração de utilidade pública (DUP) da expropriação que está na génese destes autos, proferida por despacho do Secretário de Estado da Descentralização e da Administração Local, de 17 de Dezembro de 2021, foi publicada no Diário da República, 2.ª série, n.º 6, de 10 de Janeiro de 2022 (Declaração (extrato) n.º 6/2022), retificada por declaração de retificação n.º 42/2022, publicada em 20 de Janeiro de 2022, no DR nº 14, 2ª série, pág. 59.

II. Em 20.04.2022, vieram o Expropriados, aqui Recorridos, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal ..., instaurar ação administrativa para impugnação de ato administrativo pedindo a declaração de nulidade e anulação da Declaração de Utilidade Pública da expropriação litigiosa sub iudice, processo que ali corre termos com o n.º 220/22...., na ....

III. Nesta ação, os aqui Recorridos atacam a DUP com três fundamentos:

i. Preterição do direito de audiência prévia;

ii. Erro nos pressupostos de facto, já que a área de terreno objeto da expropriação delimitada pela Expropriante corresponderia “não a um, mas a dois prédios juridicamente distintos e a parte de outro prédio, também juridicamente distinto e que não é propriedade dos expropriados”;

iii. Usurpação de poder ao, alegadamente, determinar o conteúdo de direito de propriedade privada dos envolvidos – o que não se concede existir, na medida em foi cumprida toda a tramitação do CE.

IV. Nesta ação os Recorridos limitam-se a alegar supostas ilegalidades de natureza formal e sempre supríveis;

V. Nesta ação os aqui Recorridos nada mais invocam, designadamente, não beliscam – sequer – a causa da utilidade pública, âmago do ato de declaração impugnado.

VI. Para além desta ação os Expropriados não requereram, a título cautelar, a suspensão de eficácia da DUP, o que poderiam ter feito ao abrigo do artigo 112º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA). Ora,

VII. Não o tendo feito, e porque a mera impugnação do ato administrativo não suspende a sua eficácia, a DUP continuou a produzir plenamente os seus efeitos, pelo que, a ora Recorrente pode iniciar e prosseguir com a sua execução, dele retirando todas as consequências jurídicas, muito concretamente, dando seguimento ao competente procedimento administrativo de expropriação.

VIII. Assim, em 07.07.2022 a Recorrente remeteu todo o processo expropriativo ao Tribunal de 1ª instância,

IX. E, por Despacho 13.07.2022, retificado em 14.07.2022, foi adjudicada à ora Recorrente a propriedade e a posse da parcela em apreço e foi ordenada a notificação à expropriante e aos expropriados da Decisão Arbitral e da faculdade de interpor recurso nos termos dos artigos 51º, n.º 5 e 52ºdo CE. Assim, notificados de tal Despacho,

X. Em 19.09.2022 a ora Recorrente, veio interpor recurso da Decisão arbitral, alegando que os critérios utilizados para a avaliação da parcela se encontram infundados, o que consequentemente, resulta numa indemnização que entende injusta, porque excessiva.

XI. Em 20.09.2022, vieram também os Expropriados apresentar o seu recurso alegando, em primeiro lugar – e para o que aqui interessa - que instauraram uma ação administrativa contra a entidade expropriante, com vista à declaração de nulidade e a anulação da DUP da expropriação que está na génese destes autos, pelo que a mesma constitui causa prejudicial em relação à presente ação, uma vez que a decisão sobre a indemnização, que nesta será proferida, depende da validade da DUP, em discussão naqueloutro processo. Por conseguinte, requerem a suspensão da instância até ao trânsito em julgado da decisão a prolatar na jurisdição administrativa

XII. Em 24.10.2022, a ora Recorrente apresentou resposta a este recurso, defendendo – como defende e seguidamente tentará demostrar – não existirem fundamentos para que fosse decretada a suspensão da instância, desde logo, porque a ação que corre no TAF ... não constitui causa prejudicial em relação à presente ação. Contrariamente a este entendimento,

XIII. O Mmº Tribunal a quo decidiu pela existência de um nexo de prejudicialidade entre as duas ações e, por Despacho de 21.11.2022, determinou a suspensão da presente ação até que seja proferida decisão transitada em julgado no processo n.º 220/22...., a correr termos no Tribunal Administrativo e Fiscal ....

XIV. Ora, com o devido e maior respeito, não se pode concordar com o entendimento e o decidido pelo MMº Tribunal a quo.

XV. Como se disse e alegou na resposta ao recurso da decisão arbitral interposto pelos Expropriados, aqui Recorridos, a mera impugnação do ato administrativo de Declaração de Utilidade Pública não suspende a sua eficácia, podendo a Entidade Demandada – neste caso o ora Recorrente – iniciar e prosseguir com a sua execução, dele retirando todas as consequências jurídicas, muito concretamente, dando seguimento ao competente procedimento administrativo de expropriação, agora aqui em Juízo para decidir da justa indemnização.

XVI. De facto, o Recorrente só ficaria impedido de dar seguimento ao processo de expropriação decorrente da DUP se os Expropriados tivessem lançado mão de uma providência cautelar de suspensão de eficácia do ato administrativo, ao abrigo do artigo 112º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e o TAF ... o tivesse decretado - o que, sublinhe-se, não aconteceu.

XVII. Acresce, ainda que, como é sabido, a declaração de utilidade pública consiste no ato pelo qual se reconhece que determinados bens são necessários à realização de um fim de utilidade pública mais importante do que a utilização que lhes era dada (cfr. Marcello Caetano, in “Manual de Direito Administrativo”, Vol. II, 10ª edição, pág.1020)

XVIII. É, pois, um ato administrativo, em que a Administração declara que a expropriação de determinados bens é necessária à realização de um certo fim de utilidade pública. (cfr. art.º 148º do Código do Procedimento Administrativo), é um ato de autoridade, proferido por uma autoridade administrativa, no âmbito duma relação jurídico-administrativa, enquadrado numa atividade regulada por normas, princípios e critérios de direito público (cfr. v.g. art.s 12º, 13º e 14º do CE).

XIX. Ora muito embora o MMº Tribunal a quo refira que a decisão de suspensão da instância não seria equiparável à decisão de suspensão de eficácia da DUP, ainda que, na prática, pudesse conduzir a igual resultado ao decidir pela suspensão da instância no âmbito do processo de expropriação, o Tribunal a quo acaba por considerar – de facto – como ineficazes ou inexistentes os efeitos de um ato administrativo – DUP – cuja suspensão de eficácia não foi requerida e muito menos decretada.

XX. Na prática decide contra a um ato de autoridade, contra o ponderado e fundamentado interesse público que está contido naquele ato e que se sobrepõe àquela que era a utilidade privada do bem expropriado.

XXI. Decide contrariando, de forma manifesta, aquela que é a solução e construção do ordenamento jurídico que determina que um ato administrativo, mesmo quando impugnado contenciosamente, continua a produzir plenamente os seus efeitos, a não ser que seja requerida e decretada, a título cautelar, na jurisdição administrativa, a suspensão da sua eficácia.

XXII. Como resulta “a contrario” do nº 2 do artigo 50º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – a impugnação judicial de um ato administrativo não interfere com – nem suspende – a eficácia desse ato, que se mantém tão operativo e exequível, para a Administração e em face de terceiros, quanto o era antes.

XXIII. A única competência da jurisdição comum relativamente à DUP diz respeito, única e exclusivamente, à pronúncia sobre a sua caducidade, conforme prescreve o artigo 13º, n.º 4 do CE – cfr. art.13º, nº 4 do CE, pelo que, tendo presente o acabado de alegar e os princípios subjacentes ao procedimento e processo de expropriação, entende-se não poder este Tribunal decretar a suspensão pretendida pelos Expropriados ou para se pronunciar sobre o objeto da expropriação contido no DUP. Acresce que,

XXIV. Ainda que, tal como ali defendem os Expropriados, se considerasse, ou considere, existir alguma insuficiência ou irregularidade no ato de declaração de utilidade pública, quer quanto à identificação dos proprietários, quer quanto à identificação do/s prédio/s, o certo é que as consequências jurídicas de declaração de nulidade ou anulabilidade nunca seriam as pretendidas pelos ali AA..

XXV. De facto, no procedimento expropriativo vigora o Princípio da Legitimidade Aparente, pelo que, se por um lado, a identificação dos proprietários não assume carácter decisivo ou obrigatório na declaração de utilidade pública, por outro, as menções relativas à descrição predial e à inscrição matricial não constituem, sequer, elementos obrigatórios da mesma nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 17º do CE, sendo que a identificação dos bens sujeitos a expropriação poder ser substituída por planta que permita a delimitação legível do bem necessário ao fim de utilidade pública, planta esta que na situação sub iudice é parte integrante da própria DUP.

XXVI. Para além disso, os prejuízos alegadamente advenientes de um ato expropriativo por utilidade pública são, em princípio, de natureza quantificável e, por isso, de carácter reparável, não podendo, por isso, sobrepor-se ao interesse público subjacente e inerente ao ato de declaração de utilidade pública, interesse que, porque público e para o bem comum, legitima não só que o bem expropriado passe a pertencer ao expropriante, como, ainda, permite que este entre na sua posse o mais rapidamente possível, sob pena de haver grave lesão do interesse público.

XXVII. E sublinhe-se uma vez mais, porque importante, que na ação que corre termos no TAF ... os aqui Recorridos não puseram em causa o que quer que fosse relativamente ao interesse público subjacente à DUP. As únicas alegadas ilegalidades assacadas à DUP dizem respeito a questões formais, e que, a serem procedentes – o que com o devido respeito não se concede – sempre seriam sanáveis permitindo a manutenção da legalidade da DUP.

XXVIII. O interesse público está fundamentado e não foi contestado pelos aqui Recorridos na impugnação da DUP e a parcela a expropriar para servir esse interesse está devidamente identificada no local, o que também não é posto em causa pelos mesmos, pelo que, independentemente do que se possa vir a passar na ação que corre termos no TAF ..., mantêm-se a utilidade e a premência de determinar o quantum indemnizatório do terreno expropriado, do prosseguimento do processo sub iudice.

XXIX. Por tudo o exposto, entende-se que a decisão que vier a ser proferida quanto à DUP – até considerando os termos em que a mesma foi impugnada – não é apta a destruir o fundamento e a razão de ser dos presentes autos cujo objeto é tão somente apurar o montante indemnizatório devido pela expropriação.

XXX. Pelo que, contrariamente ao decidido pelo Mmº Tribunal a quo e com o devido respeito, não existe uma relação de prejudicialidade entre as duas ações que permita lançar mão da suspensão prevista no art.272º, n.º 1 do CPC. Sem prescindir,

XXXI. Refira-se ainda que a única decisão que poderia estar dependente da decisão a proferir no âmbito do processo administrativo seria a que respeita à propriedade do bem e que se consubstanciou no despacho de adjudicação da mesma a favor da entidade expropriante, aqui Recorrente, que há muito transitou em julgado, e não a que se prende com o "quantum indemnizatório" única questão a decidir no âmbito dos autos sub iudice.

XXXII. Significa isso que, desde então, a questão da propriedade da parcela de terreno abrangida pela expropriação já não constitui uma questão que esteja pendente no âmbito do presente processo, estando total e definitivamente decidida e, por isso, também nesta medida não existe qualquer fundamento para a aplicabilidade do n. 1 do artigo 272º do CPC.

XXXIII. Só haveria fundamentos para a suspensão da instância ao abrigo desta norma caso a suspensão tivesse sido requerida e decidida antes do trânsito em julgado do despacho de adjudicação da propriedade, o que, como é sabido, não aconteceu.

Por último e em todo o caso.

XXXIV. Importa dizer que ainda que a ação administrativa viesse a ser julgada procedente – o que, com o devido respeito, não se concede – sempre os aqui Recorridos teriam direito a uma indemnização. Desta feita não pelo bem expropriado, mas pelos danos que viessem a demostrar, em ação própria, terem sido causa da ilegalidade da DUP.

XXXV. Ao decidir como decidiu o Mmº Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 269º, n.º 1, c), 272º, n.º 1do CPC.

 Termos em que se requer a V. Exas. seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se, em consequência, o normal prosseguimento da lide, assim se fazendo Justiça.


*

Pelos expropriados foram proferidas contra-alegações, no sentido da improcedência do recurso.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se o tribunal podia decretar a suspensão da instância até à decisão final a proferir na ação administrativa com vista à declaração de nulidade e de anulação da D.U.P., ao abrigo do art. 271º, nº1 CPC:
a. por falta de competência da jurisdição comum para decretar a suspensão da eficácia da D.U.P.
b. a decisão que vier a ser proferida quanto à D.U.P. não é apta a destruir o fundamento e a razão de ser dos presentes autos cujo objeto é tão somente apurar o montante indemnizatório devido pela expropriada, não se configurando “causa prejudicial”.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
 1.  Se o tribunal podia decretar a suspensão da instância até à decisão final a proferir na ação administrativa com vista à declaração de nulidade e de anulação da D.U.P., ao abrigo do art. 271º, nº1 CPC
A decisão recorrida veio a deferir o pedido de suspensão dos presentes autos de expropriação por utilidade publica até que seja proferida decisão transitada em julgado na ação que corre no Tribunal Administrativo e Fiscal ..., através da qual os aqui expropriados peticionam a declaração de nulidade e a anulação da declaração de utilidade pública (DUP), que está na génese dos presentes autos, com os seguintes fundamentos, que aqui se sintetizam:
- em termos processuais, a pendência de uma causa prejudicial pode implicar a suspensão da instância na causa que dela é dependente, nos termos consignados no art. 272.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
-  a decisão de adjudicação e o arbitramento de uma justa indemnização aos expropriados pressupõe a validade da DUP, enquanto ato matricial em que se alicerça o processo litigioso de expropriação. Donde, uma decisão que a anule não poderá deixar de afetar a decisão final a prolatar nestes autos, qual seja a de fixação do montante das indemnizações a pagar aos expropriados. A validade da DUP é, pois, uma questão essencial para estes autos de expropriação, ainda que se limitem à definição do quantum indemnizatório de uma expropriação já concretizada;
- daqui resulta clara a existência de um nexo de prejudicialidade entre as duas ações, em termos aptos consentir a suspensão da instância ao abrigo da primeira parte do n.º 1 do art. 272.º do CPC;
- ao contrário do sustentado pela entidade expropriante, a decisão de suspensão da instância não seria equiparável à decisão de suspensão de eficácia da DUP, ainda que, na prática, pudesse conduzir a igual resultado. Trata-se de decisões com distintos fundamentos e escopos, já que o despacho que decrete a suspensão da instância não estaria a (nem poderia) sindicar a verificação dos pressupostos legais de suspensão do acto administrativo - matéria da competência da jurisdição administrativa – mas sim a aferir da existência de um outro processo onde esteja em causa uma questão cuja resolução possa prejudicar a causa suspendenda;
- os autos não deverão prosseguir os seus termos, já que, por um lado, não se verifica qualquer das circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 272.º do CPC e, por outro, a suspensão permitirá evitar a prática de atos potencialmente inúteis, desde logo a realização de avaliações ao imóvel objeto de expropriação e a produção de prova requerida pelas partes.
Insurge-se o Município Apelante contra a decretada suspensão da instância, repetindo, na essência, os motivos que invocara na oposição que deduziu a tal pretensão:
- a mera impugnação do ato administrativo de Declaração de Utilidade Pública não suspende a sua eficácia, podendo a Entidade Demandada iniciar e prosseguir com a sua execução, dele retirando todas as consequências jurídicas, muito concretamente, dando seguimento ao competente procedimento administrativo de expropriação, agora aqui em Juízo para decidir da justa indemnização;
- o Recorrente só ficaria impedido de dar seguimento ao processo de expropriação decorrente da DUP se os Expropriados tivessem lançado mão de uma providência cautelar de suspensão de eficácia do ato administrativo, ao abrigo do artigo 112º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e o TAF ... o tivesse decretado – o que não aconteceu;
- a decisão de suspensão da instância, na prática decide contra um ato de autoridade, contra o ponderado interesse publico que está contido naquele ato e contra a construção do ordenamento jurídico que determina que um ato administrativo, mesmo quando impugnado contenciosamente, continua a produzir plenamente os seus efeitos, a não ser que seja requerida e decretada, a titulo cautelar, a jurisdição administrativa, a suspensão da sua eficácia, em conformidade com o disposto no artigo 50º, nº2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos;
- a única competência da jurisdição comum relativamente à DUP diz respeito, única e exclusivamente, à pronúncia sobre a sua caducidade, conforme prescreve o artigo 13º, n.º 4 do CE – cfr. art.13º, nº 4 do CE, pelo que, não poder este Tribunal decretar a suspensão pretendida pelos Expropriados ou para se pronunciar sobre o objeto da expropriação contido no DUP;
- as únicas alegadas ilegalidades assacadas à DUP dizem respeito a questões formais e que, a serem procedentes, sempre seriam sanáveis, permitindo a manutenção da legalidade da DUP;
- o interesse público está fundamentado e não foi contestado pelos aqui Recorridos na impugnação da DUP e a parcela a expropriar para servir esse interesse está devidamente identificada no local, o que também não é posto em causa pelos mesmos, pelo que, independentemente do que se possa vir a passar na ação que corre termos no TAF ..., mantêm-se a utilidade e a premência de determinar o quantum indemnizatório do terreno expropriado, do prosseguimento do processo sub iudice;
- ainda que a ação administrativa viesse a ser julgada procedente, sempre os aqui Recorridos teriam direito a uma indemnização, desta feita não pelo bem expropriado, mas pelos danos que viessem a demostrar, em ação própria, terem sido causa da ilegalidade da DUP;
- a única decisão que podia estar dependente da decisão a proferir no âmbito do processo administrativo seria a que respeita à propriedade do bem e que se consubstanciou no despacho de adjudicação da mesma a favor da entidade expropriante, e não a que se prende com o “quantum indemnizatório”, única questão a decidir no âmbito dos autos.
Desde já adiantamos não podermos dar razão à Apelante, como passamos a analisar em detalhe.
a. Falta de competência da jurisdição comum para decretar a suspensão da eficácia da D.U.P.
O raciocínio da Apelante assenta numa noção errada do conceito de suspensão da instância processual e respetivos efeitos e numa confusão quanto ao âmbito do “procedimento de expropriação” e o “processo judicial de expropriação”, previstos no Código das Expropriações (CE).
O procedimento de expropriação apresenta uma textura complexa, sendo constituído por um procedimento administrativo, integrado por uma serie de atos que gravitam em torno do ato de declaração de utilidade publica, e por um processo judicial, que abrange atos relacionados com a discussão litigiosa do valor da indemnização[1].
Prevendo o CE um pré-procedimento da expropriação com vista à aquisição de bens ou direitos de conteúdo patrimonial com vista à prossecução de um interesse publico, se nele houver acordo, a aquisição pela via do direito privado dispensa o procedimento expropriativo (artigos 10º e 11º).
Nos casos em que naquele não é alcançado acordo ou em que tal procedimento é dispensado, por se tratar de declaração de utilidade publica urgente ou urgentíssima (artigo 15º), inicia-se o procedimento expropriativo[2], composto por:
1. um procedimento administrativo – com a declaração de utilidade pública e a atribuição de carater urgente à mesma, o que confere à entidade expropriante o direito à imediata investidura na posse administrativa dos bens expropriados (bem como o direito de dar início às obras de execução projetadas, podendo para tal, ocupar prédios vizinhos e de neles efetuar os trabalhos necessários ou impostos pela execução destes); abarca ainda a vistoria ad perpetuam rei memoriam;
2. um processo judicial – realizada a arbitragem, o processo é remetido ao juiz da comarca para efeitos de transferência da propriedade, notificando-se as partes do acórdão arbitral, sendo que, caso alguma das partes interponha recurso do mesmo, prosseguirão os autos para fixação litigiosa do quantum indemnizatório.
A fase judicial serve, assim, para fixar o valor de justa indemnização devida por expropriação, face à ausência de acordo entre a entidade expropriante e o expropriado e demais interessados, desdobrando-se em três momentos: 1) arbitragem, 2) recurso para o tribunal judicial de comarca e 3) recurso para o Tribunal da Relação.
Não sendo o ato de transferência da propriedade, embora da competência do juiz do tribunal judicial, um ato judicial, do ponto de vista material, limitando-se o juiz a verificar a regularidade formal dos atos do procedimento expropriatório[3], o objeto do processo (judicial) de expropriação é a fixação da indemnização devida aos expropriados e demais interessados[4].
A suspensão da instância no processo judicial de expropriação (ou em qualquer outro) tem efeitos meramente intra-processuais, ou seja, nada mais suspende para além dos termos do próprio processo onde a mesma é decretada, não assumindo quaisquer efeitos fora do processo judicial – terá unicamente por consequência a “suspensão” ou “paragem” dos procedimentos tendentes à determinação do montante da indemnização a atribuir aos expropriados (nomeadamente, a realização de avaliações e de produção de prova) até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na ação instaurada pelos expropriados e que corre os seus termos no Tribunal Administrativo ....
É correta a afirmação da Apelante, de que, do nº2 do art. 50º do CPTA, a contrario sensu, resulta que a impugnação judicial de um ato administrativo – nomeadamente a ação de declaração de nulidade e anulação da declaração de utilidade pública que está na origem dos presentes autos – não suspende a eficácia desse ato, o que só poderia ser alcançado através da interposição de uma providencia cautelar de suspensão de eficácia de ato administrativo
Contudo, a suspensão da instância do processo judicial de expropriação, aqui em discussão, em nada belisca a eficácia da Declaração de Utilidade Pública que está na sua origem, nomeadamente a posse administrativa da entidade expropriante e o poder/dever de proceder às obras de execução projetadas.
A suspensão da instância decretada nos autos não suspende a eficácia da declaração de utilidade publica, com a sua execução, não interferindo com a prossecução dos trabalhos necessários à execução do projeto de obras aprovado relativamente à parcela expropriada (artigo 19º).
Concluindo, a suspensão aqui decretada apenas afeta o andamento deste processo judicial de expropriação, sendo que, dado o momento em que o mesmo se encontra (em que foi já proferido despacho de adjudicação da propriedade à entidade expropriante), tendo como único efeito a suspensão dos procedimentos com vista à determinação do montante indemnizatório a atribuir aos expropriados.
Assim sendo, o fundamento de oposição invocado pela Apelante de que o decretamento de tal suspensão cairia fora da competência dos tribunais comuns não faz qualquer sentido: tal decisão, com efeitos restritos ao próprio processo judicial de expropriação em nada afeta o ato administrativo da DUP, a sua eficácia ou execução.
b. Se a decisão que vier a ser proferida quanto à D.U.P. não é apta a destruir o fundamento e a razão de ser dos presentes autos - apuramento do montante indemnizatório devido pela expropriada –, não se configurando “causa prejudicial”.
Alega, por fim, a Apelante não dever haver lugar à suspensão do processo por inexistência de relação de prejudicialidade entre as duas ações que permita lançar mão da suspensão prevista no artigo 272º, nº1, do CPC:
- ainda que a ação administrativa viesse a ser julgada procedente, sempre os recorridos teriam direito a uma indemnização, não pelos bens expropriados, mas pelos danos que viessem a demonstrar, em ação própria, terem sido causa da ilegalidade da DUP;
- a única decisão que podia estar dependente da decisão a proferir no âmbito do processo administrativo seria a que respeita à propriedade do bem e que se consubstanciou no despacho de adjudicação da mesma a favor da entidade expropriante, e não a que se prende com o “quantum indemnizatório”, única questão a decidir no âmbito dos autos.
Segundo o disposto no nº1 do artigo 272º do CPC, “o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer motivo justificado”.
O nº1 concede ao tribunal o poder de ordenar a suspensão da instância quando penda causa prejudicial, entendendo-se por “causa prejudicial” aquela que tenha por objeto pretensão que constituiu pressuposto da formulada[5].
Ou, como explicava José Alberto dos Reis, uma “causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão daquela pode destruir o fundamento ou a razão de ser desta[6]”.
Sendo a declaração de utilidade pública o ato constitutivo ou o ato chave do procedimento expropriativo, a declaração de nulidade da Declaração de Utilidade Pública que está na génese dos presentes autos – em caso de procedência da ação de impugnação pendente no tribunal administrativo – acarretará a destruição retroativa de todos os seus efeitos (nº1 do artigo 50º do CPTA).
Se o processo de expropriação já estiver findo, fica o mesmo sem efeito, extingue-se a sujeição à expropriação e desparece o direito à indemnização, como contra valor dos bens a expropriar[7].
Como tal, o prosseguimento dos presentes autos pode vir a tornar-se um ato inútil ou impossível, considerando-se verificados os pressupostos de que o nº1 do artigo 272, faz depender o poder discricionário, atribuído ao juiz de optar pela suspensão dos presentes autos.
Quanto ao argumento de que, ainda que a ação administrativa viesse a ser julgada procedente, sempre os requeridos teriam direito a uma indemnização pelos danos que se viessem a apurar, na sequência da ilegalidade da DUP, não se vislumbra qual o relevo que o mesmo possa ter para a verificação de uma relação de prejudicialidade entre a ação de anulação e o presente processo, quando é a própria Apelante a reconhecer que, em tal situação, o eventual direito de indemnização dos expropriados teria um fundamento distinto e teria de ser exercitado em ação própria.
Quanto ao argumento de que, a única decisão que poderia estar dependente da decisão a proferir no âmbito do processo administrativo, seria a que respeita à propriedade do bem e que se consubstanciou no despacho de adjudicação da mesma a favor da entidade expropriante, e já não a que se prende com o “quantum indemnizatório”, também não procede: como já foi aqui afirmado, a declaração de nulidade da DUP acarretará a destruição do processo expropriativo, extinguindo-se o direito à indemnização com fundamento no valor dos bens a expropriar.

A Apelação é de improceder, sem outras considerações.

*

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirma-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela Apelante.       

                                                                Coimbra, 02 de maio de 2023


 V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
            (…).



[1] Fernando Alves Correia, “Manual de Direito do Urbanismo”, Volume II, Almedina, p. 374.
[2] Pedro Elias da Costa distingue no procedimento e processo expropriativo duas fases distintas: uma inicial fase de carácter administrativo que tem por finalidade a aquisição pela entidade expropriante da propriedade do bem objeto da expropriação, composta por um conjunto de atos e formalidades tendentes à formação da vontade da Administração (fase preliminar da D.U.P.), à sua manifestação e à sua execução (fase posterior à D.U.P. até à aquisição do bem pela entidade expropriante. E, na ausência de acordo, antes do recurso à via judicial, tem ainda ao dispor a realização da arbitragem. E uma segunda fase inicia-se após a adjudicação judicial da propriedade caso as partes não acordem no montante da indemnização determinado no acórdão arbitral, dispondo as partes da faculdade de interpor um recurso da decisão arbitral, iniciando um processo de expropriação litigiosa que correrá nos tribunais comuns – “Guia das Expropriações por Utilidade publica”, 2ª ed., Almedina, pp. 74-75.
[3] Fernando Alves Correia, obra citada, pp. 392 e 409.
[4] Salvador da Costa, “Código das Expropriações e Estatuto dos Peritos Avaliadores, Anotados e Comentados”, 2010, p. 264.
[5] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, 3ª ed., Coimbra Editora, p. 535.
[6] “Comentário ao Código de Processo Civil”, 3º Vol. – 1946, pp. 206 e 268.
[7] Neste sentido, Acórdão do STJ de 03-07-2008, relatado por Oliveira de Vasconcelos, disponível in www.dgsi.pt.