Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
142/08.4TACNT
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL PELAS MULTAS E COIMAS
Data do Acordão: 10/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CANTANHEDE - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 8º, N.º 7, DO REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS (R.G.I.T.)
Sumário: A responsabilidade solidária de gerente pelo pagamento de multa em que foi condenada a sociedade (ambos arguidos no mesmo processo e pelo mesmo crime), que decorre do disposto no n.º 7, do art.º 8º, do R.G.I.T., não ofende os princípios constitucionais ínsitos nos art.ºs 29º, n.º 5 (“Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”) e 30º, n.º 3 (“A responsabilidade penal é insusceptível de transmissão”), da Constituição da República Portuguesa.
Decisão Texto Integral: I. Relatório
No processo comum singular 142/08.4TACNT do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede os arguidos WW..., Lda, A...e B... foram condenados em penas de multa pela autoria de um crime de abuso de confiança contra a segurança social p. e p. pelos artigos 107º, nº 1 e 105º, nºs 1 e 2 do RGIT, por sentença proferida em 21.4.2010 e transitada em julgado.
Em 17.10.2011 a Mmª Juiz a quo proferiu o seguinte despacho, rectificado por despacho de 13.12.2011:
A Sociedade WW..., Lda. foi condenada, por decisão transitada em julgado, pela prática de um crime de abuso contra a segurança social, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 25,00 €, no montante global de 2.500,00 €.
A sociedade arguida não procedeu ao pagamento da multa em que foi condenada e não lhe são conhecidos bens susceptíveis de obter a sua cobrança coerciva (cfr. fls. 658 e 692).
Os arguidos A...e B... eram sócios gerentes da sociedade arguida e foram ambos condenados pela prática do mesmo crime de abuso de confiança contra a segurança social.
Promoveu a digna magistrada do Ministério Público, invocando o disposto no art. 8.º n.º 7 do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributárias), a declaração de A...e B... como subsidiariamente responsáveis pelo pagamento da pena de multa em que a sociedade foi condenada.
Foi conferido o contraditório a ambos os arguidos, que se pronunciaram conforme resulta de fls. 700 a 702.
Cumpre apreciar e decidir:
Dispõe o artigo 8.° do RGIT, sob a epígrafe "Responsabilidade civil pelas multas e coimas" nos termos que seguem e para o que nos interessa que:
"1 - Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:
a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.
2 - A responsabilidade subsidiária prevista no número anterior é solidária se forem várias as pessoas a praticar os actos ou omissões culposos de que resulte a insuficiência do património das entidades em causa.
(…)
7 - Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso.
8 - Sendo várias as pessoas responsáveis nos termos dos números anteriores, é solidária a sua responsabilidade." (sublinhado nosso)
Com efeito, o presente artigo versa a responsabilidade civil atinente ao pagamento da pena de multa em que uma sociedade seja condenada, como imediatamente se retira da epígrafe do mesmo. Deste modo, não está em causa qualquer mecanismo de transferência de responsabilidade penal, que sempre seria inadmissível, atento o disposto no art. 30.° n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.
Esta questão reveste importância nesta fase processual, na medida em que o art. 491.º n.º 1 da Código de Processo Penal regula que, em caso de não pagamento da pena de multa findo o prazo consignado para esse efeito, proceder-­se-á a execução patrimonial.
O art. 8.° n.º 7 do RGIT prevê ainda a possibilidade de serem os colaboradores na prática da infracção tributária, solidariamente responsáveis pelo pagamento das multas advenientes.
Na verdade, " … incorrerão nesta responsabilidade civil, os co-autores e cúmplices de infracções tributárias, relativamente às sanções que vieram a ser aplicadas aos seus co-arguidos, cumulativamente com a sua própria responsabilidade" - cfr. Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, in Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, Areas Editora, 2001, pág. 95.
Compulsada a sentença, obviamente terá de se concluir que os arguidos A...e B..., colaboraram dolosamente na prática dos factos porque foi condenada a pessoa colectiva, na medida em que eram seus sócios gerentes, de tal modo que também foram condenados pela prática dos mesmos (neste sentido Ac. do T.R.P, de 23.06.2010, disponível em www.dgsi.pt.).
Dúvidas não restam, por um lado, da constitucionalidade do citado artigo, uma vez que o Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre essa matéria", concluindo pela constitucionalidade do art. 8.° n.º 1 do RGIT, cujos argumentos, por maioria de razão, na medida em que ali trata-se de responsabilidade subsidiária e aqui de solidária, revestem plena actualidade quanto aos presentes, e por outro que nenhum óbice resulta na aplicação de tal estatuição em sede criminal e de execução de pena de multa, em face do que decorre do art. 49.° do RGIT.
Termos em que se decide, ao abrigo do disposto no art. 8° n.º 7 do RGIT, no limite da douta promoção do Ministério Público, considerar A...e B..., solidariamente responsável pelo pagamento da pena de multa de 250 dias à taxa diária de €10,00, a que foi a "WW..., Lda.", condenada nos presentes autos.
Notifique.
Emitam-se guias para pagamento.

Deste despacho interpôs recurso o arguido A… , rematando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
A. O Tribunal a quo não procedeu correctamente ao operar a reversão da pena aplicada à sociedade António Cravo & Filhos, Lda. para o seu s6cio-gerente, aqui Recorrente.
B. Para tal fundamentou-se no art. 8° nº 7 do RGIT.
C. Sucede que tal fundamentação versou no facto de que aquele artigo se baseia na responsabilidade civil atinente ao pagamento da multa.
D. Algo que o Recorrente não concorda, pois que aqui se aprecia é a reversão do pagamento de uma multa (pena), resultante da condenação no âmbito de um processo crime.
E. Ao operar-se a reversão pretendida, violam-se os artigos 29° nº 5 e 30º nº 3, ambos da Constituição ela República Portuguesa pois pune-se o mesmo sujeito duas vezes pela prática de um só crime e, concomitantemente, transmite-se a responsabilidade penal da sociedade para o Recorrente.
F. Além do mais a responsabilidade subsidiária e solidária dos gerentes está transcrita nos nºs l e 2 do art. 8º do RGIT e não no seu nº 7, pelo que existe um erro na aplicação de direito.
G. Foi considerado o art. 8° do RGIT inconstitucional através dos acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitucional no âmbito dos processos nºs 481/2010 e 26/2011, o que não foi atendido pelo Tribunal a quo.
H. Considera ainda o Recorrente que sendo esta uma questão dúbia no nosso ordenamento jurídico, há que atender ao Princípio da Presunção de Inocência, mormente, ao seu corolário in dubio pro reo; de modo a que a reversão pretendida não seja concretizada.
TERMOS EM QUE
Deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente, se: alterado o douto despacho condenatório por outro que não proceda à reversão da sociedade para o aqui Recorrente do pagamento solidário da multa a que aquela foi condenada, absolvendo o Recorrente, tudo com os demais termos até final.
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA

O Ministério Público na primeira instância respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:
I. Estabelece o artigo 8.°, n.º 7 do RGIT que "Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso".
II. Versa esta disposição da responsabilidade solidária por parte de quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária.
III. A responsabilidade prevista neste artigo deve ser vista como uma responsabilidade civil e não como transmissão da responsabilidade penal.
IV. Entendemos, assim, que o douto despacho recorrido não violou qualquer preceito constitucional e não merece qualquer reparo.
Termos em que, deve negar-se provimento ao recurso interposto pelo arguido A… , mantendo-se o douto despacho recorrido, como é de JUSTICA!

A Mmª Juiz a quo admitiu o recurso, não se pronunciando nos termos do artigo 414º, nº 4 do Código de Processo Penal.
Remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.
Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.
***
II. Apreciação do Recurso
Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação. Vistas as conclusões do recurso interposto, a única questão que se suscita para apreciação deste Tribunal consiste em saber se a responsabilidade solidária dos gerentes pelo pagamento de multa em que foi condenada sociedade, prevista no artigo 8º, nº 7 do RGIT, viola o disposto nos artigos 29º, nº 5 e 30º, nº 3 da CRP porque consiste em dupla punição do mesmo facto e em transmissão da responsabilidade penal da sociedade.
Vejamos.
Está em causa despacho que declarou o arguido ora recorrente solidariamente responsável pelo pagamento de multa em que foi condenada a sociedade de que era gerente nos termos previstos no artigo 8º, nº 7 do RGIT que preceitua "Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso."
Em primeiro lugar importará esclarecer que a responsabilidade solidária pelo pagamento de multa nasce no momento em que a sociedade é condenada e se assim não fosse não se tratava de regime de solidariedade tal como definido no Código Civil.
Ora, o recorrente invoca que ocorreu erro de direito no despacho recorrido porque a responsabilidade subsidiária e solidária vem prevista no nº 2 do mesmo artigo e não no nº 7. Mas sem razão.
Com efeito preceituam os nºs 1 e 2 do artigo 8º citado o seguinte:
1 - Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:
a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.
2 - A responsabilidade subsidiária prevista no número anterior é solidária se forem várias as pessoas a praticar os actos ou omissões culposos de que resulte a insuficiência do património das entidades em causa.
Ou seja, no nº 1 vêm previstos casos de responsabilidade subsidiária de gerentes e outras pessoas por multas e coimas em que seja condenada a sociedade e no nº 2 apenas se prevê que seja solidária a responsabilidade entre os vários sujeitos que respondam subsidiariamente pelo pagamento de multas ou coimas. Em relação à sociedade a responsabilidade continua a ser subsidiária.
Mas o regime de subsidiariedade tem contornos distintos do regime de solidariedade no que concerne ao momento em que a responsabilidade nasce. Sendo esta subsidiária apenas nasce quando não for possível obter o pagamento através do património da sociedade condenada, logo nunca é contemporânea da condenação.
Por força deste traço distintivo uma conclusão desde já se impõe, é que a responsabilidade solidária, a existir, exclui por natureza a responsabilidade subsidiária. No caso, sendo ab initio o recorrente responsável solidário pelo pagamento da multa em que foi condenada a sociedade por força do artigo 8º, nº 7 do RGIT, isso exclui que possa também ser responsável subsidiário nos termos do nº 1 do mesmo artigo.
Para sustentar a sua tese de que o despacho recorrido viola o disposto nos artigos 29º, nº 5 e 30º, nº 3 da CRP invoca o recorrente os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 481/2010 e 26/2011.
Porém, esses acórdãos formularam juízo de inconstitucionalidade sobre o nº 1 do artigo 8º do RGIT (e disposição correspondente do RJIFNA, o primeiro).
E tal juízo assenta desde logo na reversão da responsabilidade, só existente no apreciado caso do regime de subsidiariedade, já não no caso de solidariedade que nasce no momento da condenação da sociedade e pressupõe que o responsável solidário tenha colaborado dolosamente na prática da infracção tributária.
O que ocorre no caso é que o arguido respondeu no mesmo processo e pelo mesmo crime que a sociedade arguida e teve todas as oportunidades de defesa, também em relação à sua possível responsabilidade solidária que derivava da lei, não sendo transponíveis para o caso os argumentos do Tribunal Constitucional.
Preceituando o artigo 29º, nº 5 da CRP que "Ninguém pode ser julgado mais de uma vez pela prática do mesmo crime" logo se conclui que a decisão recorrida, tendo-se limitado a declarar uma responsabilidade solidária derivada da lei que nasceu no momento da condenação da sociedade e do arguido, não ofende tal princípio constitucional.
E quanto ao artigo 30º, nº 3 da Lei Fundamental, preceituando que "A responsabilidade penal é insusceptível de transmissão" igualmente se verifica que não está em causa qualquer transmissão de responsabilidade penal mas uma responsabilidade própria derivada da colaboração dolosa na prática de uma infracção legalmente prevista.
Aliás, sobre a questão em apreço bem cita o despacho recorrido o Acórdão da Relação do Porto de 23.6.2010, parcialmente transcrito pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu parecer em que se expende, nomeadamente, sobre a natureza meramente declarativa de despacho posterior à sentença que reconheça a responsabilidade solidária de gerente e sobre a insusceptibilidade de tal ofender os direitos de defesa, o caso julgado e outros princípios constitucionais.
Assim, não se vislumbrando a necessidade de outros considerandos, importa concluir que o recurso não merece provimento.
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III. Decisão
Nestes termos acordam em negar provimento ao recurso interposto pela arguida, mantendo o despacho recorrido.
Pelo seu decaimento em recurso condena-se o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça devida em três unidades de conta.
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Coimbra,
(Texto processado e integralmente revisto pela relatora; a primeira signatária.)

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(Maria Pilar Pereira de Oliveira)

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(José Eduardo Fernandes Martins)