Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
272/07.0YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
APENSAÇÃO DE PROCESSOS
EXPROPRIAÇÃO
Data do Acordão: 10/02/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 1º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: RESOLVIDO
Legislação Nacional: ARTºS 115º A 120º DO CPC
Sumário: I – Não originam um verdadeiro conflito de competência, mas antes um “conflito aparente”, os despachos transitados em que dois juízes, através do mecanismo processual da apensação de acções, se atribuem mutuamente a competência (negando a própria) para o julgamento de dois processos de expropriação por utilidade pública, nos quais estão em causa distintos imóveis pertencentes aos mesmos expropriados.
II – A existência de um verdadeiro conflito de competência (artigos 115º a 120º do CPC) assenta na “liberdade” de cada um dos juízes para dispor sobre a mesma situação decidida pelo outro, o que pressupõe uma situação de “incompetência absoluta”, por referência ao artigo 101º do CPC.

III – Tal não sucede com o possível desvalor consistente na inobservância das regras gerais ou especiais respeitantes à apensação de acções, que é assimilável, para este efeito, à situação prevista no artigo 111º, nº 2 do CPC.

IV – Assim, a decisão primeiramente transitada resolve definitivamente a questão da apensação, vinculando o juiz do processo ao qual o processo a apensar é remetido.

V – O impasse criado com o trânsito de ambos os despachos contraditórios respeitantes à apensação traduz um “outro caso”, para o efeito do artigo 121º do CPC, devendo tal impasse ser resolvido com a vinculação do juiz autor do “segundo despacho” ao acatamento do “primeiro despacho”.

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra


1. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, representante do Ministério Público nesta Relação, requereu, nos termos do artigo 115º do Código de Processo Civil (CPC), a resolução do conflito negativo de competência surgido entre os Exmos. Juízes do 1º e 3º Juízos Cíveis da Comarca de Leiria, juntando as competentes cópias certificadas dos Despachos (ambos transitados em julgado) que originaram esse conflito, nos quais aqueles Magistrados, através do mecanismo processual da apensação de acções, se atribuem mutuamente a competência (negando a própria) para julgamento de dois processos de expropriação por utilidade pública, originariamente distribuídos, um deles, ao mencionado 1º Juízo, e, o outro, ao 3º Juízo, sendo que em ambos é Expropriante A... e Expropriados B... e mulher, C....

Com efeito, como se alcança do teor das certidões constantes de fls. 4/8 e 9/11, cada um dos referidos Magistrados ordenou a apensação do respectivo processo (no caso do 1º Juízo Cível de Leiria do processo nº 6394/06.7TBLRA; no caso do 3º Juízo Cível de Leiria do processo nº 6944/06.9TBLRA) ao processo do outro Juízo.

1.1. Entendeu o Exmo. Juiz do 1º Juízo (autor do Despacho certificado a fls. 4/8, transitado em julgado em 19/02/2007), que a circunstância de estarem em causa, nas duas expropriações, distintos imóveis pertencentes às mesmas pessoas, desencadeava a situação prevista no artigo 39º, nº 2 do Código das Expropriações (doravante designado CE, reportando-se a referência ao Código aprovado pela Lei nº 168/99, de 18 de Setembro) [“Quando dois ou mais imóveis tenham pertencido ao mesmo proprietário ou conjunto de comproprietários é obrigatória a apensação dos processos em que não se verifique acordo sobre os montantes das indemnizações.], adoptando como critério de apensação, por referência ao disposto no artigo 51º, nº 1 do CE, o do processo – rectius o do tribunal – ao qual corresponde a expropriação da parcela de maior extensão (v. fls. 7).

1.2. Por sua vez, o Exmo. Juiz do 3º Juízo (autor do Despacho certificado a fls. 9/11, transitado em julgado em 19/03/2007) entendeu, também baseado no pressuposto da aplicação do artigo 39º, nº 2 do CE, que o critério de determinação do processo ao qual ocorre a apensação era o resultante do nº 2 do artigo 275º do CPC [“Os processos são apensados ao que tiver sido instaurado em primeiro lugar […]”.], determinando a apensação do seu processo, enquanto processo instaurado posteriormente, ao do 1º Juízo (e recusando implicitamente a apensação ao respectivo processo do proveniente desse 1º Juízo).

1.3. Notificados os Exmos. Magistrados em conflito, nos termos constantes do trecho final do nº 1 do artigo 118º do CPC, nada disseram, tendo o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitido o Parecer de fls. 16, propugnando a resolução do conflito com a atribuição de competência ao Exmo. Juiz do 1º Juízo Cível de Leiria.

Dispensados que foram os vistos, cumpre apreciar e decidir o conflito, ultrapassando o impasse criado pelos dois Despachos mencionados.

2. Tomando por base os elementos acabados de relatar – e recordando que a Decisão proferida no processo nº 6394/06.7TBLRA transitou em julgado primeiramente que a proferida no processo nº 6944/06.9TBLRA –, cumpre apreciar o presente conflito, consignando-se que este não se configura, como a subsequente exposição tornará claro, como um verdadeiro conflito, constituindo antes o que poderíamos qualificar como um conflito atípico ou aparente, sendo certo, como demonstraremos de seguida, que o caso julgado formado pela primeira decisão (a proferida no processo nº 6394/06.7TBLRA, do 1º Juízo Cível de Leiria) se impunha – se impõe – ao Juiz do 3º Juízo Cível do mesmo Tribunal, em termos que vedavam a este último, concordasse ou não com o Despacho do seu Colega do 1º Juízo, tomar uma opção decisória antagónica da subjacente a esse Despacho.

Todavia, não obstante a situação configurada não corresponder em rigor a um conflito, não deixará esta Relação de solucionar o impasse criado pelos dois Despachos, fazendo-o, porém, no quadro dos “outros casos” aos quais o artigo 121º do CPC, manda aplicar o processo de resolução de conflitos previsto nos artigos 117º a 120º do mesmo compêndio normativo. Este tem sido, aliás, o tratamento que vem sendo dado pela jurisprudência do nosso Supremo Tribunal de Justiça a estes “conflitos aparentes” (v., por exemplo, o Acórdão de 17/02/2005, relatado pelo Exmo. Conselheiro Ferreira de Almeida, proferido no processo nº 04B3934, disponível em www.dgsi.pt/jstj.nsf).

É, pois, com este sentido – a resolução de um impasse criado por duas decisões transitadas antagónicas –, que se apreciará e decidirá o (aparente) conflito existente entre os dois Juízos Cíveis do Tribunal de Leiria.

2.1. Apreciando a situação, cumpre destacar que, conforme referem José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, anotando o artigo 115º do CPC, “[q]uer os conflitos de jurisdição suscitados entre tribunais, quer os conflitos de competência, têm hoje sempre na sua base uma situação de incompetência absoluta, nos termos do artigo 101º [do CPC]” [Código de Processo Civil anotado, Vol. 1º, Coimbra, 1999, p. 210.], acrescentando os mesmos autores, referindo-se especificamente aos conflitos de competência, “[ser] assim porque as decisões sobre incompetência relativa são, nos termos do artigo 111º, nº 2 [do CPC], vinculativas para o tribunal designado como competente, o qual vê por isso prejudicada a possibilidade de conhecer da sua própria competência em razão do território ou do valor e forma do processo, não podendo gerar-se o conflito de decisões; este só pode, pois, assentar na infracção das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia” [Ob. cit., p. 211.].

Ora, independentemente da qualificação que atribuamos ao desvalor consistente na inobservância das regras gerais ou especiais atinentes à apensação de acções [Em rigor, não parece sequer tratar-se de uma questão de competência, por não se referir à medida de jurisdição atribuída a um tribunal concreto: ambos os tribunais seriam aqui competentes, independentemente da observância das regras respeitantes à apensação de acções.], afigura-se-nos claro não estar em causa, com esse hipotético desvalor, uma questão passível de ser entendida como respeitando às regras de competência em razão da matéria, da hierarquia ou da competência internacional (artigo 101º do CPC), sendo que, como vimos, só relativamente a estas situações se pode configurar um conflito de competência, nos termos dos artigos 115º e seguintes do CPC. Assim, numa situação como esta – respeitante às regras de apensação de acções –, entendemos ser aplicável, quanto mais não seja por identidade de razão, a regra contida no artigo 111º, nº 2 do CPC [“A decisão transitada em julgado resolve definitivamente a questão da competência, mesmo que esta tenha sido oficiosamente suscitada.”], com a consequente vinculação do juiz do processo ao qual o processo a apensar é remetido, à decisão (transitada) do outro juiz que lhe remete esse processo, independentemente do possível acerto ou desacerto da posição deste, pois essa “externalidade” é aceite, enquanto “risco tolerável”, chamemos-lhe assim, pela teleologia do referido artigo 111º, nº 2, aqui aplicável por identidade de razão.

É em função desta caracterização do problema que aqui nos é suscitado, que entendemos este conflito como aparente, pois a existência de um verdadeiro conflito (aquele que, directamente, é regulado nos artigos 115º a 120º do CPC) assenta na “liberdade” de cada um dos juízes para dispor sobre a mesma situação decidida pelo outro. Ora, aqui está em causa – o que exclui essa “liberdade” – a vinculação do “segundo juiz” (aqui do Juiz do 3º Juízo Cível de Leiria, titular do processo nº 6944/06.9TBLRA) ao caso julgado formado pela decisão proferida pelo “primeiro juiz” (aqui do Juiz do 1º Juízo Cível de Leiria) no processo nº 6394/06.7TBLRA, e esta vinculação obsta a que aquele (o “segundo juiz”) decida, sobre a mesma questão, em sentido divergente.

2.2. É o que cumpre determinar, subsequentemente à formulação da seguinte síntese conclusiva:

I – Não originam um verdadeiro conflito de competência, mas antes um “conflito aparente”, os despachos transitados em que dois juízes, através do mecanismo processual da apensação de acções, se atribuem mutuamente a competência (negando a própria) para o julgamento de dois processos de expropriação por utilidade pública, nos quais estão em causa distintos imóveis pertencentes aos mesmos expropriados.
II – A existência de um verdadeiro conflito de competência (artigos 115º a 120º do CPC) assenta na “liberdade” de cada um dos juízes para dispor sobre a mesma situação decidida pelo outro, o que pressupõe uma situação de “incompetência absoluta”, por referência ao artigo 101º do CPC.
III – Tal não sucede com o possível desvalor consistente na inobservância das regras gerais ou especiais respeitantes à apensação de acções, que é assimilável, para este efeito, à situação prevista no artigo 111º, nº 2 do CPC.
IV – Assim, a decisão primeiramente transitada resolve definitivamente a questão da apensação, vinculando o juiz do processo ao qual o processo a apensar é remetido.
V – O impasse criado com o trânsito de ambos os despachos contraditórios respeitantes à apensação traduz um “outro caso”, para o efeito do artigo 121º do CPC, devendo tal impasse ser resolvido com a vinculação do juiz autor do “segundo despacho” ao acatamento do “primeiro despacho”.

3. Assim, entendendo-se estar o Exmo. Juiz do 3º Juízo Cível de Leiria vinculado ao cumprimento do Despacho proferido no processo nº 6394/06.7TBLRA (ou seja, à apensação deste processo ao seu processo nº 6944/06.9TBLRA), decide-se o impasse criado pelos dois Despachos antagónicos, no qual se traduz o presente conflito atípico, determinando-se ao Exmo. Juiz do 3º Juízo Cível de Leiria que receba, para apensação ao seu processo nº 6944/06.9TBLRA, o processo nº 6394/06.7TBLRA, tramitando-o doravante, nos termos resultantes do Despacho do Exmo. Juiz do 1º Juízo Cível de Leiria, certificado a fls. 4/8.

Sem Custas.

Coimbra,
(J. A. Teles Pereira)
(Jacinto Meca)
(Falcão de Magalhães)