Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
410/19.0T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
REJEIÇÃO DO RECURSO
NA SUA VERTENTE DE FACTO
AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE ATRAVÉS DA USUCAPIÃO DEMONSTRADA EM ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA, COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 607.º, N.º 5, 640.º, N.º 2, A) E 662.º DO CPC
1251.º, 1268.º, 1287.º E 1311.º O CÓDIGO CIVIL
7.º DO CÓDIGO DE REGISTO PREDIAL
Sumário: I - A nulidade da sentença – lato sensu, com inclusão da decisão sobre a matéria de facto -  por falta de fundamentação, apenas emerge quando existe total falta desta ou ela assume uma deficiência de tal modo grave que impeça a análise e sindicância das razões ou motivos, jurídicos ou factuais, que lhe subjazem e a alicerçam.

II - A não indicação, nem nas conclusões, nem no corpo alegatório, das exatas passagens da gravação onde constam os extratos dos depoimentos em que o recorrente se fundamenta, implica a liminar rejeição do recurso sobre a matéria de facto – artº 640º nº1 e nº 2 al. a) do CPC.

III - O fito último da aplicação do direito é a obtenção da verdade e a consecução da justiça material, em detrimento, se necessário, de anquilosados formalismos, ademais se sobre eles existiu erro ou engano.

IV - Provada a propriedade por aquisição em ação de preferência e não provada exceção que obste aos seus efeitos jurídicos, tal propriedade deve ser declarada e concedida.

Decisão Texto Integral:
Relator: Carlos Moreira
Adjuntos: João Moreira do Carmo
Fonte Ramos


Processo 410/19.0T8CBR.C1

ACORDAM  OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

AA instaurou contra  BB a presente ação declarativa, de condenação, sob a forma de processo comum.

Alegou, em síntese:

É dono e legítimo possuidor do seguinte prédio urbano situado em ... (...), inscrito na atual matriz sob o artigo ...63 - provindo do anterior sob 509.

Tal imóvel veio à sua posse, propriedade e titularidade por contrato de compra e venda formalizado e celebrado por escritura pública outorgada no dia 07/05/2010.

Por escrito outorgado no dia 29/09/1964, CC declarou dar de arrendamento ao réu e este declarou tomar de arrendamento para habitação, um prédio sito na Rua ..., ..., freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...05 o qual deu lugar ao atual número matricial urbano ...55.

O aqui demandado pretendeu levar por diante o exercício do direito de preferência na alienação da casa em que morava,

O ora autor só há uns meses teve conhecimento da preferência em causa e encetou pesquisas no sentido de localizar o respetivo processo.

Inexplicavelmente, o réu ocupa o imóvel descrito no início da p. i. e não aquele que tomou de arrendamento a CC em 29/09/1964 e que veio a adquirir  na ação sob o nº 1522/11...., do ... Juízo Cível de ..., por exercício judicial do direito de preferência na qualidade de inquilino substituindo-se à compradora DD.

E bem sabe que do direito de preferência na qualidade de inquilino  respeita à casa de habitação sita na Rua ....

O réu, sem qualquer autorização ou título que legitime a sua entrada e presença, vive, habita, pernoita, confeciona e toma as suas refeições, guarda as suas roupas, calçado e outros objetos pessoais no imóvel do autor, que é distante do arrendado.

Tudo contra a vontade do autor que já o interpelou para a situação e ilicitude da conduta, contudo sem sucesso

O ora autor e antes de saber que o réu foi o arrendatário do imóvel que adquiriu na ação própria já aludida, chegou a pensar que o demandado ali permanecia em função de arrendamento anterior.

Por isso, escreveu-lhe em 16/02/2011 para que passasse a depositar as rendas em conta sua titularidade e notificou-o através de notificação judicial avulsa (em 07/07/2014) para pôr fim a um suposto arrendamento, por falta de pagamento das rendas. É sabido agora que, ilícita e ilegitimamente o réu ocupa o imóvel urbano do autor e este não mais pretende tal situação.

Pelo menos após a carta enviada pelo autor ao réu e após a notificação judicial avulsa ficou o demandado ciente de que o imóvel descrito em 1º desta petição pertencia ao autor e que a coberto de título algum tem mantido a ocupação ilícita do mesmo.

Caso o réu não mantivesse a ocupação ilícita e à margem da lei e de qualquer título, sempre o autor obteria – o que deixou de obter – uma renda mensal de €70,00, no mínimo.

Desde a notificação judicial avulsa  de 07/07/2014 tem o autor um prejuízo de € 3.780,00 (€ 70 X 54 meses).

Assim, pediu que:

1 - o autor seja judicialmente declarado dono e legítimo proprietário e possuidor do imóvel descrito em 1 da petição que antecede e o réu seja condenado a reconhecer tal facto e direito;

2 - o réu seja condenado:

2.1 - a entregar ao autor o imóvel sub judice livre de pessoas, coisas suas ou de terceiros que aquele ali tenha guardadas;

2.1.1 - entrega essa no prazo de dez dias após o trânsito em julgado da sentença, sob pena de, não o fazendo nesse prazo, ser condenado a pagar ao autor um valor não inferior a cinquenta euros por cada dia de atraso no cumprimento da prestação de facto nos termos do artº 829º-A/1 do C. Civil e a título de sanção pecuniária compulsória;

2.2 - a não obstaculizar, por qualquer modo ou forma, a posse, uso e fruição do imóvel descrito em 1 pelo autor;

2.3 - a pagar ao demandante a importância pecuniária que vier a ser liquidada, em virtude daquele não ter podido usufruir do imóvel descrito em 1 da p.i. que antecede, que pretendia locar, pelo menos desde 07/07/2014 e a atualidade, tomando o valor de renda mensal mínima para a zona da ... – ..., de €70,00, e a título de indemnização decorrente da responsabilidade civil extracontratual supra exposta e calculado o seu valor à data atual (18/01/2019) no importe de € 3780,00;

2.3.1 - sem prejuízo de vir a ampliar-se aquele pedido por factos ilícitos, caso o decurso da ação revelar prejuízo ou perda de ganho em montante superior ao mencionado no pedido que antecede;

3 - a pagar as custas processuais, as de parte e procuradoria a favor do demandante nos termos do atual RCP;

4 - em qualquer dos casos de condenação de pagamento ao autor por parte do réu, deverá acrescer às quantias os juros legais civis, desde as datas da citação e do facto (07/07/2014), respetivamente, à taxa (atual) de 4% ao ano - e ainda, a contar do trânsito em julgado da sentença que vier a ser proferida, da sanção pecuniária compulsória, conforme ela é prevista no artº 829-A/4 do C. Civil.

O réu contestou.

Invocou as exceções de ineptidão da petição inicial e ilegitimidade passiva, consideradas improcedentes no despacho saneador - e deduziu reconvenção.

Alegou, em síntese:

 Em 29 de Novembro de 1964 tomou de arrendamento para habitação própria e do seu agregado familiar o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...05 da freguesia ..., concelho ....

Em 16 de Fevereiro de 2011 recebeu uma carta registada do autor dando-lhe conhecimento de que deveria passar a depositar a renda da casa onde habita e que tomara de arrendamento em 29 de Setembro de 1964, correspondente ao nº ...09 da freguesia ....

Ele, réu, enviou ao autor uma carta datada de 24 de Fevereiro de 2011, interpelando o autor sobre a sua legitimidade para lhe exigir o comprovativo do pagamento das rendas. O autor nunca respondeu a tal carta.

O autor lançou mão da notificação judicial avulsa em 7/07/2014, alegadamente para pôr fim a um suposto arrendamento por falta de pagamento de rendas.

Em Fevereiro de 2015, o autor requereu um procedimento especial de despejo junto do BNA, do qual veio a desistir já na fase judicial.

O autor recorreu à presente ação para se arrogar dono, legítimo possuidor e proprietário do prédio pertencente ao réu e por ele ocupado há mais de 50 anos, insistindo na falácia de que esse prédio corresponde ao artigo 509, por ele adquirido.

Por sentença proferida pelos Juízos Cíveis de ... em 14 de Novembro de 2011, transitada em julgado,  foi-lhe reconhecido o direito de preferência na venda a que se reporta uma escritura de 7 de Maio de 2010 e que o seu direito de propriedade se encontra registado na Conservatória do Registo Predial.

Sempre pagou os impostos relativos ao artigo 505, que deu origem ao atual artigo ...55, de que é proprietário.

Pediu:

A improcedência da ação.

Reconvindo, pediu:

Que o autor seja condenado a reconhecer que ele, réu, é o atual proprietário exclusivo do imóvel que ocupa ininterruptamente desde 1964, sito na ..., ..., ....

E que o autor seja condenado a indemnizá-lo por danos patrimoniais que lhe causou com a instauração da presente ação - abalo emocional, perda de apetite, insónias, amargura, quadro psicológico depressivo -, no montante de € 6.500.

Requereu a condenação do autor como litigante de má fé.

O autor replicou.

Disse que nunca pretendeu arrogar-se proprietário ou possuidor do imóvel inscrito na matriz sob o artigo ...05 da freguesia ... - actual artigo ...55 da União de freguesias de ... e ....

É real a diferença entre os artigos urbanos ...05 e ...09 da extinta freguesia ..., o réu adquiriu o artigo 505 e ocupa ilicitamente o 509.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«- julgo a presente acção improcedente e absolve-se o réu do pedido formulado pelo autor.

- julgo a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência, condeno o autor a reconhecer que o réu é o actual proprietário exclusivo do imóvel que ocupa ininterruptamente desde 1964, sito na ..., ..., ...; e condeno o autor a indemnizar o réu por danos não patrimoniais no montante de € 1.000 € (mil euros).»

3.

Inconformado recorreu o autor.

Rematando as suas alegações com as seguintes, aliás prolixas, conclusões.

1ª ) Porque a sentença recorrida não exarou a motivação que levou a nomenclar a factualidade considerada provada e não provada, ponto por ponto, bem como a especificação dos fundamentos de facto e de Direito que justificam a decisão, com análise crítica das provas, entende o apelante encontrar-se a mesma inquinada de nulidade insanável e irreparável, que aqui expressamente se invoca para todos os legais efeitos e nos termos do artigo 615º/1 als. b e c) do CPC, porquanto a norma do artigo 607º/4 do mesmo diploma impunha , ao Tribunal recorrido, a produção de uma decisão sem ambiguidade ou obscuridade, tonando-a inteligível.

 Caso assim não venha a entender-se, sem conceder ou condescender do que fica dito,

2ª ) O recorrente põe em crise, no concernente à matéria de facto considerada:

a) provada:

“Por escrito outorgado no dia 29/09/1964, CC declarou dar de arrendamento ao réu e este declarou tomar de arrendamento para habitação, um prédio sito na Rua ..., ..., freguesia ..., artigo 505 – mas que é efectivamente o antigo artigo 509.

O réu desde a celebração do dito contrato de arrendamento com o CC, em 29/09/1964, está a ocupar/residir na casa dada em arrendamento, a que corresponde o nº 1 de polícia. Aí habita, pernoita, confecciona e toma as suas refeições, guarda as suas roupas, calçado e outros objectos pessoais, mantendo consigo as chaves, entrando e saindo conforme entende.

Por estar convencido de que o prédio com o artigo matricial ...05 era o prédio em que habitava desde 1964, o réu, quando teve conhecimento dessa situação, resolveu exercer o seu direito de preferência na alienação da dita casa, onde habitava há décadas na qualidade de arrendatário, e para tanto instaurou uma acção judicial, que correu termos como acção sumária nº 1522/11.... do ... Juízo Cível de .... Nessa acção ficou assente que, “em meados de Janeiro de 2011 o ora réu, aí autor, começou a ouvir rumores de que a casa onde morava tinha sido vendida e como nada lhe havia sido comunicado e para aferir da veracidade desta situação, deslocou-se à Conservatória do Registo Predial, onde tomou conhecimento da escritura de compra e venda acima referida. Provou-se ainda que a partir dessa altura o autor passou a depositar as rendas na conta ...50, que abriu para o efeito na Banco 1... em nome da ré nessa acção, DD, tendo-a informado do facto através de carta registada.

O ora réu continuou a habitar a dita casa de habitação onde sempre residira desde a celebração do contrato de arrendamento, convicto de que é o seu proprietário.

Sucede, porém, que o imóvel dado e tomado de arrendamento - casa de habitação sita na Rua ... – corresponde, efectivamente ao antigo artigo matricial urbano ...09 da freguesia ... – e corresponde actualmente ao artigo 863 da União de freguesias de ... e ....

O artigo matricial urbano ...05 da freguesia ... corresponde actualmente ao artigo 865 da União de freguesias de ... e ... e tem o nº de polícia ...3.

O réu, pessoa idosa, tem andado inquieto, amargurado e deprimido em consequência da instauração da presente acção.

b) não provada:

“- que o réu não ocupa o imóvel que tomou de arrendamento a CC em 29/09/1964;

- que o réu, sem qualquer autorização ou título que legitime a sua entrada e presença, vive, habita, pernoita, confecciona e toma as suas refeições, guarda as suas roupas, calçado e outros objectos pessoais no imóvel do autor;

- que pelo menos após a carta enviada pelo autor ao réu e após a notificação judicial avulsa, o réu ficou ciente de que o imóvel descrito em 1º desta petição pertencia ao autor e que a coberto de título algum tem mantido a ocupação ilícita do mesmo, sempre contra a vontade do autor, bem sabendo que viola o direito de propriedade e correspectiva fruição do imóvel do autor.”

3ª ) Avançando para a fundamentação da matéria posta em crise, inicia o AR. com a súmula da “vexata quaestio” ou sejam as matérias de facto controvertidas, e que são:

- Se o R. ocupa o imóvel que arrendou;

- Se o R. adquiriu o imóvel que ocupa.

ANALISEMOS:

4ª ) Decorre do relatório pericial junto aos autos em 13/03/2021, que:

- o imóvel reivindicado pelo AR. “localiza-se na Travessa ..., ... , ..., ... ...”;

- o imóvel propriedade do R. “localiza-se na Rua ..., ... ... ...”; e

- “a localização e os limites dos artigos nº 505 e 509 na planta consultada na Câmara Municipal ... são coincidentes com os apresentados nas plantas entregues ao Serviço de Finanças ... (…) Da visita ao local a perita constata que o artigo nº 505 (atual 855) se encontra identificado pelo número de polícia ...3 e o artigo nº 509 (atual 863) pelo nº 1. Verifica ainda que a implantação dos artigos mantém a configuração apresentada nos documentos consultados nas entidades supracitadas.”

5ª ) Acontece que, o aqui R. apelado é proprietário do dito imóvel, porque intentou a acção sumária n.º 1522/11.... que correu termos elo ... Juízo Cível de ..., exercendo judicialmente o direito de preferência na alienação do imóvel matriciado sob 505 da freguesia ..., e na qual se decidiu/sentenciou:

“Pelo exposto, julga-se a presente acção procedente e, consequentemente, reconhece-se ao autor o direito de preferência na venda a que se reporta a escritura lavrada no dia 7 de Dezembro de 2010, em que intervieram EE, outorgando como procurador dos réus FF e GG, e a ré DD, substituindo-se a esta ré na aquisição, condena-se os réus a entregar o prédio ao autor e ordena-se o averbamento da aquisição à inscrição predial existente a favor da ré DD, substituindo-se esta pelo autor, e o cancelamento de quaisquer registos posteriores à transmissão a favor desta…”.

 6ª ) Resulta, pois, da factualidade julgada na presente acção que o RR. pretendeu (e conseguiu) substituir-se a DD na aquisição do imóvel sob artigo matricial ...05 (cfr. 2º parágrafo da página 6 da sentença recorrida), porque invocou que o habitava, por arrendamento, desde 1964, porém sendo certo que o RR. habita o imóvel propriedade do AR. matriciado sob 863 (actual e anterior 509/...) da União das freguesias de Santa Clara e HH, correspondente ao n.º 1 de polícia da Travessa ....

7ª )Assim, não foi o mesmo diligente no sentido de optar, em tempo útil, pela acção de preferência relativamente ao imóvel adquirido pelo AR. em 07/05/2010, o que facilmente poderia ter feito da mesma forma como o fez para a compra do prédio feita pela testemunha DD, contrariamente ao que consta da sentença [vide pág. 12 da sentença : “E nunca lhe foi dada a possibilidade de exercer o direito de preferência relativamente ao “artigo 509”…”]..

8ª ) Não se vislumbra qualquer troca/erro/lapso de números matriciais, mas a aquisição, em 2011, pelo RR. de um prédio diferente do que habita.

9ª )A sentença desvirtua a realidade factual com “convicções”/ “rumores”/ “intenções”, sendo certo que com a mesma se deixaria o RR. na titularidade de dois imóveis distintos, com dois títulos igualmente distintos, tendo só pago o preço de um deles, ao passo que o AR. ficaria sem qualquer imóvel, sem o preço que pagou, bem como os valores que despendeu com escritura, impostos, registo e a consequente carga fiscal em matéria de IMI.

10ª ) Diferentemente do que plasma a sentença recorrida, não há que fazer apelo à Jurisprudência no sentido de que a relação juridico-fiscal se esgota nos artigos matriciais, não negando ou afirmando qualquer direito de propriedade.

11ª ) Isto porque no caso em apreço a realidade / identidade física coincide / corresponde totalmente com a fiscal/matricial e igualmente com a camarária, conforme se depreende, no caso do relatório pericial, junto aos autos e já supra trazido à liça.

12ª ) Igualmente não colhe aqui a posição de aquisição originária do direito real sobre a derivada com registo, porque , por um lado até 2011 sempre o RR. possuiu em nome doutrem, a quem tenha tomado de arrendamento e, por outro, durante os últimos 11 anos, foram ao mesmo dirigidas interpelações, primeiro para pagar a renda e depois, a declaração de resolução do contrato e, por fim a presente acção , com entrada em Juízo já em 18/01/2019.

13ª ) Desse modo, jamais o RR. poderia ter preenchido os requisitos da aquisição originária do imóvel que ocupa propriedade do AR, atentos os caracteres específicos de tempo (20 anos) [vide pág. 12 da sentença : “Resulta da matéria de facto provada que o réu desde que celebrou o referido contrato de arrendamento reside no mesmo prédio – entidade física – inicialmente como arrendatário e depois como proprietário.” “E instaurou-a exactamente porque no mesmo residia há décadas como arrendatário.”] e formas (pacífica, pública e contínua, muito menos de boa-fé) diferente do que consta da fundamentação da sentença recorrida [vide pág. 13 da sentença : “Decorre também da matéria de facto provada que o réu, por si e por intermédio dos seus antepossuidores, vem exercendo actos de posse, reiteradamente, sobre aquele prédio, há várias décadas, muito para além dos vinte anos estabelecidos no artº 1296º do Código Civil. O réu tem corpus e animus.”].

14ª ) Entretanto, há a dizer que o RR. não alegou e consequentemente não provou que na acção sumária 1522/11.... do ... Juízo Cível de ..., tenha agido com um “convencimento” do exercício judicial do direito de preferência e que o tenha feito por erro / lapso nos artigos matriciais, razão a acrescer no sentido de que não estava o Tribunal “a quo” legitimado a considerar provado : “Por estar convencido de que o prédio com o artigo matricial ...05 era o prédio em que habitava desde 1964, o réu, quando teve conhecimento dessa situação, resolveu exercer o seu direito de preferência na alienação da dita casa, onde habitava há décadas na qualidade de arrendatário, e para tanto instaurou uma acção judicial, que correu termos como acção sumária nº 1522/11.... do ... Juízo Cível de .... Nessa acção ficou assente que, “em meados de Janeiro de 2011 o ora réu, aí autor, começou a ouvir rumores de que a casa onde morava tinha sido vendida e como nada lhe havia sido comunicado e para aferir da veracidade desta situação, deslocou-se à Conservatória do Registo Predial, onde tomou conhecimento da escritura de compra e venda acima referida. Provou-se ainda que a partir dessa altura o autor passou a depositar as rendas na conta ...50, que abriu para o efeito na Banco 1... em nome da ré nessa acção, DD, tendo-a informado do facto através de carta registada. ” [ vide pág 2 da sentença : “Inexplicavelmente, o réu ocupa o imóvel descrito no início da p. i. e não aquele que tomou de arrendamento a CC em 29/09/1964.”].

15ª ) E legitimado não estava, ainda, o Tribunal recorrido a assentar que : “Por escrito outorgado no dia 29/09/1964, CC declarou dar de arrendamento ao réu e este declarou tomar de arrendamento para habitação, um prédio sito na Rua ..., ..., freguesia ..., artigo 505 – mas que é efectivamente o antigo artigo 509.” [vide pág. 4 da sentença : “Alegou (o RR.), em síntese, que em 29 de Novembro de 1964 tomou de arrendamento para habitação própria e do seu agregado familiar o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...05 da freguesia ..., concelho ....”; “Mais alega (o RR.) que sempre pagou os impostos relativos ao artigo 505, que deu origem ao actual artigo ...55, de que é proprietário.”].

16ª ) Bem como o não estava legitimado a postergar a sentença transitada em julgado proferida na dita acção do ... Juízo Cível de ..., sob o número 1522/11.... e o contrato de arrendamento e consequentemente, desventrando o título aquisitivo do AR. relativamente ao imóvel objecto de reivindicação.

17ª ) Quanto à análise levada a cabo na sentença recorrida aos depoimentos das testemunhas:

- A filha do RR. , II, assume “lapso” na identificação do prédio onde o pai habita;

- a outra filha do RR., JJ, declarou que quando instado para pagar a renda, o mesmo só não o fez, ao irmão do AR., porque este “não mostrou qualquer documento” [vide pág. 4 da sentença “interpelando o autor sobre a sua legitimidade para lhe exigir o comprovativo do pagamento das rendas e que deveria ter anexado à sua carta cópia do título aquisitivo sobre o prédio urbano ocupado pelo réu”] e não por ser proprietário da casa; e

- a testemunha DD afirmou “Um dia, o réu disse-lhe que ela tinha comprado a casa onde ele vivia. Ela ficou estupefacta e disse ao réu que não tinha comprado a casa onde ele vivia. A casa que ela comprara nada tem a ver com a casa onde o réu vivia (vive). Há quatro casas entre ambas.”.

18ª ) Tanto é dizer que o erro não é de terceiro, muito menos do AR., mas sim do RR que intentou acção contra a testemunha DD para o exercício judicial do direito de preferência de um imóvel (fisicamente distante do que ocupa) sob pretexto de o habitar por arrendamento.

19ª ) É o AR. quem não pode ficar lesado e prejudicado com um erro do RR. porque, como se disse, face à sentença de que se recorre, na esfera patrimonial do RR. entraria mais um imóvel sem qualquer contrapartida e, ao invés, o AR. que adquiriu ficaria sem nenhum e sem qualquer contraprestação.

20ª ) Afigura-se-nos não ser, de todo em todo, legítimo sempre com o devido respeito por melhor e mais douta opinião, que este resultado ocorra, considerando-se, ainda assim, abuso do Direito (artigo 334º do C. Civil) por parte do apelante com a propositura da presente acção, cuja sentença de que se recorre entende o mesmo, o vitimiza, com eventuais erros do RR. que apenas de si próprio poderá queixar-se quanto à sua amargura, inquietude e depressão e da forma como intentou a AS a que supra se aludiu, invocando que sempre habitou um imóvel que agora diz que nunca habitou, afirmando na presente acção que habita da mesma forma o imóvel urbano em apresso e discussão, aqui sim, estamos perante uma situação de verdadeiro Abuso do Direito, uma vez que pretendeu o RR. a aquisição, por preferência de um imóvel, a vários metros de distância do “sub judice”, afirmando também que o habita desde 1964, defendendo a mesma ideia/alegação para ambos os processos, com imóveis distintos : a sua permanência ininterrupta desde 1964, não lhe assistindo, porém, o dom da ubiquidade.

21ª ) Impunha-se, assim, decisão diversa da tomada pelo Tribunal recorrido, porque existe amálgama probatória para: a) decidir e dar também como provado :

-“Por escrito outorgado no dia 29/09/1964, CC declarou dar de arrendamento ao réu e este declarou tomar de arrendamento para habitação, um prédio sito na Rua ..., ..., freguesia ..., artigo 505”;

-“O réu ao ter conhecimento da escritura atrás mencionada, resolveu exercer o seu direito de preferência na alienação da dita casa e para tanto instaurou uma acção judicial, que correu termos como acção sumária nº 1522/11.... do ... Juízo Cível de .... Nessa acção ficou assente que, “em meados de Janeiro de 2011 o ora réu, aí autor, começou a ouvir rumores de que a casa onde morava tinha sido vendida e como nada lhe havia sido comunicado e para aferir da veracidade desta situação, deslocouse à Conservatória do Registo Predial, onde tomou conhecimento da escritura de compra e venda acima referida. Provou-se ainda que a partir dessa altura o autor passou a depositar as rendas na conta ...50, que abriu para o efeito na Banco 1... em nome da ré nessa acção, DD, tendo-a informado do facto através de carta registada.”

- “que o réu não ocupa o imóvel que tomou de arrendamento a CC em 29/09/1964;”

- “O ora réu continuou a habitar a dita casa de habitação onde sempre residira desde a celebração do contrato de arrendamento”

- “que o réu, sem qualquer autorização ou título que legitime a sua entrada e presença, vive, habita, pernoita, confecciona e toma as suas refeições, guarda as suas roupas, calçado e outros objectos pessoais no imóvel do autor;”

- “que pelo menos após a carta enviada pelo autor ao réu e após a notificação judicial avulsa, o réu ficou ciente de que o imóvel descrito em 1º desta petição pertencia ao autor e que a coberto de título algum tem mantido a ocupação ilícita do mesmo, sempre contra a vontade do autor, bem sabendo que viola o direito de propriedade e correspectiva fruição do imóvel do autor.”

-“O imóvel urbano dado e tomado de arrendamento, casa de habitação matriciada sob 505 da freguesia ... corresponde actualmente ao artigo 865 da União de freguesias de ... e ... e tem o nº de polícia ...3 da Rua ...”

- “A casa de habitação sita na Travessa ..., ... corresponde, ao antigo artigo matricial urbano ...09 da freguesia ... (actualmente ao artigo 863 da União de freguesias de ... e ...).”

b) e como não provada apenas a seguinte factualidade:

“Por escrito outorgado no dia 29/09/1964, CC declarou dar de arrendamento ao réu e este declarou tomar de arrendamento para habitação, um prédio sito na Rua ..., ..., freguesia ..., artigo 505 – mas que é efectivamente o antigo artigo 509.”

 “O réu desde a celebração do dito contrato de arrendamento com o CC, em 29/09/1964, está a ocupar/residir na casa dada em arrendamento, a que corresponde o nº 1 de polícia. Aí habita, pernoita, confecciona e toma as suas refeições, guarda as suas roupas, calçado e outros objectos pessoais, mantendo consigo as chaves, entrando e saindo conforme entende.”

“Por estar convencido de que o prédio com o artigo matricial ...05 era o prédio em que habitava desde 1964, o réu, quando teve conhecimento dessa situação, resolveu exercer o seu direito de preferência na alienação da dita casa, onde habitava há décadas na qualidade de arrendatário, e para tanto instaurou uma acção judicial, que correu termos como acção sumária nº 1522/11.... do ... Juízo Cível de .... Nessa acção ficou assente que, “em meados de Janeiro de 2011 o ora réu, aí autor, começou a ouvir rumores de que a casa onde morava tinha sido vendida e como nada lhe havia sido comunicado e para aferir da veracidade desta situação, deslocouse à Conservatória do Registo Predial, onde tomou conhecimento da escritura de compra e venda acima referida. Provou-se ainda que a partir dessa altura o autor passou a depositar as rendas na conta ...50, que abriu para o efeito na Banco 1... em nome da ré nessa acção, DD, tendo-a informado do facto através de carta registada.”

“O ora réu continuou a habitar a dita casa de habitação onde sempre residira desde a celebração do contrato de arrendamento, convicto de que é o seu proprietário.”

“O réu, pessoa idosa, tem andado inquieto, amargurado e deprimido em consequência da instauração da presente acção.”  

22ª ) Todos os motivos pelos quais, face à matéria deste recurso, se impunha a seguinte decisão:

 - “julgar a acção procedente, porque provada, condenando o R. a reconhecer o A. como dono e proprietário do imóvel “sub judice”, não obstaculizando, por qualquer modo ou forma, a posse, uso e fruição do mesmo por parte do demandante e, consequentemente entregá-lo àquele livre de pessoas, coisas suas ou de terceiros que aquele ali tenha guardadas, o que fará em dez dias após o trânsito em julgado da sentença, sob pena de, não o fazendo nesse prazo, pagar ao A. o valor de cinquenta euros por cada dia de atraso no cumprimento da prestação de facto (artigo 829º-A/1 do C. Civil e a título de Sanção Pecuniária Compulsória); mais se condenando o R. a pagar ao demandante a importância pecuniária que vier a ser liquidada, em virtude daquele não ter podido usufruir do imóvel “sub judice”;

- julgar a reconvenção improcedente porque não provada absolvendo o A. do pedido reconvencional;

- Custas a cargo do R.”

23ª ) Assim não tendo acontecido, foram violadas pelo Tribunal “a quo” as normas de Direito contidas nos artigos 300º, 302º, 303º, 305º, 334º, 1251º a 1253º, 1255ºa 1263º, 1287º a 1290º, 1292º e 1267º todos do Código Civil e ainda 421º, 580º, 581º, 607º/4, 615/1 als. b) e c) do NCPC, entre outros .

 Contra alegou o réu pugnando pela manutenção do decidido.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são  as seguintes:

1ª – Nulidade da decisão sobre a matéria de facto por infundamentada.

2ª - Alteração da decisão  sobre a matéria de facto.

2ª -  Procedência da ação e improcedência da reconvenção.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

Clama o recorrente que a sentença – rectius a decisão sobre a matéria de facto – é nula por inquinada de  ambiguidade ou obscuridade, tonando-a inteligível, e por falta de fundamentação, tudo nos termos do artº 615º nº1 als. b) e c) do CPC.

O primeiro vício meridianamente inexiste.

O recorrente limita-se a invocá-la, mas não a justifica.

Nem tal justificação se alcança fosse possível, pois que ele, como demonstra no recurso, claramente a intuiu e compreendeu, já que apenas assim contra ela se pode insurgir.

Da falta de fundamentação.

Nos termos do artigo 205º, nº1 do Constituição:

«As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».

E estatui o artº 154º do CPC:

1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.

2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.

E o artº 607 nº4 do CPC  impõe ao julgador, na  vertente da decisão fáctica, a indicação dos factos julgados provados e não provados, bem como a indicação  dos elementos probatórios alicerçantes dos mesmos.

A necessidade da fundamentação prende-se com a garantia do direito ao recurso e tem a ver com a legitimação da decisão judicial.

Na verdade, a fundamentação permite fazer, intraprocessualmente, o reexame do processo lógico ou racional que lhe subjaz.

Ela é garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões.

Porque a decisão não é, nem pode ser, um ato arbitrário, mas a concretização da vontade abstrata da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional, as partes, maxime a vencida, necessitam de saber as razões das decisões que recaíram sobre as suas pretensões, designadamente para aquilatarem da viabilidade da sua impugnação.

E mesmo que da decisão não seja admissível recurso o tribunal tem de justificá-la.

É que, uma decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos, pois que estes destinam-se a convencer que ela é conforme à lei e à justiça, o que, para além das próprias partes a sociedade, em geral, tem o direito de saber – cfr. Alberto dos Reis, Comentário, 2º, 172 e Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1982, 3º vol., p.96.

Porém, mais uma vez, esta regra/exigência, aliás como muitas outras, não se assume radical e inelutavelmente sacramental.

Desde logo há que atentar numa exceção ou desvio legal a tal regra a qual consta  no artº 567º, o qual estatui:

3 - Se a resolução da causa revestir manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado.

O nº3 foi introduzido pela reforma de 1985 com o manifesto propósito de simplificar a atividade do juiz e atribuir maior celeridade ao processado e à decisão;  o que, de algum modo, se justifica, dado o desinteresse manifestado pelo réu que, citado, não contesta.

Depois, dos textos legais e dos ensinamentos doutrinais, retira-se que apenas a total e absoluta falta de fundamentação pode acarretar a nulidade.

Na verdade, a lei não comina com tão severo castigo uma motivação escassa, ou, mesmo deficiente. E onde a lei não distingue não cumpre ao intérprete distinguir.

Nem tal exigência seria de fazer considerando a «ratio» ou finalidade do dever de fundamentação supra aludidos.

O que a lei pretende é evitar é a existência de uma decisão arbitrária e insindicável.

Tal só acontece com a total falta de fundamentação.

Se esta existe, ainda que incompleta, errada ou deficiente, tal arbítrio ou impossibilidade de impugnação já não se verificam.

O que nestes casos apenas sucede é que a própria decisão pode convencer menos, dada a debilidade ou incompletude dos seus fundamentos. Mas pode ser sempre atacável e modificável.

Assim sendo, a grande maioria da nossa jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de que só a carência absoluta de fundamentação e não já uma motivação escassa, deficiente, medíocre, incompleta ou errada, acarreta o vício da nulidade da decisão – cfr. Entre outros, Ac. do STA de 18.11.93, BMJ, 431º, 531 e Acs. do STJ de 26.04.95, CJ(stj), 2º, 57, de 17.04.2004 e de 16.12.2004, dgsi.pt.

In casu.

Como é bom de ver, inexiste, meridianamente, o invocado vício de nulidade por falta de fundamentação factual.

Efetivamente, na sentença, depois de se mencionarem e explanarem os meios probatórios produzidos, vg. os testemunhais, operou-se uma análise crítica dos mesmos, nos seguintes termos:

«Conclui-se, assim, que, como foi referido por várias testemunhas, existe erro/troca no nº do artigo matricial correspondente ao prédio/casa onde o réu reside desde 1964. O réu reside no nº ... de polícia há décadas – primeiro como arrendatário, depois como proprietário. É manifesto que o réu teve a intenção de adquirir o prédio/casa onde residia há décadas quando instaurou a acção supra identificada para exercer o seu direito de preferência. É isso mesmo que resulta dos articulados e sentença proferida no âmbito desses autos - cfr. certidão junta pelo próprio autor nestes autos, a fls. 15 vº e ss.. Aí se refere que o ora réu e aí autor era arrendatário do prédio sito na Rua ..., desde 29 de Setembro de 1964. E o que deu origem ao problema em causa é que do contrato de arrendamento consta - erradamente, constata-se agora -, que o artigo matricial do dito prédio/casa era o artigo matricial nº ...05 – veja-se o contrato de arrendamento junto a fls. 30 e 85, mas também as certidões da Câmara Municipal ... de fls. 33 e 115, onde se diz que o artigo 505 (hoje artigo ...55) corresponde à edificação a que corresponde o nº de polícia ... (onde o réu reside desde 1964). O nº de polícia ... consta de vários documentos – vejam-se, por exemplo, osdocumentos juntos a fls. 33 vº a 35 (cartas para efeitos de actualização do valor da renda e recibos de renda), carta remetida pelo ora réu ao processo de execução fiscal (fls. 40 vº e 41), carta da Direcção Geral dos Impostos (fls. 41 vº), talões de depósito de rendas (fls. 42 a 43), fls. 45 e 46, fls. 86, fls. 92 vº e ss.. O próprio autor, na referida notificação judicial avulsa, refere que o réu reside no nº ... (fls. 62 e 63).

Até a testemunha KK, irmão do autor, que “fez o negócio” (compra e venda) para o irmão, declarou que a documentação está errada, embrulhada, que o réu habita no artigo 509 porque está na ideia de que comprou aquela casa e que sabe que o réu vive naquela casa há cerca de 40/50 anos.

A testemunha DD declarou foi às Finanças onde lhe disseram que havia um erro de artigos. Declarou ainda que o réu nunca teve outra moradia, sempre viveu onde vive, até “fez o telhado da casa todo novo” e que pensa que o réu não tinha qualquer interesse em comprar uma casa onde não vivia.»

Tanto basta para  afastar o vício apontado.

Os fundamentos da decisão de facto, quanto ao quid nuclear essencial dos autos, a saber: se houve troca de artigos e o réu sempre viveu na Rua ..., independentemente de tal a morada ter correspondido, certa ou erradamente, o artº ...05 ou 509,  foram clara e cabalmente exarados  e são percetíveis e sindicáveis.

De tal modo estão presentes que o recorrente os intuiu e contra eles se insurge, entendendo que não são suficientes para a sua condenação a  este título.

Ainda que no domínio do rigorismo formal, a fundamentação da decisão de facto deva, preferencialmente, fazer corresponder os elementos de prova aos factos concretos a que respeitem, tal não é regra sacramental, podendo tal remissão operar apenas ou também para um núcleo factual de teor e teleologia essencialmente homogéneos.

É o que se verifica nos autos, pois que  os factos impugnados pelo recorrente  assumem este jaez de homogeneidade e os mesmos, como se viu, estão patentemente fundamentados.

De tal sorte, reitera-se, que o recorrente interiorizou e compreendeu tal fundamentação e, assim, contra ela se insurgiu.

Tanto basta para se concluir pela inexistência do vício assacado.

Ou seja, bem vistas as coisas, a essencial e  verdadeira  irresignação do insurgente não se atém ao vício da nulidade formal da decisão, mas antes à sua vertente substantiva de ilegalidade.

Mas esta é outra vertente que não se mistura com, nem condiciona aqueloutra, antes cada uma  delas assumindo a sua autonomia e relevância jurídica,  e, por isso, não devendo ser confundidas.

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente;  mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005  e de 23-04-2009  dgsi.pt., p.09P0114.

Assim sendo, constitui jurisprudência sedimentada, que:

«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

5.2.2.

Acresce que, e como dimana do preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 de 15.02 (…), «a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.».

Assim e como corolário deste princípio e desiderato legal:

«impôs-se ao recorrente um “especial ónus de alegação”, no que respeita “à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”, em decorrência “dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º [actual 662º]) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito e julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.»

Dimana daqui que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção.

Mas tal não implica um novo e global  julgamento, quer quanto à matéria factual decidida, quer quanto aos meios probatórios produzidos.

O recurso sobre os factos assume-se antes e apenas com o jaez da natureza ou idiossincrasia desta figura, ou seja, trata-se  somente de reponderar ou reapreciar o julgamento que deles foi feito na 1ª instância e, portanto de aferir se a 1ª  instância  cometeu, ou não cometeu, nessa decisão, um error in judicando. – cfr. Des. Henrique Antunes, in RECURSO DE APELAÇÃO E CONTROLO DA DECISÃO DA QUESTÃO DE FACTO, https://www.stj.pt › wp-content › uploads › 2015/07 e  Ac. do STJ de 30.05.2019, p. 156/16.0T8BCL.G1.S1 in dgsi.pt. como os infra citados.

Efetivamente:

«…importa ter presente que, no domínio do nosso regime recursório cível, o meio impugnatório para um tribunal superior não visa propriamente um novo julgamento global ou latitudinário da causa, mas apenas uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão recorrida. Significa isto que a finalidade do recurso não é proferir um novo julgamento da ação, mas julgar a própria decisão recorrida.» - Acs. do STJ de  09.07.2015, p. 405/09.1TMCBR.C1.S1.Ac.; de  01.10.2015, p. 6626/09.0TVLSB.L1.S1.;  e de 17.03.2016, p. 124/12.1TBMTJ.L1.S1.

Isto porque:

«…a lei, cooptando o recorrente para a colaboração com o tribunal e para a autorresponsabilização, visa agilizar a intervenção da Relação na reapreciação (que é pontual, no sentido de circunscrita a certos factos e a certas provas) da matéria de facto…» - Ac. do STJ de 18.06.2019, p. 152/18.3T8GRD.C1.S1.

Pois que:

«o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta aos interessados o acesso ao recurso de forma ilimitada, sendo por isso, conforme à Constituição da República Portuguesa a imposição de ónus para quem impugna a matéria de facto dada como provada pela 1ª instância”» - Ac. do STJ de  19.12.2018, p. 2364/11.1TBVCD.P2.S2.

(sublinhado nosso)

Na verdade, a aceitação de um, novo e global,  julgamento constituiria até um desmerecimento e o lançamento de um labéu/suspeição sobre a competência e/ou idoneidade do juiz da 1ª instância, pois que assim ele se consideraria inepto para bem apreciar toda a prova produzida, e, consequentemente, para bem fixar todos os factos relevantes.

5.2.3.

Por outro lado, nesta senda e com este fito, estatui o artº 640º do CPC:

«1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;»

Nesta vertente urge ter presente que não basta a indicação do inicio e fim do depoimento no respetivo suporte magnético.

É que:

«…A indicação precisa do início e termo das concretas (…) passagens da gravação destina-se a simplificar a tarefa da Relação na reapreciação da prova gravada, não só chamando a atenção para aquela parte do depoimento, como tornando mais fácil e célere a respetiva localização na gravação, sabido como é que, em regra, cada testemunha depõe sobre mais do que um facto. De outra forma bastaria que o recorrente impugnasse a decisão sobre a matéria de facto cumprindo todos os ónus estabelecidos no art. 640º do CPC, com exceção do determinado na al. a) do nº 2, e requeresse a audição e reapreciação integral de todos ou de alguns os depoimentos o que significaria a repetição do julgamento, desiderato que não foi visado pelo legislador”.» - Acs. do STJ de 26.1.2017, p. 599/15.7T8CLD.C1.S1, apud, Ac. do STJ de 18.09.2018, p. 108/13.2TBPNH.C1.S1;  de 27.10.2016, p. 3176/11.8TBBCL.G1.S1; de 05.08.2018, p. 15787/15.8T8PRT.P1.S2. e de 14.06.2021, p. 65/18.9T8EPS.G1.S1.

A transcrição  dos depoimentos não exime ao cumprimento daquele dever – Des. Henrique Antunes, ob. e loc. cits. e Ac. do STJ de   14.06.2021, p. 65/18.9T8EPS.G1.S1.

Certo é que o cumprimento destes requisitos formais  deve ser avaliado em função de critérios de razoabilidade e proporcionalidade.

Pelo que, presentemente, é entendimento maioritário dos tribunais de recurso – Relações e STJ -  que o não cumprimento,  nas conclusões, do requisito da al. a) do nº2 – indicação com exatidão das passagens da gravação dos depoimentos em que se estriba – não é motivo de indeferimento liminar se tal foi cumprido no corpo alegatório.

Mas se nem no corpo alegatório tal ónus não é cumprido, este motivo já se verifica.

De notar que a falta  de cumprimento dos aludidos ónus não admite convite ao seu aperfeiçoamento- cfr. vg., Ac. do STJ S 27.10.2016, p. 110/08.6TTGDM.P2.S1 e Henrique Antunes, ob. e loc. cits.

De tudo o referido decorre que  o recorrente não pode limitar-se a invocar, mais ou menos abstrata, genérica e indiferenciadamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.

Antes ele devendo efetivar uma análise concreta, discriminada – por reporte de cada elemento probatório a cada facto probando -  objetiva, crítica, logica e racional, do acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

Se assim não for, e:

«Limitando-se o impugnante a discorrer sobre os meios de prova carreados aos autos, sem a indicação/separação dos concretos meios de prova que, relativamente a cada um desses factos, impunham uma resposta diferente da proferida pelo tribunal recorrido, numa análise crítica dessa prova, não dá cumprimento ao ónus referido na al. b) do nº 1 do artº 640º do CPC.

 Ou seja, o apelante deve fazer corresponder a cada uma das pretendidas alterações da matéria de facto o(s) segmento(s) dos depoimentos testemunhais e a parte concreta dos documentos que fundou as mesmas, sob pena de se tornar inviável o estabelecimento de uma concreta correlação entre estes e aquelas.» - Ac. do STJ de   14.06.2021, p. 65/18.9T8EPS.G1.S1.(sic).

E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção,  se podem censurar as respostas dadas.– Cfr. Ac. do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1.

Porque, afinal, quem  tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz e não a parte, e atento o supra aludido em 5.1.1, a  lei  apenas permite a censura da convicção do julgador  se os meios probatórios invocados impuserem (não basta  apenas que sugiram) decisão diversa da recorrida.

Ora tal censura apenas pode advir desde logo com cumprimento dos ónus formais legais que não somente da apriorística e subjetiva irresignação do recorrente, não cabal, concreta, discriminada  e inequivocamente  substanciada, e pelo modo legal exigido.

5.2.4.

O caso vertente.

Desde logo o autor, invocando prova testemunhal e tendo esta sido gravada, não cumpriu minimamente o ónus imposto pela al. a) do nº2 do artº 640º citado, pois que nem nas conclusões, nem no corpo alegatório, indicou com exatidão -   aliás omitiu completamente tal indicação -  as passagens da gravação onde constam os extratos dos depoimentos em que se fundamenta.

Pelo que, por este motivo, e como vem de explanar-se, o recurso sobre a decisão factual tem de ser liminarmente rejeitado.

Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, outrossim por razões substanciais o recurso soçobraria nesta vertente.

Pois que nem o recorrente cumpre, ele próprio, o que exigia à julgadora, ou seja o reporte dos concretos meios probatórios a cada um dos concretos factos impugnados.

Nem, de sobremaneira, os meios probatórios por ele invocados e a exegese que sobre os mesmos opera, são os bastantes para impor a censura da convicção da Srª Juíza.

Na verdade, e aceitando o teor dos  extratos dos depoimentos das testemunhas por ela evidenciados – o que o recorrente não contesta –, bem como toda a prova documental carreada para os autos, claramente se conclui que o réu sempre quis adquirir a casa onde reside desde 1964, que esta casa se situa na Rua ..., e que terá havido erro no contrato de arrendamento e/ou nas Finanças na identificação de tal nº de polícia com o artº  matricial 505, quando, na realidade, se tratava do artº 509.

5.2.5.

Por conseguinte, e no indeferimento da presente pretensão, os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber (que, para melhor referenciação, vão numerados, como,  na  sentença, logo deveriam ter sido):

1- Em contrato de compra e venda formalizado e celebrado por escritura pública outorgada no dia 07/05/2010 no Cartório Notarial a cargo da ..., sito na Avenida ..., em ..., exarada de fls. 49 a 51 vº do Livro 226, em que outorgaram como vendedores (no acto representados por procurador) FF, viúva, natural de ..., ..., residente na ..., ... e GG, natural da freguesia ..., ...; e como comprador, o ora autor AA, aqueles declararam vender e o autor declarou aceitar comprar, entre outros, o seguinte prédio urbano, sito na freguesia ..., concelho ...: “casa de habitação, com cinquenta e cinco metros quadrados de área de implantação e com quarenta e cinco vírgula cinquenta metros quadrados de logradouro, sito na Rua ..., a confrontar do norte com estrada, e do sul, nascente e poente com bens da herança, inscrito na matriz sob o artigo ...09, com o valor patrimonial de € 19.235,25”.

2 - O referido artigo matricial urbano ...09 da freguesia ... corresponde actualmente ao artigo 863 da União de freguesias de ... e ... e tem o valor tributável/tributário de € 19.956,57.

3 - Em 10/05/2010 o autor procedeu ao registo do imóvel a seu favor na ... Conservatória do Registo Predial ... descrita na ... Conservatória do Registo Predial ... - sob o número ...10/..., aí inscrito a favor do requerente pela Ap. ...05 de 10/05/2010.

4 - Por escrito outorgado no dia 29/09/1964, CC declarou dar de arrendamento ao réu e este declarou tomar de arrendamento para habitação, um prédio sito na Rua ..., ..., freguesia ..., artigo 505 – mas que é efectivamente o antigo artigo 509.

5 - O réu desde a celebração do dito contrato de arrendamento com o CC, em 29/09/1964, está a ocupar/residir na casa dada em arrendamento, a que corresponde o nº 1 de polícia. Aí habita, pernoita, confecciona e toma as suas refeições, guarda as suas roupas, calçado e outros objectos pessoais, mantendo consigo as chaves, entrando e saindo conforme entende.

6 - O imóvel sito na Rua ..., ..., freguesia ..., com o artigo matricial ...05 deu lugar ao actual número matricial urbano ...55 da União de freguesias de ... e ... e está descrito na ... Conservatória de Registo Predial ... sob o número ...62/..., aí estando inscrita a aquisição a favor do réu sob a ap. ...64 de 24/04/2012.

6 - Por escritura pública de compra e venda lavrada no dia 7 de Dezembro de 2010, os já mencionados FF e GG (através do mesmo procurador supra referido), declararam vender a DD, residente na Rua ..., ..., ..., ..., e esta declarou comprar àqueles, o imóvel sito na Rua ..., ..., freguesia ..., com o artigo matricial ...05.

7 - Por estar convencido de que o prédio com o artigo matricial ...05 era o prédio em que habitava desde 1964, o réu, quando teve conhecimento dessa situação, resolveu exercer o seu direito de preferência na alienação da dita casa, onde habitava há décadas na qualidade de arrendatário, e para tanto instaurou uma acção judicial, que correu termos como acção sumária nº 1522/11.... do ... Juízo Cível de .... 8 - Nessa acção ficou assente que, “em meados de Janeiro de 2011 o ora réu, aí autor, começou a ouvir rumores de que a casa onde morava tinha sido vendida e como nada lhe havia sido comunicado e para aferir da veracidade desta situação, deslocou-se à Conservatória do Registo Predial, onde tomou conhecimento da escritura de compra e venda acima referida. Provou-se ainda que a partir dessa altura o autor passou a depositar as rendas na conta ...50, que abriu para o efeito na Banco 1... em nome da ré nessa acção, DD, tendo-a informado do facto através de carta registada.

9 - Na acção sumária nº 1522/11.... do ... Juízo Cível de ... foi decidido “Pelo exposto, julga-se a presente acção procedente e, consequentemente, reconhece-se ao autor o direito de preferência na venda a que se reporta a escritura lavrada no dia 7 de Dezembro de 2010, em que intervieram EE, outorgando como procurador dos réus FF e GG, e a ré DD, substituindose a esta ré na aquisição, condena-se os réus a entregar o prédio ao autor e ordena-se o averbamento da aquisição à inscrição predial existente a favor da ré DD, substituindo-se esta pelo autor, e o cancelamento de quaisquer registos posteriores à transmissão a favor desta…”.

10 - O ora réu continuou a habitar a dita casa de habitação onde sempre residira desde a celebração do contrato de arrendamento, convicto de que é o seu proprietário.

11 - Sucede, porém, que o imóvel dado e tomado de arrendamento - casa de habitação sita na Rua ... – corresponde, efectivamente ao antigo artigo matricial urbano ...09 da freguesia ... – e corresponde actualmente ao artigo 863 da União de freguesias de ... e ....

12 - O artigo matricial urbano ...05 da freguesia ... corresponde actualmente ao artigo 865 da União de freguesias de ... e ... e tem o nº de polícia ...3.

13 - Em 16/02/2011 o autor escreveu para o réu, instando-o a que passasse a depositar as rendas em conta da sua titularidade.

14 - O réu, por carta datada de 24/02/2011, respondeu à carta do autor, interpelando o mesmo sobre a sua legitimidade para lhe exigir o comprovativo do pagamento de rendas e dizendo que o autor deveria ter anexado à carta cópia do título aquisitivo relativo ao dito prédio urbano.

15 - Por notificação judicial avulsa, em 07/07/2014, o autor notificou o réu, dando-lhe conhecimento de que considerava resolvido um (suposto) arrendamento relativo ao prédio urbano sito na Rua ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., sob o artigo ...09, em ....

16 - O réu, pessoa idosa, tem andado inquieto, amargurado e deprimido em consequência da instauração da presente acção.

17 - O valor médio das rendas dos anos de 2014 a 2019 na zona onde se situa o prédio em causa nos autos é de € 235.

5.3.

Terceira questão.

A julgadora decidiu, de jure, aduzindo o seguinte, sinótico e essencial, discurso argumentativo:

«A acção de reivindicação, disciplinada no artº 1311º do Código Civil, constitui a acção real por excelência, na medida em que constitui, praticamente, o meio exclusivo pelo qual o proprietário pode ver restituído o que lhe pertence, retirando a coisa da detenção de quem injustamente dela se apoderou…

Caracteriza esta acção a natureza complexa da causa de pedir, que engloba o acto ou facto jurídico de que deriva o direito de propriedade do(s) autor(es) e a ocupação do prédio reivindicado. A estes pressupostos subjectivos alia-se um requisito objectivo, a identidade da coisa que é reivindicada com a coisa que é possuída pelo(s) réu(s…

Uma vez provados aqueles dois requisitos, a restituição da coisa só pode ser recusada nos casos previstos na lei (artº 1311º, nº 2 do Código Civil), isto é, quando e se o(s) réu(s) provar(em) um facto impeditivo da entrega da coisa reivindicada: que esta lhe(s) pertence, que tem sobre ela um direito real que justifique a posse ou que a detém por virtude de um direito pessoal bastante.

Para evitar a necessidade da prova de uma cadeia ininterrupta de transmissões até se encontrar um título de aquisição originária, a designada probatio diabolica, permite-se que os autores se socorram de uma presunção legal resultante, quer da posse (artº 1268º do Código Civil), quer do registo …

a presunção a que se refere o artº 7º do Código do Registo Predial não se estende à verdade material dos elementos da descrição, isto é, não se estende às confrontações do imóvel e à respectiva área. Por outras palavras, a presunção em referência apenas faz presumir que o facto inscrito incide sobre a coisa identificada na descrição, mas não as características respectivas…

A compra e venda, não é constitutiva do direito de propriedade, apenas transmite o direito que existia na esfera jurídica do alienante (nemo plus juris ad alium transfere potest, quam ipse habet)…Tratando-se de uma modalidade de aquisição derivada, não resiste se lhe for oposta a aquisição originária do mesmo direito real…

A usucapião determina, salvo disposição em contrário, a aquisição originária do direito correspondente à posse exercida durante certo lapso de tempo (artº 1287º do Código Civil), traduzindo-se aquela, tal como se acha definida no artº 1251º do Código Civil, no poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, poder que se traduz na prática de actos que o exteriorizam, no exercício de poderes de facto (corpus) reveladores da aparência do direito e que exprimem ou fazem presumir a vontade de quem os pratica, na relação material que mantém com coisa, de agir como titular do direito real correspondente (animus possidendi)…

É entendimento pacífico na jurisprudência que os artigos matriciais esgotam os seus efeitos na relação jurídico-fiscal, não negando nem afirmando um determinado direito de propriedade (se bem que o pressuponham). A identidade matricial tem de apurar-se com base nos documentos dos serviços de finanças, mas a identidade física do prédio há-de apurar-se pela restante prova produzida. A inscrição matricial é apenas um elemento de identificação para o recenseamento fiscal dos imóveis - que pode até nem existir e nem por isso o prédio deixa de ter existência real…

Resulta da matéria de facto provada que o réu desde que celebrou o referido contrato de arrendamento reside no mesmo prédio – entidade física – inicialmente como arrendatário e depois como proprietário. Veio a adquirir a propriedade do prédio na sequência da acção de preferência que instaurou. E instaurou-a exactamente porque no mesmo residia há décadas como arrendatário. É certo que existe o referido erro/lapso no que concerne ao número do artigo matricial. Mas isso não põe em causa a entidade física do prédio, sempre o mesmo.

Aliás, o réu não pode ser prejudicado pelo erro de terceiro(s), até porque tinha sólidos fundamentos para estar convicto de que o artigo matricial em causa era o antigo artigo 505. E nunca lhe foi dada a possibilidade de exercer o direito de preferência relativamente ao “artigo 509”… Por outro lado, o autor, quando negociou (através do seu irmão) a compra do prédio deveria ter apurado em que circunstâncias o réu aí habitava… O próprio autor refere na petição inicial que “… chegou a pensar que o demandado ali permanecia em função de arrendamento anterior, situação que o procurador dos vendedores do imóvel não soube decifrar e bem ou mal explicar ao autor… Ora, o autor devia ter diligenciado por apurar tal situação antes de celebrar o contrato de compra e venda… Por outro lado, o autor enviou a dita carta ao réu em 2011, carta à qual o réu respondeu nos termos acima referidos. Só anos depois, em 2014, o autor fez a notificação judicial avulsa e só em 2019 instaurou a presente acção…

Todo este comportamento manifesta a negligência do autor no esclarecimento/resolução da situação… Decorre também da matéria de facto provada que o réu, por si e por intermédio dos seus antepossuidores, vem exercendo actos de posse, reiteradamente, sobre aquele prédio, há várias décadas, muito para além dos vinte anos estabelecidos no artº 1296º do Código Civil. O réu tem corpus e animus.

Perante o circunstancialismo descrito, entendemos que a acção ora instaurada pelo autor constitui um autêntico abuso de direito»

Esta análise e subsunção mostra-se desde logo em tese, curial e, para o caso concreto e atentos os seus contornos fáctico circunstanciais apurados, alcança-se, na sua essencialidade relevante e consequência final, adequada;  pelo que urge corroborá-la e chancelá-la.

 Diga-se apenas mais o seguinte em seu abono.

O fito último da aplicação do direito é a consecução da justiça material, através da busca e alcance da verdade do objeto/situação colocados à consideração do julgador.

Isto em detrimento, se necessário, da perspetivação e consideração de anquilosados e obsidiantes aspetos ou contornos formais.

Assim sendo, a justiça do caso passava por apurar: onde, desde o arrendamento de 1964, o réu viveu?

Ora a prova produzida convenceu, e tal foi dado como provado, que ele sempre viveu na Rua ...

Este facto decide a ação.

Se o réu sempre aqui viveu é óbvio que a ação de preferência se reportou, real e efetivamente que é o que importa, a esta casa e  a mais nenhuma

E independentemente do artigo matricial que lhe tenha sido atribuído, é esta a casa que está em discussão e mais nenhuma.

Ao que parece houve erro na identificação matricial de tal casa, sendo referenciada com o artº ...05 quando o deveria  tê-lo sido  com o artº 509.

Mas tal não basta, como pretende o autor, para lançar a confusão e obter uma pretensão que, materialmente, é injusta.

Então se ele próprio admitiu o arrendamento e lhe quis pôr fim, vem agora dar o dito por não dito e, em venire contra factum proprium, e, com base em meros formalismos erros e enganos, querer obter uma pretensão que, substantivamente sabe, ou era-lhe exigível que soubesse, não ter direito?

Como bem se diz na sentença, se o autor não logrou averiguar o exato estado material e jurídico da casa que comprou, e qual casa, afinal comprou, sibi imputat.

Certo é que o réu exerceu o seu direito de preferência sobre a casa que sempre habitou, o mesmo foi-lhe concedido, e aquela concreta casa  da Rua ..., e mais nenhuma, é, reitera-se, sua e só sua.

Apenas um reparo para sentença.

Tal como defendido, aqui bem, pelo autor, o réu não adquiriu ainda a casa que sempre habitou via usucapião.

Na verdade, e até 2011, o réu, enquanto arrendatário, exerceu a posse em nome alheio,  em nome do locador, pelo que não atuando sobre a casa como se dono dela fosse, tal posse não pode fundamentar a usucapião.

E porque desde este ano não decorreu ainda qualquer prazo legal bastante para usucapir – nem o menor de dez anos, previsto no artº 1294º al. a) do CC,  pois que, apesar de poder existir, não está provada a data do registo do título aquisitivo: em ação de preferência -  não se pode concluir, como na sentença, que o réu já adquiriu a casa pelo modo originário da usucapião.

Não obstante, e como se disse na sentença, a propriedade  da casa por banda do réu dimana da  sua aquisição na ação de preferência, o que é o qb, para lhe atribuir ganho de causa, sendo certo que o autor não provou - antes o réu provou o contrário -, qualquer facto jurídico excecionante e obstativo dos efeitos jurídicos decorrentes de tal aquisição.

Quanto ao mais,  ou seja, a condenação por danos não patrimoniais, o autor não coloca tal sub sursis, nem se antolha razão para censurar o decidido.

Efetivamente entende-se que os factos provados assumem  gravidade  bastante para atribuir jus ao réu indemnização a este título.

Devendo ainda considerar-se que a mais recente jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal vem reconhecendo que se torna necessário elevar o nível dos montantes dos danos morais, perante o condicionalismo económico do momento, e o maior valor que hoje se atribui à vida, integridade física e dignidade humanas.

 Sendo que, hodiernamente se vislumbra sedimentada uma corrente jurisprudencial que visa afastar critérios miserabilistas de fixação desta espécie de danos, pautando-se por uma justa, naturalmente mais elevada, fixação dos montantes indemnizatórios.

Efetivamente: «“É inegável a presença de um certo esforço, no sentido da dignificação das indemnizações. Importante é, ainda, a consciência do problema por parte dos nossos tribunais. Há, agora, que perder a timidez quanto às cifras…

Não vale a pena dispormos de uma Constituição generosa, de uma rica e cuidada jurisprudência constitucional e de largos desenvolvimentos sobre os direitos de personalidade quando, no terreno, direitos fundamentais tais como a vida valham menos de € 60.000.”» -   Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, 755, apud, Ac. do STJ de  07.05.2014, p. 436/11.1TBRGR.L1.S.

 No caso vertente, e considerando o aludido, a indemnização fixada, se peca, é por defeito; sendo, porém, de manter, porque não impugnada.

Improcede o recurso.

(…)

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 2023.01.10.