Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4281/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: DOMÍNIO PÚBLICO
DESAFECTAÇÃO
Data do Acordão: 02/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CONDEIXA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 202.º, N.º 2 E 1311.º DO CÓDIGO CIVIL; DECRETO N.º 23265, DE 15/02/1934; ASSENTO DE 19/04/1989
Sumário: 1. A atribuição do carácter dominial depende de um, ou vários, dos seguintes requisitos: a) existência de preceito legal que inclua toda uma classe de coisas na categoria de domínio público; b) declaração de que certa e determinada coisa pertence a essa classe; c) afectação dessa coisa à utilidade pública.
2. Uma coisa está afectada à utilidade pública sempre que, desde tempos imemoriais, esteja no uso directo e imediato do público.

3. A doutrina consagrada no Assento de 19.04.1989 deverá ser interpretada restritivamente no sentido de a publicidade do bem exigir ainda a sua afectação à utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objectivo a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância;

4. Os bens dominiais quando deixam de ter utilidade pública perdem o carácter dominial e ingressam no domínio privado da pessoa jurídica de direito público, deixando de ser imprescritíveis e inalienáveis.

5. Tal processo é designado por desafectação do domínio público que pode ser expressa ou tácita.

6. Para que ocorra desafectação tácita é mister que a coisa pública, em si mesma, deixe de estar nas condições comuns de servir o fim da utilidade pública e passe a estar nas condições comuns aos bens do domínio privado da Administração pública.

7. O simples desinteresse ou abandono administrativo de uma coisa dominial que haja conservado a utilidade pública não vale como desafectação tácita.

8. Terá de que proceder a acção de reivindicação de propriedade com fundamento no carácter público da coisa, mesmo que se prove que a coisa, entretanto, passou a integrar o domínio privado da pessoa colectiva de direito público.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I)- RELATÓRIO

A JUNTA DE FREGUESIA DE A..., do Município de Condeixa-a-Nova, intentou, no Tribunal de Condeixa-a-Nova, acção declarativa de reivindicação, sob a forma de processo ordinário, contra B... e esposa C..., formulando os seguintes pedidos:
a)-se declare que o terreno de 50 m2 de extensão que se encontra encravado entre o prédio dos RR. e o imóvel pertença de E... pertence ao domínio público.
b)-sejam os RR. condenados a reconhecer esse logradouro como do domínio público e a não continuarem a ocupação do referido terreno.
c)-sejam os RR. condenados a abster-se de, por qualquer forma, realizarem quaisquer construções ou obras no referido espaço, designadamente aquelas que se destinem à apropriação do mesmo.
d)-sejam os RR. condenados a repor o terreno público no estado anterior à ocupação, nomeadamente entupindo a fossa séptica abusivamente aberta e a destruir a construção de uma escada.
e)-sejam os RR. condenados a abster-se de, por qualquer meio, obstarem ou dificultarem o uso público do referido espaço,
f)-por se encontrar construída a varanda a menos de 1,5 metros, sejam os RR. condenados a fechar a mesma até à altura regulamentar – 1,8m.
g)-e condenados a fechar as janelas, que deitam directamente para o terreno público, até à altura regulamentar e nelas colocadas seteiras.

Para fundamentar os pedidos a Autora alegou, em síntese, que o trato de terreno que identificam, com a área de 50 m2 é do domínio público, pertencendo à comunidade de Bruscos desde tempos imemoriais. Os RR. apropriaram-se indevidamente desse espaço, considerando-o como logradouro da sua moradia e nesse local construíram uma fossa séptica, lançaram uma escada, plantaram árvores e encheram-no com terra.

Os RR. contestaram, concluindo pela improcedência da acção, e dizendo, no essencial, que o terreno em causa sempre constitui parte integrante dos prédios adquiridos nunca se tendo traduzido numa utilidade pública, natural ou inerente. Admitem ter implantado no local uma fossa séptica mas já não a escada principal, pois esta utiliza o espaço ocupado pela anterior e a moradia que construíram não tem qualquer porta ou janela que deite directamente para o terreno em causa.

Prosseguindo os autos os seus regulares termos, foi, por fim, proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente e provada, declarando como pertencente ao domínio público o terreno com a área de 43,81 m2, actualmente utilizado pelos RR. como logradouro da casa que construíram, e condenando os RR. a reconhecer esse logradouro como pertencendo ao domínio público. Mais foram os RR. condenados a não continuarem a ocupação do referido terreno e a absterem-se de, por qualquer forma, realizarem qualquer construções ou obras no referido espaço, designadamente aquelas que se destinem à apropriação do mesmo.

Irresignados com tal decisão, apelaram os RR., pugnando pela sua revogação, e concluindo deste jeito a sua alegação:
1ª- A resposta ao quesito 3º da BI não reflecte com rigor a prova produzida em audiência e faz supor um uso contínuo;
2ª-De tal prova deduz-se, sem qualquer dúvida, que nos últimos 30 anos nenhuma actividade se desenrolou no trato de terreno reivindicado, à excepção de estacionamento de automóveis, facto não alegado pela Autora;
3ª-A resposta a tal quesito deverá ser no sentido de fazer constar que no trato de terreno em questão não se desenvolve qualquer actividade há mais de 30 anos;
4ª-A resposta ao quesito 11º da BI deve ser afirmativa. Na verdade, do depoimento das testemunhas ouvidas sobre tal questão resulta que entre 1950 e 1962, o trato de terreno em questão não foi usufruído pela população de Bruscos, nem nos termos apontados nem noutros quaisquer, sendo unicamente utilizado pela arrendatária de uma das casas. Quem tal afirmou foram os próprios filhos da arrendatária que aí residiram;
5ª-A resposta ao quesito 13º da BI deve, do mesmo modo, ser afirmativa. Na verdade, o Tribunal a quo reconhece que no trato de terreno em causa foram praticados os factos aí mencionados;
A dúvida é que o Tribunal não ficou convencido de que tais actos fossem praticado com “animus” de domínio correspondente à propriedade exclusiva;
6ª-O facto sob julgamento é o de saber se no período compreendido entre 1950 e 1962 foi a Maria da Conceição dos Santos Lucas, arrendatária do prédio a que corresponde ao art. 245, ou a Junta de Freguesia de Bruscos a praticar tais actos;
7ª-Em julgamento nunca esteve a intenção com que os mesmos foram praticados;
8ª-O tempo e a intensidade de utilização do trato de terreno reivindicado pela Autora não foi relevado pelo Tribunal a quo;
9ª-E isso ocorreu há mais de 50 anos;
10ª-As brincadeiras e bailaricos das crianças ocorreram na infância das testemunhas inquiridas, todas com idade compreendidas entre os 60/70 anos;
11ª-O transbordo de madeiras e depósito de areias ocorreram por essa mesma altura;
12ª- Quanto às descamisadas de milho, as testemunhas só recordam as efectuadas por Joaquim Dias, um ex-proprietário de uma das casas adquiridas pelos RR. e de uma D. Lurdes, mas ninguém conseguiu dizer há quantos anos tal ocorreu pela última vez;
13ª-Após o 25 de Abril de 1974, todos são unânimes em reconhecer que no local só certas e determinadas pessoas estacionavam automóveis;
14ª-Tal prova uma utilização temporalmente distante, descontínua, com interrupções e sem nenhuma característica vocacional;
15ª- O que é absolutamente compatível com a circunstância de os dois prédios adquiridos pelos RR., contíguos ao trato de terreno em questão, não serem habitados há décadas pelos respectivos proprietários;
16ª-E de não terem, por isso, à excepção do período compreendido entre 1950 e 1962, uma vigilância contínua;
17ª-Uma utilização com estas características não pode ser responsável pela afectação de um bem ao domínio público;
18ª-O art. 84º da CRP define, hoje, o modo de afectação dos bens ao domínio público;
19ª-Segundo o acórdão do Trib. Constitucional n.º 330/99, de 02.06, tal ocorre “pela necessidade de preservar a integridade desses bens e o respeito pela afectação a finalidade de indiscutível interesse público”;
20ª-Ora, “ afectação a finalidade de indiscutível interesse público” é uma exigência normativa que radica mo modo tradicional de aquisição do carácter dominial de um bem: a afectação desse bem à utilização pública;
21ª-Tal afectação pode ter vários níveis, todos eles exigentes:
-O Estado disciplina e vigia o uso de bens que são insusceptíveis de apropriação individual, como o ar ou as águas do oceano, pois estes bens têm utilidade natural;
-outros bens, enquanto forem o que são e como são, como as estradas, pontes, jardins abertos ao uso directo do público, têm de estar ao serviço da comunidade. Diz-se que têm utilidade inerente;
-Há, finalmente, bens que podem integrar quer o domínio público quer o domínio privado, e diz-se que têm uma utilidade funcional;
22ª-Assim, a submissão dos bens, sejam eles quais forem, ao direito público, resulta sempre de um imperativo da sua utilidade;
23ª-Terá o trato de terreno reivindicado pela Autora uma utilidade pública inerente?
24ª-Como já foi decidido na jurisprudência, a utilidade pública resulta da vocação e capacidade do prédio para satisfazer necessidades colectivas que devem ser de certo grau e relevância e que a Autora deve promover ou estimular;
25ª-A Autora alega que esse terreno de 43,81 m2 foi sempre utilizado pela população de bruscos “sendo um local onde as crianças sempre brincaram, as pessoas se reuniam, se jogava às cartas, se jogava à malha e ao fito, se faziam bailes, se faziam descamisadas e secagens de milho, se fazia a descarga de areia, se efectuava o transbordo de alguns madeireiros e onde se fazia lenha” e “se faziam fogueiras”
26ª-E apesar de não alegado, foi acrescentado na sentença que servia, também, para “estacionamento automóvel”;
27ª-Se alguém jogava à malha, não brincavam as crianças; se alguém acendia a fogueira não se faziam descamisadas; se alguém parava o automóvel, todos estavam impedidos de usufruir o local!;
28ª-Nenhuma utilidade colectiva se vislumbra. Terá tido em vista a Junta de Freguesia Autora o desenvolvimento lúdico e cultural do seu povo; pretendido antes o desenvolvimento industrial através da cedência de um terreno aos madeireiros; ou de resolver o problema de trânsito automóvel na freguesia?
29ª-Esse trato de terreno serviu, enquanto durou a utilização, para cada qual realizar os seus interesses pessoais, as suas conveniências próprias, a sua vontade egoísta;
30ª-O interesse público que subjaz à aquisição de um bem para o seu domínio, não é igual a soma das vontades caprichosas de cada um e ele nunca satisfez necessidades colectivas relevantes;
31ª- A ter existido o interesse público que ditasse a sua aquisição pelo domínio público, o certo é que há mais de 3 décadas que aí se não realiza nenhuma actividade, à excepção do parqueamento automóvel por 3 pessoas;
31ª- Tal determina a desafectação tácita do mesmo domínio público e a sua inclusão no domínio privado da entidade que o teria possuído;
32ª-Sujeito às regras do direito privado a Junta de Freguesia teria então perdido a posse desse prédio;
33ª-O qual se encontra registado e inscrito a favor dos RR. e desse registo resulta a presunção de que o direito existe lhes pertence (art. 7º do CRP);
34ª-A sentença recorrida violou as disposições constantes dos arts. 1316º, 1317º, alínea a), 1268º do CC; art. 7º do CRP e 264º do CPC.

A Apelada contra-alegou no sentido da manutenção do julgado.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II)- OS FACTOS

Na 1ª instância foi dada por assente a seguinte factualidade:

1-Os Réus B... e C... compraram em 20 de Junho de 2000 a D... e seus filhos, Albano e Carlos Mendes Dias, dois prédios urbanos sitos no lugar de Bruscos, freguesia de A..., concelho de Condeixa-a-Nova, inscritos na matriz respectiva sob os artigos 244 e 245.
2-Estes prédios, ambos com mais de cem anos de existência, eram contíguos e encontravam-se erigidos, de forma recuada, relativamente a outros prédios com eles confinantes e que, nesse lugar, marginam o caminho público.
3-O prédio a que corresponde a inscrição matricial 244 tinha sido comprado pelo marido de D... a Maria dos Santos Silva, viúva de Francisco dos Santos Carvalho, em 1976.
4-O prédio a que corresponde a inscrição matricial 245 tinha sido comprado pelo marido de D... ao Padre Manuel Dionísio Moreira, em 1965.
5-O Padre Manuel Dionísio Moreira arrendou a casa a que corresponde o artigo matricial 245 a Maria da Conceição dos Santos Lucas, avó da Ré C..., a qual aí residiu até ao ano de 1962.
6-Após a aquisição referida em 1, as duas aludidas casas foram demolidas pelos réus B... e C... e, no espaço por elas ocupado, foi erigida uma nova casa, para cuja construção foi emitida pela Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova a competente licença.
7-Entre a fachada sul dos referidos prédios e o caminho público existe um trato de terreno que é actualmente utilizado pelos réus B... e C... como logradouro da casa que construíram.
8-O trato de terreno, na parte em que é utilizado pelos RR. como logradouro, tem a área de 43,81 m2 (figura correspondente à ligação dos pontos ABDC do croqui junto a fls. 158 e cujo teor aqui se dá por reproduzido).
9-O trato de terreno referido em 7 sempre foi utilizado pela população do lugar de Bruscos, sendo um local onde as crianças sempre brincaram, as pessoas se reuniam, se jogava às cartas, se jogava à malha e ao fito, se faziam bailes, se faziam as descamisadas e secagem do milho, se fazia a descarga de areia, se efectuava o transbordo a alguns madeireiros e onde se fazia lenha.
10-A utilização do trato de terreno referido em 7, nos termos descritos em 9, dura há mais de 20, 30, 50 e 100 anos.
11-Nunca ninguém que opôs a que a população do lugar de Bruscos utilizasse a parcela de terreno referida em 7, nos termos descritos em 9.
12-Sobre a parcela de terreno referida em 7 nunca ninguém se arrogou quaisquer direitos de uso exclusivo.
13-Os RR., através da anexação dos artigos descritos na CRP de Condeixa-a-Nova, freguesia de A..., sob os nºs 01184/030800 e 01185/0308800 e após aquisição dos prédios urbanos inscritos na matriz predial urbana da referida freguesia sob os artigos 244º e 245º, registaram a seu favor o direito de propriedade sobre um terreno destinado a construção urbana, com a área de 810m2, aí se incluindo o trato de terreno referido em 7
14-Os RR. implantaram no trato de terreno referido em 7. uma fossa séptica.
15-Os RR. B... e C... lançaram para o terreno referido em 7 a escada principal da casa e plantaram árvores de fruto no respectivo chão, que encheram com terra
16-Os anteriores proprietários dos prédios matricialmente inscritos sob os artºs. 244º e 245 nunca tinha ocupado o trato de terreno referido em 7, arrogando-se donos do mesmo.
17-Na inscrição dos prédios na matriz predial (artºs. 244º e 245º) ficou enunciado que, a sul, ambos confrontavam com caminho público.
18-Nos anos 60, o Sr. Joaquim Dias, marido de D..., colocava lenha no trato referido em 7, aí secando lenha e fazendo descamisadas.
19-Os bailes, jogos e festas populares de maior relevo e com maior número de participantes sempre foram feitos no Largo da Capela do Menino Jesus, o qual tem sido objecto de limpeza e arranjos por parte da Junta de Freguesia.
20-A população do lugar de Bruscos construiu, entretanto, nesta localidade, uma casa de convívio.



III)- O DIREITO

Tendo presente que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, mas sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 690º, n.º1, 684º, n.º3 e 660º, n.º2, todos do CPC), pretendem os RR./Apelantes que este Tribunal reaprecie a decisão sobre a matéria de facto e se pronuncie sobre o julgamento de direito, uma vez que pugnam por diferentes respostas aos quesitos n.ºs 3, 11º e 13º da base instrutória, e entendem errónea a qualificação do trato de terreno em causa como pertencendo ao domínio público.

III-1)- REAPRECIAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
O quesito n.º3 da base instrutória é do seguinte teor:
“A utilização do trato de terreno referido em D), nos termos descritos em 2º, dura há mais de 20, 30, 50 e 100 anos?”
A resposta foi afirmativa, como se vê do n.º 10 da factualidade dada por assente e acima transcrita. A utilização desse trato de terreno, que é indagada no quesito n.º2, mereceu, também, resposta afirmativa, constando do n.º9, e estando esse trato de terreno identificado nos ns.º 7 e 8.
Na tese dos Apelantes, na resposta a esse quesito, devia constar que a utilização do trato de terreno, nos termos referidos no 2º quesito, cessou há mais de 30 anos.

O quesito n.º 11 tem a seguinte redacção:
“Durante o período de tempo compreendido entre 1950 e 1962, ninguém do lugar de Bruscos, nem da freguesia de A..., utilizou o trato de terreno referido em D), nos termos referidos em 2º?”
A resposta foi de não provado, entendendo os Apelantes que a resposta deveria ser afirmativo.

No quesito n.º 13º indaga-se o seguinte:
“Entre 1950 e 1962 era Maria da Conceição dos Santos Lucas, na qualidade de arrendatária do prédio a que corresponde o art. 245º, quem cortava as ervas que cresciam em tal terreno e o limpava de objectos e coisas, tornando-o apto para depósito de lenhas, objectos agrícolas e domésticos e para as brincadeiras dos seus filhos e amigos deles?”
A resposta foi de não provado, mas advogam os Recorrentes uma resposta afirmativa.

Como facilmente se intui, a matéria do quesito n.º 3 foi alegada pela Autora e a demais foi alegada pelos RR., ora Apelantes.
Tendo sido gravada a prova produzida na audiência de julgamento, e cumprido pelos Apelantes o ónus a que alude o art. 690º-A do CPC, nada obsta à reapreciação do julgamento de facto (alínea a) do n.º1 do art. 712º do CPC).
Vejamos, então.
Segundo os Recorrentes, a alteração da decisão de facto no que concerne ao quesito 3º justifica-se através dos depoimentos das testemunhas Lídia Vicente, Jorge Moreira, Mário Vicente, Isaura Matias, Maria Vicente, Arnaldo Lucas. Maria Lucas. A alteração da resposta ao quesito 11º impõe-se por via dos depoimentos das testemunhas Arnaldo Lucas e Lúcia Lucas e a resposta afirmativa ao quesito 13º é justificada pela própria motivação da resposta a esse quesito.

Ora, da audição dos depoimentos das testemunhas indicadas pelos Recorrentes ressalta a ideia de o trato de terreno em litígio, em terra batida e com a área de 43,81 m2, a partir de certa altura, deixou de ser utilizado para a realização do jogo de cartas, jogo de malha e de fito, bailaricos e brincadeiras de crianças, e depósito temporário de madeira e areias, sendo certo que os jogos de cartas e malha são contemporâneos do funcionamento de uma taberna do Manuel Moreira, que funcionava num prédio contíguo às casas adquiridas pelos Recorrentes, e que já fechou há muitos anos. No tocante aos jogos e bailaricos é a própria Autora a reconhecer que deixou esse espaço de despertar tanto interesse, depois de ter a população construído uma casa de convívio, como se vê de fls. 95 e 96. Dos depoimentos das testemunhas também resulta que há vários anos passou o pequeno trato de terreno a ser utilizado apenas pelos donos das casas (o “Chico Abel” ou Francisco Carvalho e o Joaquim Dias) e pela arrendatária de uma das casas (a Maria da Conceição dos Santos Lucas) para descamisadas e secagens de milho e, ainda, para depósito de lenha. Nos tempos mais recentes, até porque essas casas ficaram ao abandono, como melhor ilustram as fotografias juntas a fls. 61 e 62, tal espaço fronteiro a essas duas casas e situado ente elas e a via pública, serviu apenas para estacionamento de veículos e, por fim, aí permaneceu durante alguns anos um automóvel já velho e abandonado.
Pretendem os Apelantes, como vimos, que na resposta afirmativa ao quesito 3º se adite o esclarecimento de as ditas actividades praticadas no trato de terreno terem cessado há mais de 30 anos. Nenhuma das testemunhas concretizou a data ou o ano a partir do qual cessaram as actividades enunciadas no 2º quesito, sugerindo que tal ocorreu há vários anos, pelo que apenas se pode precisar, na resposta a esse quesito, que as actividades enumeradas no quesito 1º há vários anos deixaram de ser praticadas no trato de terreno.
Em suma, altera-se a resposta ao quesito n.º3 que passará a ter a seguinte redacção:
“A utilização do trato de terreno referido em D), nos termos descritos no quesito 2º, durou mais de 20, 30, 50 e 100 anos, tendo tais actividades deixado de aí ser praticadas há vários anos”.

No tocante à pretendida alteração à resposta ao 11º quesito, que os Recorrentes defendem dever ser afirmativa, dos depoimentos gravados das indicadas testemunhas não se colhe a convicção de o trato de terreno, entre 1950 e 1962, já não ser utilizado para a prática de todas as actividades enumeradas no quesito 2º, pelo que a resposta de não provado é de manter.

Relativamente, por fim, ao 13º quesito, a partir do depoimento das testemunhas arroladas pelos RR., familiares de Maria da Conceição dos Santos Lucas, pode concluir-se que entre 1950 e 1962, a Maria da Conceição dos Santos Lucas, arrendatária de prédio a que corresponde o art. 245, e no trato de terrento apenas fronteiro à casa onde morava, cortava as ervas que cresciam e o limpava, onde depositava lenha e brincavam os seus filhos e amigos deles. A casa a que corresponde o art. 244 pertencia a um tal “Chico Abel”, que a utilizava como palheiro, depositando lenha no terreno em frente da sua casa.
Assim sendo, a altera-se a resposta ao quesito 13º nos seguintes termos:
“Entre 1950 e 1962 a Maria da Conceição dos Santos Lucas, que era arrendatária do prédio a que corresponde o artigo 245, e no trato de terreno fronteiro à casa onde morava, cortou as ervas que aí cresciam e o limpava, depositou lenha e onde brincavam os seus filhos e amigos deles”.

III-2)- ANÁLISE DO JULGAMENTO DE DIREITO.
Na tese dos Apelantes a factualidade apurada não é de molde a conferir carácter de dominialidade ao exíguo trato de terreno em litígio, porque inexiste qualquer afectação do dito bem a um indiscutível interesse público, ou nenhuma utilidade pública ou satisfação de necessidade colectiva se vislumbrando.
Será assim?
Na Constituição da República Portuguesa, o art. 84º aludindo ao domínio público, prevê no nº1 bens que pertencem a esse domínio, permitindo o n.º2 que a lei defina quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites. Ou seja, a dominialidade de certos bens pode resultar, desde logo, de disposição legal.
A lei não contém qualquer definição de domínio ou coisa pública, ao contrário do que acontecia no art. 380º do Código Civil de 1867. O art. 202º, n.º2 do Código civil limita-se a prescrever que as coisas do domínio público estão fora do comércio jurídico, não podendo ser objecto de direitos privados.
Segundo Marcelo Caetano [In “ Manual de Direito Administrativo”, vol. 2ª, 9ª edição, p. 881], “as coisas públicas são as coisas submetidas por lei ao domínio de uma pessoa colectiva de direito público e subtraídas ao comércio jurídico privado em razão da sua primacial utilidade colectiva”.
Portanto, a lei ordinária, por deferência da Constituição, pode, desde logo, definir os bens que integram o domínio público. Não sendo o bem classificado por lei como pertencente ao domínio público, importa averiguar se o bem está afectado à utilidade pública que consiste na aptidão para satisfazer necessidades colectivas, ou, como refere aquele ilustre jurista, se existe uma utilidade pública inerente ou natural. E acrescentando [Ibidem, p. 921] que a atribuição do carácter dominial depende de um, ou vários, dos seguintes requisitos:
a) existência de preceito legal que inclua toda uma classe de coisas na categoria de domínio público;
b) declaração de que certa e determinada coisa pertence a essa classe;
c) afectação dessa coisa à utilidade pública.
Não é necessário que concorram os três requisitos, bastando um só.
E continuando, a “afectação é o acto ou a prática que consagra a coisa à produção efectiva de utilidade pública”. “ A “enumeração legal compreende bens cuja utilidade pública se conhece através de vários índices; o indicie evidente cuja existência logo denota publicidade é o uso directo e imediato do público. Só quando exista este índice evidente é que a lei permite que o intérprete considere públicas coisas não enumeradas categoricamente como tais por disposição legal”. “Há uso directo quando cada indivíduo pode tirar proveito pessoal de tal coisa pública e o uso imediato faz-se quando os indivíduos se aproveitam dos bens sem ser por intermédio dos agentes de um serviço público”. Já no art. 1º do Decreto n.º 23265, de 15.02.1934, se definia a dominialidade pelo uso público, directo e imediato, uso esse que dá o sinal de afectação a um fim de utilidade pública.

A nossa jurisprudência, na ausência de classificação legal da coisa como dominial, tem sido chamada, com frequência, a pronunciar-se sobre o carácter dominial de certos bens, sobretudo de caminhos [Cfr, entre muitos outros, os acórdãos do STJ publicados na CJ 2004, 1º, p. 19, CJ 2000, 2º, p. 117, CJ 1997, 3º, p. 11, CJ 1998, 1º, p. 96, BMJ 345º, p. 366, BMJ 362º, p. 609, BMJ 361º, p. 561, CJ 2002, 3º, p. 139; BMJ 431º, p. 300, BMJ 498º, p. 226; BMJ 422º, p. 355 e 364 ; no BMJ n.º 442º, p. 257; CJ 1993, 1º, p. 115.] . Pelo Assento de 19.04.1989 [Publicado no DR I, de 02.06.1989, e no BMJ 389º, p. 121, agora com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência] foi decidido que “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”, não se exigindo que o bem tenha sido apropriado ou produzido por uma pessoa colectiva de direito público e que este haja praticado actos de administração, jurisdição ou conservação.

Mas se as coisas dominiais, na sua essência, se destinam a prestar uma utilidade pública ou colectiva, então a doutrina consagrada naquela Assento, tal como refere a sentença sob exame, deverá ser interpretada restritivamente, no sentido de a publicidade do bem exigir ainda a sua afectação à utilidade pública ou à satisfação de relevantes interesses colectivos de um certo grau ou relevância. [Cfr. acórdãos do STJ publicados na CJ 1993, 3º, p. 135 e na CJ 2000, 2º, p. 117]

Relevados estes princípios, será que o complexo fáctico apurado permite concluir que o trato de terreno em apreço chegou a adquirir carácter dominial?
Como se provou, o trato de terreno sempre foi utilizado pela população do lugar de Bruscos, sendo um local onde as crianças sempre brincaram, as pessoas se reuniam, se jogava às cartas, se jogava à malha e ao fito, se faziam bailes, se faziam as descamisadas e secagem de milho, se fazia a descarga de areia, se efectuava o transbordo a alguns madeireiros e onde se fazia lenha. Sendo assim, o trato de terreno ou largo fronteiro às casas adquiridas pelos RR., adquiriu carácter dominial, servindo utilidades colectivas diversificadas, designadamente de lugar de convívio da população. Salvo o devido respeito pela opinião contrária dos Recorrentes, não se pode concluir que tal largo, apesar da sua reduzida área, não esteve adstrito à satisfação de relevantes interesses colectivos, que mais relevavam em tempos idos de uma marcante ruralidade, inexistindo então casas para convívio da população e havendo necessidade de espaços para os jogos da malha e fito, para as descamisadas e secagem de milho e até para a preparação e secagem de cavacos. Sem esquecer que a utilização do trato de terreno durou mais de 20, 30, 50 e 100 anos, ou seja, esteve no uso directo e imediato do público desde tempos imemoriais.

Argumentam, ainda, os Recorrentes que a ter existido a afectação do trato de terreno à satisfação de um interesse público, sempre aí já não é realizada qualquer actividade, à excepção de parqueamento automóvel, o que determina a desafectação tácita do mesmo domínio e a inclusão desse bem no domínio privado da entidade que o teria possuído, e sujeito, assim, às regras de direito privado, mais acrescentando que a Freguesia teria perdido a posse desse prédio, que está agora registado e inscrito a favor dos Recorrentes.
A este respeito, cumpre dizer, na verdade, que os bens dominiais quando deixam de ter utilidade pública, perdem o carácter dominial e ingressam no domínio privado da pessoa jurídica de direito público, sua proprietária, deixando os bens de ser imprescritíveis e inalienáveis.

Mas, na hipótese vertente, ocorreu desafectação tácita?
Nesta instância foi alterada a resposta ao quesito 3º, ficando a constar o seguinte:
“A utilização do trato de terreno nos termos descritos no quesito 2º, durou mais de 20, 30. 50 e 100 anos, mas tais actividades deixaram de aí ser praticadas há vários anos”.
É certo que da prova produzida resulta, como alegam os Recorrentes e consta da sentença impugnada, que nos últimos tempos tal espaço serviu apenas de local de estacionamento de um ou outro veículo.
Ora, seguindo na esteira dos ensinamentos de Marcelo Caetano [Citada obra, p. 956.], “a cessação da dominialidade pode ocorrer em consequência do desaparecimento da utilidade pública que as coisas prestavam. Pode a desafectação ser expressa por via de lei ou acto administrativo que declare não dominial, ou tácita, verificando-se esta desafectação sempre que uma coisa deixa de servir ao seu fim de utilidade pública e passa a estar nas condições comuns aos bens do domínio privado da Administração. A desafectação tácita das coisas públicas tem de ser aceite em todos os casos em que exista uma mudança de situações ou de circunstâncias que haja modificado o condicionalismo de facto necessariamente pressuposto pela qualificação jurídica. A desafectação há-de resultar da cessação da função que estava na base do carácter dominial”.

Mas, no caso ajuizado, o trato de terreno perdeu a utilidade pública ou deixou de servir as utilidades públicas que estiveram na base do seu carácter dominial ?
Apesar de, há vários anos, em tal espaço não serem praticadas pela população de Bruscos as actividades que estiveram na base do carácter dominial, não se pode concluir que tal espaço deixou de ter a utilidade pública a que estava destinado. Com efeito, importa que a coisa pública, em si mesma, deixe de estar em condições de servir o fim de utilidade pública e passe a estar nas condições comuns aos bens do domínio privado da Administração Pública. A não utilização de um bem público não implica, pois e necessariamente, a sua desafectação do domínio público, como “o simples desinteresse ou abandono administrativo de uma coisa dominial que haja conservado a utilidade pública não vale por desafectação tácita ou de facto [Obra citada, p. 959 e acórdão desta Relação, na CJ 2000, 4º, p. 35.] . O trato de terreno conserva, pois, a utilidade pública que visava prosseguir, apesar da população do lugar de Bruscos ter construído, entretanto, nesta localidade, uma casa de convívio e os bailes, jogos e festas populares de maior relevo se realizarem num outro lugar, ou seja, no Largo da Capela do Menino Jesus.
Em suma, e contrariamente ao entendimento sufragado pelos Recorrentes não ocorreu cessação da dominialidade do trato de terreno por via de desafectação tácita.

Mas mesmo que fosse perfilhada tese dos Recorrentes, sempre, de qualquer modo, o bem dominial passaria a integrar o domínio privado da Freguesia de A..., entrando no comércio jurídico-privado, sendo, por isso, alienável e prescritível. E provada a titularidade ou o direito de propriedade da mencionada autarquia local, sempre a presente acção de reivindicação teria de proceder, ao abrigo do art. 1311º do CC., porque os Recorrentes não invocaram qualquer título que legitime a ocupação de tal espaço de terreno e que converteram em logradouro da moradia que construíram. Aliás, até ficou apurado que sobre esse largo, de reduzida dimensão, nunca ninguém se arrogou direitos de uso exclusivo. Sempre os Recorrentes seriam, por esta razão, condenados a restituir aquilo que não lhes pertence.

Para concluir, dir-se-á que, ressalvando a alteração da decisão de facto relativamente aos quesitos 3º e 13º, nos termos acima apontados, mas sem qualquer incidência no julgamento de direito, a sentença sob exame não merece qualquer censura.

IV)- DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a)-Conceder parcial provimento ao recurso.
b)-Alterar a decisão sobre a matéria de facto nos termos acima referidos, mantendo, porém, a sentença quanto ao mais decidido.
c)-Condenar os Recorrentes nas custas do recurso.
COIMBRA, 21/02/2006