Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
47/13.7TAPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: ASSISTENTE
REQUERIMENTO
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUISITOS
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
TIPO OBJECTIVO
TIPO SUBJECTIVO
Data do Acordão: 06/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL (1.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 287.º, N.ºS 1 E 2, E 283.º, N.º 3, ALÍNEAS B) E C), DO CPP
Sumário: A exigência legal de o requerimento para abertura da instrução conter a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, refere-se tanto aos elementos objectivos como subjectivos do crime imputado, porquanto não existe crime/responsabilidade penal sem que uns e outros se mostrem preenchidos.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo em fase de instrução 47/13.7TAPBL do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal o assistente A..., na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de B... apresentou queixa contra a arguida C... imputando-lhe factos relativos a bens da herança que integrou nos crimes de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205º do Código Penal e de burla p. e p. pelo artigo 217º do Código Penal.

Realizado o inquérito, o Ministério Público decidiu proceder ao arquivamento dos autos.

O assistente requereu a realização de instrução, pretendendo a pronúncia da arguida pela autoria dos citados crimes.

Por despacho proferido em 4.11.2013 a Mmª Juiz de Instrução rejeitou o requerimento de instrução por inadmissibilidade legal.  

Inconformada com o teor de tal despacho, dele recorreu o assistente A..., extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:


01

A douta sentença confunde factualidade necessária com elemento subjectivo. O requerimento de abertura de instrução é a descrição da factualidade que em sede de pronúncia estabelecerá os elementos objectivos e subjectivos da prática criminosa. Essa factualidade é vasta no requerimento de abertura de instrução não admitido.

02

No caso de arquivamento pelo MP, o requerimento de abertura de instrução define o objeto e os limites de investigação do juiz de instrução O objecto do processo é fixado pelo despacho de acusação ou de pronúncia se existir.

03

Em nenhum momento a jurisprudência estabelece como objecto do processo o requerimento de abertura de instrução. A jurisprudência estabelece um paralelismo entre a acusação e o requerimento de abertura de instrução, para os efeitos das alíneas a), b), c) e d) do n.º 3 do art.º 311º CPP, ou seja na descrição da factualidade.

04

O requerimento de abertura de instrução não é nem uma acusação nem um despacho de pronúncia. Mas se fosse de exigir ao requerimento de abertura de instrução o elemento subjectivo, neste caso, requerimento formulado e indeferido contém uma vasta descrição da factualidade integradora do elemento subjectivo da conduta da agente.

05

Não podemos nunca estar perante uma exigência de formas canónicas pré-­estabelecidas porque os factos são únicos c como tal a factualidade está sujeita à sua própria especificidade, além de que um dos princípios estruturantes de todo o processo penal é o do princípio da investigação e da verdade material. Pelo que não é de se aplicar em processo penal o princípio da auto responsabilidade probatória das partes.

06

O que se exige são descrições factuais para que o arguido se possa defender de factos, nunca formas canónicas preestabelecidas. Entender de forma diversa corresponde a negar o direito de defesa do arguido e a negar a tutela de bens jurídicos dotados de relevância penal.

Termos em que, nos melhores de Direito, e sempre com o Vosso mui douto suprimento, em face de tudo o que ficou exposto, requer que o Colendo Tribunal dê provimento ao recurso, e em consequência

Revogue a douta decisão do tribunal ad quo, que julgou o requerimento inadmissível e que determinou o arquivamento dos autos, substituindo-a por outra que determine a abertura da instrução requerida,

Deste modo fazendo Vossas. Excelências, aliás, como é apanágio desse Respeitável Tribunal, estarão a realizar a sempre sacramental e indispensável JUSTIÇA!

           

O recurso foi objecto de despacho de admissão.

Notificados, o Ministério Público e a arguida responderam ao recurso, pugnando pela sua improcedência e manutenção do despacho recorrido.

Nesta Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o assistente exerceu o direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

II. Fundamentos da Decisão Recorrida

            A decisão objecto do presente recurso é do seguinte teor:

A..., assistente, veio requerer a abertura da instrução relativamente ao despacho de arquivamento do Ministério Público de fls. 89 a 99 dos autos, fundamentado na inexistência de elementos que permitam concluir pela verificação de qualquer ilícito típico, nos termos do artigo 277º n.º 2 do Código Processo Penal,

Pretendendo a pronúncia da arguida pelas razões que alega a fls. 110 e ss. dos autos e que qualifica como um crime de abuso de confiança e um crime de burla, revistos e punidos, respectivamente, pelos artigos 205º n.º 1 e 217º n.º 1, ambos do CPP.

Da existência de questões prévias, nulidades ou excepções que obstem ao conhecimento do mérito da instrução:

De acordo com o disposto no art. 287º do CPP, sob a epígrafe “Requerimento para abertura da instrução”:

“1 - A abertura da instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:

a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou

b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

2 - O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c).

Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.

3 - O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução (…)” – sublinhado nosso.

Por sua vez, o art. 308º do CPP, sob a epígrafe “Despacho de pronúncia ou não pronúncia” dispõe:

“1 - Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

2 - É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto no artigo 283º, n.ºs 2, 3 e 4, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior. (…)”.

O art. 283º do CPP sob a epígrafe “Acusação pelo Ministério Público” dispõe:

“ (…)

3 - A acusação contém, sob pena de nulidade:

a) (…)

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada;

c) A indicação das disposições legais aplicáveis; (…)” - sublinhado nosso.

Finalmente há, ainda, que ter em conta o art. 303º do mesmo diploma, que vincula o Juiz aos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, estipulando o n.º 3 desse artigo que uma alteração substancial do requerimento de abertura de instrução leva a novo inquérito.

Destes preceitos resulta que o requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente é mais do que uma forma de impugnar o despacho de arquivamento, uma vez que para esta existe a reclamação hierárquica, ou um meio de requerer atos de instrução ou novos meios de prova.

Na verdade, o objeto da instrução requerida pelo assistente é fixado pelo respetivo requerimento de abertura.

Como tal, pese embora não esteja sujeito a formalidades especiais, deve, não obstante, conter, em súmula as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar.

O requerimento de instrução deve ainda conter a narração, ainda que sintética, dos fatos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis.

Se o requerimento de abertura de instrução não contiver tais elementos de fundamentação, para além de ser nulo, nos termos do art. 283º n.º 3 do CPP, fica a instrução sem objeto. Não sendo a fase de instrução um novo inquérito é essencial que contenha um objeto delimitado, em relação ao que consta da acusação ou do despacho de arquivamento.

A omissão no requerimento do assistente da identificação do arguido ou da narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao mesmo de uma pena ou de uma medida de segurança ou das disposições legais aplicáveis é motivo de rejeição da acusação por inadmissibilidade legal (art. 287º n.º 3 do CPP).

O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender, num número significativo de decisões, que a admissão do requerimento para abertura da instrução que não contenha a identificação do arguido, ainda que por remissão para o local do processo onde ela conste, a narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam, implica a prática de atos inúteis em violação do art. 137º do CPC, aplicável por força do art. 4º do CPP.

A este respeito podem ler-se, entre outros, os seguintes acórdãos:

Acórdão do SJT de 12.03.2009, em www.dgsi.pt.:

I - A instrução é uma fase processual destinada a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento.

II - A inadmissibilidade legal constitui uma das três formas legalmente previstas de rejeição do requerimento para abertura de instrução.

III - Um dos princípios que presidem às normas processuais é o da economia processual, entendida esta como a proibição da prática de atos inúteis, conforme estabelece o art. 137.º CPC, aplicável ao processo penal nos termos do art. 4.º do CPP, por o princípio que lhe serve de substrato se harmonizar em absoluto com o processo penal.

IV - Há afloramentos deste princípio em diversas normas do CPP, nomeadamente no art. 311.º, ao permitir ao juiz rejeitar a acusação manifestamente infundada, e no art. 420.º, que prevê a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência.

V - Dado o paralelismo entre a acusação e o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, deve aquilatar-se da possibilidade de aplicação ao requerimento para abertura da instrução do disposto no art. 311.º, que considera manifestamente infundada a acusação: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as prova que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime.

VI -Se o requerimento para abertura de instrução requerida pelo assistente não contém a identificação do arguido, ainda que por simples remissão para o local no processo onde ela consta, a instrução será inexequível e constituirá uma fase processual sem objeto se o assistente deixar de narrar os factos e de indicar as disposições legais aplicáveis.

VII - De igual modo, se, pela simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se dever concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação duma pena, estaremos face a uma fase instrutória inútil, por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia.

VIII - No conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, haverá, assim, que incluir, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral.

Acórdão do STJ de 07.05.2008, em www.dgsi.pt.:

I - No caso de ter sido proferido despacho de arquivamento, o requerimento de abertura de instrução determinará o objeto desta, definindo o âmbito e os limites da investigação a cargo do juiz de instrução, bem como os da decisão de pronúncia.

II - Atento o paralelismo que se estabelece entre a acusação e o requerimento para abertura de instrução deduzido pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento, sendo que tal requerimento contém substancialmente uma acusação, deverá o mesmo conter a narração dos factos e indicar as provas a produzir ou a requerer, tal como para a acusação o impõe o art. 283.º, n.º 3, als. b) e d), do CPP.

III - Na verdade, substanciando o requerimento de abertura de instrução uma manifestação de discordância em relação a um despacho de arquivamento, e sendo o essencial da fase de instrução o controlo da acusação – quer tenha sido deduzida pelo MP quer pelo assistente –, a submissão à comprovação judicial só faz sentido com a apresentação de uma narrativa de factos cuja prática é imputada ao arguido, pois a confirmação, o reconhecer-se como bom o requerimento (ou a acusação), terá de passar necessariamente pela aferição de factos concretos da vida real.

IV - A exigência de rigor na delimitação do objeto do processo – note-se que a exigência feita ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao MP no momento em que acusa –, sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.

V - É, pois, de rejeitar, por inadmissibilidade legal, «vista a analogia perfeita entre a acusação e a instrução», o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito, a pôr em crise a sua credibilidade e a evidenciar contradições, e omite em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pelo arguido e do elemento subjetivo que lhe presidiu para cometimento do crime (cf. Ac. deste STJ de 22-03-2006, Proc. n.º 357/05 – 3.ª).

VI - No caso em apreciação, verificando-se que o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo recorrente não se apresenta estruturado como uma acusação, da qual conste a narração, ainda que sumária, dos factos e a indicação dos ilícitos criminais que o assistente imputa a cada um dos denunciados, e pelos quais entende deverem os mesmos ser pronunciados, antes se mostrando delineado como um recurso do despacho de arquivamento elaborado pelo MP, mostra-se correta a decisão recorrida de rejeitar a instrução. Com efeito, a omissão dos elementos de facto, a inobservância dos requisitos de uma acusação, em que no fundo e estruturalmente se deve converter o requerimento, conduzindo à não formulação e delimitação do thema probandum, fazem com que a suposta acusação, pura e simplesmente, falte, não exista, ficando a instrução sem objeto.

VII - Por outro lado, é entendimento deste STJ, conforme acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2005, de 12-05-2005 (Proc. n.º 430/2004 - 3.ª), publicado no DR n.º 212, Série I-A, de 04-11-2005, que não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287.º, n.º 2, do CPP, quando este for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.

Acórdão do STJ de 18.06.2008 em www.dgsi.pt.:

I - No dizer da lei – art. 286.º, n.º 1, do CPP –, «a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».

II - Segundo se extrai do n.º 2 do artigo seguinte, o requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas há-de definir o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação. Quando o requerente da instrução é o assistente, o limite tem de ser definido pelos termos em que, segundo o próprio, deveria ter sido deduzida acusação e, consequentemente, não deveria ter sido proferido despacho de arquivamento – no rigor, por um modelo de requerimento que deve ter o conteúdo de uma acusação alternativa, ou, materialmente, da acusação que o assistente entende que deveria ter sido produzida, fundada nos elementos de prova recolhidos no inquérito, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do princípio do contraditório –, de acordo com os arts. 308.º e 309.º, ambos desse diploma.

Como escreve Germano Marques da Silva em “Do Processo penal preliminar” pág. 254 “O Juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal, ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objeto da acusação do MP. O requerimento para a abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente uma acusação alternativa (ao arquivamento ou à acusação deduzida pelo MP), que dada a divergência assumida pelo MP vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial”.

Assim, o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente na sequência do despacho de arquivamento do MP equivale a uma acusação e tal como esta, define e limita o objeto do processo, que deve manter-se o mesmo até ao trânsito em julgado da decisão. A demarcação do objeto do processo, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.04.2002, na CJ, em www.colectaneajurisprudencia.com. baseia-se em duas ordens de fundamentos - "um inerente ao objeto imediato da instrução: a comprovação judicial da pretensa indiciação (que para que se possa demarcar o âmbito do objecto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados) e outro, implícito a uma finalidade mediata, mas essencial no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento: a demarcação do próprio objeto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do tribunal que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objeto, constitui uma garantia de defesa do arguido, possibilitando a este a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório".

Importa, agora, apurar se o requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente obedece aos requisitos legais.

Tal requerimento é formado por artigos em que a assistente impugna os fundamentos do despacho de arquivamento do inquérito, indica alguns factos, formula juízos de valor e requer diligências de instrução.

Porém, o requerimento de abertura da instrução é omisso (não meramente incompleto), na descrição factual, quanto ao elemento subjetivo. E tal requisito é essencial para a punibilidade do comportamento do arguido.

Os crimes imputados à arguida – burla e abuso de confiança – são crimes (necessariamente) dolosos pelo que no requerimento de abertura da instrução haveria (necessariamente) de constar, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que a arguida agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – a arguida pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - a arguida é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo).

De facto, o dolo como elemento subjetivo (isto é, enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objetivas) é constitutivo do tipo legal, pelo que será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º n.º 3 CP, impõe que seja incluído na acusação e, por analogia, no requerimento de abertura da instrução quando requerida pelo assistente.

De facto, na esteira do exposto, a assistente deve pautar o requerimento de abertura de instrução às mesmas regras da acusação pública, por força do disposto no art. 287º n.º 3 do CPP, não podendo estar à espera que alguém supra as suas deficiências. Sendo que, por força do AUJ n.º 7/2005, não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução quando este for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.

Com tudo isto não se quer dizer que o elemento subjetivo deva obedecer a uma fórmula estandardizada.

Quer-se apenas dizer que o assistente tem que descrever os elementos necessários à imputação do crime ao agente, elementos que afastem as causas de exclusão da culpa e que retratem o elemento volitivo ou emocional do dolo.

Essa factualidade é essencial que conste da descrição, indispensável para que possa haver uma condenação pelo(s) crime(s) que são imputados à arguida.

Pois que, não constando do requerimento de abertura de instrução – que, no caso do assistente, vale como acusação – todos os elementos essenciais dos tipos legais de crime imputados à arguida, temos que esta nunca poderá ser condenado por esse tipo legal de crime.

De todo o exposto resulta que o requerimento de abertura de instrução em apreço não contém a factualidade necessária para, em sede de audiência de julgamento, possibilitar a condenação da arguida. Trata-se de uma deficiência do requerimento de abertura de instrução que dá lugar à rejeição da mesma.

Desta feita, julgo o requerimento de abertura de instrução inadmissível e, consequência, determino o oportuno arquivamento dos autos.

Custas a cargo da assistente que se fixa em 2UC.


***

            III. Apreciação do Recurso

            Como é sabido o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal) e, vistas essas conclusões, suscita-se a questão de saber se o requerimento de instrução do assistente obedece aos requisitos do artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal, devendo ser recebido.

            Com efeito verificamos pelo teor do despacho recorrido que o requerimento de instrução da assistente foi rejeitado, em suma, com o fundamento de não conter a descrição do elemento subjectivo dos crimes imputados.

A recorrente por seu turno sustenta a perfeição do requerimento de instrução.

            Apreciando:

Vejamos em primeiro lugar o quadro normativo em que deve mover-se a apreciação da questão suscitada.

O artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal preceitua, relativamente ao requerimento de instrução, que “o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente … à não acusação … e dos factos que …se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283º nº 3, alíneas b) e c).

Este último artigo e a sua alínea b) preceitua que “a acusação contém sob pena de nulidade a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática.

Lembre-se que a instrução tem como escopo definido no artigo 286º, nº 1 do Código de Processo Penal «a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.»

A exigência legal de que o requerimento de instrução contenha a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, refere-se aos elementos objectivos e também subjectivos do crime imputado, posto que não existe crime/responsabilidade penal sem que todos eles se encontrem preenchidos. A exigência da descrição dos factos no requerimento de instrução do assistente radica na circunstância de este, partindo de um despacho de arquivamento do inquérito, dever fixar o objecto do processo, dentro do qual se moverá a actividade do juiz de instrução a quem é vedado alterar os factos alegados, fora das excepções previstas no artigo 303º, nº 1 do Código de Processo Penal. Mas, por outro lado e de capital importância, o requerimento de instrução é a base factual dentro da qual se moverá o contraditório, o exercício do direito de defesa (cfr. Prof. Germano Marques, Curso de Processo Penal III, pag. 141).

Em última análise o que está em causa é a garantia constitucional de defesa do arguido com o princípio, também constitucional, do contraditório que é inerente àquele e cuja efectividade implica uma definição clara e precisa do objecto do processo (cfr. artigo 32º, nº 1 e nº 5 da CRP). O disposto no artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal é, portanto, uma decorrência necessária da própria constituição.

Porque assim é, tem sido entendido que o requerimento de instrução do assistente que não descreva cabalmente os factos imputados, deve ser objecto de rejeição por inadmissibilidade legal desta, nos termos conjugados dos artigos 287º, nº 2 e nº 3 e 283º, nº 3, b) do Código de Processo Penal, não podendo o juiz de instrução intrometer-se de qualquer modo na delimitação do objecto do processo no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente requerente da instrução (cfr. o acórdão do STJ de fixação de jurisprudência nº 7/2005).

No caso, o requerimento de instrução/acusação da assistente foi rejeitado com o fundamento de não conter a descrição da factualidade atinente aos elementos subjectivos dos crimes imputados. Sustenta, no entanto, o recorrente que esses elementos constam dessa peça processual que é do seguinte teor, na parte relevante para o objecto do recurso:

Dos factos:

Com efeito a arguida C..., casada, NIF (...) professora, residente na Rua (...) Pombal até à presente data ainda não devolveu os bens que não lhe pertencem apesar de por diversas vezes e formas ter sido notificada para proceder à sua entrega.

A arguida foi intimada inúmeras vezes, quer verbalmente quer por escrito, comprometeu-­se várias vezes, foram marcadas várias reuniões mas nunca entregou o que lhe tinha sido confiado. Sempre inviabilizou a entrega e tentou mesmo por mais que uma vez entregar peças de valor bem inferior àquelas que tinha recebido para guarda. São exemplo deste comportamento;

A. Durante várias vezes o denunciante, o Cabeça de Casal, solicitou à denunciada que lhe entregasse as peças em ouro. A arguida sempre fugiu a essa entrega. Fiel depositária mas quando instada a entregar o que tem em depósito pura e simplesmente não entrega. (Cfr. auto declarações do cabeça de Casal fls. 681.

B. No dia 13 de Dezembro 2012 o Sr. G.... irmão da denunciada informou que a arguida faria a entrega das peças de ouro no dia 15 de Dezembro de 2012 às 19h00.

C. Ora no dia 15/12/2012 com todos herdeiros presentes para reconhecerem as peças de ouro e todos na expectativa desse ouro ser entregue ao cabeça de casal, a arguida pura e simplesmente não o trouxe. Argumentou que pretendia certificar-se previamente qual o destino que iria ser dado ao mesmo e porque não queria transportar tais artigos de um lado para o outro, pois não era certo que estivessem todos os herdeiros presentes. (Cfr. auto declarações da arguida fls. 59). Ou seja, perante todos os herdeiros, a arguida com este comportamento, mais uma vez inviabilizou a entrega. Marcou-se assim o dia 07 de Janeiro 2013 para proceder à entrega das peças de ouro.

D. No dia 07 de Janeiro de 2013 a arguida levou para entrega peças de ouro que não correspondiam ao que tinha recebido. Eram de valor bem mais inferior. Mas também não eram as que constam da foto a fls. 61 que a arguida juntou ao processo. Nesta data a arguida tentou fazer passar como os brincos de ouro que tinha recebido, outras peças sem qualquer valor, pois eram peças de bijuteria pechisbeque. Tentou desta forma através de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que causam prejuízo patrimonial. Contudo as peça, em questão de imediato não foram reconhecidas como sendo as que tinham sido confiadas à guarda da arguida. (Cfr. auto declarações de D...fls. 70 e auto declarações de E... ido a fls. 73). E não importa dizer que nessa reunião não estiveram presentes o cabeça de casal e a sua esposa. O cabeça de casal esteve representado pela sua mandatária, que tal como todos os que estiveram presentes, de forma incrédula assistiu à tentativa de burla que a arguida tentou nesse momento perante todos praticar.

E. Após notificação do MP à arguida para que juntasse ao processo documento comprovativo da entrega de todas as peças em ouro, o Ilustre mandatário da arguida combinou com a mandatária do denunciante proceder a essa entrega no dia 15/04/2013 pelas 17hOO. Ora, o que se verificou nesta data é que os dois pares de brincos já não eram iguais aos que a arguida tentou entregar no dia 07 de Janeiro de 2013. Já não eram a bijuteria pechisbeque de então. Eram mais parecidos às peças de ouro que a arguida tinha recebido como fiel depositária, contudo não eram as mesmas. As peças que o Ilustre mandatário da arguida trouxe para entrega correspondem às fotos que juntou ao processo (Cír. fotos ido fls. 61).

F. A verdade é que a arguida não entregou as peças em ouro que lhe tinham sido confiadas porque não quis ou porque já não as tem e a verdade é que a arguida quis por mais que uma vez fàzer passar por essas peças outras de menor valor comportamento este praticado contra pessoas com especial vulnerabilidade em razão da sua idade e em alguns casos em razão da sua doença.

-Facto inequívoco e claramente revelador de que a arguida tentou enganar os restantes herdeiros, que o MP se olvidou de considerar, é que os brincos apresentados para entrega pelo seu mandatário na reunião de 15/04/2013 não são os mesmos que a arguida apresentou para entrega no dia 07 de Janeiro 2013. Este facto foi presenciado por todos os que estiveram presentes nessas duas reuniões. No dia 15/04/20 13 os brincos eram os das fotos que a arguida juntou ao processo, enquanto que os brincos no dia 07/0112013 não passavam de uma bijuteria pechisbeque sem valor. A verdade é que dois pares de brincos entregues à arguida e que esta deveria ter guardado nunca mais foram por ela apresentados.

Por diversas vezes os vários herdeiros, alguns de avançada idade e com dificuldades de saúde, estiveram presentes ou se fizeram representar para que a arguida fizesse a entrega peças que tinha consigo. A arguida sempre fugiu a essa entrega e ainda mais grave que isso (por duas vezes quis entregar peças de menor valor. Este comportamento não pode nunca ser tutelado pelo direito.

Do Direito;

Do crime de abuso de confiança;

A factualidade presente é susceptível de integrar em abstracto, a prática do crime de abuso de confiança p. e p. no art. 205 CP.

O n.º 1 do art.º 205º CP preceitua "quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por titulo não translativo da propriedade é punido com a pena de prisão até três anos ou com pena de multa".

Ora, a arguida foi instada por diversas vezes a entregar ao cabeça de casal as peças que lhe tinham sido confiadas para guarda. Até à presente data ainda não as entregou. Não as entregou mas algumas delas (dois pares de brincos) nunca mais permitiu que os restantes herdeiros sequer as tornassem a ver. É assim inequívoco que a arguida se apropriou dessas peças, se é que não as vendeu já. E agora a todo o custo tenta substituí-las por outras. Não será este o sentido a dar à sua frase "não o tinha do pé para a mão H proferida diante de todos os presentes na reunião de 15/12/2012 ?

Do crime de burla;

A factualidade presente também é susceptível de integrar em abstracto a prática do crime de burla p. e p. no art. 217 CP.

O n. 1 do art.º 217º CP estabelece;

"Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. H

O n. 2 no mesmo do artigo estabelece que "A tentativa é punível

A burla é crime comum, de dano contra o património, crime material, na medida em que a realização típica comporta o evento. Tratando-se de um crime material ou de resultado, o ilícito apenas se consuma com a saída das coisas da disponibilidade do sujeito. A obtenção de uma vantagem patrimonial não é necessária para a consumação, embora muitas vezes o o que a lei exige é que o agente actue com intenção de obter um enriquecimento ilegítimo

           

Ora, como verificamos, o requerimento de instrução não contém efectivamente descrição fáctica que possa integrar a tipicidade subjectiva dos crimes de abuso de confiança e burla imputados. Mas o seu grau de deficiência vai mais longe.

No que respeita ao crime de abuso de confiança apenas se refere conclusivamente que os bens objecto de apropriação estavam à guarda da arguida, não se descrevendo que bens concretos são esses, quando lhe foram entregues para guarda, por quem lhe foram entregues e a quem pertencem, elementos factuais que seriam essenciais para a própria imputação objectiva do crime e a mesma falta se nota em relação ao crime de burla posto que começa por não se saber que bens terão sido objecto desse imputado crime.

Esqueceu, pois, o recorrente que, nos termos do artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal, estava obrigado a enunciar ordenada e concretamente os factos imputados à arguida integradores dos tipos de crime imputados na sua vertente objectiva e subjectiva, nos mesmos termos que são exigidos ao Ministério Público quando exerce a acção penal.

            Sendo certo que o preceito estipula que o requerimento de instrução não está sujeito a formalidades especiais, também estipula "mas deve conter" nomeadamente essa descrição factual.

            Perante este grau de deficiência da descrição factual, desde logo quanto aos elementos objectivos que constituem a materialidade de cada crime, por muito que a recorrente esgrima em sentido contrário, é incontornável que o seu requerimento devia ser rejeitado, importando manter a decisão recorrida.


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            IV. Decisão

Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente, mantendo a decisão recorrida.

Pelo seu decaimento em recurso vai o recorrente condenado em custas, fixando-se a taxa de justiça devida em quatro unidades de conta.


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Coimbra, 25 de Junho de 2014

 (Maria Pilar Pereira de Oliveira - relatora)

 (José Eduardo Fernandes Martins - adjunta)