Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1553/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: NUNES RIBEIRO
Descritores: PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
CRÉDITO LABORAL
CRÉDITO HIPOTECÁRIO
Data do Acordão: 09/27/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COVILHÃ - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 12.º, N.º 1 DO DECRETO-LEI N.º 17/86, DE 14/06; ARTIGO 751.º DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGO 4.º DA LEI N.º 96/2001, DE 20/08; ARTIGO 21.º, N.º 2, E) E T) LEI N.º 99/2003, DE 27/08 (CÓDIGO DO TRABALHO) E E ARTIGO 377.º DA LEI N.º 96/2001, DE 20/08
Sumário: 1. Os privilégios imobiliários gerais estão explicitamente excluídos do âmbito de aplicação do artigo 751º do Código Civil, não beneficiando, consequentemente, de prioridade, nomeadamente sobre a hipoteca.
2. Com o novo Código do Trabalho, os créditos dos trabalhadores passaram a gozar, ao invés do que antes sucedia, de privilégio imobiliário especial, tendo ficado, dessa forma, claramente abrangidos pela letra do artigo 751º do Código Civil.

3. Sendo os privilégios creditórios imobiliários especiais garantia mais forte do que a hipoteca, os créditos dos trabalhadores devem ser graduados à frente do crédito garantido por hipoteca anteriormente constituída.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

Por apenso aos autos de falência de A..., a B..., entre outros credores, reclamou o seu crédito, para garantia do qual havia feito registar hipoteca sobre os imóveis aludidos na certidão de fls 60 e segs dos autos.
No saneador, em virtude de nenhum dos diversos créditos reclamados nos autos pelos vários credores terem sido impugnados, foram os mesmos reconhecidos e graduados, depois das custas da falência e seus apensos a sair precípuas do produto da massa falida, pela ordem seguinte:
1º- os créditos dos trabalhadores, referentes a salários, subsídios e indemnizações;
2º - o crédito da reclamante B..., “em relação aos imóveis descritos na sua reclamação” de fls 295 dos autos, de que beneficia de hipoteca;
3º - os restantes créditos, todos comuns
Inconformada, a B..., interpôs a presente apelação, cuja alegação conclui sustentando que só os créditos dos trabalhadores de natureza retributiva, com exclusão designadamente das indemnizações por cessação do contrato de trabalho e de quaisquer outras compensações sem essa natureza, beneficiam do privilégio imobiliário geral consagrado na Lei n.º 17/86 de 14/06, pelo que, não assentando os créditos reclamados nos autos na prestação efectiva de trabalho, não beneficiam de qualquer privilégio, devendo, consequentemente, ser graduados como créditos comuns; e que, mesmo a entender-se que beneficiam do privilégio imobiliário geral consagrado naquela Lei n.º 17/86, nunca devem ser graduados à frente dos créditos da ora recorrente, uma vez que a disciplina do art.º 751º do C. Civil só é aplicável aos privilégios imobiliários especiais, não podendo, por isso, os créditos que gozam de privilégio imobiliário geral prevalecer sobre os créditos garantidos por hipoteca anteriormente registada.
Contra-alegou o trabalhador reclamante C..., pugnando doutamente pela confirmação da sentença recorrida.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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Os Factos
Os factos provados são os que constam da decisão recorrida, para cujos termos se remete, ao abrigo do disposto no art.º 713º n.º 6 do C. P. Civil.
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O Direito
Como é sabido são as conclusões que delimitam o objecto do recurso ( art.ºs 684º n.º 3 e 690º n.º 1 do C. P. Civil ), não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.
As questões suscitadas pela apelante nas conclusões do recurso consistem em saber se os créditos laborais reclamados nos autos pelos trabalhadores da falida beneficiam ou não todos eles, e na sua globalidade, de privilégio mobiliário e imobiliário geral, e se o privilégio imobiliário geral deve ou não prevalecer sobre a hipoteca anteriormente registada.
Como resulta da letra do n.º 1 do art.º 12º da Lei n.º 17/86 de 14/6, “os créditos emergentes do contrato individual de trabalho regulados pela presente lei” gozam de privilégio mobiliário geral e imobiliário geral.
E o mesmo acontece, por força do disposto no n.º 4 do mesmo preceito, relativamente aos créditos de juros de mora.
Ora, no conceito ali adoptado de créditos emergentes do contrato individual de trabalho, contrariamente ao sustentado pela apelante, estão abrangidos, quer os salários, quer as outra prestações regulares e periódicas feitas directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie, como os subsídios de férias e de Natal, por todas estas deverem, nos termos do art.º 82º da Lei do Contrato de Trabalho ( Dec. Lei n.º 49 408, de 24 -11-69) , ser tidas por retribuição.

E também ainda - como já se disse - os juros de mora respeitantes às retribuições em dívida, por força do n.º 4 daquela Lei n.º 17/86, e, bem assim, a indemnização pela rescisão do contrato aludida no art.º 6º da mesma Lei ( vide, neste sentido, Ac. STJ de 9-2-99 in Col. Jur./STJ, ano VII, tomo I, pag. 86).

Os restantes créditos emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação que não estejam relacionados com a falta de pagamento pontual da retribuição – porque excluídos expressamente do âmbito da citada Lei – gozavam apenas, atento o estatuído no art.º 25º da LCT ( Lei do Contrato de Trabalho - Dec. Lei n.º 49 408, de 24 -11-69 ), do privilégio mobiliário geral consagrado no art.º 737º n.º 1 al. d) do C. Civil. ( vide Ac. STJ de 9-2-99 acima referido). Mas mesmo estes, como decorre da citada al. d) e do n.º 2 daquele art.º 737º, somente quando relativos aos últimos 6 meses, contados a partir do pedido de pagamento.
Todavia, em 20 de Agosto de 2001, foi publicada a Lei n.º 96/2001, que no seu art.º 4º n.º 1 veio estabelecer que “os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, gozam do seguintes privilégios:
a) privilégio mobiliário geral;
b)privilégio imobiliário geral.”
Acrescentando o n.º 3 do mesmo preceito que: “ Os privilégios dos créditos referidos no n.º 1, ainda que sejam preexistentes à entrada em vigor da presente lei, gozam de preferência nos termos do número seguinte, sem prejuízo, contudo, dos créditos emergentes da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, e dos privilégios anteriormente constituídos com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da presente lei.
Esta Lei entrou em vigor, por força do disposto no seu art.º 10º, no dia 19 de Setembro de 2001, antes, portanto, da sentença recorrida, datada de 15-09-2004.

Consequentemente, desde então, todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação passaram a gozar de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário geral, contrariamente ao sustentado pela apelante.
Todavia, já antes da alteração introduzida ao art.º 751º do C. Civil, pelo Dec. Lei n.º 38/2003, de 08/3, a jurisprudência dos nossos tribunais, nomeadamente do Supremo, se começou a orientar no sentido da não aplicação da disciplina desta citada norma aos privilégios imobiliários gerais criados por legislação avulsa posterior à publicação do C. Civil, aos quais entendia dever ser antes aplicado o regime do art.º 749º do C. Civil ( vide, entre outros, Ac. STJ de 24-9-2002, in Col. Jur/STJ, ano X, tomo III , pag 55). Consumada tal alteração, não pode agora haver dúvidas, a nosso ver, que os privilégios imobiliários gerais estão explicitamente excluídos do âmbito de aplicação do art.º 751º, não beneficiando, consequente, de prioridade, nomeadamente sobre a hipoteca.
Por tal razão, relativamente aos imóveis hipotecados, os créditos dos trabalhadores reclamados nos autos não poderiam ser graduados à frente do crédito da ora recorrente, que dispõe de garantia hipotecária anterior, com fundamento na citada Lei n.º 17/86 e no art.º 751º do C. Civil como entendeu o tribunal recorrido.
Há, porém, que considerar que, no dia 01 de Dezembro de 2003, entrou em vigor o novo Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto ( vide art.º 3º).
Ora, enquanto esta Lei n.º 99/2003, no seu art.º 21º nº 2 als e) e t), expressamente determina a revogação, com a entrada em vigor dos diplomas regulamentares do Código do Trabalho ( em que se inclui a Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, que nos seu art.ºs 300º e segs veio regular os efeitos do não pagamento pontual da retribuição, matéria antes prevista na Lei n.º 17/86 ) das acima referidas Leis n.º 17/86, de 14 de Junho, e n.º 96/2001, de 20 de Agosto, o Código do Trabalho por ela aprovado, por sua vez , veio estatuir no art.º 377º que:

“Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios:

a)Privilégio mobiliário geral;
b)Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.....”
Os créditos dos trabalhadores passaram, assim, com o novo Código do Trabalho, a gozar, ao invés do que antes sucedia, de privilégio imobiliário especial, tendo ficado, dessa forma, claramente abrangidos pela letra do art.º 751º do C. Civil, na redacção saída do Dec. Lei n.º 38/2003, de 08/3, quando estatui que: “Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiriram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores”.

Ora, a lei que regula em novos termos a garantia patrimonial de determinados créditos, criando a seu favor um privilégio creditório, deve aplicar-se retroactivamente, de acordo com o disposto na 2ª parte do n.º 2 do art.º 12º do C. Civil ( neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in C. Civil Anotado, 4ª ed. revista e actualizada, vol. I pag 62, e Ac. STJ de 29-5-80 , in BMJ 297º, 278).
De modo que, sendo os privilégios creditórios imobiliários especiais garantia mais forte do que a hipoteca, os créditos dos trabalhadores reclamantes nos autos deviam ser, como foram, graduados à frente do crédito da ora apelante, apesar deste se mostrar garantido por hipoteca anteriormente constituída.

E não se argumente que um tal entendimento ou interpretação viola o princípio da confiança ínsito no Estado de Direito Democrático, consagrado no art.º 2º da Constituição da República Portuguesa, pois que – como já decidiu o Tribunal Constitucional no seu acórdão, de 22/10/03, publicado in DR, II série, de 03/01/04 ( a propósito de créditos hipotecários da Segurança Social e créditos abrangidos pela Lei n.º 17/86 ) – não há identidade entre esses dois tipos de créditos e, quando está em causa o direito fundamental dos trabalhadores à sua remuneração e à sua sobrevivência condigna, que o privilégio imobiliário visa assegurar, justifica-se a preferência deste à hipoteca.
A sentença recorrida é, pois, de manter, embora por fundamento diferente.

Decisão
Nos termos expostos, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar, embora por fundamento diverso, a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Coimbra, 27/10/2005