Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
35/13.3JACBR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
ALTERAÇÃO DOS FACTOS DESCRITOS NA ACUSAÇÃO
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 03/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 303.º, N.º 1, DO CPP; ART. 32.º, N.º 1, DA CRP
Sumário: I – A decisão de pronúncia há-de conter-se dentro dos elementos factuais que constituem o acervo investigatório e probatório do processo, podendo o juiz de instrução proceder à correcção dos lapsos de que padeça a acusação e à integração das lacunas que a dita peça processual revele, desde que não seja alterada a estrutura ontológica essencial do libelo acusatório e se mostrem observados os procedimentos impostos no artigo 303.º, 1, do CPP.

II – Esta interpretação normativa não viola o preceito inserto no n.º 1 do artigo 32.º da CRP.

Decisão Texto Integral:







ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

No Juízo de Instrução Criminal de Leiria, da Comarca de Leiria – J2, a encerra a fase de instrução, foi proferida decisão instrutória relativamente aos arguidos A... , B... e “ C... , L.da”, não os pronunciando pela prática do crime de falsidade informática por que vinham também acusados e pronunciando-os pela prática, em co-autoria material, em concurso real e efectivo e na forma consumada, de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256°, n.º1, al. a), d) e e), do C. Penal, e de um crime de burla qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 202º, al. b), 217°, n.°1 e 218°, n.°2, al. a), todos do C. Penal. A arguida C... , Lda. é penalmente responsável pelos mesmos crimes, nos termos do artigo 11°, n.°2, al. a) e n.°4, do C. Penal.

Na sequência, o arguido B... veio arguir a nulidade do despacho de pronúncia, pedindo a sua substituição por outro que reconheça a nulidade da acusação e daí retire todas as consequências.

O MP pronunciou-se pelo indeferimento do requerimento em causa.

Sobre o mesmo recaiu o seguinte despacho (teor literal):

Em requerimento autónomo, veio o arguido B... arguir a nulidade da decisão instrutória, por violação do disposto nos artigos 303º e 309º do C. P. Penal.

Conclusivamente, sustentou tal entendimento no seguinte:

a) as correcções e modificações feitas à acusação não resultam, efectivamente, de novos factos descobertos na instrução, pelo que não há lugar à aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 303° do CPP;

b) sendo que, paralelamente, e faltando algum elemento essencial à acusação – nos termos do n.º 3 do artigo 283º – a solução é a do arquivamento ou não pronúncia, e nunca o recurso ao regime da vinculação temática;

c) ou seja, a interpretação dos artigos 1º, alínea f), 303º, 358º e 359º do CPP de acordo com a qual é possível em fase de instrução ou julgamento, que o juiz proceda à sanação de nulidades da acusação por omissão da narração de factos essenciais (em violação do disposto no artigo 283º do CPP) invocando uma “alteração não substancial dos factos” é inconstitucional por violação do disposto no n.º 5 do artigo 32º da CRP;

d) caso assim não se entenda, sempre se consideram as alterações realizadas – no seu conjunto – como substanciais nos termos dos artigos 1º, n.º 1, alínea f) e 303º do CPP;

e) e entende-se assim, pois as alterações feitas correspondem, no fundo, a uma global correcção da acusação pelo JIC, confundindo-se a função do JIC com a do MP, em desconformidade ao princípio do acusatório;

f) sendo que, também, tais alterações têm um impacto significativo no direito de defesa do arguido, sacrifício este que não é – no caso – justificado pelo interesse conflituante de prossecução penal, uma vez que o MP teve todas as mais justas e amplas oportunidades de deduzir uma acusação válida, tal não tendo acontecido apenas por incúria;

g) ou seja, a interpretação dos artigos 1º, alínea f), 303º, 358º e 359º do CPP, de acordo com a qual é possível em fase de instrução ou julgamento, que o juiz proceda à sanação de nulidades da acusação por omissão da narração de factos essenciais (em violação do disposto no artigo 283º do CPP) ou à correcção de contradições, erros e omissões graves da acusação, sem que tenham sido, efectivamente, descobertos quaisquer factos novos, invocando para tal uma “alteração não substancial dos factos” é inconstitucional por violação do disposto nos n.ºs 1 e 5 do artigo 32º da CRP.

Notificados os co-arguidos e o Ministério Público para, querendo se pronunciarem, apenas o fez este último, sustentando, em síntese, a Digna Procuradora da República que as alterações à acusação feita no despacho de pronúncia contiveram-se dentro dos limites permitidos pelas disposições conjugadas dos artigos 303º, n.º 1, 3, 4 e 5 e 309º, n.º 1, e com respeito pelos artigos 1º, al. f), 358º e 359º, todos do CPP; que a alteração factual considerada não permite a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, nos termos definidos pelo citado artigo 1º, pelo que a alteração factual que ocorreu na prolação do despacho de pronúncia se traduziu numa alteração não substancial de factos; pelo que a convolação a que se procedeu não enferma de qualquer vício processual justificativo da alegada nulidade do despacho de pronúncia.

Cumpre apreciar e decidir.

As questões suscitadas pelo arguido requerente já foram alvo de tratamento no despacho de pronúncia, nada havendo a acrescentar ou modificar. Pelos fundamentos que se voltarão a reproduzir, mantenho que o despacho de pronúncia não colmatou nulidades da acusação e não alterou substancialmente os factos nela descritos, não incorrendo em qualquer nulidade ou interpretando de forma inconstitucional qualquer preceito legal.

Como já se disse na decisão instrutória:

«(…) a alteração factual considerada conteve-se dentro do balizamento definido pela acusação do Ministério Público. Mesmo perante as muito significativas deficiências de tal peça, resulta evidente que aos arguidos é imputada a falsificação de receituário e documento suporte de vendas fictícias de medicamentos. A delimitação de quais as receitas e vendas de medicamentos integradas no objecto do processo foi feita mediante a descrição de tal documentação. Foi também listado o rol de utentes cujos elementos identificativos foram, na tese da acusação, abusivamente usados para fabricar receitas e documentos de venda falsos. A alteração de factos que se considera verificável em caso de pronúncia, como resulta dos aludidos despachos de 08/05/2017 e de 07/06/2017 e, de resto, é reconhecido pelo arguido B... a fls. 1889 a 1994, traduz essencialmente clarificação e correlação de factos, eliminando aqueles que, manifestamente, não permitem a sustentação da aplicação aos arguidos de pena ou medida de segurança e, consequentemente, não têm lugar numa acusação ou pronúncia (artigos 283º, n.º 1 e n.º 3, al. b) e 308º, n.º 1, ambos do C. P. Penal). A definição do objecto processual que a acusação deve fazer não é extensível, com respeito pela opinião contrária, a factos meramente instrumentais ou que servem para “contextualizar” aqueles que integram tipos legais de crimes. Os arguidos também não têm “direito” a ver mantida factualidade na acusação que lhes permite invocar vícios de nulidade ou ininteligibilidade. Assim como não faz sentido que vejam atentados ao seu direito de defesa por via da eliminação de factos que constavam da acusação inicial. Em boa medida, o que resulta dos despachos de 08/05/2017 e 07/06/2017 traduz concordância e desenvolvimento da argumentação expendida do RAI do arguido B... . Não existe construção de “narrativa fundamentalmente” diversa da narrada na acusação. O que está em causa já resultava do acervo factual descrito nessa peça, isto é, a imputação de plano entre os arguidos médico e farmacêutico no sentido de obterem do Serviço Nacional de Saúde (SNS) comparticipações indevidas mediante a “fabricação” de receitas que não correspondiam a efectivas prescrições, com base nas quais se simulavam vendas de medicamentos a utentes mediante a “fabricação” de documentos de venda, sendo que tais vendas nunca ocorreram na verdade. O conjunto de documentos listado na acusação define o alcance do plano executado, pelo que a sua manutenção assegura a convergência do objecto processual, estando em causa a mesmíssima narrativa. Não há violação do princípio acusatório quando o Juiz de Instrução se limita a clarificar a – neste caso particular, muito – confusa descrição feita na acusação pública, a torná-la inteligível, a correlacionar receitas e documentos de venda com utentes (que a acusação elencou em listas separadas) e a eliminar factos penalmente irrelevantes ou relativamente aos quais se indiciava o preciso contrário do que era afirmado. A alteração factual considerada não permite a imputação aos arguidos de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, pelo que não é substancial, nos termos definidos pela alínea f) do artigo 1º do C. P. Penal. Também não viola quaisquer direitos de defesa dos arguidos, na medida em que, no essencial se limita a retirar e não a aditar factos, sendo que toda a defesa oponível aos factos descritos na acusação no que toca ao cerne da questão se mostram transponíveis para a factualidade que eventualmente venha a figurar na pronúncia. Como se deixou claro no despacho de 08/05/2017, apenas se aditaram referências a menos de dez receitas emitidas em nome de utentes listados na acusação. Esse aditamento é irrelevante à luz da qualificação jurídica dos factos, está longe de “compensar” a factualidade expurgada e, como se disse, traduz a rectificação de mero lapso material. Tal como a acusação mencionou duas vezes o mesmo utente, tal como trocou o nome de vários utentes, tal como incluiu receitas cujos utentes asseveraram serem verdadeiras, omitiu menos de 10 receitas emitidas em nome de utentes listados na acusação e que constavam do apenso onde está coligida a impressão de tais receitas e documentos de venda. Não há pois qualquer violação do princípio do acusatório, na medida em que o Juiz de Instrução não definiu o objecto do processo, não o criou e não desvirtuou aquele definido na acusação do Ministério Público. O objecto do processo não é imutável ao longo do iter processual, sendo normal que se vá alterando. Por outro lado, como parece evidente, a consideração de que parte dos factos imputáveis aos arguidos não devem continuar a integrar tal objecto processual não traduz, de todo, alteração proibida da vinculação temática ou implica violação do princípio do acusatório. Em termos singelos, o que sucede é que o Ministério Público, com o devido respeito, acusou mal, descrevendo os factos com erros, omissões, contradições e lapsos que tornaram a peça quase ininteligível. O que o Juiz de Instrução fez foi clarificar, corrigir e expurgar, mas sempre dentro dos limites fixados pela acusação, mantendo a “narrativa” definidora do objecto processual, mantendo a factualidade a que se aplica o cerne da defesa dos arguidos e mantendo um acervo factual que se contém dentro da qualificação jurídica feita no libelo acusatório, sem imputação de crimes diversos ou agravação de limites máximos de sanções aplicáveis. Não existe pois qualquer alteração substancial de factos (…)».

Motivos pelos quais julgo inverificada a arguida nulidade da decisão instrutória, não se tendo violado qualquer norma jurídica, nomeadamente as invocadas pelo arguente.

Notifique (os arguidos com cópia de fls. 2349 a 2355 para integral esclarecimento).

           

Inconformado com tal despacho, o arguido B... interpôs o presente recurso, que motivou, formulando as seguintes conclusões:


1.

Por tudo o exposto, entende-se que é nulo o despacho de pronúncia, nos termos dos artigos 303.º e 309.º, do Código de Processo Penal, por duas vias de argumentação alternativas:

2.

As correções e modificações feitas à acusação não resultam, efetivamente, de novos factos descobertos na instrução, pelo que não há lugar à aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 303.º, do Código de Processo Penal;

3.

Sendo que, paralelamente, e faltando algum elemento essencial à acusação – nos termos do n.º 3 do artigo 283.º, do Código de Processo Penal - a solução é a do arquivamento ou não pronúncia, e nunca o recurso ao regime da vinculação temática.

4.

Ou seja, a interpretação dos artigos 1.º, alínea f), 303.º, 358.º e 359.º, do Código de Processo Penal, de acordo com a qual é possível em fase de instrução ou julgamento, que o juiz proceda à sanação de nulidades da acusação por omissão da narração de factos essenciais (em violação do disposto no artigo 283.º, do Código de Processo Penal) invocando uma “alteração não substancial dos factos” é inconstitucional por violação do disposto no n.º 5 do artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa.

5.

Caso assim não se entenda, sempre se consideram as alterações realizadas – no seu conjunto – como substanciais nos termos dos artigos 1.º, n.º 1, alínea f) e 303.º, do Código de Processo Penal.

6.

E entende-se assim, pois as alterações feitas correspondem, no fundo, a uma global correção da acusação pelo Juiz de Instrução Criminal, confundindo-se a função do Juiz de Instrução Criminal com a do Ministério Público, em desconformidade ao princípio do acusatório;

7.

Sendo que, também, tais alterações têm um impacto significativo no direito de defesa do arguido, sacrifício este que não é – no caso – justificado pelo interesse conflituante de prossecução penal, uma vez que o Ministério Público teve todas as mais justas e amplas oportunidades de deduzir uma acusação válida, tal não tendo acontecido apenas por incúria.

8.

Ou seja, a interpretação dos artigos 1.º, alínea f), 303.º, 358.º e 359.º, do Código de Processo Penal, de acordo com a qual é possível em fase de instrução ou julgamento, que o juiz proceda à sanação de nulidades da acusação por omissão da narração de factos essenciais (em violação do disposto no artigo 283.º, do Código de Processo Penal) ou à correção de contradições, erros e omissões graves da acusação, sem que tenham sido, efetivamente, descobertos quaisquer factos novos, invocando para tal uma “alteração não substancial dos factos” é inconstitucional por violação do disposto no n.ºs 1 e 5 do artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa.

Termos que deverá o despacho de pronúncia ser declarado nulo e substituído por outro que reconheça a nulidade da acusação e daí retire todas as consequências.

            Respondeu o MP em primeira instância, retirando dessa sua peça as seguintes conclusões:

- A instrução tem como finalidade “a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, tendo o Juiz na fase da Instrução o poder de investigação. A mesma incide num determinado objecto que é fixado pela acusação ou pelo requerimento para abertura de instrução, culminando numa decisão instrutória, da qual constam os fundamentos do despacho de pronúncia ou de não pronúncia (cfr. artigos 286.°, 287.°, 288° e 303.°, todos do CPP).

2º - Verifica-se uma alteração substancial dos factos quando surgirem factos não constantes da acusação do Ministério Público ou do assistente ou do requerimento deste para a abertura da instrução que tenham como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Por seu turno, verifica-se uma alteração não substancial dos factos quando surgirem factos não constantes da acusação do Ministério Público ou do assistente ou do requerimento deste para a abertura da instrução e que não tenham como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Neste caso, o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido sobre esses factos, sempre que possível, e concede-lhe, a requerimento, um prazo para a preparação da defesa, não superior a oito dias, com o consequente adiamento do debate, se necessário (art.º 303º do C.P.P), o que foi cumprido no presente caso.

3º - Ora, no caso em análise, não obstante os factos descritos na acusação poderem padecer de alguma contradição ou quase ininteligibilidade, não se mostravam, como alegado pelo arguido recorrente, manifestamente omissos, sendo que não se verificou a adição de novos factos. Verificou-se sim uma nova arrumação, uma clarificação e um expurgar de factos vertidos na acusação, mantendo-se porém a descrição que define o objecto daquela; tudo sem que tenha sido alterada a qualificação jurídica ou tenham sidos imputados crimes diversos ao arguido ou se tenha verificado a agravação de limites máximos de sanções aplicáveis. Não existe pois qualquer alteração substancial de factos.

- Verificando-se o supra-mencionado e dado que toda a defesa oponível aos factos descritos na acusação se mostram transponíveis para a factualidade que foi vertida na pronúncia certo é que as citadas alterações sofridas por aquela peça processual mostram-se respeitadoras dos princípios do acusatório e da tutela das garantias do arguido, bem como se mostram correctas à luz dos artigos 1.º n.°1, alínea f), 303.º, 358.° e 359.°, todos do CPP.  E assim sendo, em nosso entender, a convolação a que se procedeu não enferma de qualquer vício processual justificativo da alegada nulidade do despacho de pronúncia.

- E no que respeita à prova, designadamente a documental, a mesma constava já dos autos no momento da notificação da acusação. O Mmo. Juiz de Instrução Criminal apenas determinou que a Polícia Judiciária “extraísse” e fizesse constar dos autos, em formato papel, algumas das receitas e recibos que eram invocados na acusação. Além do mais, foi dada oportunidade de defesa ao arguido, designadamente na fase de Instrução, no âmbito da qual foram cumpridos todos os preceitos legais, e mantém-se para o futuro até porque o arguido, estando ciente do despacho de pronúncia, tem 20 dias para apresentar a sua contestação e arrolar testemunhas – cfr. art.º 315º do CPP.

- Por todo o exposto, entendemos inexistirem as “alegadas nulidades da acusação”, bem como julgamos não poderem ser extraídas “todas as suas consequências”, nos termos explanados pelo recorrente. Inexiste igualmente a invocada inconstitucionalidade por violação do disposto no n.ºs 1 e 5 do artigo 32.°, da Constituição da República Portuguesa.

- E assim sendo, dado que da valoração da prova trazida para o processo resultam indiciados os factos fixados na decisão instrutória, os quais são subsumíveis aos crimes aí imputado aos arguidos, salvo melhor opinião, cremos que se deve manter a pronúncia nos seus precisos termos.

Porém, V. Excelências farão a costumada Justiça.

            Nesta Relação, o Il.mo PGA emitiu douto parecer no qual, acompanhando a anterior resposta, concluiu também pelo não provimento do recurso.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

DECIDINDO:

            Analisadas as conclusões com que o recorrente resume a sua motivação, logo se vislumbra que são as seguintes as questões que, através delas, coloca à nossa apreciação censória:

- em primeiro lugar argui a nulidade da decisão de pronúncia, por conter correcções e modificações do texto da acusação, que não resultam de novos factos descobertos na instrução;

- subsidiariamente, pretende que sempre as alterações realizadas, e ali qualificadas de não substanciais, devem, antes pelo contrário, ser consideradas como substanciais;

- alega que tais alterações têm um impacto significativo no direito de defesa do arguido e que a correcção a que se procedeu contende com o princípio do acusatório;

- remata concluindo que a interpretação das aplicáveis normas, diversa ao seu entendimento que agora manifesta, será de qualificar de inconstitucional, por violação das normas dos nºs 1 e 5 do artº 32º da CRP. 

            Começaremos por dizer que as pretensões conclusivas do recorrente são mera reiteração de pelo menos dois anteriores requerimentos que formulara, e que a decisão recorrida, por sua vez, repristina, na íntegra, a decisão que a propósito fora também proferida na decisão instrutória, pelo que se mostra deveras facilitada a nossa tarefa, por concordarmos, no essencial, com a posição assumida na decisão recorrida.

Com efeito, o Ministério Público, em 26 de Janeiro de 2017, deduziu acusação imputando aos arguidos A... e B... , em co-autoria, sob a forma consumada, a prática de um crime de falsificação, previsto e punido pelo art.° 256, n° 1, als. a), d) e e) e art.° 11, n° 2, do Código Penal, de um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo art.° 3, n° 1 e art° 9°, da Lei do Cibercrime, e de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo art.º 218, nº 2, al. a) ex vi art.° 217° e art.º 11, nº 2, do Código Penal. A arguida C... Unipessoal, Lda. é penalmente responsável pelos mesmos crimes, nos termos do artigo 11°, n.° 2, al. a) e n.°4, do C. Penal.

Notificados dessa acusação, os arguidos A... e B... vieram requerer a abertura da Instrução.

No âmbito desta o Mmo Juiz, preliminarmente à prolação da decisão instrutória, proferiu os despachos datados de 08/05/2017 e 07/06/2017.

Teve lugar o debate instrutório findo o qual foi proferida decisão instrutória, na qual foi decidido não pronunciar os arguidos pela prática do crime de falsidade informática, e pronunciar, para julgamento em processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo, os arguidos A... e B... pela prática, em co-autoria material, em concurso real e efectivo e na forma consumada, de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256°, n.º1, al. a), d) e e), do C. Penal, e de um crime de burla qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 202º, al. b), 217°, n.°1 e 218°, n.°2, al. a), todos do C. Penal. A arguida C... , Lda. é penalmente responsável pelos mesmos crimes, nos termos do artigo 11°, n.°2, al. a) e n.°4, do C. Penal.

Como questão prévia, foram conhecidas todas as questões suscitadas pelo ora recorrente, designadamente aquelas que agora reitera na sua motivação.

            Em processo penal, o regime das nulidades obedece ao princípio da legalidade enunciado no nº1 do artº 118º do CPP, segundo o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade quando esta for expressamente cominada na lei.

Um dos casos em que a lei comina expressamente com nulidade a violação de determinadas estatuições legais, é o do artº 309º, 1, do CPP, nos termos do qual «a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do MP ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução»

            Dispõe o artº 303º, 1, do mesmo CPP que, «se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos factos descritos na acusação do MP ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução» o juiz comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido, se possível e concede-lhe prazo para a preparação da defesa, se pedido.

A norma do artº 1º, f) do CPP, dá-nos a definição legal do que seja essa alteração substancial dos factos: «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».

            Ou seja, a tónica é posta em ambas aquelas normas na imputação ao arguido de crime diverso do acusado ou na agravação dos limites máximos das penas aplicáveis.

            Este instituto processual penal (da alteração não substancial dos factos) constitui uma concessão às necessidades de pragmatismo, de forma a permitir ultrapassar situações em que a acusação ou a pronúncia contêm omissões ou imprecisões, mediante a alteração desses factos, sem contudo tocar na garantia de defesa/contraditório e no essencial desses libelos, tornando mais claros e mais condicentes com a realidade os factos ou as suas circunstâncias; do mesmo modo permitem ‘corrigir’ os factos narrados naquelas peças quando o decurso do debate revele que o acontecimento naturalístico descrito não se processou bem daquele modo mas antes de modo algo diverso.

            Todavia, a lei não consagrou tal possibilidade de forma descontrolada, antes estabelecendo limites que são os que constam da definição legal que resulta daquela alínea f) do artº 1º do CPP. Ou a alteração se contém dentro desses limites (não tendo por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis) e então, após garantia do contraditório, mediante comunicação ao arguido, seu interrogatório e concessão de prazo, se requerido, para preparação da defesa, também quanto a esses pontos factuais, o debate poderá prosseguir quanto a eles, ou não. Neste caso, sendo a alteração de qualificar de substancial, em caso algum pode ter lugar a pronúncia do arguido relativamente aos factos em causa.

            Estando nós no campo da alteração dos factos descritos na peça que procede à delimitação temática do processo, introduzindo o feito em juízo (artº 283º, 3, CPP), e vistas essas necessidades de pragmatismo, de forma a obviar a incompreensíveis casos em que, no confronto entre os direitos de defesa do arguido e as necessidades de administração da justiça penal por parte da comunidade, estas últimas tinham de ceder, em todos os casos, nas circunstâncias em que, mantendo-se inalterada a substância daquela peça, a realidade revelada pelas provas se mostrava mais rica ou não substancialmente diversa daquela ali descrita.

            Daí a necessidade, sentida pelo legislador, de estabelecer tal válvula de segurança, permitindo obviar a situações de bloqueio processual, que de outro modo ocorreriam, mediante a possibilidade de o debate prosseguir, de forma a fazer coincidir, na maior extensão possível, a realidade narrada na peça introdutória do feito em juízo, com a verdade naturalística dos factos. Todavia, não fez essa concessão sem estabelecer limites, visando estes, no essencial, deixar intocados os direitos de defesa do arguido, v.g. o do contraditório.

Como diz Maia Gonçalves, em anotação ao artº 358º (no seu CPP Anotado), «neste artigo e no seguinte condensam-se os ensinamentos da doutrina mais autorizada sobre esta matéria, de modo a harmonizar, dentro do possível, a celeridade processual e o aproveitamento do processado com os imperativos legais do princípio contraditório e de uma defesa eficaz e em tempo útil por parte do arguido».

            E esses limites são os que resultam da distinção entre alteração não substancial e alteração substancial dos factos (sendo que esta em caso algum pode ser considerada nesta fase processual, para efeitos de pronúncia).

            Rege o artº 308º, 1, do CPP, que: «Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.»

            Por força da expressa remissão do nº 2 do mesmo artigo, e sem prejuízo do disposto na segunda parte do nº 1, são aplicáveis ao caso as normas dos nºs 2, 3 e 4 do artº 283º, referente à acusação pelo MP.

            Ou seja, o juízo acerca da bondade do proferimento do despacho de pronúncia ou de não pronúncia há-de ser formulado tendo em atenção o conjunto das provas produzidas anteriormente, devendo proceder-se à respectiva análise, concatenação e apreciação crítica. A lei adjectiva simplifica esta questão ao falar em «indícios suficientes» que refere (nº 2 do artº 283º) serem aqueles dos quais resulta «uma possibilidade razoável» de o arguido vir a ser sujeito a uma reacção penal ou de segurança.

Assim se compreende que a instrução, mediante uma verdadeira fiscalização jurisdicional facultativa da actividade do Ministério Público, vise «a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.» (artº 286º, 1, CPP).

            Ou seja, a decisão de pronúncia há-de conter-se dentro dos elementos factuais que constituem o acervo investigatório e probatório do processo, podendo o juiz de instrução - que é necessariamente diverso do juiz de julgamento, o que constitui evidente salvaguarda do princípio do acusatório - proceder, nesta fase, à correcção dos lapsos e à integração das lacunas de que padeça o libelo acusatório, desde que não altere a sua estrutura ontológica essencial e observe os procedimentos impostos pelo já analisado artº 303º, 1, do CPP.

No nosso caso, o arguido recorrente vinha acusado pela prática de um crime de falsificação, previsto e punido pelo art.° 256, n° 1, als. a), d) e e) e art.° 11, n° 2, do Código Penal, de um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo art.° 3, n° 1 e art° 9°, da Lei do Cibercrime, e de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo art.º 218, nº 2, al. a) ex vi art.° 217° e art.º 11, nº 2, do Código Penal.

Após realização do debate instrutório, foi proferida decisão que não o pronunciou pelo crime de falsidade informática, pronunciando-o apenas pela prática, em co-autoria material, em concurso real e efectivo e na forma consumada, de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256°, n.º 1, al. a), d) e e), do C. Penal, e de um crime de burla qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 202º, al. b), 217°, n.°1 e 218°, n.°2, al. a), todos do C. Penal.

            Ou seja, porque o âmbito da acusação é mais limitado do que o da pronúncia (por se ter deixado cair a imputação de um crime) e porque a previsão típica dos crimes de falsificação e de burla constante da pronúncia coincide integralmente com a que constava da acusação, não se nos afigura ocorrer uma qualquer alteração substancial dos factos, que sempre seria proibida.

            O que ocorre, pelo contrário, é uma alteração não substancial, tal qual foi decidido em primeira instância. Os crimes são os mesmos, os factos são os mesmos, ainda que configurados de modo algo diverso e com eliminação de contradições e de lapsos de que padecia a acusação. A situação processual do recorrente mantém-se estável, não havendo que registar uma qualquer alteração da delimitação temática – também proibida – que resulta da acusação do titular da acção penal.

Não tem aplicação directa ao nosso caso a jurisprudência definida no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, do Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão n.º 1/2015:

«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»

            Em primeiro lugar porque o âmbito deste AUJ se reporta à fase de julgamento, o que não é o caso (e daí a referência ao artº 358º do CPP e não ao artº 303º do mesmo CPP) e depois porque as alterações introduzidas no texto da acusação não alcançam o significado essencial referido nesse aresto, não se referindo ao elemento subjectivo dos tipos. Acresce que as alterações aqui em causa não mexem na estrutura essencial da acusação, antes a respeitam, apesar de procederem a uma algo diversa descrição factual.

            O recorrente refere tais alterações aos seguintes pontos que enumera na sua motivação:

a) Foram eliminados os artigos 6 a 9 da acusação;

b) Foi eliminada a expressão “novo” do artigo 6.º do despacho de ASNF (anterior artigo 10.º da acusação);

c) Foram eliminadas as alíneas ii) e iii) do artigo 6.º do despacho de ANSF (anterior artigo 10.º da acusação)

d) No artigo 8.º do despacho (anterior artigo 12.º da acusação), local onde foram feitas as mais extensas alterações, foram eliminados vários utentes e respetivas receitas, sendo ainda adicionados vários utentes e respetivas receitas, ou apenas dezenas de receitas de utentes que já constavam da acusação (factos que serão analisados mais extensamente nos pontos seguintes);

e) Foi alterado o valor da alegada burla, passando agora a estimar-se em 36.492,68 euros (artigo 13.º do despacho de ANSF, anterior artigo 18.º da acusação), passando também a discernir-se a fundamentação do valor apurado (demonstração do prejuízo, como elemento típico do crime de burla), algo que não era possível através da acusação;

f) Desapareceram os artigos 27.º e 28.º da acusação.

            Relativamente aos pontos que foram eliminados, diremos que é lícito ao juiz de instrução proceder ao saneamento da descrição factual do texto da acusação, desde que não desvirtue a sua essência, o que não aconteceu no caso; o recorrente se nesses factos vê alguma utilidade para a sua defesa é livre de a eles fazer apelo através da formulação de uma contestação, quando notificado nos termos do artº 313º, 2 do CPP (v. tb. o seu artº 315º).

            Já relativamente aos factos que foram integrados na pronúncia ao abrigo do disposto no artº 303º do CPP diremos que não constituem eles novidade para o recorrente, pois que resultam de elementos probatórios constantes do processo, a que ele teve livre acesso, não se podendo assim falar em surpresa para ele.

            Conclui também o recorrente que faltando algum elemento essencial à acusação, nos termos do artº 283º, 3 do CPP, a solução é a do arquivamento ou não pronúncia e nunca o recurso ao regime da vinculação temática.

            Em tese geral estamos de acordo com tal afirmação. Com efeito, uma acusação a que falte um qualquer dos elementos referidos nas diversas alíneas daquele nº 3 é nula; mas tal nulidade apenas se verifica quando essa omissão conduza à completa ineptidão do libelo acusatório e não também aos casos em que, como no presente, a acusação contém todos esses elementos essenciais, apensa padecendo e algumas contradições sanáveis e de omissões integráveis através do recurso ao mecanismo da alteração não substancial.

Pretende ainda o recorrente que as alterações introduzidas pelo despacho de pronúncia têm um impacto significativo no seu direito de defesa e que a correcção a que se procedeu contende com o princípio do acusatório.

Como, de forma singela, mas clara, ensinava o Prof. Cavaleiro de Ferreira (Curso de Processo Penal, I, reimpressão, Lx, 1981, pag. 43) «o princípio acusatório consiste, portanto, na atribuição da função investigatória, indispensável para fundamentar a acusação, e na formulação da acusação, por entidade diferente do tribunal».

Tal separação, que integra a ossatura essencial do nosso processo penal (v. o artº 32º, 5, da CRP) impede que a entidade que procede à investigação e à acusação coincida com aquela a que é atribuído o julgamento respectivo. Tal princípio é observado no nosso caso pois que sendo a delimitação temática do âmbito do julgamento operada pelo despacho de pronúncia (v. o artº 374º, 1, c) do CPP), este foi proferido por juiz diverso do juiz de julgamento (v. o artº 40º, b) do CPP) e não constituí alteração substancial da acusação que, por sua vez não era nula nem inepta.

Remata o recorrente concluindo que a interpretação das aplicáveis normas, no sentido que atrás propugnamos, será de qualificar de inconstitucional, por violação das normas dos nºs 1 e 5 do artº 32º da CRP. 

Já atrás afirmamos que esta interpretação respeita o comando essencial da norma do artº 32º, 5, respeitando a imposta separação entre as fases de investigação e acusação (com pronúncia facultativa) e de julgamento.

Também a norma do nº 1 de tal norma constitucional se mostra respeitada, por se mostrarem observados todos os direitos de defesa, dada a natureza contraditória do processo e o efectivo cumprimento das imposições processuais que resultam do artº 303º, 1, do CPP.

Não padece o despacho de pronúncia de qualquer nulidade, designadamente a arguida.

Termos em que nesta Relação se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra o douto despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 4 UC’s.

Coimbra, 20 de Março de 2018

Jorge França (relator)

Alcina da Costa Ribeiro (adjunta)