Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
503/05.0TBCDN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: SERVIDÃO DE VISTAS
LICENCIAMENTO DE OBRAS
CASO JULGADO
INSPECÇÃO JUDICIAL
FUNDAMENTAÇÃO
BASE INSTRUTÓRIA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 02/26/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CONDEIXA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 1360º, N.º1 E 334º, DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGOS 673º, 612º E 653º, N.º2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. O licenciamento administrativo de uma obra visa essencialmente obstar à ofensa de interesses públicos, não tendo a virtualidade de impor restrições ao direito de propriedade.
2. Uma vez transitada em julgado a decisão interlocutória, no regime anterior à reforma do processo decorrente do DL n.º 303/07, de 24.08, está vedado, em princípio, à parte que decaiu impugnar aquela decisão no recurso interposto da sentença final.
3. Na inspecção judicial ao local é ao Juiz que cabe, em última análise e sem recurso, avaliar quais os elementos úteis observados com interesse para a decisão da causa, cabendo às partes chamar, na altura, a atenção para os factos que reputem de interesse.
4. A fundamentação das respostas à base instrutória não constitui concreto meio probatório que sirva para impugnar a decisão de facto.
5. Está aberta em contravenção ao disposto no n.º 1 do art. 1360º, n.º1 do CC, uma janela aberta em parede divisória de dois prédios contíguos, com 1,06 metros de altura, 55 cm de largura e distanciando 1,22 metros do solo. Estando aberta na parede divisória, a janela deita directamente para o prédio vizinho, não existindo obliquidade entre os dois prédios contíguos.
O exercício de um direito decorridos que sejam vários anos sobre a sua constituição não qualifica sem mais abuso de direito na modalidade de um “venire contra factum proprium”.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:



I)- RELATÓRIO

M….. intentou, no Tribunal Judicial de Condeixa-A- Nova, acção declarativa, sob a forma de processo sumária, contra H…. e mulher C… e ainda contra R…. e mulher S….., pedindo a condenação dos RR. a:
a)- demolir e a tapar a janela que se encontra aberta na parede poente da moradia designada pela letra B do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Condeixa-a-Nova sob o n.º 175 e que deita directamente para o logradouro do prédio descrito na referida Conservatória sob o n.º 172;
b)-a alterar a localização da tubagem da caleira que recebe as águas que escoam do telhado da moradia referida, de modo a que o ponto de saída das águas fique colocado no logradouro do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 175;
c)-a tapar o buraco que abriram no muro de vedação do lado poente do prédio descrito sob o n.º 175;
c)-e a demolir o portão e a tapar a abertura que construíram no muro de vedação do lado norte do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Condeixa-a-Nova sob o n.º 175.

Como causa de pedir, a Autora alegou, em síntese, o seguinte:
-É proprietária e legítima possuidora da fracção autónoma designada pela letra C, do prédio descrito sob o n.º 172 da Conservatória do Registo Predial de Condeixa-a-Nova e os Réus H....e mulher, C…., e R….. e mulher S….. são donos e legítimos possuidores, respectivamente, das fracções autónomas designadas pelas letras B e A do prédio descrito sob o n.º 175 da Conservatória de Registo Predial de Condeixa-a-Nova, prédios esses contíguos;
-A fracção designada pela letra B, ao nível do rés-do-chão e na parede poente, tem uma janela aberta que deita directamente para o logradouro do prédio a que pertence a fracção da Autora, com uma altura de 1,16 m e largura de 0,60 m, sendo a distância desta janela ao solo do logradouro do prédio ao qual pertence a fracção da Autora de apenas 1,30 m.;
-Na referida moradia designada pela letra B foi colocada uma caleira para recolha das águas, que escorrem do telhado, cujo ponto de saída está colocado no logradouro do prédio a que pertence a fracção da Autora, fazendo com que as águas provenientes do telhado da moradia dos 1.ºs Réus escoem naquele logradouro;
- Os 1.ºs Réus, há cerca de dois anos, abriram um buraco com cerca de dez centímetros de diâmetro no muro vedação do logradouro da moradia sua pertença, que a separa do logradouro do prédio de que faz parte a fracção autónoma da Autora, sendo que, através desse buraco, caem no referido logradouro águas pluviais, tendo, igualmente, construído uma passagem no muro vedação que fica do lado norte do logradouro da moradia, com cerca de um metro quadrado, com o objectivo de criar uma saída/entrada directa do logradouro para a rua, que deita directamente para o referido logradouro do prédio de que faz parte a fracção autónoma propriedade da Autora.

Regularmente citados, apenas contestaram os Réus H….e mulher C….., impugnando parte da matéria alegada pela Autora, invocando que o logradouro, que os RR. alegam integrar o prédio descrito sob o nº. 172, é comum também à fracção dos Réus, pelo que a janela que a Autora refere está legalmente projectada e construída, e a mesma já se encontrava aberta com aquelas dimensões quando adquiriram a fracção, tendo as fracções de Autora e Réus sido construídas pelo mesmo construtor, tal como aconteceu com a caleira e com a passagem aberta no muro da vedação. No que se refere ao buraco existente no muro, alegam os Réus que o mesmo já foi tapado e que resultou da necessidade de escoar águas em resultado de uma inundação ocorrida em 1997.

Os Réus deduziram, ainda, reconvenção pedindo a condenação da Autora a:
a)- reconhecer que o logradouro referido no artigo 4.º da contestação é comum às fracções A, B, C;
b)- desocupar a área com cerca de 8/9m2 que ocupa exclusivamente, na extrema nascente do logradouro comum;
b)- demolir, no prazo de 30 dias, a balaustrada que construiu no logradouro comum; a retirar os vasos e plantas que mantém na estrema nascente do logradouro comum;
c)- e a retirar o tubo de água que atravessa o logradouro comum.
Para o efeito, os RR. alegaram, em síntese, o seguinte:
-O logradouro referido na petição inicial, como integrando o prédio descrito sob o n.º 171, é comum às fracções A, B e C e que a Autora ocupa parte desse logradouro, na sua estrema nascente, como se fosse sua exclusiva propriedade, tendo construído uma balaustrada para impedir que os outros comproprietários tenham acesso à parte poente do logradouro comum, sem que para tal tivesse legitimidade e sem o consentimento dos outros comproprietários, nomeadamente dos Réus. Mais alegam que a Autora mantém vasos e plantas na estrema nascente do logradouro comum, sem o consentimento dos Réus, tendo ainda encostado à parede do lado poente da casa dos Réus um tubo de plástico para a canalização de água de sua casa à garagem que possui, logo à entrada do logradouro comum, sem o consentimento daqueles.

A Autora respondeu, invocando a ilegitimidade dos Réus no que se refere ao pedido reconvencional, uma vez que o logradouro referido é comum às fracções A, B, e C, que integram o prédio descrito sob o n.º 172, mas não às fracções dos Réus.

Foi proferido despacho saneador, onde se julgou admissível a reconvenção, seleccionando-se, de seguida, a factualidade relevante. Após instrução, realizou-se a audiência de julgamento, tendo, no decurso desta, a Autora desistido de todos os pedidos em relação aos Réus Ricardo Alexandre Simões Mendes e mulher Susana Margarina Alves Canas, e ainda desistido do pedido formulado sob a alínea d) relativamente aos Réus Henrique Manuel da Cunha Teixeira e mulher, Cristina Maria Rodrigues da Cruz Teixeira, desistências que foram homologadas.

Por fim, foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente e provada, sendo os RR. Henrique e mulher condenados a
-tapar a janela que se encontra Berta na parede poente da moradia designada ela letra B do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Condeixa-a-Nova sob o n.º 175 e que deita directamente para o logradouro do prédio descrito na referida Conservatória sob o n.º 172
e
-alterar a localização da tubagem da caleira que recebe as águas que escoam do telhado da sua moradia, de modo a que o ponto de saída das águas fique colocado no logradouro do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo predial sob o n.º 175.
Mais foi julgada improcedente a reconvenção.

Os RR. não se conformaram com tal decisão, dela apelando, tendo extraído da sua alegação as seguintes conclusões:
1ª-Os Recorrentes reclamaram do despacho de fls. 137, alegando que os factos constantes do art. 20º da contestação deviam ser levados aos factos assentes, uma vez que não foram impugnados.
2ª-Tais factos têm interesse para a decisão da causa, pelo que o citado despacho violou o disposto no art. 511º, n.º1 do CPC, devendo ser revogado e deferida a reclamação apresentada;
3ª-Os Recorrentes requereram o depoimento de parte do co-réu Ricardo Mendes -que não contestou a acção proposta pela A.- a toda a matéria da base instrutória;
4ª-Tem um interesse próprio ou antagónica aos dos Recorrentes, de modo que o despacho recorrido, de fls. 137, violou o disposto no art. 553º, n.º3 do CPC, devendo ser revogada e anulada a tramitação processual subsequente ao mesmo;
5ª-A inspecção judicial realizada não teve em conta, tal como dispõe o art. 390º do CC, a percepção de factos importantes para a decisão da causa, designadamente, que a parede poente do prédio dos Recorrentes - onde está aberta a janela em causa - é oblíqua em relação à parede norte do prédio da Recorrida;
6ª-E essa obliquidade é superior a 45 graus -sendo mais concretamente de 90 graus- pelo que não tem aplicação a restrição do n.º1 do art. 1360º do CC, imposta aos Recorrentes;
7ª-Ou seja, para que a janela em questão estivesse legalmente aberta, não teria que existir o intervalo de 1,50 metros entre a mesma e o prédio da Recorrida;
8ª-Esse facto instrumental resultante da inspecção, deveria ter sido atendido na decisão da matéria de facto ou na sentença, de acordo com o disposto nos arts. 664º e 264º, n.º2 do CPC, pelo que esta violou estas normas substantivas e processuais, sendo nula, nos termos do art. 668º, n.º1, alínea d) do CPC;
9ª-No que respeita à matéria de facto, e como resulta da motivação, o Tribunal não valorou devidamente o depoimento das testemunhas …… e …., no que respeita à resposta ao quesito 23º, que impunha uma decisão diversa, violando, assim, o preceituado no art. 653º do CPC;
10ª-A parte dispositiva da sentença tem um erro manifesto de excesso de pronúncia, uma vez que a A. não alegou e não provou que a janela em causa deita directamente para o logradouro do prédio mencionado na alínea A) dos factos assentes, assim violando o disposto no art. 668º, n.º1, alínea d), 2ª parte, do CPC;
11ª-Os factos que foram dados como provados nos pontos 15, 20 e 21 da sentença, não são suficientes para a procedência do pedido formulado na alínea b) da p.i., porque não foi alegado, nem provado, que entre o prédio e a caleira havia um intervalo inferior a cinco decímetros, sendo nula a sentença;
12ª-Não existe incompatibilidade entre as normas dos arts. 59º, 60º, 62, 63, 72º e 73º do RGEU e as normas do art. 1360º do CC, já que as distâncias impostas pelos planos urbanísticos prevalecem sobre as do art. 1360º do CC, normas essas que foram violadas na sentença;
13ª-A janela em apreço não deita directamente para o logradouro comum, ao contrário do decidido, uma vez que a balaustrada referida nos pontos 25 a 29 dos factos assentes, impede o devassamento do logradouro, fazendo, assim, cessar a restrição prevista no art. 1360º, n.º1 do CC;
14ª-Quando a recorrida adquiriu a sua fracção, o prédio dos Recorrentes já estava construído e, logo, estava já aberta a dita janela, tendo aquela perfeito conhecimento da existência da janela e, apesar disso, decidiu comprá-la;
15ª-A actuação da Recorrida excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, litigando com evidente abuso de direito e violando princípios estabelecidos nos arts, 227º e 334º do CC;
16ª-A sentença recorrida violo o disposto nos arts. 264º, n.º2, 511º, n.º1, 553º, n.º3, 653º, n.º3, 664º, nºs 1 e 2, 668º, n.º1, alínea d) do CPC, 390º e 1360 do CC e 59º, 60º, 62º, n.º3, 63º, 72º e 73º do RGEU, pelo que deve ser revogada e julgada improcedente a acção.

A Autora contra-alegou em defesa do julgado.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II)- OS FACTOS
Na sentença da 1ª instância foi dada por assentes a seguinte factualidade:
1. Está descrito na Conservatória do Registo Predial de Condeixa-a-Nova sob o nº 00172/160987, o prédio urbano, sito em Cigano, freguesia de Condeixa-a-Nova, composto de moinhos e prédio de rés-do-chão e primeiro andar para habitação, garagem, arrecadação e logradouro, com a área coberta de 144,50 m2 e a área descoberta de 70,2 m2, constituído pelas fracções autónomas “A”, “B” e “C”, a confrontar de Norte com …. e …., Sul com ribeiro e “Neobra – Sociedade de Construções, Lda.”, Nascente com caminho e “…….” e Poente com ribeiro.
2. O prédio mencionado em 1 é composto pelas seguintes fracções: “A” correspondente ao rés-do-chão direito, moinho e arrecadação independente; “B” correspondente ao rés-do-chão esquerdo; “C” correspondente ao primeiro andar destinado a habitação e garagem independente.
3. Está inscrita a favor da Autora o registo da aquisição da fracção “C” mencionada em 1. e 2. pela Ap. 02/290494 (G-1) a que corresponde o artigo matricial 1585.
4. Está descrito na Conservatória do Registo Predial de Condeixa-a-Nova sob o nº 00175/160987, o prédio urbano, sito em Cigano, freguesia de Condeixa-a-Nova, composto de duas moradias geminadas destinadas a habitação, com a área coberta de 138,00 m2 e logradouros de 224,80 m2, constituído pelas fracções autónomas “A” e “B”, a confrontar de Norte com …., Sul com ribeiro, Nascente com caminho.
5. O prédio mencionado em 4. é composto pelas seguintes fracções: “A” correspondente a moradia de rés-do-chão e primeiro andar com garagem independente no rés-do-chão, com a área coberta de 69 m2 e logradouro de 112,85 m2; “B” correspondente a moradia de rés-do-chão e primeiro andar com garagem independente no rés-do-chão, com a área coberta de 69 m2 e logradouro de 111,95 m2.
6. Está inscrita a favor do Réu Ricardo Alexandre Simões Mendes casado com Susana Margarida Alves Canas o registo da aquisição da fracção “A” mencionada em 4. e 5. pela Ap. 27/281099 (G-3) e Av. 1 – Ap. 07/231299; e está inscrita a favor do Réu H….casado com C….o registo da aquisição da fracção “B” mencionada em 4. e 5. pela Ap. 01/281194 (G-1).
7. Por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Condeixa-a-Nova, em 05/01/1994, lavrada de fls. 13 verso a 14 verso do livro de notas para escrituras diversas nº 161-B, M….. e mulher L….. declararam ser donos e legítimos possuidores do prédio mencionado em 1., constituindo sobre o regime da propriedade horizontal, constituindo três fracções autónomas, distintas, isoladas entre si e com saída para a via pública ou para parte comum do prédio com a seguinte composição: “A” correspondente ao rés-do-chão direito, para habitação, composto por cinco compartimentos, moinho e uma arrecadação independente; “B” correspondente ao rés-do-chão esquerdo para habitação constituído por três compartimentos; “C” correspondente ao primeiro andar para habitação, constituído por sete compartimentos e uma garagem independente no rés-do-chão. Mais declararam ser comum a todas as fracções o logradouro com a área de 70,2 m2.
8. Por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Condeixa-a-Nova, em 26/04/1994, lavrada de fls. 65 a 66 verso do livro de notas para escrituras diversas n.º 82-D, M…. e mulher L…. como primeiros outorgantes, e a Autora, como segunda outorgante, declararam vender e comprar, respectivamente, pelo preço de cinco milhões de escudos, a fracção designada pela letra “C”, mencionada em 1. e 2..
9. Está inscrito sob o art. 1585 na matriz predial urbana da freguesia de Condeixa-a-Nova, concelho de Condeixa-a-Nova, o prédio urbano, sito no Cigano, Condeixa-a-Nova, composto de moinho e prédio de rés-do-chão e primeiro andar, garagem, logradouro e arrecadação, a confrontar do Norte com …. e ….., Sul com ribeiro e “…...”, Nascente com caminho e “…...” e Poente com caminho; referente à fracção designada pela letra “C” é composto por 1º andar para habitação, composto por três divisões assoalhadas, uma cozinha, uma casa de banho, um corredor e uma garagem independente no rés-do-chão, sendo titular inscrito do rendimento a Autora
10. Por escritura pública celebrada no 2º Cartório Notarial de Coimbra, em 12/12/1994, lavrada de fls. 83 a 86 do livro de notas para escrituras diversas nº 166-E, M…. e mulher L…., como primeiros outorgantes, os Réus H…. e mulher C….. como segundos outorgantes e J…., na qualidade de procurador e em representação do Banco Espírito Santo, declararam: os primeiros vender a fracção “B”, mencionada em 4. e 5.; os segundos comprar tal fracção e confessarem-se devedores de doze milhões de escudos ao Banco Espírito Santo de acordo com o documento complementar parte integrante da escritura e constituírem hipoteca sobre a fracção, e o terceiro aceitar a confissão de dívida e hipoteca
11. Está inscrito sob o art. 1584-B na matriz predial urbana da freguesia de Condeixa-a-Nova, concelho de Condeixa-a-Nova, a fracção designada pela letra “B” composto moradia destinada a habitação constituída por oito compartimentos no rés-do-chão, 1º andar e uma garagem independente no rés-do-chão, sendo titular inscrito do rendimento o Réu Henrique Teixeira.
12. Por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Condeixa-a-Nova, em 05/01/1994, lavrada de fls. 42 verso a 43 verso do livro de notas para escrituras diversas nº 187-C, M….. e mulher L….. declararam ser donos e legítimos possuidores do prédio mencionado em 4., constituindo sobre o regime da propriedade horizontal, constituindo duas fracções autónomas, independentes, distintas, isoladas entre si e com saída para a via pública ou para parte comum do prédio com a seguinte composição: “A” correspondente moradia de rés-do-chão e primeiro andar com garagem independente no rés-do-chão, com a área coberta de 69 m2 e logradouro de 112,85 m2; “B” correspondente a moradia de rés-do-chão e primeiro andar com garagem independente no rés-do-chão, com a área coberta de 69 m2 e logradouro de 111,95 m2.
13. Os prédios mencionados em 1. e 4. são contíguos.
14. Na moradia correspondente à fracção “B” mencionada em 5. está aberta uma janela virada para o logradouro do prédio mencionado em 1..
15. Na moradia referida em 14. está colocada uma caleira para recolha das águas na vertical na parede poente da mesma.
16. No local onde agora se encontram as construções referidas em 1. e 4. existiam duas casas de habitação, moinhos e logradouros.
17. A janela mencionada em 14. tem 1,06 metros de altura e 55 cm de largura.
18. A distância da janela mencionada em 14. ao solo do logradouro do prédio mencionado em 1. é de 1,22 metros.
19. A parede onde se encontra a janela referida em 14. divide os prédios mencionados em 1. e 4., no lado Poente deste prédio.
20. A caleira referida em 15. recebe as águas que escorrem do telhado, na horizontal junto ao beiral do telhado do lado poente da moradia referida em 14..
21. O ponto de saída das águas da caleira referida em 15. está colocado no logradouro do prédio mencionado em 1., ali escoando tais águas.
22. A moradia correspondente à fracção “B” mencionada em 5. confina com o logradouro do prédio mencionado em 1..
23. A estrada que pertence ao logradouro do prédio mencionado em 1. é utilizado pela fracção B do prédio mencionado em 4..
24. A janela referida em 14. já tinha essa localização quando os Réus Henrique Teixeira e Cristina Teixeira adquiriram a fracção mencionada em 14..
25. A Autora, há cerca de sete anos, construiu uma balaustrada em cimento, paralela à parede poente da moradia mencionada em 14. a uma distância de 2,30 metros da mesma.
26. A balaustrada referida em 25. foi construída no enfiamento do muro do logradouro da moradia referida em 14., no seu lado Norte, encostada àquele.
27. A balaustrada mencionada em 25. tem uma extensão de 3,90 metros e altura de 85 cm.
28. A Autora colocou uma porta em madeira na balaustrada mencionada em 25., assim vedando o acesso a esse espaço.
29. A balaustrada mencionada em 25 ocupa 9 m2 do logradouro referido em 23.
30. Em Maio de 1997 houve uma inundação na fracção “B” referida em 5., que encheu de água o logradouro da mesma.
31. Por causa do referido em 30., os bombeiros abriram um buraco no muro de vedação do logradouro mencionado em 14., do lado poente para que a água escorresse para o logradouro mencionado em 23.
32. Os Réus taparam o buraco mencionado em 31. da parte de dentro do muro, estando o mesmo vedado.
33. A Autora mantém vasos e plantas do lado nascente do logradouro referido em 23..
34. A Autora, há cerca de sete anos, colocou um tubo de plástico para a ligação da água de sua casa à garagem na entrada do logradouro referido em 23.

III)- MÉRITO DO RECURSO
Sendo o objecto do recurso delimitado, em princípio, pelas conclusões da alegação (arts. 690º, n.º1 e 684º, n.º3, ambos do CPC), submetem os RR./Apelantes a julgamento deste Tribunal as seguintes questões:
1ª- Saber se deve ser deferida a reclamação oportunamente apresentada contra a selecção da matéria de facto incluída na base instrutória;
2ª-Decidir se os Recorrentes poderiam exigir o depoimento de comparte;
3º-Definir se o auto de inspecção ao local está afectado de irregularidade;
4ª- Saber de a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada;
5ª-Verificar a subsunção normativa;
6ª-Decidir se a Autora exerce ilegitimamente o seu direito.

III-1)- Vejamos a 1ª questão.
Como se vê de fls. 125, os ora Recorrentes reclamaram contra a selecção da matéria de facto incluída na base instrutória, defendendo que o facto vertido no art. 20º da contestação deveria ser considerado assente, porque aceite pela Autora na resposta à contestação e revelar interesse à decisão da causa.
Foi tal reclamação indeferida, porque tal matéria foi considerada irrelevante à decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, exarando-se que “apenas importa saber se era possível abrir a janela e não se a edilidade a autorizou”.
A impugnação do despacho é tempestiva (n.º3 do art. 511º do CPC)
O citado art. 20º da contestação tem a seguinte redacção:
Tal janela encontra-se aberta de acordo com o projecto aprovado pela Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova, sob o processo n.º 112/91, de 17 de Maio, como refere a Câmara”.
A este respeito, cumpre dizer, como frequentemente é assinalado na jurisprudência, que o licenciamento administrativo de uma obra visa essencialmente obstar à ofensa de interesses públicos, não podendo ter a virtualidade de impor restrições ao exercício do direito de propriedade. Assim, a existência de uma licença camarária de construção, não isenta o construtor da observância das distâncias estabelecidas pelo art. 1360º do CC (cfr., entre outros os acórdãos do STJ, publicados na CJ 1993, 3º, p. 98, no BMJ n.º 253, p. 170, na CJ 2000, 3º, p. 85, BMJ 356, p. 314; BMJ n.º 336, p. 425 e RLJ 110º, p. 63).
Consequentemente, o despacho impugnado não merece censura, sendo irrelevante tal matéria à justa decisão da causa.

III-2)- Atentemos, agora, na 2ª questão.
Os Recorrentes/RR. requereram o depoimento do comparte Ricardo a toda a matéria da base instrutória.
Foi indeferida tal prova, como se vê do despacho de fls. 138 e 139.
Contra tal decisão não reagiram oportunamente os ora Recorrentes, daí que a mesma tenha transitado em julgado, assumindo força obrigatória dentro do processo (art. 672º do CPC).

III-3)- Analisemos a 3ª questão.
Como se vê de fls. 178, aberta a audiência de julgamento, a Ex. Magistrada julgou pertinente uma inspecção ao local, consignando-se no auto de fls. 179 os elementos que foram considerados úteis para o exame e decisão da causa. E como decorre do art. 613º do CPC, “as partes, por si ou por seus advogados, podem prestar ao tribunal os esclarecimentos de que ele carecer, assim como chamar a sua atenção para os factos que reputem de interesse para a resolução da causa”. Mas é ao Juiz que cabe avaliar quais os elementos úteis observados com interesse para a decisão da causa” (cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, p. 321, de Alberto dos Reis), prescrevendo o art. 391º do CC que “o resultado da inspecção é livremente apreciado pelo tribunal”.
Portanto, é intempestivo vir, em recurso, alegar que o auto é omisso sobre determinada realidade, concretamente referência à parede poente do prédio dos Recorrentes onde está aberta a janela em questão, e, ainda, obliquidade dessa parede em relação à parede norte do prédio da Autora. Se eram úteis tais elementos, deveriam os Recorrentes, na altura da realização do exame, ter chamado a atenção do Tribunal que apreciaria livremente.
Nenhuma norma adjectiva foi, pois, violada.

III-4)- Examinemos a 4ª questão.
Neste domínio importa decidir se a decisão de facto deve ser alterada no que concerne à resposta ao ponto de facto n.º 23 da base instrutória.
Tal ponto de facto é do seguinte teor:
A caleira mencionada em P) existe naquelas condições desde que o Réu Henrique Teixeira e Cristina Teixeira adquiriram a moradia mencionada em O)?”
A resposta foi negativa, como se vê de fls. 23, pugnando os Recorrentes por resposta positiva.
Não tendo sido gravada a prova produzida em audiência de julgamento, socorrem-se os Recorrentes da motivação das respostas aos pontos de facto da base instrutória, concretamente da referência aos depoimentos das testemunhas M…. e A…..
A este respeito, apenas cumpre salientar que a alteração da decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto só pode ser alterada no estrito condicionalismo previsto nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 712º do CPC. E a motivação das respostas à base instrutória, imposta pelo art. 653º, n.º2 do CPC, não constitui concreto meio de prova que sirva para impugnar a decisão de facto, antes prosseguindo outros objectivos, de nada valendo pois argumentar com aquela motivação. E quando se impugne a decisão de facto é obrigatório especificar meios de prova (alínea a) do n.º 1 do art. 690º-A do CPC).
Nesta conformidade, é de manter inalterada resposta negativa ao ponto de facto n.º 23 da base instrutória.

III-5)- Atentemos na 5ª questão.
Importa, agora, analisar o enquadramento normativo da factualidade apurada.
Como acima se relatou, a Autora, com a presente lide, visa defender o seu direito de propriedade, alegando a violação por parte dos ora Recorrentes do disposto nos arts. 1360º e 1365º, ambos do CC. Isto é, no prédio contíguo dos Recorrentes alega a Autora existir aberta uma janela que deita directamente sobre o logradouro comum da sua fracção, sem deixar entre ela e o sua fracção o intervalo de 1, 5 metro, e, por outro lado, existe uma caleira na fracção ou prédio dos Recorrentes cuja tubo vertical conduz a água pluvial para o dito logradouro comum do prédio da Autora.
Resulta da matéria de facto assente que a Autora é proprietária da fracção C do prédio, sob o regime da propriedade horizontal, descrito na Conservatória sob o n.º 172, sendo os Recorrentes donos da fracção B do prédio, sob o regime da propriedade horizontal, descrito na Conservatória sob o n.º 175. Os prédios em regime de propriedade horizontal são contíguos (n.º 13 da factualidade assente), e nas escrituras de constituição da propriedade horizontal, lavradas no mesmo dia 05.01.1994, intervieram M…. e mulher L…. ( n.ºs 7 e 12 da factualidade assente). Na moradia ou fracção B dos Recorrentes, que confina com o logradouro comum do prédio onde se integra a fracção C da Autora (n.º 22), está aberta uma janela virada para dito logradouro comum (n.º 14), tendo essa janela as características definidas nos n.ºs 17 e 18). A parede onde se encontra a janela divide os dois prédios em regime de propriedade horizontal (n.º 19). E quando os Recorrentes adquiriram a sua fracção, em 12.12.1994, a dita janela já tinha apontada localização ( n.º 10 e 24).
Como está colocada uma caleira para recolha das águas na vertical na parede poente da moradia dos Recorrentes, recebendo as águas que escorrem do telhado, na horizontal junto ao beiral do telhado poente da moradia dos Recorrentes, e o ponto de saída das águas da caleira está colocado no logradouro comum do prédio onde se integra a fracção da Autora (n.ºs 15, 20 e 21). A Autora adquiriu a sua fracção em 26/04/1994 ( n.º 8), e tanto a fracção da Autora como a fracção dos Recorrentes foram adquiridas a M…. e mulher, que foram os intervenientes na escritura de constituição da propriedade horizontal dos prédios descritos sob os n.ºs 172 e 175 ( n.ºs 8 e 10).

A sentença recorrido considerou a abertura da janela em contravenção ao disposto no n.º 1 do art. 1360º do CC, nos termos do qual, “o proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio”. Ou seja, e no caso ajuizado, tendo a abertura as dimensões de 1, 06 metros de altura e 55 centímetros de largura, distanciando 1,22 metros do solo do logradouro comum (1, 22 metros), e deitando directamente aquele logradouro comum do prédio em regime de propriedade horizontal onde se integra a fracção da Autora. E pode concluir-se, sem margem para qualquer dúvida, que a dita abertura, qualificada como janela, deita directamente para o prédio vizinho, uma vez que está virada para o logradouro comum e foi aberta na parede que divide os dois prédios sob o regime de propriedade horizontal. Isto é, a linha da janela coincide justamente com a linha divisória entre os dois prédios, como, aliás, se vê claramente da fotografia de fls. 78, não existindo pois qualquer obliquidade entre os dois prédios. Obviamente não bastaria a simples circunstância de se provar que a janela foi aberta virada para o logradouro comum, para se concluir que deitava directamente para o prédio vizinho. E a janela não deixa de deitar directamente para o logradouro comum devido ao facto de a Autora ter construído no dito logradouro a balaustrada descrita nos n.ºs 25 a 29, e documentada na fotografia junta a fls. 78. Sendo certo que é finalidade da restrição ao direito de propriedade prevista no art. 1360º do CC, evitar que o prédio vizinho seja objecto da indiscrição de estranhos e facilmente devassado com o arremesso de objectos.
Atenta a factualidade apurada, considerando–se a dita abertura abrangida pela restrição do n.º1 do art. 1360º do CC., assiste à Autora o direito de exigir que os ora Recorrentes tapem a janela ou reponham a legalidade.

No que concerne à caleira, determina o n.º1 do art. 1365º do CC, que “o proprietário deve edificar de modo que a beira do telhado ou outra cobertura não goteje sobre o prédio vizinho, deixando um intervalo mínimo de cinco decímetros entre o prédio e a beira, se de outro modo não puder evitá-lo”. Ora, muito embora a caleira recolha as águas pluviais que escorrem do telhado, na horizontal junto ao beiral do telhado do lado poente da moradia dos Recorrentes, todavia o ponto de saída das águas está colocado no logradouro comum do prédio em regime de propriedade horizontal onde se integra a fracção da Autora, ali escoando, pois, as águas, como documentam as fotografias juntas a fls. 81 e 82. A finalidade da norma é evitar que as águas do telhado de um prédio sejam escoadas ou caiam sobre o prédio vizinho, sendo evidente que as águas do telhado da fracção dos Recorrentes acabam escoadas no logradouro comum do prédio vizinho, para aí sendo conduzidas. É manifesta a contravenção a tal norma e de forma alguma deve o prédio vizinho suportar o escoamento das águas do telhado da fracção dos Recorrentes.

Diga-se, também, como a propósito salienta a sentença sob exame, e muito embora não tenha sido alegada a constituição por usucapião de qualquer servidão de vistas ou de estilicídio, também não resultou caracterizada a constituição de servidão por destinação do pai de família. È certo que os dois prédios vizinhos em regime de propriedade horizontal, isto é, os prédios descritos sob os n.ºs 172 e 175, pertenceram ao mesmo dono - M…. e mulher (cfr n.ºs 7 e 12 supra ), e nas escrituras de compra e venda das fracções da Autora e dos Recorrentes intervieram aqueles como vendedores. E se alegado e provado que, ao tempo da outorga da escritura de compra e venda da fracção da Autora, em 26/04/1994, já estava aberta a dita janela e as águas pluviais eram escoadas para o logradouro comum, então não assistiria à Autora o direito que reclama na presente lide, porque estaria constituída servidão nos termos do art. 1549º do CC, impeditiva do efeito jurídico pretendido. E apesar de provado que a janela já tinha a localização quando os Recorrentes adquiriram a sua fracção, em 12/12/1994, também não se pode presumir estar a janela já aberta quando a Autora adquiriu a sua fracção em 26/04/1994.

III-6)- Vejamos, por fim, a 6ª e última questão.
Na tese dos Recorrentes, a Autora ao peticionar pela forma acima relatada, exerce abusivamente o seu direito, porque tendo a Autora e Recorrentes adquirido as suas fracções autónomas, respectivamente, por escrituras de 26.04.1994 e 12.12.94, só passados mais de 11 anos –aquela deu entrada da petição inicial em 19.12.2005- tenha sido levantado o problema da janela. E quando a Autora adquiriu a sua fracção, o prédio dos Recorrentes já estava construído e, logo, estava já aberta a dita janela e, apesar disso, a Autora decidiu comprar a sua casa. Com a presente acção, a Autora apenas visa senão causar prejuízo aos Recorrentes.

Será assim?
Cumpre esclarecer, desde já, que não foi alegado, nem provado, estar a janela aberta quando a Autora adquiriu a sua fracção autónoma. Caso contrário, como já sublinhado, estaria constituída uma servidão de vistas por destinação do pai de família (art. 1549º do CC). Também o facto de acção ter sido intentada em 19.12.2005, passados vários anos sobre a existência da janela, não significa que o problema da janela só nessa altura tenha sido levantado. E não se demonstra exercer a Autora um direito em contradição com comportamento anteriormente assumido (“venire contra factum proprium”), por forma a fazer confiar os Recorrentes que o direito já não seria exercido.
Em suma, a simples circunstância de a Autora ter adquirido a sua fracção em 26.04.1994, já existir a janela aberta quando os Recorrentes adquiriram sua fracção em 12.12.1994, e a Autora apenas ter instaurado a acção em 19.12.2005, de forma alguma qualifica abuso de direito, tal com esta figura jurídica vem definida no art. 334º do CC.

Por fim, uma vez que os Recorrentes referem violado art. 668º, n.º 1, alínea d) do CPC, é pertinente salientar que a nulidade da sentença não se confunde com erro de julgamento, sendo certo que a sentença impugnada não enferma de excesso de pronúncia ao julgar procedentes os pedidos formulados nas alíneas a) e b) da petição inicial, nem deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar.

Face a tudo o que se deixa exposto, improcedem as conclusões da alegação, não se mostrando violadas as normas apontadas pelos Recorrentes.


IV)- DECISÃO
Em consequência, acorda-se em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença impugnada.
As custas do recurso ficam a cargo dos Recorrentes.