Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
497/2000.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA
RESPONSABILIDADE POR FACTO ILÍCITO
CONSTITUIÇÃO EM MORA DO DEVEDOR
Data do Acordão: 10/03/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 661º, Nº 2, 805º, Nº 3, DO CPC
Sumário: I – A aplicação do artº 661º, nº 2, do CPC, depende da verificação, em concreto, de uma indefinição de valores de prejuízos, mas como pressuposto primeiro da sua aplicação deverá ocorrer a prova da existência dos danos.

II – Este preceito tanto se aplica no caso de se ter inicialmente formulado um pedido genérico e de não se ter logrado converter em pedido específico, como ao caso de ser formulado pedido específico sem que se tenha conseguido fazer prova da especificação, ou seja, quando não se tenha logrado coligir dados suficientes para se fixar, com precisão e segurança, a quantidade de condenação.

III – No caso de o autor ter deduzido um pedido específico (isto é, um pedido de conteúdo concreto), caso não logre fixar com precisão a extensão dos prejuízos poderá fazê-lo em liquidação em execução de sentença.

IV – Uma vez interposto o incidente de liquidação dos danos (artº 378º CPC), ao demandado cabe a possibilidade de contestar a liquidação efectuada pela parte contrária, com o que fica assegurado o contraditório em relação a tal objectivo.

V – No caso de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, em princípio o devedor constitui-se em mora desde a citação, só assim não acontecendo se o devedor estiver nessa altura em mora, por a falta de liquidez lhe ser imputável ou, evidentemente, caso o crédito já se tenha tornado liquido.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- A..., , B..., C... e D..., residentes na Rua Principal, 32 em Paço, freguesia de Almagreira, Pombal, propõem contra E..., com sede na Av. José Malhoa, 9, 1070, Lisboa, a presente acção com processo ordinário, pedindo que a R. seja condenada, a pagar-lhes, ao A. A..., a quantia de 13.820.710$00 (68.937, 41 euros), à A. B..., a quantia de 200.000$00 (997,60 euros), à A. C..., a quantia de 1.102.898$00 (5.501,23 euros), ao A. D..., a quantia de 220.001$00, todas as quantias acrescidas de juros moratórios a contar da citação e até integral pagamento.
. Fundamentam os seus pedidos, em síntese, num acidente de viação ocorrido em 27-11-1997, ocorrido na E.N. 237, dentro da localidade de Louriçal, em que intervieram três veículos, sendo certo que a culpabilidade exclusiva pelo evento se deve atribuir ao condutor de um veículo segurado na R., acidente de que resultaram para os AA. os danos que referenciam na petição inicial e cujo ressarcimento pretendem obter da R. .
1-2- A R. contestou, também em síntese, alegando, em resumo, que alguns danos alegados pelos AA. não são indemnizáveis, que outros estão avaliados por excesso e que desconhece, sem obrigação do contrário, muitos dos danos alegados pelos AA., como fundamento das respectivas pretensões.
Termina pedindo a procedência parcial da acção, conforme a prova que se venha a produzir.
1-3- O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido despacho saneador, após o que se fixaram os factos assentes, se elaborou a base instrutória, se realizou a audiência de discussão e julgamento, se respondeu a esta base e se proferiu a sentença.

1-4- Nesta considerou-se a acção parcialmente provada e procedente, em consequência, condenou-se a R:

a) A pagar ao A. D... uma indemnização de 847,96 euros, acrescida de juros de mora a contar da citação e até integral pagamento; a pagar ao A. D... uma indemnização a liquidar em execução de sentença correspondente aos CD´s que viu inutilizados, não podendo a indemnização exceder a quantia de 249, 40, euros sendo a indemnização acrescida de juros moratórios, a contar da citação e até integral pagamento;

b) A pagar à A. B... uma indemnização a liquidar em execução de sentença, correspondente ao valor do trabalho que a mesma executou para prestar a assistência e acompanhamento a que se alude nas respostas aos quesitos 42º) e 43º), não podendo a indemnização exceder 997,60 euros, sendo a indemnização acrescida de juros moratórios, a contar da citação e até integral pagamento;

c) A pagar à A. C... a quantia de 5.501,23 euros sendo a indemnização acrescida de juros moratórios, a contar da data desta sentença e até integral pagamento;

d) A pagar ao A. A... a quantia de 4.588, 94 euros, bem assim como outra a liquidar em execução de sentença, esta correspondente ao valor do veículo do mesmo A. na parte em que exceda a quantia de 4.588, 94 euros, sendo certo que não pode ser excedida a quantia de 3.890, 62 euros, tudo acrescido de juros moratórios, a contar da citação e até integral pagamento; a pagar ao A. A... a quantia 2.992, 96 euros, acrescida de juros moratórios, a contar da citação e até integral pagamento; a pagar ao A. A... a quantia de 68,21 euros, acrescida de juros moratórios, a contar da citação e até integral pagamento; a pagar ao A. A... quantia de 9.975, 96 euros, bem assim como outra a liquidar em execução de sentença, esta correspondente ao valor dos lucros que o A. A... deixou de auferir, na parte em que excedam a quantia de 9.975, 96 euros, sendo certo que não pode ser excedida a quantia de 17.457, 92 euros, tudo acrescido de juros moratórios, a contar da citação e até integral pagamento; a pagar ao A. A... uma indemnização a liquidar em execução de sentença, correspondente à incapacidade permanente que o mesmo A. sofre, não podendo ser excedida a quantia de 19.951, 92 euros, acrescida de juros moratórios, a contar da citação e até integral pagamento; a pagar ao A. A... uma indemnização a liquidar em execução de sentença, correspondente ao valor do relógio perdido por esse autor por causa do acidente, não podendo ser excedida a quantia de 423,98 euros, acrescida de juros moratórios, a contar da citação e até integral pagamento; a pagar ao A. A... a quantia de 4.987, 8 euros, acrescida de juros moratórios a contar desta sentença e até integral pagamento.

No mais, foi julgada a acção improcedente, dela se absolvendo a R..

1-5- Não se conformando com esta sentença, dela veio recorrer a R., recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo.
1-6- A recorrente alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- A douta sentença não podia, com fundamento em falta de prova do A. em relação ao montante dos prejuízos por si sofridos e que alegou, relegar para execução de sentença a fixação da indemnização devida por tais danos.
2ª- Pois que assim deu ao A., uma nova possibilidade de provar o que alegou, mas não provou, como era seu ónus, quanto a esses factos.
3ª- Sendo certo que à R., a lei não permite que, em fase executiva, prove matéria de facto por si alegada e não provada, extintiva ou modificativa do seu dever de indemnizar.
4ª- A possibilidade dada ao A. de provar factos alegados mas por si não provados na fase declarativa, em fase de liquidação em execução de sentença perante a possibilidade legal de a R. nessa fase executiva factos por si alegados mas não provados na fase declarativa, constitui violação do princípio da “igualdade de armas” para os litigantes, consagrado no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
5ª- O que constitui direito internos português, com dignidade constitucional.
6ª- Pelo que fazendo a aplicação das regras do ónus da prova, a sentença recorrida deveria ter absolvido a ora recorrente, nesta parte, do pedido.
7ª- O nº 3 do art. 803º do C.Civil, quando na sentença se relegue a liquidação da indemnização para a sua execução por o credor não ter provado factos por si alegados para a quantificação do montante indemnizatório, deve ser interpretado no sentido de o momento da constituição em mora do devedor ser o da sua citação para os termos da liquidação.
8ª- Pelo que só a partir dessa citação são devidos juros.
9ª- Não tendo assim decidido, a sentença violou, entre outros, os arts. 496º, 566º, 342º, 805º nº 3, 804º, 813º e 814º do C.Civil e 661º nº 2, 813º al. h), 471º nº 1 e 670º do C.P.Civil, o art. 6º nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e art. 8º da Constituição.
Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença nos termos defendidos.
1-7- A parte contrária não respondeu a estas alegações. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (arts. 690º nº1 e 684º nº 3 do C.P.Civil).
As questões que urge resolver no presente recurso, serão as seguintes:
-Se quando o demandante alega danos cujo montante não consegue provar no processo declarativo, terá ainda a possibilidade de efectuar a prova do quantitativo dos prejuízos em liquidação em execução de sentença.
-Se em caso de liquidação em execução de sentença, os juros moratórios serão devidos desde a citação na acção, ou apenas desde a citação do devedor para os termos da liquidação em execução de sentença.
2-2- Nos termos do art. 713º nº 6 do C.P.Civil e dado que a matéria de facto dada como assente não foi impugnada nem se vê razão para qualquer alteração, remete-se para a decisão que a fixou.
Como se vê, na douta sentença recorrida, entendeu-se, tendo-se demonstrado que os lesados sofreram danos mas não se tendo logrado provar o montante exacto deles, que o respectivo apuramento se deveria efectuar em liquidação de sentença, de harmonia com o disposto no art. 661º nº 2 do C.P.Civil, o que se determinou.
A este entendimento, contrapõe a apelante que, procedendo-se assim, está-se a dar nova possibilidade de provar o que alegaram, aos demandantes. Cabia a estes, no âmbito da acção declarativa, o ónus da prova dos factos por si alegados, designadamente, os relativos aos danos que sofreram. A possibilidade dada aos demandantes de provar factos alegados, mas por si não provados na fase declarativa, em fase de liquidação em execução de sentença, constitui violação do princípio da “igualdade de armas” para os litigantes, consagrado no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o que constitui direito interno português, com dignidade constitucional. Assim, deveria a sentença fazer a aplicação das regras do ónus da prova e, deste modo, deveria ter absolvido a ora recorrente nesta parte do pedido.
Não existe qualquer dúvida que os demandantes sofreram danos em resultado do acidente dos autos, apesar de, em relação a parte deles, não se conhecer qual o montante concreto a que ascenderam tais prejuízos. Perante esta circunstância, o que fazer?
Condenar a R. Seguradora no pagamento aos AA., nos valores dos danos, efectivamente, sofridos por eles, a liquidar em execução de sentença, como se fez na douta sentença recorrida, ou absolver a demandada com o fundamento de os AA. não terem logrado provar, podendo tê-lo feito na acção declarativa, os valores desses prejuízos, como defende a apelante?
Vejamos:
Estipula o art. 661º nº 2 do C.P.Civil:
" Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que se liquidar em execução de sentença, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida ".
Aplicação desta norma, para o que aqui interessa, depende da verificação, em concreto, de uma indefinição de valores de prejuízos. Mas como pressuposto primeiro de aplicação do dispositivo, deverá ocorrer a prova de existência de danos.
Este preceito tanto se aplica no caso de se ter inicialmente formulado um pedido genérico e de não se ter logrado converter em pedido específico, como ao caso de ser formulado pedido específico sem que se tenha conseguido fazer prova da especificação, ou seja, quando não se tenha logrado coligir dados suficientes para se fixar, com precisão e segurança, a quantidade de condenação (neste sentido A. Reis, C.P.C. Anotado, Vols. I pág. 614 e segs. e V pág. 71, Vaz Serra, RLJ, ano 114º, pág. 309, Rodrigues Bastos, Notas ao C.P.C, vol. III, pág. 233). Portanto e para o que aqui importa, no caso de o autor ter deduzido um pedido específico (isto é, um pedido de conteúdo concreto), caso não logre fixar com precisão a extensão dos prejuízos, poderá fazê-lo em liquidação em execução de sentença.
A este propósito haverá a salientar, corroborando a posição que se assume, que a norma não distingue os pedidos, aplicando regimes diversos consoante se trate de pedidos genéricos ou pedidos específicos. Note-se que a norma fala genericamente em casos em que não há elementos para fixar a quantidade, pelo que reduzir o campo de aplicação da norma aos pedidos genéricos (concretizados no art. 471º nº 1 do C.P.Civil), é diminuir, sem razão, o campo de aplicação da disposição, indo contra o antigo dito latino e princípio atinente à interpretação de normas jurídicas, segundo o qual "ubi lex non distinguit, nec nos destinguere debemus".
A própria lei substantiva, concretamente o art. 569º do C.Civil, permite ao lesado a possibilidade de deduzir pedidos genéricos, a concretizar, posteriormente. Por isso, se o lesado não necessita de indicar, logo no momento inicial do processo, a importância exacta em que avalia os danos que sofreu, podendo fazê-lo mais tarde, por maioria de razão isso também lhe deverá ser facultado quando formule um pedido líquido e certo e não logre fazer prova do respectivo montante.
Quer isto dizer que, no caso vertente, apesar de se ter deduzido um pedido específico em relação aos prejuízos e de não ter logrado fazer a prova da especificação, provando-se a existência de danos, a aplicação à situação desta disposição, é correcta.
Neste sentido, tem decidido a jurisprudência que consideramos dominante e mais recente, como o Ac. do STJ de 18-4-2006 (in www.dgsi.pt/jstj,nsf/954 ) onde expressamente se refere em sumário que “a relegação para liquidação em execução de sentença de indemnização deduzida pelos réus na sua reconvenção, é legalmente possível, apesar de terem formulado um pedido líquido e não terem conseguido provar o montante exacto dessa indemnização”. No mesmo sentido decidiram, entre outros, os Acs. do STJ de 25-10-2005 (in www.dgsi.pt/jstj,nsf/954 ), de 29-1-98 ( BMJ, 473º, 445), de 3-12-98 ( BMJ, 482º, 179). De resto, a não entender-se assim, uma interpretação da norma em causa como a que pretende a apelante, iria originar a que a verdade formal se sobrepusesse à verdade material, o que contrariaria um dos objectivos da reforma processual civil de 1995/96, pois o legislador, como referiu no preâmbulo do Dec-Lei 329/95 de 12/12, teve em vista remover obstáculos que impedissem a realização de uma justiça material, tendo introduzido na lei adjectiva diversas normas para lograr esse fim, tais como, a possibilidade de suprimento oficioso dos pressupostos processuais (arts. 265º nº 2 e 508º nº 1 al. a)), a possibilidade de o juiz proferir despacho de convite ao aperfeiçoamento de qualquer articulado (art. 508º nº 2 e 3), a possibilidade do juiz ampliar a matéria de facto a partir de factos resultantes da instrução e discussão da causa (art. 265º nºs 2 e 3). Ainda a este propósito entendemos sublinhar o que sobre a questão se referiu no Acórdão do STJ de 29-1-1998 já acima referenciado: “A mais elementar razão de sã justiça, de equidade, veda a solução de se absolver o réu apesar de demonstrada a realidade da sua obrigação; mas também se revela inadmissível, intolerável que o juiz profira condenação à toa. Por isso o legislador ditou a regra da condenação no que se liquidar em execução de sentença – art. 661º nº 2 do Código de Processo Civil -“.
Aliás o entendimento que perfilhamos era já o mais seguido, antes da dita reforma processual (vide., entre outros, o Ac. do STJ de 27-1-93 ( Col. Jur., Acs. STJ, 1993, 1º, 89 ).
A posição assumida na douta sentença, foi, pois, correcta.
Em defesa da sua tese, sustenta ainda a apelante que ao se conceder ao demandante a possibilidade legal de, na fase executiva, provar factos por si alegados mas não provados na fase declarativa, constitui a violação do princípio da “igualdade de armas” para os litigantes, consagrado no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
O art. 6º desta Convenção refere genericamente que qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial estabelecido por lei. O mesmo é estipulado pelo art. 20º nº 4 da Constituição da República Portuguesa.
No caso dos autos evidentemente que não está em causa, nem a apelante tal invoca, o julgamento do processo num prazo razoável e por um tribunal independente e imparcial. Segundo a recorrente, não será equitativo dar-se a possibilidade ao demandante de tentar, de novo, produzir prova quanto ao montante dos danos verificados.
Ora, como já vimos, é, precisamente, por razões de justiça material que tal possibilidade é concedida ao lesado.
Quanto à desigualdade de que, no seu entender, o procedimento em causa implica, sublinharemos que o art. 13º da Constituição estabelece o princípio da igualdade segundo o qual todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. Impede, pois, este princípio que a lei “estabeleça distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável, ou sem qualquer justificação objectiva e razoável. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral da proibição do arbítrio (in Ac. do Trib. Const. de 11-1-00, D.R. II Série de 19-10-00, pág. 16930). Nesta conformidade não se impede que a lei defina as circunstâncias justificadoras de uma diversidade quando entenda serem diferentes as situações que visa regular. O princípio não proíbe que se estabeleçam distinções. Proíbe sim e só o arbítrio.
Já se viu que a possibilidade de liquidação, ao lesado, do montante dos danos em liquidação de sentença, é concedida pela lei como forma de atingir a justiça material. Provada a existência de danos, seria algo formal e inadmissível que, por falta de concretização do montante dos prejuízos, o lesado, acabasse por não receber qualquer prestação por parte do lesante. A segunda oportunidade de prova ao lesado de que fala a recorrente, tem, portanto, plena justificação. Isto é, esse segundo ensejo de prova, é razoável e proporcionado como meio de obter a justa composição dos interesses das partes. Por outro lado, uma vez interposto o incidente de liquidação dos danos (art. 378º do C.P.Civil), evidentemente que ao demandado cabe a possibilidade de contestar a liquidação efectuada pela parte contrária. Assim, logo que notificado para contestar, compete ao demandado pronunciar-se sobre o valor das lesões (e só a concretização dos respectivos prejuízos está em causa no processo), contestando e impugnando, se o entender, os valores apresentados pala contra-parte (art.380º do C.P.Civil). Nessa medida o contraditório está assegurado pelo que não se poderá, neste âmbito, falar em diversidade de armas.
Quer dizer que, também por este prisma, a recorrente carece de razão.
Sustenta, por outro lado, a apelante, que o nº 3 do art. 803º do C.Civil, quando na sentença se relegue a liquidação da indemnização para a sua execução por o credor não ter provado factos por si alegados para a quantificação do montante indemnizatório, deve ser interpretado no sentido de o momento da constituição em mora do devedor ser o da sua citação para os termos da liquidação, pelo que só a partir dessa citação são devidos juros.
Entramos, assim, na segunda questão acima delineada.
Na douta sentença recorrida, como se viu, a R. foi condenada nas quantias mencionadas, acrescidas de juros moratórios, a contar da citação e até integral pagamento.
Terá sido este procedimento correcto? Ou, pelo contrário, os juros moratórios pedidos, deverão ser contabilizados, apenas, a partir da citação da demandada no incidente de liquidação.
Como se sabe, a mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao devedor, sendo que o devedor se constitui em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação ainda possível, não foi efectuada no tempo devido (art. 804º nºs 1 e 2 do C.Civil). De harmonia com o art. 806º nºs 1 e 2 ainda do mesmo diploma legal, na obrigação pecuniária, a indemnização corresponde ao juros a contar da constituição em mora, sendo estes os legais, salvo se antes da mora for devido juro mais elevado ou as partes hajam convencionados outros. Estabelece, por sua vez o art. 805º do mesmo Código e quanto ao momento da constituição da mora, que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicialmente ou extrajudicialmente para cumprir. Porém, o nº 2 da disposição, estabelece mora do devedor, independentemente de interpelação, em diversos casos, dentre os quais destacaremos a hipótese de a obrigação provier de facto ilícito. Ou seja, neste caso a mora não depende de interpelação do devedor para cumprir. Acrescenta o nº 3 da disposição que “se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constituiu-se em mora desde a citação, a menos que já haja mora, nos termos da primeira parte deste número”. Por conseguinte, face a esta disposição, em principio, no caso de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação. Só assim não será se o devedor estiver já, nessa altura, em mora, por a falta de liquidez lhe ser imputável ou, evidentemente, caso o crédito já se tiver tornado líquido.
Portanto, transpondo este entendimento para o caso vertente (em que está em causa a responsabilidade por facto ilícito), não estando provada que a devedora estivesse já, na altura da citação, em mora, a citação será o momento da constituição da mora, como, aliás, se decidiu na decisão recorrida.
A norma em análise, é clara ao falar que o devedor se constitui em mora desde a citação. A citação a que se refere só pode ser a efectuada no processo declarativo [11 A citação é, por essência, o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender (art. 228º nº 1 do C.P.Civil).], até porque, hoje, face ao incidente de liquidação (em execução de sentença) a que alude o art. 378º nº2 do C.P.Civil, não existe propriamente uma citação, mas sim uma notificação para oposição à liquidação efectuada.
Entende a recorrente nos termos do art. 813º do C.Civil, o credor incorre em mora quando não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação, sendo certo que, neste caso, a partir da mora do credor e enquanto esta se mantiver, a dívida deixa de vencer juros (art. 814º do mesmo Código). Assim sendo e feita a aplicação destes princípios ao caso de obrigações ilíquidas emergentes de facto ilícito, teremos que o devedor se constitui em mora, quando o credor pratica o acto necessário para o cumprimento da obrigação. Mas se na acção declarativa o credor não consegue praticar todos os actos necessários ao cumprimento a obrigação pelo devedor, designadamente por não ter provado todos os factos necessários de quantificação da indemnização, com a consequente relegação para execução da sentença, então o credor incorre em mora. A relegação para execução de sentença da fixação do montante indemnizatório, é-lhe imputável, por não ter praticado todos os factos necessários ao cumprimento da obrigação pelo devedor. Logo a mora do credor, que teria cessado com a propositura da acção e citação do devedor, acaba por se manter e só cessará quando o devedor venha a ser citado para os termos da liquidação em execução de sentença. Quer dizer, mediante esta construção, a recorrente sustenta que os credores, os AA., por não terem logrado liquidar os montantes indemnizatórios na acção declarativa, se encontram em mora.
Nos termos do art. 813º do C.Civil, o credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação. Colocando de parte, por não ter aqui cabimento, a não aceitação da prestação oferecida, haverá mora do credor quando ele não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação. A recorrente sustenta que esta omissão ocorre no caso vertente, em virtude de os demandantes não terem logrado liquidar a obrigação no processo declarativo. Portanto a questão que urge colocar será a de saber se essa falta, poderá ser integrada na formulação legal de ausência da prática «dos actos necessários ao cumprimento da obrigação».
Para existir mora do credor é, a nosso ver, necessário que, desde logo, se prove que a obrigação esteja em condições de ser cumprida, o devedor deseje efectuar o cumprimento e o credor se recuse a realizar os actos indispensáveis a essa execução. Só nestas condições se poderá dizer que o credor não praticou «os actos necessários ao cumprimento da obrigação». Demos a palavra ao Prof. Inocêncio Galvão Telles que sobre o assunto, refere: “Se o credor, injustificadamente, omite a cooperação ou colaboração necessária de sua parte, se por exemplo não vai nem manda receber a prestação ou se recusa a recebê-la ou a passar recibo, a obrigação fica por satisfazer, verifica-se pois um atraso no cumprimento, mas tal atraso não é atribuível ao devedor e sim ao credor. É este que incorre em mora. A «mora credotoris» supõe, do lado do devedor, que ele tinha a faculdade e possibilidade de cumprir e fez quanto lhe competia para o efeito, designadamente na data do vencimento da obrigação e no lugar fixado para o cumprimento ofereceu a prestação. E supõe, do lado do credor, que este se absteve de colaborar: por exemplo recusou a prestação oferecida” (in Direito das Obrigações, 7ª edição, pág. 314). Isto é, segundo este autor, para existir mora creditoris é necessário, antes de mais, que se prove que a obrigação estava em condições de ser cumprida e o devedor desejava efectuar o cumprimento, fazendo o que competia para o efeito. Ora, não é isso que se verifica no caso, porque não só a obrigação (ainda) não está em condições de ser cumprida (visto que se desconhece o montante certo a que monta), como também não se demonstra (nem sequer a recorrente o alega) que a devedora (a R.) manifestou a disposição de prestar aos AA., qualquer quantitativo e que estes o recusaram. Não se poderá, pois, sustentar ocorrer, no caso, a mora do credor. Assim, a falta em questão (não liquidação do montante de indemnização no processo declarativo), nunca poderá ser integrada na formulação legal de ausência da prática «dos actos necessários ao cumprimento da obrigação».
Nesta conformidade, a decisão recorrida que condenou a R. no pagamento dos supra-referenciados montantes acrescidos de juros de mora a contar da citação, é correcta.
O recurso é insubsistente in totum.
III- Decisão:
Por todo o exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando a douta sentença recorrida.
Custas pela apelante.