Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1017/03.9TBGRD-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: FALÊNCIA
SALÁRIO
APREENSÃO
Data do Acordão: 10/24/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 150º Nº1 DO DL Nº 132/93, DE 23/04 (CPEREF), 84º Nº1 DO DL Nº 53/04, DE 18/03 (CIRE), 824º NºS 1 AL.A), 2,3,4,E,5,DO CPC
Sumário: O produto do trabalho (vencimento/salário) do falido, após a declaração da falência respectiva, está, em absoluto, fora do conjunto de bens ou direitos susceptíveis de apreensão em benefício da massa falida e, através dela, dos credores, não podendo ser apreendido, distinguindo-se, portanto, da penhora do salário do executado no processo executivo.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível da Relação de Coimbra:

Em autos de falência a correr termos no 2º Juízo da Comarca da Guarda, nos quais é Requerente a A... e são Requeridos B... e mulher C..., foi pelo Sr.º Liquidatário da massa falida solicitada a apreensão, "na parte legalmente admissível", da remuneração/vencimento da Requerida, professora do ensino oficial. Ordenada e efectuada a "penhora" - isto, é apreensão - de 1/3 daquele vencimento, foi promovido o início dos descontos pertinentes na CGD pelo Ministério da Educação. Notificada, a Requerida C... entendeu então requerer o levantamento da decretada apreensão, por não ser esta legalmente possível na falência, nem subsidiariamente dever manter-se, dado pôr em risco a satisfação das suas elementares necessidades vitais.

Sobre esta pretensão, facultado o contraditório à Requerente da falência e ao Liquidatário, recaiu o despacho de fls. 3-4, pelo qual o M.mo Juiz, depois de afirmar que, respeitada a proporção legalmente admissível, o vencimento da falida é um bem susceptível de penhora e de apreensão, indeferiu o visado levantamento.
Inconformada agravou desta decisão a Requerida, rematando as suas alegações com conclusões em que, argumentando com as normas do art.º 182, nº 1, 238, 239 e 150 do CPEREF, pugna pela ilegalidade da apreensão do vencimento do falido.
Não houve resposta.

O M.mo Juiz sustentou o despacho recorrido.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

Com interesse, podem considerar-se assentes os seguintes factos:

Foi declarada a falência da Requerida-Agravante C....
A Requerida aufere como professora do ensino oficial do 3º ciclo do ensino secundário o vencimento líquido mensal de € 1.389,97.
Foi proferido despacho determinando a penhora de 1/3 do identificado vencimento da Requerida.
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A questão trazida pelo agravo respeita tão-só ao problema da possibilidade legal da apreensão do produto do trabalho (vencimento/salário) do falido após a declaração da falência respectiva.
É de tomar como adquirido que, atenta a data de registo dos autos, esta foi decretada ao abrigo do regime vigente em 2003, isto é, do chamado CPEREF (DL 132/93 de 23/04, com as alterações dos DL 157/97 de 24/06, 315/98 de 20/10 e 323/01 de 17/12) e, consequentemente, antes da entrada em vigor do CIRE, aprovado pelo DL 53/04 de 18/03.
Para o adequado enquadramento do problema importa ter presente os efeitos que decorrem da falência para o falido.
No regime anterior ao CPEREF, estabelecido no CPC, a falência era um instituto tendencialmente privativo do comerciante, só extensível a outras entidades nos casos especialmente previstos na lei (art.º 1135 do CPC). Esta tendência foi mitigada no art.º 125 do CPEREF e depois completamente abolida pelo art.º 2º do CIRE, cuja al.ª a) do nº1 prescreve poderem ser objecto de insolvência quaisquer pessoas singulares ou colectivas.
Em todos os apontados regimes, todavia, foi evidente a preocupação do legislador em não comprometer a subsistência do falido ou insolvente, poupando-lhe os meios da angariação do seu sustento pessoal e distinguindo estes meios da garantia patrimonial geral dos credores, mesmo quando estendeu a insolvência às pessoas singulares não comerciantes. É claro que o dinheiro resultante de descontos já operados por efeito de penhora em processo executivo no vencimento do falido, anteriormente à declaração de falência, nos termos do art.º 856 do CPC, constitui um bem da massa, devendo ter-se por apreendido em benefício dos credores (nºs 1 e 3 do art.º 175 do CPEREF).
Uma coisa é o acervo patrimonial dos bens adquiridos pelo falido com que estes razoavelmente podem contar - a massa falida (agora insolvente). Outra, bem distinta, é a realidade física e jurídica da pessoa do falido, após a declaração de falência, seja ou não titular de uma empresa ou de uma actividade comercial, com os respectivos direitos de personalidade (art.º 70 do CC), cuja tutela sobreleva mesmo aos direitos dos credores quando com eles se cruze. É por isso que, mesmo no regime universal da insolvência introduzido pelo CIRE, ainda assim se prevê, no art.º 84, nº 1, que " Se o devedor carecer absolutamente de meios de subsistência e os não puder angariar pelo seu trabalho, pode o administrador da insolvência, com o acordo da comissão de credores, ou da assembleia de credores, se aquela não existir, arbitrar-lhe um subsidio à custa dos rendimentos da massa insolvente, a título de alimentos". Tão pouco se trata aqui de um caso de uma disposição em contrário à regra da assimilação à massa de todos os bens e direitos, ainda que futuros, do insolvente, estabelecida no nº 1 do art.º 46 do CIRE. De certa forma, o que se verifica é uma separação, não propriamente de patrimónios, mas de realidades jurídicas diversas, autonomizando-se ou cindindo-se na entidade do insolvente - pessoa singular a valência do fundamental direito individual à retribuição pelo esforço do trabalho tendo em vista a viabilidade de uma ulterior recuperação económica.
Norma em tudo similar à do nº 1 do art.º 84 do CIRE é a do nº 1 do art.º 150 do CPEREF cujo teor se transcreve: "Se o falido ou, no caso de sociedades ou pessoas colectivas, os seus administradores carecerem absolutamente de meios de subsistência, e os não puderem angariar pelo seu trabalho, pode o liquidatário, com o acordo da comissão de credores, arbitrar-lhes um subsídio, a título de alimentos e à custa dos rendimentos da massa falida".
Poderia parecer que no confronto entre o legítimo direito do falido a uma vida condigna sem os proventos do trabalho (que não pode obter) e os direitos dos credores sobre a massa falida o legislador apenas quis evitar a colocação um virtual conflito ou potencial colisão de direitos (art.º 335, nº 2 do Código Civil), de que teria saído prevalente o primeiro, de espécie e valor inegavelmente superior. Mas o princípio que o aludido comando do nº 1 do art.º 150 do CPEREF verdadeiramente encerra é o de que o produto do trabalho do falido - trabalho este que o mesmo, legítima e naturalmente, quer prosseguir, quiçá na perspectiva da sua ulterior reabilitação - está em absoluto fora do conjunto de bens ou direitos susceptíveis de apreensão em benefício da massa e, através dela, dos credores.
Objectar-se-á que a situação apresenta total paralelismo com a penhora do salário do executado, que a lei, em princípio, apenas veda em parte, nos termos do art.º 824, nºs 1 al.ª a), 2, 3, 4 e 5 do CPC.
Salvo o respeito devido, só a partir de uma análise menos cuidadosa poderá vir a surpreender-se esse paralelismo.
É que no processo executivo, o executado, ao contrário do falido - ou presentemente do insolvente - não sofre a privação imediata da administração e do poder de disposição de todos os seus bens presentes e futuros, nos termos do nº 1 do art.º 147 do CPREF (correspondendo ao actual art.º 81 do CIRE). Ali - na execução - o executado apenas tem uma indisponibilidade relativa dos bens ou direitos penhorados, não ficando inibido de auferir os proventos ou rendimentos dos restantes bens ou mesmo de os alienar ou onerar na sua plenitude. Aqui - na falência - o falido deixa de poder alienar qualquer dos seus bens ou de fruir a respectiva rentabilização, não se compreendendo que os credores ainda pudessem pagar-se, a partir da declaração de falência, do produto do trabalho que permite ao falido, não apenas fazer face aos efeitos negativos desta, como conduzir a regularização da sua vida pessoal, para poder encetar novas iniciativas económicas após a respectiva reabilitação.
Procedem, pois, integralmente as conclusões da agravante.

Pelo exposto, concedendo provimento ao agravo, revogam o despacho recorrido, determinando o levantamento da apreensão do vencimento da falida-agravante, bem como a restituição a esta de todas as quantias eventualmente já descontadas.
Sem custas.