Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3013/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE DO FGA
Data do Acordão: 01/11/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SANTA COMBA DÃO - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS.25º, Nº 1, E 29º, Nº 6, DO DL 522/85 ; 592º E 593º DO C. CIV. .
Sumário: I – O F.G.A. surge como mero garante do pagamento das indemnizações devidas a terceiros lesados em consequência de um acidente de viação, ficando sempre com a faculdade de reaver dos responsáveis principais as quantias que houver despendido e nessa medida fica legalmente subrogado nos direitos do lesado .
II – Como corolário lógico impõe-se o litisconsórcio necessário passivo entre o FGA e o responsável civil , quando este seja conhecido e não beneficie de seguro válido ou eficaz, visando-se facilitar e tornar célere a aplicação do direito , com a condenação solidária dos demandados .
III – Trata-se, no entanto, de uma solidariedade imprópria, visto que no plano exterior o lesado pode exigir a qualquer dos responsáveis a satisfação do seu crédito, embora nas relações internas só o FGA fique rogado nos direitos do lesado, dada a sua posição de garante .
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

O Autor – A... – instaurou, na Comarca de Santa Comba Dão, acção declarativa, com forma de processo sumário, contra os Réus:
1) - B...;
2) - C...;
3) - D...;
4) - E....

Alegou, em resumo:
No dia 12/8/2000, na IP3, ocorreu um acidente de viação entre o veículo RH-06-76, conduzido pelo Autor, seu proprietário, e o veículo EX-62-63, conduzido pelo Réu António Ribeiro e pertencente à Ré Maria Alice.
O acidente ficou a dever-se à culpa exclusiva do condutor do EX, visto que circulando ambos os veículos no sentido Coimbra/Viseu, fez uma repentina manobra de inversão de marcha.
Em consequência, o Autor sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais.
O veículo EX estava seguro na Mundial Confiança, mas comunicando esta a anulação do contrato de seguro, demanda à cautela o Fundo de Garantia Automóvel.
Pediu a condenação:
a) - Da 1ª Ré a pagar-lhe a quantia de 1.527.882$00, acrescida de juros de mora, desde a citação e até integral pagamento;
b) - Na eventualidade de ser julgada anulada a apólice de seguro, a condenação solidária dos réus Fundo de Garantia Automóvel (este com o limite da franquia de Esc. 60.000$00), D... e E... no pagamento da aludida quantia de Esc. 1.527.882$00 e respectivos juros aludidos.
Contestaram os Réus, em síntese:
O Fundo de Garantia Automóvel, impugnado, por desconhecimento, os factos alegados.
Os Réus António Ribeiro e Maria Alice Gil, defendendo-se por impugnação, ao imputar ao Autor a culpa exclusiva no acidente.
A B... excepcionou a sua ilegitimidade passiva.
Respondeu o Autor à defesa por excepção.
No saneador foi a Ré B... julgada parte ilegítima e absolvida da instância, afirmando-se quanto ao mais a validade da lide.
Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, decidiu:
a) - Absolver a Ré Maria Alice Santos Gil do pedido contra si formulado.
b) - Condenar solidariamente os Réus D... e Fundo de Garantia Automóvel a pagar ao autor, a título de danos patrimoniais, a quantia de € 4.328,26 – quatro mil trezentos e vinte e oito euros e vinte e seis cêntimos (€ 3.979,82 + 648,44, deduzidos € 300,00, pois que estes últimos ficam a cargo apenas do réu D..., nos termos do que dispõe o art. 21º, n.º 2, al. b) e n.º 3 DL 522/85, de 31.12), acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento;
c) - Condenar, ainda, o Réu D... a pagar ao autor a importância de € 300,00 (trezentos euros) nos termos do disposto no art. 21º, n.º 2, al. b) e n.º 3 DL 522/85, de 31.12).
d) - Condenar os Réus D... e o Fundo de Garantia Automóvel – este com o limite do valor da franquia de € 300,00 - a pagar ao autor a importância que se liquidar em execução de sentença e relativa ao valor do dano sofrido com a desvalorização do veículo, por força do acidente;
e) - Condenar o Réu D... a pagar ao Autor a importância de € 500,00 (quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais (indemnização pelos danos sofridos como consequência da sua impossibilidade de utilizar o veículo sinistrado).
f) - Absolver os Réus do demais peticionado.
Inconformado, o Réu Fundo de Garantia Automóvel interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1º) - Da matéria que serva para a fundamentação de factos é relevante para a boa decisão da causa é relevante:
“ 3- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em A), o veículo KH circulava no sentido Coimbra Viseu e A sua frente e no mesmo sentido circulava o veículo EX
“ 4- Ambos os veículos circulavam a uma velocidade aproximada de 80 km/hora, na faixa mais à direita, atento o seu sentido de marcha.
“ 7- Surpreendido por tal manobra do condutor do EX, quando estava a escassos15/20 metros (…)
“ 10- A via no local tem 10,85 metros de largura, dividida por três faixas de rodagem, sendo duas para o trânsito que circulava no sentido Coimbra- Viseu, divididas entre si por uma linha longitudinal descontínua de cor branca...
“ 11- e uma para o transito que circulava no sentido Viseu /Coimbra (…)
“ 12- O embate ocorreu na faixa mais à esquerda das duas referidas em 11), ou seja na faixa do meio considerando a largura total da via.
“ 13- O embate ocorreu a 4,75 metros do limite lateral esquerdo da via considerando a largura na sua totalidade e o sentido Coimbra/ Viseu.
“ 15- (…) o veículo RH ficou na faixa do meio, ou seja, na faixa referida em 12) e a 14,60 metros do local do embate
“ 18- A isto acresce o custo de quatro pneus de baixo perfil que ficaram inutilizados(…)
2º) - Da análise do A.O. releva entre outros elementos o facto de o RH ter deixado marcado no pavimento até ao local de embate uma travagem de 30 metros e, após o violento embate entre ambos os veículos, projectando o EX para a hemi-faixa contrária fazendo-o rodopiar sobre si, apenas se deteve a 4,60 metros.
3º) - Efectuando o RH uma travagem de 30 metros não podia circular a 15/20 metros do EX, até porque este passou a circular a menor velocidade antes do RH ter iniciado a travagem.
4º) - Para um veículo das características de um Audi 80 Turbo Diesel, que circulasse a 80 Km/hora, 30 metros eram mais que suficientes para deter a sua marcha, ou pelo menos diminuir consideravelmente a velocidade que o animava e, tendo completamente desempedida a hemi faixa de rodagem da direita, prosseguir o seu caminho sem embater no EX.
5º) - Há contradição entre a fundamentação de facto nos pontos 4 e 18, por não ser possível à velocidade de 80 km/hora, pneus de baixo perfil sofrerem os danos descritos pelo que, a ter o juiz " a quo" aceite como verdadeiro os depoimentos das testemunhas do Autor, não pode dar como provado que o RH seguia àquela velocidade devendo, pela análise de todos os elementos ( A.O., travagens descritas, local do embate, projecção do veiculo EX e danos nos quatro pneus que ficaram " quadrados") considerando-se que o RH circulava a mais de 150 km/hora.
6º) - Circulando o RH a mais de 150 km/hora não se pode considerar que o condutor do EX fosse o único e exclusivo responsável pela produção do acidente descrito nos autos.
7º) - Praticando o Autor uma condução temerária e em desrespeito pelas regras estradais, também ele é responsável, na proporção de 50%, na produção do acidente descrito nos autos devendo, em conformidade, ser alterada a decisão do Tribunal " a quo" por outra que reflicta a repartição de responsabilidades entre ambos os condutores.
8º) - As acções tendentes à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, inexistindo seguro válido ou eficaz devem ser obrigatoriamente propostas contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil.
9º) - Responsável civil é, não só o condutor do veículo, como também o respectivo proprietário que não tenha feito prova da utilização abusiva do mesmo
10º) - É sobre o proprietário do veículo que impende a obrigação de celebrar contrato de seguro pelo qual transfira para uma Companhia Seguradora a responsabilidade civil decorrente da sua circulação, garantindo o referido contrato, igualmente, a responsabilidade dos legítimos detentores e condutores do veículo.
11º) - Presume-se, e ficou provado, que a demandada Maria Anjos Gil, enquanto proprietária do veículo de matrícula EX-62-63, possui a sua direcção efectiva.
12º) - Presume-se, e ficou provado, que a mesma demandada tem interesse na circulação do referido veículo;
13º) - Os desvios ao conteúdo normal do direito de propriedade devem ser provados.
14º) - Cabe à demandada, Maria Anjos Gil, provar, o que não fez, a eventual utilização abusiva do seu veículo para afastar as presunções referidas.
15º) - Não o tendo feito, como resulta da matéria dada como provada, deve a demandada Amaria Anjos Gil ser condenada solidariamente com o condutor D... e o ora Recorrente no pagamento do valor indemnizatório a ser arbitrado ao Recorrido.
16º) - Violou a sentença recorrida os artigos 668 do CPC, 29 nº6, 26 nº3 do D.L.522/85, de 31 de Dezembro e os artigos 287, 288, 500 nº1, 503 nº1 e 566, todos do Código Civil.
Contra-alegou o Autor preconizando a improcedência do recurso.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Delimitação do objecto do recurso:
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:
a) - Se o Autor concorreu culposamente para a produção do acidente;
b) - Se a Ré Maria Alice deve ser responsabilizada solidariamente com o FGA.

2.2. – Os factos provados na 1ª instância:
1) - No dia 12 de Agosto de 2000, cerca das 21h00, ao Km 88,150 do IP3, concelho de Santa Comba Dão, ocorreu um acidente de viação, no qual foram intervenientes o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a matrícula RH-06-76, conduzido pelo autor, seu proprietário e o veículo automóvel, ligeiro misto, com a matrícula EX-62-63, conduzido pelo réu D... e propriedade da ré Maria Alice Santos Gil (Al. A) dos F.A.).
2) - À data do acidente o veículo EX-62-63 não se encontrava segurado por seguro válido e eficaz.
3 - Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em A), o veículo RH circulava no sentido Coimbra-Viseu e à sua frente e no mesmo sentido circulava o veículo EX (Resp. quesitos 1º e 2º).
4) - Ambos os veículos circulavam a uma velocidade aproximada de 80 Km/h, na faixa mais à direita, atento o seu sentido de marcha (Resp. quesito 3º).
5) - Sem que nada o fizesse prever e sem fazer qualquer sinalização, o condutor do EX resolveu repentinamente reduzir bruscamente a velocidade e inverter a marcha, atravessando-se à frente do RH, sendo sua intenção sair do IP 3 em direcção a Santa Comba Dão (Resp. quesitos 4º e 5º).
6) - Tendo-se apercebido naquele momento que já tinha passado o local onde o devia ter feito alguns quilómetros atrás (Resp. quesito 6º).
7) - Surpreendido por tal manobra do condutor do EX, quando estava a escassos 15/20 metros, o condutor do RH mais não pode fazer que meter travões a fundo e desviar-se para o seu lado esquerdo, todavia não conseguiu evitar a colisão entre a frente do lado esquerdo do seu veículo e a parte de trás do lado esquerdo do veículo EX (Resp. quesito 7º e 8º).
8) - O condutor do veículo EX não reparou, antes de iniciar a manobra que à retaguarda circulava o veículo RH (Resp. quesito 9º).
9) - O acidente ocorreu próximo da placa que indica a saída de Treixedo a 1500 metros de Santa Comba Dão (Resp. quesito 10º).
10) - A via no local tem 10,85 metros de largura, dividida em três faixas de rodagem, sendo duas para o trânsito que circula no sentido Coimbra-Viseu, divididas entre si por uma linha longitudinal descontínua de cor branca (Resp. quesito 11º e 12º).
11) - E uma para o trânsito que circula no sentido Viseu-Coimbra, separada das referidas anteriormente por linhas longitudinais adjacentes de cor branca, sendo à data do acidente, uma contínua e outra descontínua, ficando esta última à direita daquela, considerando o sentido Viseu-Coimbra, e actualmente ambas são contínuas (Resp. quesito 13º).
12) - O embate ocorreu na faixa mais à esquerda das duas referidas em 11), ou seja, na faixa do meio considerando a largura total da via (Resp. quesito 14º).
13) - O embate ocorreu a 4,75 metros do limite lateral esquerdo da via considerando a largura na sua totalidade e o sentido Coimbra-Viseu (Resp. quesito 15º).
14) - Após o embate, o veículo EX ficou na faixa do lado direito, considerando o sentido Viseu-Coimbra, a 5,60 metros do local onde aquele ocorreu (Resp. quesito 16º).
15 ) – E o veículo RH ficou a na faixa do meio, ou seja, na faixa referida em 12) e a 14,60 metros do local do embate (Resp. quesito 17º).
16) - Em consequência do acidente, o veículo RH sofreu danos que foram mais acentuados no pára-choques da frente, guarda lamas da frente, do esquerdo, frente do veículo, cava da roda, chassis, capot, grelhas, radiadores, termoventilador, ópticas de farol, resguardos, depósitos de óleo e água (Resp. quesito 19º).
17) - A reparação foi avaliada em Esc. 692.882$00, tanto quanto custou, sendo Esc. 108.000$00 de mão de obra, Esc. 70.000$00 de pintura, Esc. 414.207$00 de peças e Esc. 100.675$00 de IVA (Resp. quesito 20º).
18) - A isto acresce o custo de quatro pneus de baixo perfil que ficaram inutilizados, cujo custo importou em Esc. 105.000$00 (Resp. quesito 21º).
19) - O autor utilizava a viatura RH para se deslocar para todo o lado no âmbito da sua actividade profissional de chapeiro, bem como para a sua actividade pessoal, incluindo passear (Resp. quesitos 22º e 23º).
20) - E, no período para reparação do mesmo foi o autor obrigado a recorrer a viaturas alugadas, tendo pago, por isso, Esc. 130.000$00 (Resp. quesito 24º).
21) - Em consequência do acidente, o veículo do autor sofreu uma desvalorização (Resp. quesito 25º).
22) - Nenhum dos réus deu ordem de reparação da viatura (Resp. quesito 27º).
23) - O autor, decorridos três meses reparou o veículo (Resp. quesito 28º).
24) - Durante algum tempo, o autor socorreu-se de viaturas de amigos (Resp. quesito 29º).
25) - O autor teve incómodos que sofreu com o acidente e com o facto de, diariamente e durante aqueles meses não poder dispor do veículo (Resp. quesito 31º).
26) - Na zona de Santa Comba Dão, o condutor do EX teve a necessidade de inverter o sentido de marcha, porquanto tinha já passado pela localidade para onde pretendia dirigir-se (Resp. quesito 32º).
27) - No local, existiam duas linhas longitudinais adjacentes, de cor branca, sendo à data do acidente, uma contínua e outra descontínua, ficando esta última à direita daquela, considerando o sentido Viseu-Coimbra (Resp. quesito 34º).

2.3. - 1ª QUESTÃO:
A sentença recorrida, na ponderação global da dinâmica do acidente, concluiu pela culpa exclusiva do condutor do EX, António Ribeiro, por haver violado as regras dos arts.35, 44, 45 nº1 d) do CE e art.60 do Dec.Reg. nº22-A/98 de 1/10.
Sustenta o apelante a existência de culpa concorrente por parte do Autor ( condutor do RH ), visto inferir-se dos factos instrumentais ( travagens descritas, local do embate, projecção do veiculo EX e danos nos quatro pneus que ficaram " quadrados" ) que circulava com excesso de velocidade, superior a 150 km/h, contrariamente ao decidido na resposta ao quesito 3º da base instrutória.
Para tanto, alegou contradição entre a fundamentação de facto nos pontos 4 e 18, tendo concluído pela violação genérica do art.668 do CPC, sem que houvesse concretizado qualquer das alíneas do nº1.
A admitir-se tratar-se da nulidade cominada no art.668 nº1 c) do CPC ( fundamentos em oposição com a decisão ), só ocorre quando os fundamentos de facto e de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão.
A contradição lógica entre a fundamentação e a decisão, corresponde, em certa medida, à contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial ( art.193 nº2 b) CPC ).
Trata-se de um vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso, o que não é o caso ( cf. ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág.686, ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol.V, pág.141
Porém, esta nulidade não abrange o erro de julgamento, seja de facto ou de direito, designadamente a não conformidade da sentença com o direito substantivo ( cf., por ex., Ac STJ de 21/5/98, C.J. ano VI, tomo II, pág.95 ).
Ora, o que apelante pretende pôr em causa é precisamente o erro de julgamento ( erro de facto ), por o tribunal ter dado como provado que o RH circulava a uma velocidade aproximada de 80 Km/h, visando assim a alteração da resposta ao quesito 3º da base instrutória.
Contudo, não impugnou a matéria de facto, na forma consentida pelo art.690-A do CPC e muito menos deu cabal cumprimento ao art.690 nº2 do CPC, sendo certo que a modificação da decisão de facto apenas tem lugar verificados os pressupostos do art.712 nº1 alíneas a), b) e c) do CPC.
Não especificando qualquer meio de prova que imponha decisão diversa, o apelante socorre-se de uma presunção judicial para infirmar o juízo de facto, ou seja, que os rastos de travagem, os pneus de baixo perfil e os danos, não poderia resultar de uma velocidade de apenas 80 Km/h, o que nos remete para o “ exame crítico da prova “.
O art.659 nº3 do CPC ao determinar que o juiz deve fazer “ o exame crítico das provas que lhe cumpre conhecer”, significa que na fundamentação devem ser atendidos além dos factos levados à base instrutória e provados ao abrigo do princípio da livre apreciação ( art.655 nº1 CPC ), os factos provados por documentos, desde que façam prova plena, os factos provados por confissão escrita, bem como os factos que por presunção judicial ( arts.349 a 351 do CPC ) é possível deduzir de outros devidamente comprovados ( cf. LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil, Anotado, vol.2º, pág.643, AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, pág.22 ).
Este exame é distinto do previsto no art.653 nº2 do CPC, que tem lugar quando, finda a produção de prova em audiência, se proceda à sua valoração para daí se partir para a decisão sobre o que está ou não está provado; este exame não deverá, porém, recair sobre provas que tenham força plena, já que, de acordo com o art. 646 nº 4 do CPC, se terão por não escritas as respostas dadas sobre factos que estejam plenamente provados.
As presunções judiciais, também designadas materiais, de facto ou de experiência ( art.349 do CC ), não são, em rigor, verdadeiros meios de prova, mas antes “ meios lógicos ou mentais ou operações firmadas nas regras da experiência “ ( VAZ SERRA, RLJ ano 108, pág.352 ), ou, noutra formulação, “ operação de elaboração das provas alcançadas por outros meios “ ( ANTUNES VARELA, RLJ ano 123, pág.58 nota 2), reconduzindo-se, assim, a simples “ prova da primeira aparência “, baseada em juízos de probabilidade.
Na definição legal, são ilações que o julgador tira de um facto conhecido ( facto base da presunção ) para afirmar um facto desconhecido ( facto presumido ), segundo as regras da experiência da vida, da normalidade, dos conhecimentos das várias disciplinas científicas, ou da lógica.
Porém, a Relação não pode modificar a resposta dada pelo tribunal a quo com fundamento numa presunção, se não ocorrer qualquer das hipóteses do art.712 do CPC ( cf., por ex., ANTUNES VARELA, RLJ ano 123, pág.49, em anotação ao Ac STJ de 13/2/85; TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pág.416; Ac STJ de 21/9/95, C.J. ano III, tomo III, pág.15 ).
Mantendo-se inalterada a resposta ao quesito 3º, relativamente à velocidade do RH ( 80 KM/h), resta indagar se houve violação da norma do art.24 nº1 do CE, por circular com velocidade excessiva, ou seja, se não parou no espaço livre e visível à sua frente, desrespeitando a “ distância de segurança”.

A regra de que o condutor deve adequar a velocidade de modo a permitir parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente pressupõe que não surjam condições anormais ou obstáculos inesperados, já que um condutor não é obrigado a contar com a imprudência alheia, dado o princípio da confiança.

No caso concreto, sabe-se que circulando ambos os veículos no mesmo sentido de marcha, o RH precedia o EX a uma distância de 15/20 metros, quando o condutor deste, sem que nada o fizesse prever e sem fazer qualquer sinalização, e com manifesta violação do dever de cuidado, reduziu repentina e bruscamente a velocidade e inverteu a marcha, atravessando-lhe à frente.
Neste contexto, nenhuma censura se impõe ao Autor, sendo apodíctico, tal como se justificou na sentença recorrida, que a culpa do acidente recai exclusivamente sobre o condutor do EX.

2.4. - 2ª QUESTÃO:
A segunda questão contende com a responsabilidade da Ré Maria Alice Gil, proprietária do veículo EX, a qual foi absolvida do pedido.
Reclama o apelante a condenação solidária, visto que sendo proprietária do veículo, presume-se ter a direcção efectiva do mesmo, que não ilidiu, logo sendo civilmente responsável, nos termos do art.503 nº1 do CC.
Nos termos do art.21 nº1 do DL 522/85 de 31/12, compete ao FGA satisfazer as indemnizações decorrentes de acidentes causados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal. E segundo dispõe o nº2 alínea b) do mesmo artigo o Fundo garante, em caso de acidente originado pelos veículos referidos no número anterior, a satisfação da indemnização por lesões materiais, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz.
Daqui resulta que o FGA surge como mero garante do pagamento do pagamento das indemnizações devidas a terceiros lesados em consequência do acidente, ficando sempre com a faculdade de reaver dos responsáveis principais as quantias que houver dispendido, e nessa medida fica legalmente sub-rogado nos direitos do lesado ( arts.25 nº1 do DL 522/85 e arts.592 e 593 do CC ).
Como corolário lógico, o art.29 nº6 do DL 522/85 impõe o litisconsórcio necessário passivo do FGA e do responsável civil, quando este seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz, visando, assim, facilitar ao máximo e com maior benefício de celeridade e economia processuais ao instituto público que garante aqui a socialização da condução automóvel, a efectivação dos seus direitos.
Com efeito, a intervenção do responsável civil ao lado do Fundo tem em vista, pelo menos três objectivos: (1) tornar acessível ao FGA, pela via mais autêntica do próprio interveniente do acidente, a versão deste e todo o material probatório que de outro modo não acederia; (2) facilitar ao lesado a satisfação do seu direito, permitindo-lhe optar entre o património do lesante faltoso e a indemnização meramente substitutiva do Fundo; (3) definir, logo na medida do possível e sem mais dispêndio processual, os pressupostos de facto e jurídicos em que há-de basear o direito de sub-rogação do Fundo estabelecido no art.25º do DL 522/85, o que não seria possível sem a presença desse responsável civil.
As razões justificativas do listisconsórcio implicam logicamente a necessidade de condenação solidária dos demandados, sob pena de se concluir que o legislador, ao traçar o regime processual da acção, estaria a criar uma pura inutilidade, limitando a intervenção do obrigado ao seguro “ a mero oficiante de corpo presente “ ( cf., neste sentido, o Ac RP de 8/5/96, C.J. ano XXI, tomo III, pág.225, Ac do STJ de 28/3/2001, C.J. ano IX, tomo I, pág.266 ).
Trata-se, no entanto, de uma solidariedade imprópria ou imperfeita, visto que no plano exterior o lesado pode exigir a qualquer dos responsáveis ( lesante ou FGA ) a satisfação do seu crédito, mas já nas relações internas, só o Fundo é que fica sub-rogado, dada a posição de garante, já que o obrigado principal será sempre o “ responsável civil “ ( cf., por ex., Ac RC de 20/5/2000, C.J. ano XXV, tomo III, pág.20, e de 15/1/2002, C.J. ano XXVII, tomo I, pág.10 ).
Nos casos em que haja culpa do condutor, o detentor do veículo pode ser chamado à responsabilidade com um duplo fundamento:
a) - Como detentor do veículo e criador do risco inerente à sua utilização, sendo a sua responsabilidade limitada, nos termos do art.508;
b) - Como comitente e, nessa medida, garante da obrigação de indemnização a cargo do comissário, sem limites pré-estabelecidos, cuja responsabilidade solidária pressupõe, neste caso, a alegação e prova de factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do art.500 nº1 do CC ( cf. Acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ de 30/4/96, BMJ 456, pág.19 ).
Afastada a alegada relação de comissão entre o condutor do EX e a sua proprietária, a Ré Maria Alice, e a consequente presunção de culpa ( art.503 nº3 do CC ), resta averiguar se a sua responsabilidade se ancora no nº1 do art.503 do CC.
Nele se atribui responsabilidade pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo a quem for detentor da direcção efectiva do mesmo e o utilizar no seu próprio interesse, sendo certo que tais elementos presumem-se na utilização do veículo pelo proprietário, porque cabem dentro do conteúdo do direito de propriedade, conforme prescreve o art.1305 do CC.
Na verdade, é hoje prevalecente o entendimento jurisprudencial e doutrinário de que sobre o proprietário do veículo impende a presunção natural de que o mesmo tem a sua direcção efectiva e o utiliza no seu interesse, ainda que conduzido por outra pessoa, incidindo sobre ele o ónus de demonstrar o contrário ( cf., por ex, Ac do STJ de 25/10/83, BMJ 330, pág. 511, de 27/10/88, BMJ 380, pág.469, de 6/12/2001, C.J. ano IX, tomo III, pág.141 ).
Provada a propriedade do veículo sinistrante, sem que a Ré Maria Alice afastasse a presunção que sobre ela impendia de ter a direcção efectiva e interessada, responde nos termos do art.503 nº1 do CC, não lhe aproveitando a exclusão prevista no art.505 do CC, pois não é havido como terceiro o condutor ou qualquer outra pessoa encarregada do veículo ( cf. ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol.1º, 4ª ed., pág.518 ).
Mas sendo assim, a responsabilidade objectiva da Ré Maria Alice está limitada nos termos do art.508 do CC, e daí que a responsabilidade solidária se estenda até ao limite do risco.
O art. 508 nº1 do CC ( vigente à data do acidente ) prescrevia que a indemnização está limitada ao dobro da alçada da Relação.
Porém, o Dec. Lei nº59/2004 de 19 de Março alterou o art.508 do CC, passando o nº1 a ter a seguinte redacção:
“ A indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável, tem como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil “.
Com a alteração legislativa a querela jurisprudencial sobre a problemática da revogação tácita do art.508 do CC pelo art.6 do DL 522/85, de 31/12 ficou, assim, resolvida ou clarificada por via legislativa, ao repor-se expressamente a compatibilidade entre o art.508 e a Directiva 84/5/CEE de 30/12/83 ( Segunda Directiva ), acolhendo o legislador nacional a interpretação dada pelo Tribunal da Justiça das Comunidades no acórdão de 14/9/2000, assumindo a natureza de lei interpretativa.
Já depois da alteração legislativa, o STJ no Acórdão nº3/2004 de 25/3/2004 ( publicado no DR I-A de 13 de Maio de 2004 ) fixou a seguinte jurisprudência uniformizadora:
“ O segmento do art.508º nº1 do Código Civil, em que se fixam os limites máximos de indemnização a pagar aos lesados em acidentes de viação causados por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos em que não haja culpa do responsável, foi tacitamente revogado pelo artigo 6º do Decreto-Lei nº522/85, de 31 de Dezembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº3/96, de 25 de Janeiro “.
O Supremo Tribunal de Justiça acolheu, e a nosso ver bem, a tese da revogação tácita, também com o fundamento de que o DL 59/2004 tem natureza interpretativa.
Consequentemente, os limites máximos da indemnização pelo risco são os do limite mínimo do seguro obrigatório, em vigor à data do acidente ( 12/8/2000), ou seja, 120.000 contos, estabelecido pelo DL 3/96 de 25/1.
Note-se que também a responsabilidade do FGA está limitada a este valor, por imperativo do art.23 do DL 522/85, mas os danos liquidados não ultrapassam tal montante, nem é de prever que o relegado para liquidação posterior relativamente à desvalorização do veículo o atinge.
Em resumo, procede parcialmente o recurso, alterando-se em conformidade a sentença recorrida.


III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar parcialmente procedente a apelação e revogar a sentença na parte em que absolveu do pedido a Ré Maria Alice Gil.
2)
Alterar a sentença recorrida, nos seguintes termos:
2.1.) - Condenar solidariamente os Réus D..., E.... e Fundo de Garantia Automóvel a pagar ao Autor, a título de danos patrimoniais, a quantia de € 4.328,26 (quatro mil trezentos e vinte e oito euros e vinte e seis cêntimos), acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento;
2.2.) – Condenar solidariamente os Réus D... e E... a pagar ao autor a importância de € 300,00 (trezentos euros) nos termos do disposto no art. 21º, n.º 2, al. b) e n.º 3 DL 522/85, de 31.12).
2.3.) - Condenar solidariamente os réus D..., E... e o Fundo de Garantia Automóvel – este com o limite do valor da franquia de € 300,00 - a pagar ao Autor a importância que se liquidar em execução de sentença e relativa ao valor do dano sofrido com a desvalorização do veículo, por força do acidente;
2.4.) - Condenar solidariamente os Réus D... e Maria Alice Gil a pagar ao Autor a importância de € 500,00 (quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais (indemnização pelos danos sofridos como consequência da sua impossibilidade de utilizar o veículo sinistrado).
2.5.) - Declarar que, com excepção dos juros de mora, a responsabilidade da Ré Maria Alice Gil está limitada a € 598.557,57.
3)
Confirmar quanto ao mais a sentença recorrida.
4)
As custas na 1ª instância serão suportadas pelo Autor e Réus, na proporção do decaimento, estando o FGA delas isento, bem como das do recurso.
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COIMBRA, 11 de Janeiro de 2005.